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Instituto de Ciências Sociais Aplicadas

Programa de Pós-Graduação em Comunicação

Dissertação

Por uma analítica do ensaio


nos Dossiês da revista CULT:
formas de pensar a questão
Queer como tema da cultura

Janderson Silva

2021
Janderson Silva

Por uma analítica do ensaio nos Dossiês da revista CULT:


formas de pensar a questão Queer como tema da cultura

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Ouro Preto como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Comunicação.

Área de Concentração: Comunicação e


Temporalidades

Linha de Pesquisa: Práticas Comunicacionais e


Tempo Social

Orientador: Prof. Dr. Frederico de Mello Brandão


Tavares

Ouro Preto
2021
2
SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECAS E INFORMAÇÃO

S586p Silva, Janderson .


SilPor uma analítica do ensaio nos Dossiês da revista CULT [manuscrito]:
formas de pensar a questão Queer como tema da cultura. / Janderson
Silva. Janderson Silva. - 2021.
Sil141 f.: il.: color., tab..

SilOrientador: Prof. Dr. Frederico de Mello Brandão Tavares.


SilDissertação (Mestrado Acadêmico). Universidade Federal de Ouro
Preto. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-
Graduação em Comunicação.
SilÁrea de Concentração: Comunicação e Temporalidades.

Sil1. Cult (Revista). 2. Documentos. 3. Ensaios. 4. Teoria Queer. I. Silva,


Janderson. II. Tavares, Frederico de Mello Brandão. III. Universidade
Federal de Ouro Preto. IV. Título.

CDU 316.77

Bibliotecário(a) Responsável: Essevalter de Sousa-Bibliotecário ICSA/UFOP-CRB6a1407


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
REITORIA
INSTITUTO DE CIENCIAS SOCIAIS E APLICADAS
PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM COMUNICACAO

FOLHA DE APROVAÇÃO

Janderson Silva

Por uma analítica do ensaio nos Dossiês da revista CULT:


formas de pensar a questão Queer como tema da cultura

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação.

Aprovada em 22 de fevereiro de 2021

Membros da banca

Prof.(a). Dr.(a) Frederico de Mello Brandão Tavares - UFOP (Orientador(a) e Presidente)

Prof.(a). Dr.(a) Marcio de Vasconcellos Serelle - PUC-Minas

Prof.(a). Dr.(a) Cláudio Rodrigues Coração - UFOP

Prof.(a). Dr.(a) Frederico de Mello Brandão Tavares orientador(a) do trabalho, aprovou a versão final e autorizou seu
depósito no Repositório Institucional da UFOP em 21/10/2021.

Documento assinado eletronicamente por Frederico de Mello Brandao Tavares, PROFESSOR DE MAGISTERIO
SUPERIOR, em 04/11/2021, às 17:03, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do
Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

A autenticidade deste documento pode ser conferida no site http://sei.ufop.br/sei/controlador_externo.php?


acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0 , informando o código verificador 0240855 e o código CRC
2F8F6186.

Referência: Caso responda este documento, indicar expressamente o Processo nº 23109.007946/2020-46 SEI nº 0240855

R. Diogo de Vasconcelos, 122, - Bairro Pilar Ouro Preto/MG, CEP 35400-000


Telefone: - www.ufop.br
AGRADECIMENTOS

Quase três anos separam o início e o fim desta pesquisa. Parto de um “start” cheio de
expectativas para um encerramento paradoxal. De todo modo, alguns agradecimentos.

Aos meus pais, que não entendem muito bem o que “isso” significou, significa e vai significar.
Tudo está muito diferente agora, meus queridos.

À professora Astreia Soares. Jamais vou deixar de agradecer a você.

Às amigas e aos amigos, em especial, Luísa Campos, Amanda Magalhães, Maria Gorete, Maria
Valéria e João Alves. Ao Heyder, por permanecer e por todos os momentos que estão
guardados.

Ao corpo docente do PPGCOM-UFOP, principalmente ao professor Frederico Tavares pelo


apoio, paciência e aprendizado. Ao professor Cláudio Coração, pela melhor disciplina que tive
no Mestrado. Nela, pude reaprender a olhar.

À professora Denise Prado, sempre tão pontual em suas reflexões. Levo-as para a vida. À
professora Hila Rodrigues, cuja disciplina me muniu de mais lentes. À professora Karina
Barbosa, cuja disciplina me devolveu a paixão pelos livros.

Tive momentos de verdadeira explosão convivendo com todas e todos em sala de aula.

À Daysi Bregantini e Fernanda Paola, da CULT, por realizarem esse trabalho que, desde 2013,
vem me encantando e me desconsertando. Além disso, agradeço o tempo que dedicaram a mim,
em 2019, em nossa entrevista.

À Capes, pela bolsa de estudos, já que, sem isso, as coisas dificilmente teriam saído do lugar.
À Universidade Federal de Ouro Preto e à cidade de Mariana e Ouro Preto.

À banca examinadora, professores Márcio Serelle, da PUC-Minas e, novamente, ao professor


Cláudio Coração, da UFOP, pela leitura atenta, generosa, mas não menos crítica.
“Nossa verdade possível tem que ser invenção, ou seja, escrita, literatura, pintura, escultura,
agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma
tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas”.

Júlio Cortázar em “O Jogo da Amarelinha”.

2
“– Em que tempo queres viver?
– Quero viver no particípio imperativo do futuro, na voz passiva – no “deve ser”.

Óssip Mandelstam em “O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia”.

3
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

RESUMO

Nesta pesquisa, discutimos como a relação entre o Ensaio e seus articulistas pode ser lida no
conjunto de textos que trata a questão Queer como tema da cultura, orientado por um gestual
ensaístico realizado em Dossiês da revista CULT. Partindo de uma problematização sobre o
ensaio, seus lugares e sentidos na e a partir da revista, observamos como os textos presentes
nos Dossiês das edições #185, #193, #196, #202, #205 e #226, que se voltam exclusivamente
para teorias e aspectos cultuais que estão em volta da questão Queer, refletem criticamente,
numa espécie de cadência, seus temas em função do tempo em que se inserem. A revista CULT
publica Dossiês desde a sua edição inaugural, lançada em julho de 1997, seção muito evidente
na revista até os dias atuais. Sendo assim, realizou-se um apanhado geral dos Dossiês
publicados até a edição #264, de dezembro de 2020, na busca por materiais que constituíssem
um quadro temático específico. Partindo dessa trajetória editorial, colocamos tal conjunto em
evidência, observando seus aspectos constitutivos: lugares de incidência ensaístico-textual,
organização argumentativa, quadro constitutivo de autores/autoras e instituições, suas funções
na construção dos materiais e suas movimentações. Disso, refletimos sobre o ensaio como
experiência transitória e seu gestual interpretativo, sobre os agentes promovedores dessas
ações, denominados na dissertação como intelectuais-acadêmicos, e a relação desses com uma
produção crítica acerca da contemporaneidade. Busca-se compreender como tal quadro incide
sobre a produção dos Dossiês sobre a temática Queer em determinado contexto e o que isso
viria a provocar enquanto tema da cultura e problema da intelectualidade.

Palavras-chave: Dossiê; Ensaio; Queer; Revista CULT.

4
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.

ABSTRACT

In this research, we discuss how the relationship between the Essay and their writers can be
read in set of texts that deal with the Queer issue as a theme of culture, guided by an essayistic
gesture carried out in Dossiers of CULT magazine. Starting from a problematization about the
essay, their places and meanings in and from the magazine, we observe how these texts present
in Dossiers of issues #185, #193, #196, #202, #205 and #226, which focus exclusively on
theories and cultural aspects that are around the Queer issue, reflect, in a kind of cadence, their
themes critically as a function of the time in which they are inserted. CULT magazine has
published Dossiers since inaugural edition, launched in July 1997, a very evident section in the
magazine to this day. Therefore, an overview of the Dossiers published up to issue #264,
December 2020, was carried out in the search for materials that constituted a specific thematic
framework. Based on this editorial trajectory, we put this set-in evidence by observing
constitutive aspects: places of essay-textual incidence, argumentative organization, constitutive
framework of authors and institutions, their functions in the construction of materials and their
movements in Dossiers. From this, we reflect on the essay as a transitory experience and an
interpretive gesture, on the agents promoting these actions, called in the dissertation as
intellectual-academics, and their relationship with a critical production about contemporaneity.
We aim to understand how such a framework affects the production of Dossiers on the Queer
theme in each context and what this would cause as a cultural theme and a problem of
intellectuality.

Keywords: Dossier; Essay; Queer; CULT magazine.

5
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – Edição 185, de novembro de 2013


FIGURA 02 – Edição 193, de agosto de 2014
FIGURA 03 – Edição 202, de junho de 2015
FIGURA 04 – Edição 226, de agosto de 2017
FIGURA 05 – Edição 251, de novembro de 2019
FIGURA 06 – Editorial publicado na edição 57, de maio de 2002
FIGURA 07 – Edição 1, de julho de 1997
FIGURA 08 – Edição 2, de agosto de 1997
FIGURA 09 – Edição 11, de junho de 1998
FIGURA 10 – Edição 12, de julho de 1998
FIGURA 11 – Edição 17, dezembro de 1998
FIGURA 12 – Edição 22, de maio de 1999
FIGURA 13 – Edição 28, de novembro de 1999
FIGURA 14 – Edição 29, de dezembro de 1998
FIGURA 15 – Edição 35, de junho de 2000
FIGURA 16 – Edição 36, de julho de 2000
FIGURA 17 – Edição 41, de dezembro de 2000
FIGURA 18 – Edição 48, de julho de 2001
FIGURA 19 – Edição 55, de fevereiro de 2002
FIGURA 20 – Edição 56, de março de 2002
FIGURA 21 – Edição 57, de maio de 2002
FIGURA 22 – Edição 59, de julho de 2002
FIGURA 23 – Edição 60, de agosto de 2002
FIGURA 24 – Edição 61, de setembro de 2002
FIGURA 25 – Edição 143, de fevereiro de 2010
FIGURA 26 – Edição 150, de setembro de 2010
FIGURA 27 – Edição 153, de dezembro de 2010
FIGURA 28 – Edição 179, de maio de 2013
FIGURA 29 – Edição 183, de setembro de 2013
FIGURA 30 – Edição 186, de dezembro de 2013
FIGURA 31 – Edição 196, de novembro de 2014
FIGURA 32 – Edição 198, de fevereiro de 2015
6
FIGURA 33 – Edição 205, de setembro de 2015
FIGURA 34 – Edição 208, de dezembro de 2015
FIGURA 35 – Edição 214, de julho de 2016
FIGURA 36 – Edição 219, de dezembro de 2016
FIGURA 37 – Edição 249, de setembro de 2019
FIGURA 38 – Edição 250, de outubro de 2019
FIGURA 39 – Edição 254, de fevereiro de 2020
FIGURA 40 – Edição 185, de novembro de 2013
FIGURA 41 – Edição 193, de agosto de 2014
FIGURA 42 – Edição 196, de novembro de 2014
FIGURA 43 – Edição 202, de setembro de 2015
FIGURA 44 – Edição 226, de agosto de 2017

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

PARTE I – O ensaio como objeto na revista CULT ........................................................... 24

1. Um gênero irrequieto ......................................................................................................... 24

1.1. Lugares e sentidos do ensaio na (e a partir de) CULT .................................................. 33

2. Uma revista em constante formação................................................................................. 39

2.1. Revista Brasileira de Literatura ..................................................................................... 39


2.1.1. Virada editorial e seus contextos ............................................................................................ 44
2.2. Revista Brasileira de Cultura ........................................................................................ 49

3. CULT e as questões (críticas) do tempo ........................................................................... 64

3.1. Entre opinião e a construção de grandes ideias: intelectuais-acadêmicos .................... 69

PARTE II – Uma trajetória editorial: o Queer em questão ............................................... 80

1. Ponto de partida: perspectivas téorico-introdutórias ..................................................... 81

1.1. O Queer e a filosofia: ponto inaugural .......................................................................... 81

1.2. Queer em trânsito: um conceito em evidência .............................................................. 86

1.3. Um ensaio transversal: rumo à analítica de contextos .................................................. 92

2. Óticas contextuais: perspectivas analítico-situacionais .................................................. 94

2.1. Constante processo de amadurecimento ....................................................................... 94

2.2. Uma seção transversal: ponte especial entre edições .................................................. 108

2.3. Tangenciando a dimensão da vida .............................................................................. 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 117

O Queer como tema da cultura e o problema da intelectualidade ..................................... 121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 124

APÊNDICE – Entrevista com Fernanda Paola (Diretora de conteúdo da CULT)........ 128

ANEXO – Acervo pessoal de revistas do pesquisador ...................................................... 134

8
INTRODUÇÃO

É sempre difícil saber por onde começar.


Comecemos exatamente por essa dificuldade e aí temos um ponto. Esta dissertação fala
do ponto como pausa, lugar de movimento, interrupção e iniciação de uma forma de pensar,
mas principalmente do ensaio como articulador desses pontos.
Considerado por muitos teóricos e teóricas como o mais livre dos gêneros textuais, o
protagonismo do ensaio para o trabalho se dá por sua marcha de pensamento enquanto recurso
formal que propicia maior abertura para o desencadear de ideias por meio das “pontes
moventes”, assim denominam Deleuze e Guattari (2010) os conceitos, peças irregulares, de
contornos mutáveis. A palavra desencadear aqui deve ser compreendida em dois sentidos: 1)
desacorrentar-se de uma cadeia histórico-epistemológica na demonstração de que certos
conceitos e definições não mais dariam conta de ler as realidades sociais e 2) originar uma
provocação, suscitando uma busca pela renovação, sobretudo de seus ordenamentos teórico-
práticos.
Nesse ordenamento, temos como objeto específico de observação e análise a atividade
ensaística presente nos textos publicados em Dossiês da revista CULT que teorizam, refletem
e discutem a questão Queer nas sociedades. Mais de 20 anos do periódico somam um total de
264 Dossiês publicados na revista, até a data de finalização deste texto. Os Dossiês são o DNA
da CULT. Apresentam aos públicos discussões teórico-práticas vinculadas, muitas vezes, a
figuras acadêmico-intelectuais que produzem conhecimento e pesquisas nos mais diversos
espaços, mas, principalmente, nas Universidades do país e do mundo.
No âmbito das tematizações dos Dossiês, uma vastidão de estudos alinha a tônica da
publicação. De modo geral, no rol das abordagens estão artefatos da literatura (numa
compreensão canônica do termo, voltadas suas análises para escritores e suas obras, em nível
nacional e internacional), estruturas intelectuais fundantes e consideradas fundamentais para
construção do pensamento sobretudo ocidental, como Dossiês introdutórios ao pensamento de
Karl Marx, Walter Benjamin, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Herbert Marcuse, Theodor
Adorno, Antonio Negri, Achille Mbembe, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, para falar de
alguns, em uma perspectiva mais progressista e à esquerda do pensamento. Além disso,
construído sob a égide da cultura, um conjunto de elementos é posto em análise: a sociologia,
a política, a religião, a arte, a música, a poesia, as feminilidades, as parentalidades, as
masculinidades, as sexualidades etc.

9
Nossa atenção se volta, em certa medida, sobre esse último conjunto que, de algum
modo, se faz presente na CULT desde a sua fundação. Porém, na primeira fase da revista, que
compreende das edições 1 a 56, por uma questão de orientação editorial, a abordagem sobre
esses temas era tida unicamente em função da literatura. Especiais como “Caminhos do Islã”
(presente na edição #53 de dezembro de 2001) que pensa sobre a diversidade expressa na
literatura pelas culturas árabe e islâmica figura numa perspectiva, digamos, renovada, no Dossiê
“Mundo Árabe” (edição #156 de abril de 2011) ao tratar, agora, não só de sua literatura como
expressão máxima da cultura, mas de sua música, arte, geopolítica, de sua arqueologia, de suas
histórias e suas revoluções. De modo bastante sistemático, essa nova pegada se acentua nos
Dossiês produzidos a partir dos anos 2002. Outras idas e vindas nesse sentido ocorrem ao longo
das edições e poderão ser notadas no desenvolvimento dos capítulos da Parte I.
Por outro lado, algumas abordagens passam a constituir um eixo bastante “peculiar” das
perspectivas em Dossiê. Peculiar, aqui, diz do caráter específico e inerente aos Dossiês que, a
partir do ano 2002, correspondem intrinsecamente aos novos interesses editoriais dados por
Daysi Bregantini, diretora e editora-geral da revista, a essa seção de CULT. São temas ligados
a grupos historicamente minorizados – étnico-raciais, feministas e populações LGBTQIA+. Por
isso, a opção que fazemos nesse trabalho por analisar Dossiês que abordam a questão Queer
como temática problematiza os limites do que fora instituído e categorizado sócio-bio-
politicamente enquanto norma (e isso recai precisamente nos elementos sociais sobre os quais
falamos algumas linhas acima), estando em relação a um conjunto de reflexões, entre ensaios e
entrevistas que compõem os Dossiês, ligados às diferenças sexuais e de gênero.
Instituições de poder vinculadas à ciência já utilizaram e ainda utilizam de mecanismos
e instrumentos legitimadores como a patologização de corpos transvestigeres pela psicologia e
pela medicina, especialidades regentes de um conjunto de mecanismos/dispositivos que
também podem negar e retirar a possibilidade de uma existência digna para estes corpos. A
consequência é a transformação desses corpos em seres abjetos, existências facilmente
descartáveis. O estigma do termo “homossexualismo” também pode ser visto como exemplo.
Portanto, aborda-se criticamente, nos Dossiês, essas movimentações como projetos de poder
normativos e reguladores que, amparados em estruturações científicas robustas, pretendem
legitimar, deslegitimar ou manter à margem ideias, existências, corpos e realidades solapadas.
Em nosso caso específico, temos instituições ligadas a disciplinas das Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas que, também a partir de seus dispositivos, mas sobretudo de seus
representantes, refletem sobre os espaços e tempos em que se inserem. Isso quer dizer pessoas

10
atuantes de diferentes áreas do conhecimento que, alinhadas a um ordenado da cultura,
contribuem para a possibilidade de modificação dos olhares sobre as questões que envolvem os
seres humanos entre si e em sociedade. Dentro dessa linha, pensamos na publicização das
produções dos Dossiês CULT como mecanismos instituidores/destituidores na disputa pelo
poder de simbolizar e compreender. Falamos, em última instância, da mudança lenta e gradual
das ideias, dos movimentos de (des)construção cognoscíveis responsáveis por “inventar” que o
mundo é assim e assim devemos Ser e agir, e a construção de algumas pontes moventes.
Essas pessoas – aqui denominadas intelectuais – em suas ações, reuniriam uma
produção científica-argumentativa capaz de colocar em discussão temas tão centrais para
constituição de corações e mentes na tabula das sociedades tão historicamente conformadas.
Nesse ponto, o protagonismo do ensaio emerge por algumas características históricas e
estruturais desse gênero textual (que serão mais bem explicitadas no decorrer do capítulo 1)
que se aderem de maneira bastante oportuna (caráter específico e inerente) aos temas pelos
quais passaremos a tratar na análise dos Dossiês num recorte.
Quatro Dossiês trazem, exclusivamente, produções sobre a questão Queer como
fenômeno da cultura em 20 anos de revista CULT: a edição #185, de novembro de 2013 (ano
16), com o Dossiê “Judith Butler”; edição #193, de agosto de 2014 (ano 17), com o Dossiê
“Teoria queer”; edição #202, de junho de 2015 (ano 18), com o Dossiê “Ditadura
heteronormativa” e a edição #226, de agosto de 2017 (ano 20), com o Dossiê “Artivismo das
dissidências sexuais e de gênero”. Esse conjunto constitui um percurso formativo na revista e
podemos considerá-lo um eixo central dentro de um histórico maior para discussão até então.

Figuras 01, 02, 03, 04 – capa das edições 185, 193, 202 e 226 da revista CULT.

Fonte: acervo de imagens do autor.

Designa-se sobre o termo Queer “parte de uma estratégia teórica” que se vale da
“significação preconceituosa a fim de criticar teorias que pretenderam dizer como as coisas são,
11
sem perceber que a descrição teórica do mundo não se dá de forma neutra, mas está
comprometida com um projeto de poder normativo e regulador”, explica a professora Carla
Rodrigues em texto publicado no Dossiê de número #193. Como salienta Guacira Lopes Louro,
em entrevista que constitui parte do Dossiê também publicado na edição #193, “Talvez não seja
possível (ou quem sabe, desejável) encontrar, em português, uma expressão que efetivamente
traduza e consiga contemplar toda a carga subversiva e perturbadora que o queer em inglês
pode sugerir”. Louro ainda observa no movimento e no pensamento queer (e sobretudo no que
se refere à perspectiva brasileira) formas de expressão que lhe são próprias, mas que, ainda
assim, fazem ecoar os mesmos tons transgressivos e provocadores das perspectivas iniciais.
Considerando essa espécie de guarda-chuva conceitual, Deleuze e Guattari (2010, p. 26)
ajudam a pensar o conceito de conceito, a fim de problematizar as tantas descrições teóricas do
mundo em que há, “no mais das vezes, pedaços de outros componentes vindos de outros
conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos”. No que concerne ao
objeto específico de observação e análise, para nós, o ensaio funciona como mecanismo formal
para apreensão cognoscível desse estado de inquietude de ações e pensamentos sobre a questão
Queer postos em comunicação nos referidos Dossiês da revista. Dessa relação, objetiva-se
como parte do trabalho perceber como a potencialidade ensaística capacita uma abordagem dos
problemas do mundo em busca de perspectivas renovadas a partir de uma revista
cultural/jornalística, tendo como base formulações teóricas articuladas pelo que denominamos
em dado momento intelectuais-acadêmicos.
Sendo assim, tomando a questão Queer como tema da cultura, orientado por um gesto
ensaístico realizado na revista CULT, nos perguntamos: como a relação entre o ensaio e seus
articulistas pode ser lida no conjunto de textos que trata a questão Queer na seção Dossiê?

Também convém a esta introdução a narração de um episódio como ilustração às nossas


preposições e que aponta caminhos para nossas elaborações.

Estive no início do ano de 2020 em um dos sebos do Edifício Arcângelo Maletta, em


Belo Horizonte, atrás de edições antigas da revista CULT, na intenção de complementar meu
acervo pessoal. Na ocasião e em conversa com o dono do estabelecimento, este me confessa ter
sido um ávido leitor da revista, assinante desde a sua edição de número um (e até possuía um
CD-ROM com as primeiras 50 digitalizadas, com que fui presenteado). Começo a falar da
pesquisa. Eu, leitor de CULT desde 2013, ele, desde 1997. Digo algumas nuances editoriais

12
que me chamavam a atenção na revista em disciplinas da Graduação em Jornalismo: seu caráter
“mais sério”, o modo como abordava o universo da cultura, para mim, diferente de outras
revistas, e insiro a questão do Dossiê. Digo que é sobre este espaço que hoje lanço e detenho
meu olhar. “Ali é onde a revista mais se destaca”, argumento numa espécie de justificação.
Neste ponto, ele me confessa sentir certa estranheza com relação a alguns temas abordados pela
revista justamente em seus Dossiês. Essa “estranheza” veio a ser um estímulo que o levou a
cancelar a assinatura, disse, tempos atrás, conjuntamente de um sentimento de falta em relação
a uma abordagem mais literária na revista. A estranheza que lhe era proveniente foi suscitada
pela publicação, em novembro de 2019, do Dossiê Parentalidade e vulnerabilidades (edição
#251).
Figura 05 – Capa da edição 251, publicada em novembro de 2019.

Fonte: acervo de imagens do autor.

Coordenado pela psicanalista Vera Iaconelli, especialista no assunto há mais de 20 anos,


o Dossiê busca discutir, a partir da reflexão de acadêmicas da área, sobre temas como a
parentalidade negra, o processo de adoção, a vulnerabilidade do laço social e a doação de
material genético. No editorial da referida edição, a diretora e editora-chefe da revista Daysi
Bregantini (2019, p. 4) escreve: “Espero que esse trabalho abra perspectivas e novas
possibilidades de entender as famílias múltiplas e transformadas, mas sempre legítimas”. No
texto em que apresenta e reúne o argumento central para produção do material, Iaconelli (2019,
p. 22) enfatiza: “Neste dossiê buscamos discutir, do vasto campo da parentalidade, algumas
questões que o exploram muito além da relação mãe-bebê, tão insistente quanto dissimuladora,
e das múltiplas responsabilidades em jogo nas funções parentais”.

13
Da importância das multifacetadas funções parentais na constituição dos sujeitos em
sociedade demonstrada pelas discussões que realizam Iaconelli e suas colaboradoras1, o que
nos chama atenção, num primeiro momento, é a estranheza sentida pelo nosso estimado
vendedor. Sendo público da revista desde a sua fundação, ele personifica a leitura de dois
momentos pelos quais a revista pode ser apreendida e compreendida e nos ajuda a retomar o
argumento.

Preocupada com o mundo das palavras, da cultura e da literatura, CULT nasce literária
e carrega estampado na capa o compromisso de ser a Revista Brasileira de Literatura durante o
período em que a Lemos Editora fica à frente da publicação desde sua fundação, em agosto de
1997, até sua edição 56, de março de 2002, momento em que a Editora 17 (atual Editora
Bregantini) compra a revista. A partir desse momento, CULT passa a ater-se em sentido
ampliado sobre a cultura, tornando-se Revista Brasileira de Cultura logo em sua edição 57, de
maio de 2002. Considerando esse cenário e o nosso interesse específico, surgem algumas
perguntas: o que essa abordagem em sentido ampliado sobre a cultura viria a alterar no caráter
das produções da revista? Haveria a literatura ser um componente da cultura, tendo em vista
esse realinhamento? E de modo ainda mais específico: o que pode ser dito sobre o Dossiê
considerando esse contexto de mudança? O que faz da parentalidade, e tantos outros temas,
incorporável ao rol das temáticas culturais a se tratar em Dossiê? Haveria uma lógica por trás
de suas elaborações? O que é potencializado pelo ensaio nos Dossiê? De que forma seus
articulistas lidam com perspectivas temáticas mais amplas no campo da cultura articuladas
ensaisticamente?
A distinção entre os dois momentos – revista literária e de cultura – já foi traçada em
outros estudos. Dissertações como as de Silva (2006) e Tsutsui (2006) versam sobre a mesma
mudança editorial ao se atentarem a algumas mudanças nas demais seções da revista ou na
rotatividade do seu time de colaboradores. No entanto, as autoras não tinham como objetivo
específico de investigação se tal distinção afetava ou relacionava-se à seção Dossiê e, por isso,
logo também pensamos: a adesão editorial da cultura como conceito alteraria sua concepção?
Em linhas gerais, o Dossiê não sofre qualquer alteração em sua estrutura ou qualquer
intermitência cronológica (pelo menos em número de edições) desde sua primeira publicação
no volume inaugural da revista, em 1997. O Dossiê manteve-se como espaço voltado para

1
Daniela Roberta Antônio Rosa, Daniela Teperman, Roberta Kehdy e Thais Garrafa contribuem com produções
textuais para o Dossiê, modelo de colaboração vigente na revista desde 1997.
14
elaborações teóricas e críticas aprofundadas sobre os mais variados temas sociais e da cultura,
com análises ligadas aos campos universitários e que refletiam, em seus primeiros anos, mais
estritamente, sobre os artefatos da literatura. Ambos os trabalhos citados não buscavam, como
dissemos, compreender como tal realinhamento poderia alterar as lógicas de publicização dos
conteúdos organizados exclusivamente em Dossiê. Somente nove anos depois, com o trabalho
de Oliveira (2015), ao tangenciar esta mesma temporalidade e considerar um espectro maior de
edições para análise, o autor demonstra uma crescente no número de temáticas relacionando
sociedade e filosofia abordadas na seção, por exemplo (ainda que essas temáticas já fizessem
parte do cotidiano da revista em certa medida), auxiliando no desenvolvimento de nossas
desconfianças a respeito do que tudo isso viria a provocar.
Silva (2006) reafirma a orientação literária da revista através do material indexado em
seu banco de dados que compreende o período de 1997 a 2002. Em suas considerações finais,
conclui que CULT “sempre esteve ligada ao campo do jornalismo cultural de massa”, mas em
sua nova etapa “o vínculo com esse setor mais ‘específico’ é atenuado” (p. 76). Era preciso
atualizar a publicação “conservadora, limitada ao campo da literatura e restrita aos leitores dos
cursos de Letras” (SILVA, 2006, p. 78) segundo interpretação feita pela autora, partindo do
Editorial publicado na edição 57, de maio de 2002, a primeira da nova CULT.

Figura 06 – Editorial publicado na edição 57, de maio de 2002.

Fonte: acervo de imagens do autor.


15
Trabalhando na dualidade bom/ruim ao traçar entendimento sobre os dois momentos da
revista, é parco o entendimento de que “a vontade de alargar o leque de leitores” por meio do
“investimento em uma área mais ‘abrangente’ (a cultural)” traria um nivelamento por baixo,
“para não dizer mais simplificado” (SILVA, 2006, p. 78) das produções da revista como
substrato. Raymond Williams diz, sobre a palavra Cultura, ser “uma das duas ou três palavras
mais complicadas da língua inglesa” (2007, p. 117). Isso ocorreria por seu intrincado
desenvolvimento histórico em diversas línguas, mas substancialmente pelo fato de ser utilizada
para referir-se a importantes conceitos em diferentes disciplinas intelectuais com diferentes
sistemas de pensamento compatíveis ou não. É possível entender a cultura como área “mais
abrangente”, mas dificilmente como algo “mais simplificado”.
Williams realiza três categorizações para Cultura: 1) “substantivo independente e
abstrato que descreve um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir
do S18”; 2) “substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou específico, indicando
um modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da humanidade
em geral” e 3) “substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da
atividade intelectual e, particularmente, artística” (WILLIAMS, 2007, p. 121). Esta última
possui hoje sentido bastante difundido, alçando a cultura enquanto matéria de arte – poesia,
literatura, pintura, música, cinema, teatro – e é comum encontramos considerações que falam
de “rebaixamento cultural” levando em conta essa terceira leitura. Em matéria de cultura, não
é possível resumir. Portanto, ainda que categorizada, Cultura é palavra complexa, segue
alertando o autor, podendo variar sua distinção entre grupos linguísticos (do alemão, italiano
ou francês), nas sociedades (na relação hostil entre alta e baixa cultura, sentido de erudição,
refinamento ou afirmação de conhecimento superior) e no tempo (a partir dos problemas que
dada temporalidade suscita fazendo variar sua apreensão social).
Em outro momento, Williams (2015, p. 5) dirá que a Cultura é algo comum a todos,
fato primordial, pois “toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos,
seus próprios significados”. A expressão dessas substâncias dar-se-iam nas artes, no
conhecimento e nas instituições sociais que, em tensão com a experiência, operam na
descoberta de significações comuns desenvolvidas no debate ativo, do contato e das invenções
humanas. A construção e reconstrução dessas instâncias se desenvolveriam a partir de um
pensar individual, que é o princípio lento de aprendizado desta mesma forma, propósitos e
significados “de modo a possibilitar o trabalho, a observação e a comunicação” (p. 5). Cultura
seria o que designa significados comuns, processos de descoberta e esforços sociais criativos,
16
indo dos mais simples aos mais complexos e demoradamente elaborados. Nesse sentido,
dificilmente CULT poderia nivelar de modo mais simplificado ao “apostar” na cultura em sua
nova fase de modo que, em seus mais de 20 anos, a complexidade do mundo não deixou de
ocupar suas páginas.
Retomando as observações de Silva (2006), detalhe que parece passar despercebido
nessa jogada editorial é o Dossiê. Em seu trabalho, o Dossiê figura como espaço onde “o teor
mais acadêmico ficou concentrado” (SILVA, 2006, p. 15). Formulação mais completa é
reproduzida abaixo:

O “Dossiê” reúne textos diversos sobre um tema pré-estabelecido,


configurando-se como a parte mais extensa da revista com maior consistência
e aprofundamento em relação aos demais artigos e seções. É uma seção que
nunca deixou de faltar na Cult e que sempre se localizou no final da
publicação, antes da seção de cartas dos leitores (“Do Leitor”). Os objetos
abordados nela giram em torno do campo da literatura ou da cultura em geral
e são trazidos à baila pelas efemérides de uma figura, de um grupo, ou de uma
obra que são considerados centrais ao pensamento intelectual ou que se
destacam de certa forma. [...] Também servem de “gancho” para a elaboração
do “Dossiê” acontecimentos notáveis do cenário cultural ou literário, como o
lançamento de um livro marcante ou a realização de algum evento (exposição
artística, congressos e outros); [...]. (SILVA, 2006, p. 24-25)

Ao pinçar essa consideração a respeito do Dossiê no trabalho, retiramos duas questões.


A começar pelo teor mais acadêmico que o espaço condensa. Em 12 junho de 2002, Julio Daio
Borges publica uma nota no Digestivo Cultural1 que assim se inicia: “A Cult, antes a publicação
onde os acadêmicos da USP divulgavam o resumo de suas teses, depois da aquisição pela
Editora 17 (gestão Daysi Bregantini), vem conquistando seu lugar ao sol das bancas de revista”.
Salvo a crítica que o comentário relega aos acadêmicos, resta-nos a observação do efeito. Vários
nomes presentes nas páginas e, principalmente, nos Dossiês vinham, de fato, da Universidade
de São Paulo (USP): Adma Muhana (edição #1), Luciana Artacho Penna (edição #1), Aurora
Fornoni Bernardini (#2), Ivan Teixeira (#8), Gilberto Figueiredo Martins (#14) Boris
Schnaiderman (#20), Jerusa Pires Ferreira (#20), Franklin Leopoldo e Silva (#34), Nádia
Battella Gotlib (#51), para dizer de alguns; mas havia ainda nomes da PUC-Rio, PUC-São
Paulo, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e de instituições fora do país, como a
Universidade de Roma La Sapienza, na Itália; Universidade Nova de Lisboa, em Portugal (e
essa profusão tende a aumentar como veremos depois), além de poetas, críticos literários,
antropólogos, tradutores, jornalistas, psicanalistas, cientistas sociais e políticos, advogados,
músicos, filósofos, teóricas do feminismo etc.

17
Para além de um lugar ao sol em bancas de revistas ou a formação de uma lista de pares
e instituições, estabelecer que a divulgação do resumo de teses é lógica fundante do Dossiê
CULT, pois é neste espaço que acadêmicos se concentravam, relega a estes mesmos
acadêmicos, além de um lugar de destaque, uma responsabilização para com suas produções.
A que a publicação em periódico não acadêmico serve para trabalhos de ampla consistência
teórica e aprofundamento metodológico e de análise? Retomando a nossa questão principal, em
termos formais, como o ensaio contribui com essa lógica? Qual a via de interesse entre
produções acadêmicas e sociedade, sobretudo as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas?
Se até aquele momento CULT havia representado um “retrato multifacetado do
panorama cultural” de modo “pluralista (embora seletivo)” da complexa realidade brasileira
como quiseram Manuel da Costa Pinto e Paulo Lemos em editorial publicado na edição de
número #1, em 1997 (p. 3), mas cujas fronteiras foram ultrapassadas, como dito em editorial da
edição #57, gestão Bregantini, pelas lentes da cultura, era também sobre esta seção e suas
complexidades que o debate poderia ser ampliado.
Pensemos no caráter de um dossiê, reconhecido por se tratar de uma reunião
documental, um conjunto de arquivos de tom quase sempre investigativo dos escândalos
políticos ou jurídicos, dossiês policiais, em suma, que consiste numa reunião de informações.
Na classificação de Lia Seixas (2009, p. 54) um dossiê funciona enquanto “conjunto de
enquetes de vários ângulos para compreensão completa de um assunto” assim como “conjunto
de artigos de um mesmo assunto”. Fazendo um desdobramento: conjunto de depoimentos ou
de pesquisas no intuito de esclarecer uma questão caracteriza uma enquete e ajuda a definir o
dossiê como produção que visa demonstrar uma ampla compreensão de um tema previamente
conhecido, mas que resulta, pela investigação, no desvelamento de algo ainda não posto à
mostra. Ampliando um pouco mais o leque, José Marques de Melo e Francisco de Assis (2016)
classificam o dossiê enquanto um gênero jornalístico caracterizado por seu constructo
interpretativo, possuidor de uma produção de significações atribuidoras de sentidos da ordem
do julgamento e do esclarecimento das coisas e, desta consideração, outra camada: o dossiê
abarca ainda uma elaboração crítica.
Dito isso, o que se estabelece é o seguinte: a ação de fixar lugar a universitários em uma
publicação faz com que parte da construção desse multifacetado contexto cultural seja orientado
pelo caráter científico-documental destas produções e que, tornadas públicas pela revista, relega
a acadêmicos participação mais ativa na construção de um ambiente de diálogo entre diferentes
partes – órgãos institucionais de educação, de mídia e da sociedade. Diante disso, temos o

18
ensaio como a principal forma de exercer essa ação de comunicação. Isso é o que Vera França
(2007, posição 1280 no Kindle) determina como interesse pelo embricamento para uma
abordagem comunicacional em que o movimento social internaliza e conforma expressões
produtivas de sentido modificando esse campo social e a cultura, com objetivo de apreender a
relações das práticas simbólicas enquanto mecanismos constituidores. Tem-se estabelecida uma
relação de comunicação.
A segunda questão, ainda conforme formulação de Silva (2006) sobre o Dossiê, que diz
dos objetos abordados na seção, é ponto que trataremos mais adiante na dissertação. O que vale
ressaltar aqui é nossa preocupação com um esquema de comunicação para consciência da
dimensão simbólica destes objetos ou da ponte para socialização ao que Berger e Luckmann
(2014, p. 137) chamam de “construção cognoscível”. Em nosso caso específico, trata de as
tematizações em Dossiês estarem sempre voltadas para os conhecimentos gerados nas
disciplinas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas nas Universidades dentro e fora do país,
em seus centros e grupos de pesquisa, em observação e conversa com as realidades sociais. Isso
nos leva a discussão sobre a figura e o trabalho que exerce o cientista, o acadêmico ou o
intelectual que transformam a ciência em cultura, como salienta Renato Janine Ribeiro (2006).
Passando ao segundo trabalho, que também volta seu olhar à temporalidade 1997–2002
(indo até a edição 93 da revista), nas palavras de Tsutsui (2006) CULT foi uma revista de crítica
de literatura que, aos poucos, abriu espaço para produções inéditas de prosa e poesia,
estimulando a produção e a publicação de obras literárias nacionais. Isso a legitimava enquanto
espaço de exercício criativo, reflexão e de produção cultural, o que culminou na formação de
um ciclo na revista. Mas após a compra pela Editora 17 (atual Editora Bregantini) “o
investimento neste espaço de produção foi reduzido”, obliterados os concursos literários e a
dedicação às publicações inéditas (ainda que estas produções estejam ocupando outros espaços
na revista atualmente2). Em contrapartida, também conforme a autora, houve a ampliação da
cobertura do mercado editorial, fonográfico e audiovisual, com foco em lançamentos de livros,
músicas e filmes, movimento qualificado como reflexo da “aproximação [da revista] com a
indústria cultural” (TSUTSUI, 2006, p. 101).

2
Poemas e poesias são esporadicamente publicados na CULT. Em agosto de 2019, no entanto, a revista lançava
sua primeira Antologia Poética Poemas para ler antes das notícias. A curadoria fora realizada por Alberto Pucheu,
poeta e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que reuniu 32 poetas e
mais 7 artistas brasileiros responsáveis pelas ilustrações. Em novembro do mesmo ano, agora com curadoria de
Tarso de Melo, advogado e poeta brasileiro, era lançada sua segunda edição Quando a delicadeza é uma afronta,
reunindo de 31 poetas da cena contemporânea.
19
Passagem importante na análise, a observação sobre a substituição da palavra literatura
por cultura, revelaria a “clara intenção [da nova gestão] de atingir um maior número de
leitores”, havendo expressivos esforços para elaboração de “textos mais simples e diagramação
semelhante à das revistas de informação semanal”, tendo como preocupação a vendagem da
revista “justificada pelo que parece ter se tornado seu objetivo principal: manter-se no mercado”
(TSUTSUI, 2006, p. 102). Para além da preocupação mercadológica – alcançar um público
maior é algo positivo para uma publicação, principalmente as de cultura, visto que estas, parece,
foram praticamente extintas –, encaramos a tomada deste novo conceito também como uma
atitude epistemológica3. Poderíamos perguntar sobre a necessidade de tal mudança pelo
questionamento de se literatura não seria também um aspecto da cultura. Sim, mas falamos de
cultura visando atingir um outro patamar, num dar-se a conhecer porque constitutiva do cerne
do Ser. É entender tantos aspectos do mundo social como construções significadas pela cultura
em sua espessura.
Se vista como uma fenda visível no tecido social que, convertida em experiência, passa
a ser compreendida como elemento constituinte de corações e mentes, a cultura possuiria
densidade para explicar certas movimentações nos espaços e no tempo. Obtém-se esta mudança
trazendo à frente aspectos da vida social e, sobretudo, cultural das mais variadas – e no caso
específico, questões da cultura Queer nos fazem visualizar diversas incidências sócio-bio-
políticas que regem corpos e cognições no mundo ocidental, dentro de um (contra)fluxo teórico-
prático. Esse é o essencial e constitutivo da mudança que vemos lançar a partir de sua nova
roupagem: CULT passa a reconhecer-se mais abrangente ao atribuir lugar de destaque à cultura
ao tomar este conceito como norteador de suas produções, sobretudo ao que concerne seus
Dossiês. E diante da caracterização dos Dossiês como espaço que privilegia o conhecimento
gerado dentro de Universidades e centros de pesquisa, voltamos a citar Renato Janine Ribeiro
(2006, p. 147) para quem a ciência, quando se converte em cultura, “passa a impregnar nossa

3
Segundo Ferrater Mora (2005, p. 852) quer dizer teoria do conhecimento. “Durante algum tempo, tendia-se a
usar ‘gnosiologia’ preferencialmente a ‘epistemologia’. Depois, e em vista de que o termo ‘gnosiologia’ era
empregado muito frequentemente por tendências filosóficas de orientação escolástica, tendeu-se a usá-lo no
sentido geral de teoria do conhecimento, sem definir de que tipo de conhecimento se tratava, e a introduzir
‘epistemologia’ para teoria do conhecimento científico, ou para elucidar problemas relativos ao conhecimento
cujos principais exemplos eram extraídos das ciências. Progressivamente, e em parte por influência da literatura
filosófica anglo-saxã, utilizou-se ‘epistemologia’ praticamente em todos os casos.” Nicola Abbagnano (2012, p.
349), sobre ruptura epistemológica diz que a expressão foi introduzida para “evidenciar que a história da ciência
não avança de como ‘continuísta’, ou seja, de maneira unilinear e cumulativa, mas segundo saltos e fraturas,
através de verdadeiras ‘revoluções’ teóricas, que anulam ou retificam radicalmente os quadros conceituais
precedentes.”
20
percepção de mundo” de modo “pelo qual o conhecimento científico é apropriado sob a forma
dos mais distintos valores, e acaba tomando posse de parte de nossa consciência”.
Retomando para o último tópico que nos é caro no trabalho de Tsutsui (2006) quando
versa sobre o Dossiê, este é apontado como a principal inovação da revista por possibilitar a
reunião do “talento que existe na USP, disperso nos seus centros, departamentos e institutos em
torno de temas centrais” (TSUTSUI, 2006, p. 87). Ao traçar o perfil acadêmico da revista,
mostra que CULT não se preocupou em divulgar somente uma linha teórica ou crítica em seus
Dossiês, apesar da “frequente circulação de textos baseados em ideias marxistas e em
publicações com espírito contestatório, identificadas com a produção underground e a literatura
de vanguarda” (TSUTSUI, 2006 p. 125-126). Vale notar que a autora desloca o Dossiê para o
centro da publicação e escreve nas suas considerações finais: “a publicação se constitui a partir
de uma produção cultural militante, de esquerda, relacionada a movimentos que se utilizam da
arte e da crítica como instrumentos de manifesto” (TSUTSUI, 2006 p. 126).

Tendo considerado tudo isso até aqui, esta dissertação se organiza da seguinte forma.

Sua primeira parte (PARTE I) busca realizar uma recuperação conceitual acerca do
ensaio na perspectiva de autores como Jean Starobinski (2018), Michel de Montaigne (2016),
György Lukács (2018), Theodor Adorno (2003), Max Bense (2018), Adauto Novaes (2010),
Cassio Viana Hissa (2006; 2011) e de autoras como Vera Lins (2014), Maria Rita Kehl (2004),
Adriana Melo (2011) e Christy Wampole (2018). Esse vislumbre auxilia na compreensão do
ensaio como forma – o que advém do ensaio, como, até onde e quando é possível chegar com
sua profundidade e suas atenuações. Disso, passamos à revista na busca pela apreensão dos
lugares do ensaio na CULT, momento em que são colocados em perspectiva dois espaços: as
colunas de opinião e os próprios Dossiê.
Em seguida, retomamos a distinção editorial entre literatura e cultura, agora, para
reconsiderar essa mudança unicamente em relação aos Dossiês na revista. Como proposta
analítica, esquadrinhamos todos os Dossiês publicados nas edições convencionais da revista,
desde sua primeira edição, de 1997, até a última publicada no ano de 2020 (#264). Aqui,
realizamos alguns apontamentos sobre essa mudança de perspectiva editorial, tendo como
aporte teórico autoras como Leyla Perrone-Moisés (2018) e sua leitura de Yuri Tynianov,
escritor, crítico literário e formalista russo, a respeito da literatura, e Marilena Chauí (2017), a
respeito da cultura. Além disso, realizamos alguns agrupamentos temáticos observando

21
repetições, recorrências e insurgências de temáticas nos debates que permearam a produção dos
Dossiês em suas mais de 200 edições.
A partir dessa abertura, propomos, na penúltima seção desta primeira parte, uma
discussão sobre o papel dos articulistas na expressão da opinião e na construção de grandes
ideias culminando em formas de pensar e ler a realidade feitas por intelectuais-acadêmicos em
Dossiê, a partir de suas respectivas produções ensaísticas. Para essa proposta, Cesar Aira (2018)
e Cássio Hissa (2002) nos auxiliam a compreender a questão temática que envolve um gesto
ensaístico nos Dossiês. Relacionamos isso com os interesses editoriais circundados pelas
realidades sociais. Dessa forma, buscamos dialogar com autores como Deleuze e Guattari
(2010), Jean-Paul Sartre (1994), Edward Said (2006), Francisco Weffort (1994), Sérgio
Rouanet (2006), Francis Wolff (2006), Renato Janine Ribeiro (2006) e Adauto Novaes (2006).
A segunda parte (PARTE II) constitui-se da análise propriamente. Tentamos realizar
um gesto tendo o ensaio, os Dossiê e seus Intelectuais-acadêmicos como eixos atravessados por
temporalidades múltiplas e complexas. Com o olhar sobre as edições com a temática Queer e
o seu entorno, realizamos nossa interpretação a partir de um viés que entrecruza as
discursividades apresentadas em Dossiês e movimentos teóricos suscitados pelo ensaio como
meio de transitar pelas diversas formas de pensamento que compõem os tópicos estudados.
O ensaio funciona para nós como uma locomotiva em movimento, experiência
transitória, possuidora de certa carga constitutiva e que possibilita uma visada mais ampla ao
conseguir caminhar por estruturas complexas da experiência e da razão em função da sua
natureza. O ensaio não se preocupa necessariamente em apresentar um grau zero sobre as
discussões que suscita, ele operacionaliza conceitos e tempos em uma confluência. Com isso,
apresenta, articula, rearticula e arranja uma produção de quadros de pensamento diante do que
é possível argumentar pelos limites da proposta de cada Dossiê constituinte do corpus de
análise. Olhar para como isso se dá em CULT estrutura esse eixo.
Os Dossiês CULT operacionalizam e articulam tempos e formas de pensar a questão
Queer. Eles funcionam, em certa medida, como pontos em que diferentes discussões acerca da
temática central são lançadas ao mundo, ora tendo uma pegada mais inaugural, ora
demonstrando um certo amadurecimento das abordagens; ora tensionando a dimensão da vida
pela arte, ou realinhando perspectivas numa espécie de acerto de pontas. Esse último “ponto”
caracteriza o que denominamos entre momentos.
Este diz respeito a números da revista que não trazem necessariamente Dossiês que
trabalham com a temática central em questão, mas que são compostos por produções que

22
funcionam como pontos-âncora dos Dossiês no eixo central. O motivo pelo qual elas estão
inseridas aqui consiste no fato de ambas as edições, #196, de novembro de 2015 e #205, de
setembro de 2015, constituírem um “entre” no rumo das produções dos Dossiê: a primeira delas
(#196) traz um importante ensaio do professor Richard Miskolci em que o autor discute
conceitos que irão culminar na produção do Dossiê presente na edição de número #202 (junho
de 2015).
Já o Especial Queer que compõe a edição de número #205 (setembro de 2015), apresenta
um conjunto de materiais entre entrevistas com figuras consagradas dos Dossiês CULT, como
a filósofa Judith Butler, além de resenhas de livro; é constituído também por um ensaio do
professor Richard Miskolci em que este discute, agora, os conceitos de diversidade e diferença
em uma espécie de realinhamento teórico na tentativa de erradicar a ideia de tolerância do léxico
envolvendo as questões das diferenças sexuais e de gênero, procurando trabalhar na perspectiva
de transformação pela ideia (acolhimento prático).
Por fim, o eixo dos Intelectuais-acadêmicos, em seus papéis crítico-argumentativo,
comporta em suas ações de interpretação e escrita a experimentação (no sentido de realizar um
experimento) com os objetos (temas) em pauta. A junção de A + B, como nos indicará César
Aira (2018) a respeito do tema do ensaio se traduz no num ímpeto combinatório entre contextos,
teorias e análise, culminando numa dimensão de aspecto existencial, revestida de caráter
experimental, em um esforço de tornar visível estruturas sociais complexas como quando
confronta-se realidades sociais concebidas com a questão Queer. O autor dá pele à escrita
ensaística ao reivindicar uma postura perante o mundo, dimensionando a vida em texto.
Finalizando nossa proposta de análise chegamos a dois momentos centrais. O primeiro
constitui-se enquanto ponto de partida de perspectiva teórico-introdutório em que o conceito de
queer é apresentado de maneira mais sistemática tendo como mecanismo propulsor a obra de
Judith Butler, seguido do trânsito entre um momento inaugural para sua evidência até sua
transversalidade em que ruma sentido a um segundo momento, um giro para perspectivas
contextuais numa ótica analítico-situacional dos/nos Dossiês.
Por último, realizamos algumas observações da questão Queer como tema da cultura e
problema da intelectualidade neste contexto.

23
PARTE I – O ensaio como objeto na revista CULT

1. Um gênero irrequieto

Como objeto de aspecto mais geral desta dissertação, poderíamos dizer, temos os Dossiês
CULT. Inserido no universo destes materiais, tem-se o ensaio como uma especificidade.
Enquanto recurso formal, este gênero de escrita textual trabalha de modo a expressar não o
início ontológico de seus temas ensaiados, nem seus fins derradeiros, mas um em trânsito,
pontos de representação das ideias e reflexões elaboradas. Com isso em voga, realizamos neste
item uma discussão conceitual acerca do ensaio e seu potencial transitivo. Como aporte teórico,
manejamos trabalhos de autores e autoras, entre Jean Starobinski (2018), Michel de Montaigne
(2016), György Lukács (2018), Theodor Adorno (2003), Max Bense (2018) Adauto Novaes
(2010), Cassio Viana Hissa (2006, 2011); Vera Lins (2014), Maria Rita Kehl (2004), Adriana
Melo (2011) e Christy Wampole (2018).

Primeiro, uma recuperação etimológica do termo:

Essai [ensaio], conhecido em francês desde o século 12, provém do latim


tardio exagium, “balança”; “ensaiar” deriva de exagiere, que significa “pesar”.
Nas vizinhanças desse termo, encontramos “exame”: agulha, lingueta do fiel
da balança, e consequentemente, pesagem, exame, controle. Mas outra
acepção de “exame” aponta para o enxame de abelhas, a revoada de pássaros.
A etimologia comum seria o verbo exigo, empurrar para fora, expulsar, depois
exigir” (STAROBINSKI, 2018, p. 13).

A palavra ensaio pode ser compreendida também como “pesagem exigente”, “exame
atento”, “enxame verbal”, provar ou experimentar (prouver e éprouver) espécie de colocação
à prova (STAROBINSKI, 2018, p. 13-14). Outras contribuições para a construção do sentido
do termo estariam na tradução feita por John Florio4 em 1603 dos Essais de Michel de
Montaigne, considerado inventor do ensaio; na publicação dos Essays de Sir Francis Bacon e
de An Essay Concerning Human Understanding [Ensaio acerca do entendimento humano] por
John Locke, representante de peso para “uma interpretação original de um problema
controverso”, valor que passa a ser empregado à palavra alertando para uma “renovação das
perspectivas a partir dos quais um pensamento novo será possível” (STAROBINSKI, 2018 p.
14). Do léxico reside a primeira tensão em relação à dignidade do ensaio, tido na maioria das

4
Também conhecido como Giovanni Florio (1553-1625), escritor, professor e lexicógrafo inglês.
24
vezes como uma atuação preliminar dos objetos sobre os quais pretende desenvolver uma
consideração. Marcada de modo pejorativo também estaria a palavra ensaísta [essayist], desde
o seu surgimento no início do século XVII: “Lemos sob a pena de Ben Jonson5: ‘Mere essayist,
a few loose sentences, and that’s all!’ [Meros ensaístas, algumas frases descosidas, e só]”
(STAROBINSKI, 2018, p. 15).
Destituído pela erudição, o ensaio vai ocupar lugar de menor prestígio também nos
espaços modernos de conhecimento, como na Universidade que

No apogeu do seu período positivista, tendo fixado as regras e os cânones da


pesquisa exaustiva séria, repelia o ensaio e o ensaísmo para as trevas
exteriores, correndo o risco de banir ao mesmo tempo o brilho do estilo e as
audácias do pensamento. Visto da sala de aula, avaliado pela banca
examinadora de uma tese, o ensaísta é um simpático diletante fadado a juntar-
se ao crítico impressionista na zona suspeita da cientificidade. E não deixa de
ser verdade que, perdendo às vezes algo de sua substância, o ensaio
metamorfoseou-se em crônica de jornal, panfleto polêmico, conversa
atropelada. E note-se que nenhum desses subgêneros merece ser execrado pelo
que é! A crônica pode virar pequeno poema em prosa; o panfleto, se escrito
por Constant, pode intitular-se “Do espírito da conquista”; a conversa pode
falar com a voz de Mallarmé. Certa ambiguidade, contudo, persiste
(STAROBINSKI, 2018, p. 15-16).

Nem mesmo seu inventor foi poupado. Conforme nos conta Maria Rita Kehl (2004, sem
página), Montaigne “não produziu uma filosofia passível de se transformar em doutrina [...],
portanto, não produziu poder”, permanecendo um elo fraco na corrente do pensamento
ocidental “sem que a razão se aperceba dela”, ainda que o melhor da filosofia, como indica
Starobinski, haveria de se manifestar pelo ensaio, assim como, para Adorno, o ensaio é a crítica
par excellence.
Nos Ensaios (2016, p. 39-40), sua mais robusta produção, Montaigne escreve ao seu
leitor:

Adverte-o ele de início que só o escrevi [seu livro] para mim, e alguns íntimos,
sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na
posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Voltei-
o em particular a meus parentes e amigos, e isso a fim de que, quando eu não
for mais deste mundo (o que em breve acontecerá), possam nele encontrar
alguns traços de meu caráter e de minhas ideias e assim conservem mais
inteiro e vivo o conhecimento que de mim tiveram. Se houvesse almejado os
favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais
cuidada, de movo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na
minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a

5
Dramaturgo, poeta e ator inglês da Renascença, viveu entre 1572 e 1637. Foi contemporâneo de William
Shakespeare.
25
mim mesmo que pinto. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na
minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto o permitir a
conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ainda
na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom
grado me pintaria por inteiro e nu. Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste
livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres
em assunto tão fútil e de tão mínima importância.

Ainda que insinue sua não preocupação com a posteridade, Montaigne pretendia
conservar o mais inteiro e vivo conhecimento proveniente da pintura de si e é por isso que
escreve. Queria que enxergássemos seus mais demorados traços, ainda que tortos e defeituosos.
Retidas em seu livro estão suas meditações transcritas como estratégias de renovação da força
do ensaio, uma captura de seus impulsos, espécie de lugar-fixo das representações e do
movimento ensaístico. Isso subscreve certa vontade de duração, a partir de uma abordagem
cumulativa de tentativas que se prolongam pelo pensamento e pela escrita dos ensaios.
Dentre os objetos de “suas ruminações em prosa” (WAMPOLE, 2018, p. 243) estiveram
a tristeza, a ociosidade, a perseverança, a covardia, a imaginação, a embriaguez, a consciência,
a crueldade, a glória, a virtude, a diversão, a conversa, a vaidade, a cólera, a experiência; o fim,
o pedantismo, o medo, o sono, o arrependimento, as orações, as mulheres, os livros etc. Um
destes, a experiência, objeto do último ensaio de seu livro, é fundamental para compreender a
relação de Montaigne com sua obra. Nele, o autor remonta à uma dialética entre razão e
experiência assumindo a profícua tensão entre essas duas grandezas.

O desejo de conhecimento é o mais natural. Experimentamos todos os meios


suscetíveis de satisfazê-lo, e quando a razão não basta apelamos para a
experiência. [...] A razão assume tantas formas que não sabemos qual
escolher. A experiência igualmente; e as consequências que procuramos tirar
da comparação dos acontecimentos não oferecem segurança, porquanto não
são jamais idênticas. O que encontramos nas coisas mais semelhantes é a
diversidade, a variedade. [...] A diferença introduz-se por si só em nossas
obras e nenhuma arte pode chegar à similitude. [...] A semelhança não unifica
na mesma proporção que a dessemelhança diversifica. A natureza perece ter-
se esforçado por não criar duas coisas idênticas (MONTAIGNE, 2016, p.
980).

Seu ensaísmo se mantém nas imbricações entre a via da razão (sob a qual não bastaria
somente) e a da experiência, sempre evocada em momentos de crise da primeira, como salienta
Adauto Novaes (2010). Disso resultam as mais variadas formas para compreensão do mundo,
de perspectivas e pontos de vista, alertando para a impossibilidade de apreensão do todo das
coisas e das coisas idênticas ao fazer-se introduzir pela diferença, o que “[...] mostra a existência

26
não apenas do embate entre verdade e liberdade contra as normas irracionais, mas também a
insuficiência e os limites das normas racionais” (NOVAES, 2010, p. 16).
Montaigne, de suas cogitações, realiza seus ensaios e nos comunica seus pensamentos.
Lança ao mundo seu olhar vigilante, espreitando acontecimentos, experimentando pela
faculdade de julgar. Subtrai disso o trânsito entre a reflexão interna e a realidade exterior que
são seus registros, sua “curiosidade infinita pelo mundo exterior, pelo fervilhar do real e pelos
discursos contraditórios que pretendem explicá-lo” (STAROBINSKI, 2018, p. 21). Define seu
livro enquanto “uma espécie de registro das experiências de minha vida” (MONTAIGNE, 2016,
p. 993), ainda que extrapole o seu Eu por algo maior que sua existência individual – a existência
de um Outro. Estaria em jogo, para Montaigne, nos ensaios, uma obrigação cívica e um dever
de humanidade (ainda que exista quem pense mal dele).
Haveria de ser também o ensaio um imperativo de liberdade. Não em sentido pequeno,
o de dizer o que simplesmente se quer dizer, sentido contrário, diríamos, à liberdade, mas a
possibilidade de trânsito entre os limites da razão como prática. Não à toa Starobinski vai dizer
que o mais livre dos gêneros literários seria o ensaio, pois sua condição “[...] e seu desafio
igualmente, é a liberdade de espírito” (STAROBINSKI, 2018, p. 23). Liberdade de ir ao
encontro do mundo presente, como observa o autor, como fizera Montaigne na análise e na
construção de novas perspectivas e possibilidades de sua compreensão, mas ir, ainda, de
encontro ao mundo presente, de modo processual e não menos dialético. É ter a interrogação
como prerrogativa. Trata-se, como continua a dizer Starobinski, de tomar o melhor partido de
tais disciplinas aproveitando o que elas têm condição de oferecer, em uma dianteira reflexiva e
liberta em defesa do pensamento e também à nossa.

Nada dispensa elaborar o saber mais sóbrio e escrupuloso, mas com a


condição expressa de que esse saber seja substituído e encampado pelo prazer
de escrever e sobretudo pelo vivo interesse que sentimos diante de
determinado objeto do passado, para confrontá-lo com nosso presente, no qual
não estamos sozinhos, no qual não queremos ficar sozinhos. A partir de uma
liberdade que escolhe seus objetos e inventa sua linguagem e seus métodos, o
ensaio, no limite ideal no qual não faço senão ensaiar concebê-lo, deveria
saber aliar ciência e poesia. Deveria ser, ao mesmo tempo, compreensão da
linguagem do outro e invenção de uma linguagem própria; escuta de um
sentido comunicado e criação de relações inesperadas no âmago do presente.
O ensaio, que lê o mundo e se dá a ler, exige a instauração simultânea de uma
hermenêutica e de uma audácia aventureira (STAROBINSKI, 2018, p. 25-26).

É contar com certo encantamento pelo mundo, deixando de considerar unicamente seus
sistemas puramente racionais como meios de apreendê-lo. É alinhar ciência e poesia, também
diz o autor, nos remetendo ao que escreve György Lukács (2018), que pela leitura de Schlegel
27
institui ao ensaio: são poemas intelectuais. “Na ciência, são os conteúdos que atuam em nós;
na arte, as formas; a ciência nos oferece fatos e suas conexões; a arte, almas e destinos”
(LUKÁCS, 2018, p. 89). Para o ensaísta, segundo Lukács, a forma é o princípio criador do
destino para os que padecem. É representação do conteúdo humano da consciência tornado
objeto de conhecimento e de comunicação. Tentativa de expressão de sentidos e símbolos a
priori não necessariamente cognoscíveis.

Nascida de uma consideração simbólica dos símbolos da vida, a forma extrai


das forças dessa vivência uma vida que lhe é própria, tornando-se uma
concepção de mundo, um ponto de vista, uma tomada de posição diante da
vida da qual surge, enfim, uma possibilidade de remodelar e recriar essa
mesma vida. O destino do crítico é traçado no momento crucial em que as
coisas se tornam forma, em que todo sentimento e toda vivência até então
aquém e além das formas recebem uma forma, se fundem e se cristalizam em
forma (LUKÁCS, 2018, p. 96).

Cássio Hissa (2002, p. 167) diz da relação entre ciência e método (ainda que sejam
vários métodos, alerta o autor) e o texto como expressão formal, “um produto de pensamento,
de como ele está articulado”, “de como ele se organiza para atingir um objetivo”. Nos escritos
do ensaísta, a forma é sua realidade-viva, instrumento com o qual dirige suas interrogações à
vida. Lukács (2018) também alinhava o ensaio à crítica por excelência (tal como posteriormente
fará Adorno), pois

o ensaísta necessita da forma apenas como vivência; sua necessidade é, pois,


apenas a da vida da forma, da realidade anímica que nela pulsa. Mas essa
realidade é encontrada em toda exteriorização sensível e imediata da vida,
podendo ser lida a partir dela ou projetada para dentro dela; por meio desse
esquema das vivências, é possível viver e dar forma à própria vida [pois] as
vivências que ganham expressão nos escritos dos ensaístas se tornam
conscientes, para a maioria dos homens, apenas na contemplação de imagens
e na leitura de poemas; falta-lhe a força capaz de mover a própria vida. Por
isso, a maioria dos homens acredita que os escritos dos ensaístas só existem
para explicar livros e imagens, para facilitar sua compreensão (LUKÁCS,
2018, p. 96-97).

Ainda que

o ensaio sempre fala de algo já formado, ou no melhor dos casos, de algo já


existente; é próprio de sua natureza não extrair coisas novas do vazio, mas
simplesmente reordenar coisas que, em algum momento, aconteceram
(LUKÁCS, 2018, p. 99).

Todavia, para Adorno (2003), o ensaio se difere da arte em seu meio específico, os
conceitos, tanto por sua pretensão à verdade. Dirão Deleuze e Guattari (2010, p. 28) que “as
28
zonas e as pontes são as junturas do conceito”. Ele é incorporal, paira no ato de pensamento
operando em alta velocidade, mas é na carne dos corpos que ele se efetua, mas “justamente,
não se confunde com o estado de coisas no qual se efetua” (2010, p. 29). Ele diz do
acontecimento, mas não de sua essência ou da coisa em si. Define-se “por sua consistência,
endoconsistência e exoconsistência, mas não têm referência: ele é autorreferencial, põe-se a si
mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo que é criado” (DELEUZE E GUATTARI, 2010, p.
30). Não é discursivo, e “como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de um
quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem” continuam dizendo os
autores (2010, p. 31). São pontes moventes e, por isso, espectros de passagens e movimentações.
Nessa perspectiva, retomando o que considera Adorno (2003), o ensaio não está
preocupado com a gênese de um tema. Ele fala sobre aquilo que deseja falar, o que lhe ocorre
e, assim como se inicia, se encerra, onde imagina ser o suficiente até o momento. Para isso,
orquestra uma espécie de conjunto de elementos do espaço-tempo que se insere prezando pela
sustentação de ideias em transformação no âmbito da vida-viva. Um ensaio não começa e não
termina em si; ele é um trânsito entre um antes e o depois. Assim lhe ocorre, a ele também
concerne, pela interpretação, a extração de algo que já foi previamente interpretado (e aqui está
a importância também do conceito), mas que é ousado ao agrupar aspectos de objetos pouco
afeitos a conjunções, pelo menos previamente.
O que fortalece o ensaio não são suas inferências dedutivas estabelecidas pela relação
direta com o objeto ensaiado, mas como esse conjunto permite ir além de si mesmo por ele
mesmo. Por isso, dirá Lukács (2018, p. 101) que “é certo que o ensaio aspira à verdade; porém
[...] o ensaísta capaz de buscar a verdade chegará, ao final de seu caminho, a algo que não
buscava: a vida”. Mais uma vez, é vinculação à vida-viva, sua condição perene como um estar.
Adorno (2003, p. 25) dirá (assim como observaram Starobinski e Kehl) que

O ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas,


segundo as quais, como diz a formulação de Spinoza, a ordem das coisas seria
o mesmo que a ordem das ideias. Como a ordem dos conceitos, uma ordem
sem lacunas, não equivale ao que existe, o ensaio não almeja uma construção
fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta sobretudo contra a doutrina,
arraigada desde Platão, segundo a qual mutável e o efêmero não seriam dignos
da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o
transitório, pela qual este é novamente condenado no conceito. O ensaio recua,
assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade ontológica ao
resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao
individual nele subsumido.

29
Ele tem relação bastante próxima com a experiência, pois quando “o pensamento torna-
se volátil com o avanço da abstração” é que o “ensaio se propõe precisamente a reparar uma
parte dessa perda” (ADORNO, 2003, p. 27). O ensaio trabalha enquanto uma tradução da
abstração conceitual que detêm lugar de destaque, mas que parece distante de uma efetivação.
Ensaiamos para testar, para inscrever na pele as possibilidades das demarcações conceituais e,
nesse movimento, compreender o que cabe e o que se espraia no confronto. Ou seja

O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela


profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida
com esse critério de maneira polêmica, manejando assuntos que, segundo as
regras do jogo, seriam considerados dedutíveis, mas sem buscar a sua dedução
definitiva. Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido
nos objetos de sua livre escolha (ADORNO, 2003, p. 27).

É entender que a busca pelo “[...] teor de verdade como algo histórico por si mesmo”,
continua a dizer Adorno (2003, p. 27), cuja atividade ensaística está preocupada, humaniza as
relações uma vez que a existência é compreendida pela chave temporal, inscrita numa duração
que compreende ao mundo das ideias e do pensamento, atribuindo e dando sentido às
construções que emanam das coisas instituídas. Nesse sentido, ele nos lembra de que a vida
ainda vive, que as coisas ainda se movem. Nisso, o ensaio

[...] abandona o cortejo real em direção às origens, que conduz apenas ao mais
derivado, ao Ser, a ideologia que duplica o que de qualquer modo já existe,
sem que, no entanto, desapareça completamente a ideia de imediaticidade,
postulada pelo próprio sentido da mediação. Para o ensaio, todos os graus do
mediado são imediatos, até que ele comece sua reflexão (ADORNO, 2003, p.
28).

Ainda de acordo com Adorno (2003, p. 28), o ensaio “incorpora o impulso


antisistemático em seu próprio modo de proceder, introduzindo sem cerimônias e
‘imediatamente’ os conceitos, tal como eles se apresentam”, já que é na relação entre eles que
sua precisão emerge. A ciência, parte importante do que se demonstrará em nosso objeto
específico de análise, os ensaios em Dossiês da revista CULT, demanda da concepção de
conceito um dispositivo para sua autoridade, como mecanismo capaz de “mostrar-se como o
único poder capaz de sentar-se à mesa” (ADORNO, 2003, p. 29).
Para Vera Lins (2006, p. 271), assim como para Adorno (2003), “o ensaio trabalha com
conceitos”, e estes “vão se articulando na linguagem, à medida que o ensaio avança” (p. 273),
e, por isso

30
[...] por ser ele próprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria
de auxiliar o relacionamento da linguagem com o conceito, acolhendo-os na
reflexão tal como já se encontram inconscientemente denominados na
linguagem. (ADORNO, 2003, p. 29).

O ensaio trabalha com o que se tem em passagem, e na medida que avança, entre seus
todos irregulares, entrecruza instâncias-tempo dos objetos sob os quais lança seu olhar
movimento. Dessa forma, Adorno (2003, p. 32) continua dizendo que, no ensaio

Os momentos não devem ser desenvolvidos puramente a partir do todo, nem


o todo a partir dos momentos. O todo é mônoda, e, entretanto, não o é; seus
momentos, enquanto momentos de natureza conceitual, apontam para além do
objeto específico no qual se reúnem. Mas o ensaio não os acompanha até onde
eles poderiam se legitimar para além do objeto específico: se o fizesse, cairia
na má infinitude. Pelo contrário, ele se aproxima tanto do hic et nunc o objeto,
que este é dissociado nos momentos que o fazem vivo, em vez de ser
meramente um objeto.

É um todo do aqui e agora e ao mesmo tempo não o é limitado por esse mesmo aqui e
agora diante do todo. Disso, resulta, possivelmente, um dos pilares do ensaio que é o próprio
tempo: da maturação, da cura, da profundidade ensaística que oferece condições para novos
saberes e sabores, texturas e experiências em seu próprio decorrer. O autor defende a
fragmentação como estrutura de pensamento do ensaio sobre a realidade que “encontra sua
unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada” (ADORNO,
2003, p. 35). O ensaio é como pensar a própria vida. Ela mesma durável e, por isso, finita. Ele
precisa ser sentido e vivido em suas imbricações. Nisso decorre o pensamento de que

a descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um conflito em


suspenso. Enquanto concilia os acontecimentos uns com os outros, conforme
as funções que ocupam no paralelogramo de forças dos assuntos em questão,
o ensaio recua diante do conceito superior, ao qual o conjunto deveria se
subordinar; seu método sabe que é impossível resolver o problema para o qual
este conceito superior simula ser a resposta, mas apesar disso também busca
uma solução (ADORNO, 2003, p. 35).

Por isso, mais uma vez, o ensaio funciona em conjunto porque se preza a sustentar uma
ideia no trânsito de suas transformações pelo âmbito do conceito-vivo. Portanto, escreve
ensaisticamente quem experimenta, quem a seu objeto questiona, investiga, revira e apalpa.
Quem o (re)flexiona e descortina suas contradições, pondo em palavras o que o próprio objeto
permite vislumbrar. Porém, o ensaio não é abertamente vago, mas contornado pela análise
própria de seu conteúdo. Logo

31
O ensaio continua sendo o que foi desde o início, a forma crítica par
excellence; mais precisamente, quando crítica imanente de configurações
espirituais e confrontações daquilo que elas são com o seu conceito, o ensaio
é crítica da ideologia (ADORNO, 2003, p. 38).

Max Bense (2018, p. 117-118), nesse sentido, questiona: “Não salta aos olhos que todos
os grandes ensaístas foram também críticos? Não salta aos olhos que todas as épocas marcadas
pelo ensaio foram também, essencialmente, épocas críticas?”, uma vez que o

O ensaio nasce da essência crítica do nosso espírito; seu prazer em


experimentar deriva simplesmente de uma necessidade do seu modo de ser,
do seu método. Para dizê-lo de forma mais ampla: o ensaio é a forma da
categoria crítica do nosso espírito. Pois quem critica deve também, e
necessariamente, conduzir um experimento, deve criar condições sob as quais
um objeto se mostra a uma nova luz, deve testar a força ou a fragilidade do
objeto – e é por isso que o crítico submete seus objetos a ínfimas variações
(BENSE, 2018, p. 118).

Para o autor, o lugar do ensaio é zona intermediária. Se situa “entre as classes e entre as
épocas [...] ali onde se preparam as revoluções, as resistências, as subversões” (BENSE, 2018,
p. 119). Da prática ensaística tornar-se-ia visível a coisa em seus contornos, seu interior e
exterior, contornos do objeto-assim para, então, ultrapassá-lo. O ensaísta, continua a dizer o
autor, é um combinador incansável de novas configurações ao redor do objeto dado.
“Transformar a configuração em que o objeto se dá a nós, esse é o sentido do experimento
ensaístico” (BENSE, 2018, p. 121). Tem-se por intermédio destes dois autores, Adorno e Bense,
o ensaio como gênero máximo da expressão crítica, por ser este uma forma que comporta as
movimentações suscitadas pelo próprio exercício da crítica.

Ele [o ensaio] não é desprovido de lógica; obedece a critérios lógico na


medida em que o conjunto de suas frases tem de ser composto coerentemente.
Não deve haver espaço para meras contradições, a não ser que estas estejam
fundamentadas em contradições do próprio objeto em questão. Só que o
ensaio desenvolve os pensamentos de um modo diferente da lógica discursiva
(ADORNO, 2003, p. 43).

A atividade ensaística consiste em apelar aos contextos e às configurações que estão no


entorno dos objetos do que encontrar sua definição reveladora. O ensaio permite entrever pela
experimentação. E na figura do ensaísta, e também podemos dizer, do crítico, seu procedimento
intelectual “desdobra-se no phatos existencial do autor” (BENSE, 2018, p. 123). O ensaio tem
ocorrência concreta também na pele do ensaísta. Vejamos, a princípio, onde e como isso se dá
na e a partir de CULT.

32
1.1. Lugares e sentidos do ensaio na (e a partir de) CULT

Para fins de observação, trazemos por meio de uma amostragem, com base nas edições
disponíveis no acervo pessoal do autor6, certas localizações do ensaio em edições da revista.

Na comemoração de um ano da CULT (edição de número #12, julho de 1998) seu editor,
à época, o jornalista Manuel da Costa Pinto, escreve em editorial (p. 2):

[...] acredito que buscamos – e conseguimos – atingir um padrão de equilíbrio


entre a atualidade jornalística das matérias e a profundidade ensaísta com que
são tratadas. Isso acontece por causa da qualidade de nossos colaboradores –
e não encontraríamos ocasião melhor do que esse primeiro aniversário da
CULT para agradecer a cada um deles pela sensibilidade com que souberam
compreender a tarefa de uma revista como esta: ser ao mesmo tempo
informativa para quem tem lacunas em sua formação cultural (lacunas
inevitáveis num contexto cultural tão precário) e instigante para aquela parcela
de leitores que, habituados com os prazerosos labirintos da leitura, desejam
ter uma visão renovada de seus temas e autores preferidos.

Ocupando das páginas 20 a 22 da primeira edição de CULT, de julho de 1997, o ensaio


do crítico literário Fábio Lucas subscreve um vai e vem de memórias e experiências do próprio
autor com sua leitura de Franz Kafka e o trabalho de disseminação da obra do escritor tcheco
(que escrevia em alemão) nos espaços literários brasileiros. Aqui a palavra “ensaio” aparece
como categoria grafada no índice da revista (1997, p. 1) e no alto do título do texto Kafka: o
crítico Fábio Lucas relembra as primeiras leituras brasileiras do autor de O Processo (1997,
p. 20). O texto começa assim: “Será difícil determinar quando Kafka pousou na minha vida.
Imagino que entre 1949 e 1950, ocasião em que já frequentava a faculdade. Integrei a minha
primeira roda de amigos e falávamos de livros e autores, dia e noite” (LUCAS, 1997, p. 20).
O autor remonta sua leitura de Velimir Khlébnikov, poeta experimentalista russo, autor
de Ka, o qual lembra o nome de Kafka; sua amizade com o professor e filólogo tcheco Zdenek
Hampejs, que o brindou com fotografias de Kafka e família, além de postais da Praga de Kafka;
sua “briga feroz” com o crítico literário, naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux que se
tornara seu amigo e que conheceu Kafka pessoalmente (a quem também considera ter sido o
primeiro a falar sobre Kafka no Brasil, tendo trazido consigo ao país uma raridade que é umas

6
Todas as edições que compõem o acervo pessoal do autor podem ser consultadas na tabela que consta nos anexos
da dissertação.
33
das primeiras edições em alemão de O processo [Der prozess]) e o episódio em que travou
conhecimento com o especialista em Kafka Alfred von Brunn.
O ensaio, novamente enquanto categoria editorial distintiva, retorna nas edições de
número #11, de junho de 1998, em que Ivan Teixeira, professor do Departamento de Jornalismo
e Editoração da ECA-USP escreve Anatomia do crítico que pela análise de diferentes vertentes
apresenta um panorama da crítica literária7; na edição de número #13, de agosto de 1998,
quando Jacó Guinsburg escreve O teatro de linguagens de Haroldo de Campos, uma análise da
relação de Campos com o teatro; e isso se repete nas edições #14 (ensaio sobre a obra do escritor
argentino Ricardo Piglia e a ideia de utopia), #16 (a segunda parte do ensaio sobre o livro
Conhecimento proibido, de Roger Shattuck, publicada sua primeira parte na edição de número
#15); #17 (ensaio inédito de Jose Saramago sobre a distinção entre as figuras do autor e do
narrador em uma obra), #18 (ensaio de Mario Vargas Llosa sobre o romance Tirant lo Blanc,
de Joanot Martorell), #26 (sob o manto de poesia e ensaio escreve Milton Hatoum sobre
Quadragésimo, livro do poeta Horácio Costa), #53 (sobre o atentado ao World Trade Center e
o livro A caverna, de Jose Saramago postos em relação), #54 (sob o manto de entrevista e ensaio
traçado amplo histórico do poeta Patativa do Assaré), #56 (sobre o livro A subversão do ser, de
Mauro Maldonato e a identidade pós-moderna), #99 (sobre o livro De como ser, de Harry Laus),
#141 (sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim e os debates sociais emergentes), #143
(sobre o congênito e o adquirido, do dinheiro e do amor, da beleza e do valor, da doença dos
remédios), #145 (sobre o caso sexual envolvendo o jogador de golfe Tiger Woods), #198 (sobre
determinismo biológico e convenções culturais dominantes envolvendo marcadores de raça e
gênero), #200 (sobre o fuzilamento de Marco Archer, na Indonésia, e o papel da literatura),
#205 (sobre diversidade e diferença no contexto das mutações culturais) e #221 (publicação do
ensaio Como o nosso espírito cria suas próprias dificuldades, de Michel de Montaigne), até
onde pudemos notar.
Outro lugar comum para o ensaio na revista, ainda que aqui demarcações de ordem
categorial sofram constantes intermitências, hora sendo grafada, hora não, nos índices e altos
de páginas, são nas colunas de opinião. Entre os e as colunistas, nomes como Pasquale Cipro
Neto, Luis César Oliva, Marcia Tiburi (colunista de longa data), Francisco Bosco, Christian
Dunker (colunista de longa data), Vladimir Safatle (colunista de longa data), Alcir Pécora,
Manuel da Costa Pinto, Claudio Daniel e, mais recentemente, Welington Andrade, Bianca

7
No índice da referida edição de número #11, primeira página, está escrito: “Ensaio: Um panorama das
diferentes correntes da crítica literária”.
34
Santana, Silvio Rosa Filho, Wilson Gomes, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Rubens R. R.
As temáticas abordadas pelos colunistas nos primeiros anos da CULT giram em torno de
artefatos literários – análise de obras ficcionais ou não, da língua portuguesa (com Pasquale
Cipro Neto) e da Filosofia. Em um segundo momento, esse leque se amplia. São deixadas de
lado análises estritamente literárias ou visadas exclusivamente filosóficas, e tematizações mais
amplas envolvendo os campos sociais e políticos passam a figurar. A humilhação, o Facebook
e o Twitter; o espaço público, a linguagem, o ato de brincar, fascismo e vitimização, mulheres
negras e a justiça social, memória e a imaginação, o voto, o fracasso da argumentação, a moral
na política, o êxtase neopentecostal, o maniqueísmo e o empobrecimento da linguagem; o
movimento político Lula Livre pela liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são
alguns objetos temáticos dessa virada da publicação.
Essas inconstâncias editoriais na demarcação do que seria ou não ensaio tendem a borrar
sua noção. Na seção Dossiê, essa diferenciação praticamente não aparece, ainda que diversos
dos textos que compõem os Dossiês possam ser enquadrados como ensaio – e muitas vezes o
são por seus próprios autores/as. Essa profusão de caracterizações na tentativa de compreender
o ensaio nos remete ao que escreve Christy Wampole (2018, p. 244), para quem não há
consenso em torno do que pode ou não ser considerado um ensaio, pois a “cada regra que
consigo estabelecer para o ensaio, geralmente surge uma dúzia de exceções”. Ainda assim, não
se furta em defini-lo como “[...] uma prosa de não ficção curta, com um tema meditativo em
seu centro e uma tendência a se afastar da certeza” (WAMPOLE, 2018, p. 244). E segue
provocando:

Muito do que hoje se considera “ensaio” ou “parecido com ensaio” é tudo


menos ensaio. Esses textos incluem o tipo de escrita esperado em provas de
acesso à universidade, em papers, dissertações, na crítica profissional e em
outras formas acadêmicas; ou são ainda textos politicamente engajados ou
outras formas peremptórias que insistem em seus argumentos e não dão
espaço para a incerteza; ou outras formas breves de prosa em que a
subjetividade do autor é propositalmente apagada ou disfarçada. O que esses
textos têm em comum é, em primeiro lugar, o ocultamento consciente do “eu”
sob o manto de objetividade. Pretende-se que as opiniões e conclusões de
alguém tenham emanado de uma espécie de departamento da mais alta
verdade, um escritório chefiado pelo rigor e pela ciência. Em segundo lugar,
esses textos não têm nada de experimental: sabem o que querem dizer antes
de começar, constroem furtivamente seu ponto de vista, antecipando qualquer
objeção almejando o hermetismo. Esses textos não são tentativas, são
obstinações. São fortalezas. Ao deixar o leitor de fora desta espécie de
encontro no texto, o autor deixa claro que ele, o leitor, deve se conformar em
beber sozinho (WAMPOLE, 2018, p. 245).

35
Mesmo não sendo de nosso interesse classificar tipos de ensaio (Que tipo de produção
pode ser considerada ensaística? Considerado por quem? Ensaio é somente texto? Ainda que
aqui estejamos considerando sua expressão textual. E os ensaios fotográficos? Livros-ensaio?
Filmes? São perguntas que tendem a orbitar nossos pensamentos) somos acometidos por uma
inquietação diante das considerações de Wampole.
Primeiro sobre a ocultação consciente do “eu”. Segundo Adriana Melo (2011, p. 255) a
postulação do inconsciente no século XIX representaria “a impossibilidade do exílio do sujeito
no texto”, portanto, não haveria como “dissociar o sujeito de si, da linguagem, da vida” (ainda
que nos campos da ciência, principalmente, pretende-se seu ocultamento consciente). Cassio
Hissa (2011, p. 255) em diálogo com o que nos diz Melo acrescenta que “[...] o sujeito do
conhecimento está no texto, mesmo que deseje a invisibilidade. Ele é a leitura do mundo que
constrói para o seu leitor. Ele é a interpretação ou a representação do mundo por ele construída”.
Este autor também apresenta um contraponto em relação à produção da ciência para quem não
haveria uma “ciência inumana”, ainda que “o desejo, explicitado pela prática, é o de construir
uma ciência não somente distante da arte, mas, sobretudo, paradoxalmente, distante do sujeito
que a produz” (2011, p. 255). Por exemplo, assim introduzem suas produções alguns autores e
autoras, como o filósofo camaronês, teórico político e professor universitário Achille Mbembe
(2018, p. 5-7), em seu livro(-ensaio) Necropolítica:

Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande


medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve
morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania,
seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a
mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder.

Ou o filósofo dissidente do sistema sexo-gênero Paul B. Preciado (2018, p. 13), em seu


ensaio(-corpo/ral) Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era da farmacopornografia:

Este livro não é uma autobiografia, mas um protocolo de intoxicação


voluntária à base de testosterona a respeito do corpo e dos afetos de B. P. Um
ensaio corporal. Uma ficção, na verdade. Se for preciso levar as coisas ao
extremo, é uma ficção autopolítica ou uma autoteoria. Durante a escrita deste
ensaio, ocorreram duas transformações externas no contexto do corpo
experimental cujo impacto não pôde ser calculado e não pode ser considerado
como parte deste estudo, no entanto, essas transformações criaram limites em
torno dos quais se adere a escrita.

O romancista, poeta e dramaturgo James Baldwin (2020, p. 19), em suas Notas de um


filho nativo:

36
Foi Sol Stein, meu colega do colegial, editor, romancista e dramaturgo, que
me sugeriu escrever este livro. Minha reação não foi entusiástica: lembro-me
de ter dito a ele que eu era jovem demais para publicar minhas memórias.
Nunca havia pensando nestes ensaios como um livro em potencial. Tendo-os
publicado, na verdade, creio que já nem sequer pensava neles. A sugestão de
Sol teve o efeito surpreendente e desagradável de me fazer perceber que o
tempo tinha passado. Era como se ele tivesse jogado água fria no meu rosto.

O escritor e jornalista Ta-Nehisi Coates (2019, p. 4-5 no Kindle), em A origem dos


outros, reunião de ensaios da escritora, Nobel de Literatura e professora universitária Toni
Morrison:

Origem conduz sua investigação no campo da histórica dos Estados Unidos,


endereçada a mais antiga e mais potente forma de política identitária na
história do país: a política identitária do racismo. Esta é uma obra sobre a
criação de “outros” e a construção de muros, uma oba que lança mão da crítica
literária, da história e das recordações pessoais numa tentativa de compreender
como e por que acabamos associando esses muros à cor da pele. [...] A partir
daí, ela [Morrison] nos ajuda a entender como um conceito que parece tão
frágil pode ter uma influência tão forte sobre milhões de pessoas. O conceito-
chave, defende ela, é a necessidade de confirmar a própria humanidade ao
cometer atos desumanos.

E o crítico literário e teórico marxista Fredric Jameson (2005, p. 22-23), em seu livro
Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente:

[...] o longo ensaio a seguir tratará do assunto de uma forma bem diferente e
econômica. Digamos, para resumir, que será uma análise formal dos usos da
palavra “modernidade”, que explicitamente rejeitam qualquer pressuposto de
que haja um correto uso da palavra, ainda a ser descoberto, conceitualizado e
proposto. É um caminho que nos levará até um conceito correlato, na esfera
estética – o de modernismo, no qual ambiguidades análogas podem e deverão
ser descobertas.

Dos destaques acima, todos, em certa medida, produzem ou produziram ciência,


circulam ou circularam em espaços acadêmicos e universitários, possuem grandes ou pequenas
produções, experimentaram, argumentaram, partem de diferentes compreensões de rigor, em
suma, desenvolvem ensaisticamente ideias. Mbembe (2018, p. 71) em seu ensaio politicamente
engajado e bastante teórico em termos de linguagem, ruma a certa insuficiência do conceito de
biopoder que não conseguiria “dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao
poder da morte”, e alça as noções de necropolítica e de necropoder (a inscrição destes dois
termos nos vocabulários sociais contemporâneos têm ocorrido em maior grau de identificação).
Entre os limites do corpo e da escrita, Preciado (2018, p. 14) faz e refaz a si enquanto texto e

37
pelo (con)texto: “Apresento estas páginas – que relatam o cruzamento de teorias, moléculas e
afetos – para deixar uma marca de um experimento político que durou 236 dias e noites, e que
hoje continua sob outras formas” (tangenciando a dimensão da vida). Baldwin enquadra suas
Notas enquanto produto de suas memórias e as utiliza como mecanismos reflexionantes da
sociedade do seu tempo (são encontros). Morrison lança mão de uma crítica estritamente
literária (enquanto análise de produção fundamentalmente escrita) para outra de cunho político-
conceitual para compreender a domesticação do racismo pela literatura (de carga
fundamentalmente social e histórica). O longo e denso trabalho de Jameson se constitui como
um percurso histórico-conceitual dos usos e desusos do termo modernidade posto em análise
(alçando outras epistemologias possíveis). Não há quem se furte a beber conjuntamente.
O ensaísta partiria do existente na busca por uma perspectiva renovada dos temas sobre
os quais se debruça. Este sempre tem certa concepção da ideia do que são as coisas que são, de
onde e quando elas estão, e ao não almejar o novo enquanto gênese, mas enquanto novidade
em perspectiva, inquieto, terá na vida amplo espaço de tentativas.
Dessas implicações para o que nos interessa, vale lembrar, os lugares do ensaio na
revista, podem localizar-se em diferentes geografias dentro do universo da CULT. O que há em
comum nessa profusão é a “não-planagem” em uma forma específica de fazê-lo. De abordagem
fragmentária e em marcha, de certa autonomia e circularidade dentro das propostas que
desenham; o não esgotamento derradeiro da temática ensaiada; rito de passagem entre um a
priori e o embarque na locomotiva das ideias em pleno movimento, são aspectos gerais a serem
levados em consideração, ainda que não de maneira absoluta, do ensaísmo em Dossiês CULT.
Nos tópicos a seguir, apresentamos um quadro de temáticas abordadas nos Dossiê
CULT desde sua primeira edição, em 1997, até a de número 264, a última que pudemos
observar, cobrindo um período que vai de julho de 1997 a dezembro de 2020.

38
2. Uma revista em constante formação

2.1. Revista Brasileira de Literatura

Em Ao Leitor, como era chamado o espaço dedicado ao editorial nos primeiros anos da
revista, Paulo Lemos e Manuel da Costa Pinto (diretor e editor, respectivamente) enfatizam:
“Livros e literatura, imaginação e memória – estes os temas que estarão nas páginas da revista
CULT” (1997, p. 2). Determinado os limites das abordagens da revista, fora dado também o
tom e a orientação para produção de seus 56 primeiros Dossiês.
O tricentenário de Padre Antônio Vieira, expoente da Literatura Barroca abre o histórico
de Dossiês na revista (edição #1, de julho de 1997), seguido pelo Dossiê do escritor russo Fiódor
Dostoiévski (edição #2, de agosto de 97) que aborda, além da obra do escritor russo, a ocasião
da compra dos direitos de publicação de sua biográfica em cinco volumes escrita por Joseph
Frank, no Brasil, pela Edusp; seguido da Literatura Alemã (#3, de outubro de 978) na figura do
Grupo 47 de literatura do pós-guerra, em ocasião dos 50 anos de sua formação; Dossiê 100 anos
do fim de Canudos, que traz à tona a história das guerras na Literatura Brasileira (#4, de
novembro de 97) e os 20 anos da morte da escritora Clarice Lispector, celebrada como a maior
escritora brasileira (#5, de dezembro de 97) encerra o primeiro ano de publicações na revista.

Figuras 7 e 8 – Primeira e segunda edições da revista CULT (julho de 1997 e agosto de 1997).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

8
CULT não publicada nenhuma edição em setembro de 1997.
39
O ano 1998 começa com o Dossiê panorâmico sobre a Ficção Científica produzida por
escritores brasileiros (#6, janeiro de 1998); a proximidade entre loucura e imaginação como
criação poética marca uma produção sobre Loucura e Literatura (#7, fevereiro de 98); os 100
anos da morte do poeta simbolista negro Cruz e Sousa (#8, março de 98); uma apresentação da
obra do poeta italiano Emilio Villa (#9, abril de 98); seguida por uma discussão centrada no
Barroco (#10, maio de 98), até então mencionado por meio da figura de Padre Antônio Vieira;
o Futebol na prosa, poesia e na crônica esportivas (#11, junho de 98); uma homenagem aos 80
anos de Antonio Candido (#12, julho de 98); a ocasião do lançamento da biografia e de um
livro de ensaios de Albert Camus (#13, agosto de 98); os 30 anos da morte do escritor Lúcio
Cardoso (#14, setembro de 98); a Bienal do Livro de São Paulo (#15, outubro de 98); os 100
anos de morte de Stéphane Mallarmé, em texto de Manuel Bandeira (#16, novembro de 98) e
Dossiê Estudos Culturais (#17, dezembro de 98), primeira discussão estritamente teórica, que
visava apresentar esta tendência da crítica contemporânea em ocasião do VI Congresso da
Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), realizado em agosto daquele mesmo
ano, engrandecem o rol de produções.

Figuras 9, 10 e 11 – Edições 11 (junho de 1998), 12 (julho de 1998) e 17 (dezembro de 1998).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

Abre-se o ano 1999 com Dossiê sobre o poeta Fernando Pessoa (#18, janeiro de 99),
trazendo comentários sobre a biografia, a fotobiografia e a ocasião da reedição de sua obra no
Brasil; homenagem ao poeta Joan Brossa, em virtude de sua morte (#19, fevereiro de 99); a
cultura na Rússia contemporânea (#20, março de 99), explorada por meio de uma viagem,

40
depoimentos e livros de seus intelectuais; ocasião do I Salão Internacional do Livro de São
Paulo e da IX Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro (#21, abril de 99); homenagem
póstuma ao poeta José Paulo Paes (#22, maio de 99), com entrevista inédita e depoimentos de
Davi Arrigucci Jr., Izidoro Blikstein, Fernando Paixão e Rodrigo Naves; a Literatura de
Testemunho, colocando em relação Literatura e Realidade (#23, junho de 99); as magias
literárias de Machado de Assis (#24, julho de 99), com escritos de João Alexandre Barbosa, na
ocasião dos 100 anos do romance Dom Casmurro; ocasião do lançamento das Obras completas
que marcaram os 100 anos de nascimento do escritor Jorge Luis Borges (#25, agosto de 99); os
escritos de dez poetas sobre a onipresença de Carlos Drummond de Andrade na literatura
brasileira (#26, setembro de 99); um panorama sobre a Literatura Portuguesa contemporânea
(#27, outubro de 99); a importância de Sigmund Freud para o século XX, em ocasião dos 100
anos de A Interpretação dos Sonhos (#28, novembro de 99) e Dossiê Literatura e Gastronomia
(#29, dezembro de 99), com uma seleção de livros sobre os temas.

Figuras 12, 13, e 14 – Edições 22 (maio de 1998), 28 (novembro de 1998) e 29 (dezembro de 1998).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

Uma discussão sobre a história das lúbricas relações entre erotismo, pornografia e
literatura (#30) abre os Dossiês do ano 2000, seguido de produção em ocasião à publicação no
Brasil do romance de Finnegans Wake, de James Joyce (#31, fevereiro de 2000); os 100 anos
de Gilberto Freyre (#32, março de 2000); sobre o escritor argentino Roberto Arlt (#33, abril de
2000); os 20 anos da morte de Jean-Paul Sartre (#34, maio de 2000); a política e a filosofia, na
visão de Marilena Chauí (#35, junho de 2000); nova tradução de Amerika, obra de Franz Kafka

41
e suas releituras brasileiras (#36, julho de 20009); os 100 anos da morte de Friedrich Nietzsche
(#37, agosto de 2000); os 100 anos da morte de Eça de Queirós (#38, setembro de 2000); o
Expressionismo Alemão, em ocasião do lançamento de uma antologia poética, exposição e
ciclo de cinema realizados na cidade de São Paulo (#39, outubro de 2000); os 100 anos da morte
de Oscar Wilde (#40, novembro de 2000) e os 20 anos da morte de Nelson Rodrigues (#41,
dezembro de 2000).

Figuras 15, 16 e 17 – Edições 35 (junho de 2000), 36 (julho de 2000) e 41 (dezembro de 2000).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

A atualidade da obra de Graciliano Ramos (#42) é posta em análise no primeiro Dossiê


do ano 2001, seguido de Dossiê sobre a releitura das obras do escritor Guimarães Rosa (#43,
fevereiro de 2001); sobre o filósofo Martin Heidegger (#44, março de 2011); panorama sobre
a Nova Literatura Argentina (#45, abril de 2001); a Literatura Espanhola, como atração da
Bienal do Rio (#46, maio de 2001); os 100 anos do escritor António de Alcântara Machado
(#47, junho de 2001); sobre o escritor Osman Lins (#48, julho de 2001); sobre o músico Caetano
Veloso (#49, agosto de 2001); o movimento de vanguarda surrealista, em ocasião de uma
exposição (#50, setembro de 2001); os 100 anos de Cecília Meireles (#51, outubro de 2001);
sobre a história do OuLiPo, corrente literária que reuniu os escritores Raymond Queneau,
Georges Perec e Italo Calvino (#52, novembro de 2001), encerrando com Dossiê sobre a
Literatura Islâmica como expressão de sua diversidade cultural (#53, dezembro de 2001).
A literatura de Cordel (#54) é tema do primeiro Dossiê do ano 2002, o último tendo a
Lemos Editora à frente da revista. Encerrando este ciclo somam-se os Dossiês sobre Oswald de

9
Nesta edição CULT nos apresenta sua primeira grande mudança gráfica. Apesar do novo visual, estruturalmente,
a revista permanece a mesma, sobretudo no que diz respeito aos Dossiês.
42
Andrade e a Semana de Arte Moderna de 1922 (#55, fevereiro de 2002) e um panorama sobre
a Literatura Norte-Americana contemporânea (#56, março de 2002).

Figuras 18, 19 e 20 – Edições 48 (julho de 2011), 55 (fevereiro de 2002) e 56 (março de 2002).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

São estes os expoentes da produção de Dossiês sob a égide da Literatura, marca dos
primeiros quase seis anos de CULT. Diante dessa amostra, observada panoramicamente, é
possível inferir que a revista realizava, em seus Dossiês, um atravessamento das questões de
ordem cultural sempre ancoradas na produção literária em uma acepção quase canônica do
termo (ligada a um sentido de literatura nascida no século XVIII). À baila dessa compreensão,
estão Dossiês em ocasião do lançamento de livros no Brasil, trazendo uma retomada histórica
na apresentação ou releituras de tais obras, alargando o sentido do acontecimento, como é o
caso do lançamento dos livros de James Joyce e Franz Kafka. Recursos como o da efeméride,
também utilizados nesta primeira situação, se estendem a ocasiões de aniversário de morte ou
homenagens póstumas a escritores/as, como no caso de Clarice Lispector, Cruz e Souza,
Stéphane Mallarmé e João Paulo Paes, e de figuras do campo teórico-intelectual como os
filósofos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre.
Este recurso também é utilizado em relação a acontecimentos históricos basilares para
formação de uma cultura literária no Brasil, como a Semana de Arte Moderna de 1922, ou ainda
em função do lançamento de obras consideradas fundamentais para certas áreas do
conhecimento, por exemplo, em Psicanálise, como é o caso do Dossiê sobre A Interpretação
dos Sonhos, de Sigmund Freud. São propostas de análise sobre a atualidade dessas obras e suas
perspectivas teóricas, assim como a atualidade do tempo em questão e como estas se aderiam
ao contexto em que estavam inseridas.

43
No que tange às perspectivas estritamente teóricas, temos Dossiê produzido em ocasião
do VI Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), no mês de agosto
de 1998, em Florianópolis (SC), no qual os Estudos Culturais são apresentados em uma guinada
voltada ao artefato literário como a mais forte tendência da crítica literária contemporânea para
à época. Composto por um texto de apresentação, três provenientes do evento e uma entrevista,
o Dossiê discute as principais ideias em torno da “nova” perspectiva, realizando recuperações
históricas sobre o modus operandi da teoria literária à apreensão de conceitos tensionadores
que viriam estabelecer uma outra abordagem analítica pela nova gama de estudos.
Outro tipo de abordagem bastante presente nos Dossiês relaciona expressões literárias
ao redor do mundo com apresentações panorâmicas numa espécie de guia de inserção e debate.
No caso, o Dossiê Literatura Portuguesa presente na edição #27, de outubro de 1999, se ancora
na ocasião de lançamento de livros e Antologias partindo para elaborações históricas sobre
escritores/as contemporâneos que compõem a cena literária no país (Portugal). Caso
emblemático, pois se assemelha bastante à abordagem que viria a se consolidar posteriormente
em CULT, de acepção ampla da cultura, o Dossiê “Caminhos dos Islã”, edição #53 de dezembro
de 2001, lança mão de uma crítica pela abertura, conclamando uma negação do reducionismo
estereotipado e fundamentalista em prol de apresentar a diversidade das culturas árabe e
muçulmana pelo que estas teriam de mais rudimentar, primário e extremamente rico: sua
produção literária. O material, composto por seis textos, angaria temas como filosofia,
epistemologia, a poesia e a retórica.
Há que se fazer uma última menção aos Dossiês em que gêneros literários são discutidos
e analisados, como a ficção científica – oportunidade em que a perspectiva feminista aparece
rapidamente na revista, em sua edição #6 de janeiro de 1998, a poesia de cordel e o Barroco,
aos que contemplam grupos e movimentos de vanguarda literários e os produzidos em função
da realização de eventos ou acontecimentos ligados ao universo dos livros, como as bienais de
São Paulo e do Rio de Janeiro.

2.1.1. Virada editorial e seus contextos

Passadas 56 edições e Dossiês preferencialmente voltados ao artefato literário, em


diferentes abordagens e instâncias analíticas, essa tendência muda a partir do ano 2002. Seja
pelo caráter próprio do realinhamento editorial de CULT ou pelas mudanças nos campos sociais
e políticos nacionais e internacionais (e consequentemente no campo acadêmico), fato é que

44
cultura passa a ser o conceito guarda-chuva cuja revista leva adiante na produção de seus
Dossiês. Mas em que essa alteração poderia vir a ser significativa?
De acordo com Leyla Perrone-Moisés (2018) não seria possível definir a literatura de
modo essencial e intemporal. Tal condição confere a ela uma condição de atividade que varia
em função do tempo, estando situada numa dada realidade e contexto social específicos, o que
dificulta uma abordagem que vise observar aquilo que ela teria de fundamental e imutável.

Embora a palavra “literatura” seja corrente e esteja presente nos currículos


universitários, nos catálogos das editoras, na temática de encontros, festas,
feiras e prêmios, nos meios de comunicação impressos e eletrônicos, ela se
presta a muitos mal-entendidos. Fala-se de literatura como se todo mundo
soubesse do que se trata. Mas, na verdade, não existe um conceito de literatura,
apenas acepções que variam de uma época a outra. Na nossa, a palavra recobre
uma grande variedade de práticas escritas. As acepções mudam porque os
contextos se transformam (PERRONE-MOISÉS, 2018, p. 7-8).

A autora demonstra que entre as respostas mais frequentes para tantas definições
possíveis estão a concepção de mimese (imitação) em Aristóteles, a partir da Poética (“Arte de
representar a realidade por meio de palavras”), alterada ao longo dos séculos para uma acepção
baseada na estética de kantiana e na teoria dos românticos alemães (“Produção de discursos
caracterizados por sua coerência interna e ausência de finalidade externa”); a do romantismo
vulgarizado (“Expressão verbal de sentimentos”) ou a dos formalistas russos na figura de
Roman Jakobson e das vanguardas do século XX (“Processo de comunicação que põe ênfase
na própria mensagem”) (PERRONE-MOISÉS, 2019, p. 8). Em linhas gerais, se faria necessário
precisar o sentido da palavra literatura sobre a qual se fala.
Contudo, nenhuma época definiu rigorosamente o que seria a literatura, e esse trabalho
se tornou “ainda mais difícil na nossa, em virtude das profundas transformações culturais
ocorridas nas últimas décadas” (PERRONE-MOISÉS, 2018, p. 27). Tendo essa questão à
frente, a autora retoma o conceito de fato literário proposto pelo formalista russo Iouri Tynianov
para quem “toda definição de literatura que busque seus traços essenciais se choca com ‘o fato
literário vivo’” e que, portanto, seria na vida social que “a arte encontraria seus ‘novos
fenômenos’” (PERRONE-MOISÉS, 2018, p. 28).

O que ainda é útil na teoria de Tynianov é considerar que a literatura é uma


das “séries” da cultura e que, assim como ela, está sujeita a mudanças
históricas. Por isso, ao pesquisarmos as mutações literárias, devemos colocá-
las em relação com as mutações culturais (PERRONE-MOISÉS, 2018, p. 29).

45
A respeito dessas mutações culturais, Chauí (2017, posição 190-199 no Kindle) relata
que

entendida como exercício livre da razão e da vontade esclarecida, a cultura


surge como reino humano dos fins e dos valores, separado do reino natural
das causas necessárias e mecânicas. A oposição entre natural e artificial ganha
sentido diverso do precedente: torna-se, agora, oposição entre interioridade
livre e exterioridade necessária (tema central do idealismo alemão e cujo
acabamento é a filosofia hegeliana). Gradativamente, a natureza torna-se
imóvel, passiva, materialidade dispersa, exterioridade mecânica, enquanto a
cultura se faz mobilidade, atividade, temporalidade, autoconsciência,
objetivação da subjetividade e reconciliação do subjetivo e do objetivo no
Espírito Absoluto. Cultura torna-se o reino humano da história, universo das
obras. (CHAUÍ, 2017, posição 190-199 no Kindle)

O postulado da cultura em detrimento da literatura em CULT, nessa perspectiva, poderia


vir a ser mais histórico, movente, ambígua e fundamentalmente viva. A cultura seria a mais
humana das características, nesse sentido. Vista como uma série dentro da cultura, como
pretendera Tynianov pela leitura de Perrone-Moisés, não haveria qualquer supressão
hierárquica entre os termos, uma vez que a própria literatura seria também significada pelas
movimentações culturais sob as quais as sociedades são levadas adiante.
No entanto, realizar uma distinção, como no caso de CULT, serviria à atenuação de
forças que advêm da cultura como significações máximas das expressões humanas – e assim
seria a literatura, mas também a produção em psicanálise, filosofia, antropologia, ciências
sociais, linguística, pelas artes, cinema, música. Ou seja, por disciplinas que observam, teorizam
e debatem as estruturas de poder que regem as ações no mundo. Tão amplo quanto a literatura
é também a cultura e o contrário. Todavia, haveríamos de considerar que essa modificação
parece responder ainda às mudanças em relação aos contextos sociais e isso, consequentemente,
pode ser percebido nos Dossiês. Retomemos o exemplo dado na Introdução da dissertação sobre
os Dossiês #53 (dezembro de 2001) e #156 (abril de 2011).
O Dossiê publicado em 2001 sob o título “Letras do Islã”, foi organizado por Mamede
Mustafa Jarouche, professor de língua e literatura árabe da Universidade de São Paulo (USP).
O Dossiê reúne seis textos e centra sua discussão fundamentalmente na dimensão reflexiva da
palavra como forma de expressão de uma cultura. A história das culturas muçulmana e islâmica
são narradas por meio de cronistas, ficcionistas, poetas e filósofos como Al-Ash‘ari, Al-Kindi,
Al-Farábi, Adunis (pseudônimo do escritor sírio ‘Ali Ahmad Sa‘íd), o andalus Bem Quzmán,
entre outros. A dimensão literária também conta história. Por outro lado, temos uma outra
abordagem e outros “agregamentos”.
46
O Dossiê publicado em 2011, dez anos depois do primeiro, sob o título “Mundo Árabe”,
foi editado pelo jornalista Marcos Flamínio Peres, doutor em literatura pela Universidade de
São Paulo (USP). O Dossiê reúne oito textos que falam da eclosão das revoltas nos países
árabes, de como o rap e do rock e a internet ajudaram em protestos; texto sobre o Nobel de
Literatura em 1998, o egípcio Naguib Mahfuz; os romances de Ibrahim al-Kawni e Alaa
Aswany, o campo das artes, sua arqueologia e sua geopolítica.
Nesse sentido, o que é possível observamos diz da abordagem para termos culturais
mais alargados. Isso não significa que artefato literário não daria conta ou que a revista tenha
esgotado tal orientação. Todavia, consideramos que a ampliação pela ótica cultural faz
visualizar outros motes ao redor da própria literatura, como a música, a história, a arte, a
arqueologia e a geopolítica e que também se constitui por ela. Ou seja, uma espécie de círculo
em que se articulam diversos artefatos. Havia uma ampliação conceitual e, consequentemente,
das lentes para abordagens em Dossiê.
Além desse cenário, também podemos considerar outras mudanças advindas
principalmente do campo das políticas públicas para educação e cultura, a partir dos anos 2002,
possíveis de serem observadas na revista. Não caberia ao trabalho um detalhamento
aprofundado sobre o tema, mas chama-nos atenção a presença dos selos da Lei de Incentivo à
Cultura10 e de parceria com o Ministério da Cultura11, além de grandes incursões publicitárias
por parte de empresas ligadas à Federação12 como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal. Dessa amostragem, grandes incursões coincidem com os governos do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e posteriormente com o da ex-presidenta
Dilma Vana Rousseff (2011-2016).
Tal cenário nos leva a imaginar sobre as condições políticas e sociais para existência da
própria CULT (e de seus Dossiês) em um momento de valorização de bens culturais-simbólicos
com efetivas políticas culturais em curso. Como dissera uma vez o então ministro da Cultura
da Era Lula, Gilberto Gil, em entrevista à imprensa alemã, na cerimônia na Casa das Culturas
do Mundo em 2006:

10
Edições #13, de agosto de 1998; #14, de setembro de 1998; #16, de novembro de 1998; #17, de dezembro de
1998, deixando de aparecer na edição na edição #44, de março de 2011 e reaparecendo posteriormente nas edições
#66, de março de 2003; #99, de janeiro de 2006, até onde foi possível notar, conforme acervo pessoal do autor.
11
Edições #156, de abril de 2011; #157, de maio de 2011 e #163, de novembro de 2011, até onde foi possível
notar, conforme acervo pessoal do autor.
12
Edições #6, de janeiro de 1998; #7, de fevereiro de 1998; #29, de dezembro de 1999; #98, de dezembro de
2005; #123, de abril de 2008; #141, de novembro de 2009; #145, de abril de 2010; #152, de novembro de 2010;
#173, de outubro de 2012; #179, de maio de 2013; #182, de agosto de 2013 e #184, de outubro de 2013, , até onde
foi possível notar, conforme acervo pessoal do autor.
47
A ideia principal que move o ministério é fazê-lo mais forte como instituição.
Outro objetivo nosso é mudar a concepção de cultura. Entendemos como
cultura tudo aquilo que não é natureza, como o falar, as ciências, a tecnologia.
Também procuramos vender o conceito de que cultura não é só uma expressão
simbólica, mas também economia, produção de riquezas. [...]

GIL, Gilberto. Gil sobre sua atuação no ministério: ‘Alguma coisa foi feita’.
[Entrevista concedida a] Leonardo Linchote. Jornal O Globo On-line. 24 de
maio de 200613.

É precisamente no campo das ciências que CULT parece ter colhido frutos. Um trabalho
realizado por pesquisadores das Universidades Nove de Julho e de São Paulo, em 2013, mostra
a evolução do número da pós-graduação stricto sensu no Brasil. A quantidade de cursos
ofertados pela esfera privada, por exemplo, saltou de 185 programas em 1998 para 784, em
2011, ainda que o crescimento exponencial tenha sido puxado pelo setor público que saltou de
1.891 cursos para 3.86614 no mesmo ano de 2011. Outro ponto que nos chama atenção é a
distribuição dos cursos por regiões do Brasil, tendo havido uma melhora nas regiões Sul,
Centro-oeste, Nordeste e Norte15, mesmo que o maior concentrado (50,8%) ainda permanecesse
no Sudeste do país. Além disso, a taxa de crescimento dos programas stricto sensu e os cursos
de Mestrado e Doutorado por grande área de conhecimento revela um bom momento para as
Ciências Sociais Aplicadas (+204,7%), conjuntamente das Ciências Humanas (+145,2%),
Linguísticas, Letras e Artes (+122,7%) e Multidisciplinar (+1.083%)16. Por último, o número
de matrículas na pós-graduação em 2010 contabilizava 173.408 estudantes, o que representou
um avanço de 128% quando comparado ao total nos anos 1998. O investimento obtido pelas
áreas das Humanidades, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes são fatores que
podemos considerar como decisivos para ascensão de profissionais interessados e debatedores
de muitas das pautas em ascensão nos Dossiês.
Agregadas a essas movimentações – de pensamento, políticas e sociais, ainda devemos
considerar o giro no mercado editorial cuja CULT tem destaque. A revista atuou fortemente na
disseminação das ideias de figuras como Judith Butler, tendo consequências no número de
traduções das obras da filósofa, por exemplo, entre os anos 2013 e doravante. Dessa nova
guinada cultural proposta pelo corpo diretório da revista, em virtude de um cenário que
contribuiria favoravelmente para ascensão de pautas de caráter mais amplo nos campos sociais

13
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/gil-sobre-sua-atuacao-no-ministerio-alguma-coisa-foi-
feita-4582668>.
14
Ver Figura 1 em <http://dx.doi.org/10.590/S1414-40772015000500011>.
15
Ver Figura 3 em <http://dx.doi.org/10.590/S1414-40772015000500011>.
16
Ver Tabela 3 em <http://dx.doi.org/10.590/S1414-40772015000500011>.
48
e, sobretudo, com investimentos nos campos da educação para essas áreas, seguimos para o
segundo momento de CULT.

2.2. Revista Brasileira de Cultura

Cerca de cinco anos separam a primeira fase de CULT e seu realinhamento editorial. Ainda
assim, perspectivas antes consolidadas nos Dossiês (voltadas exclusivamente à literatura, por
exemplo) continuam a fazer parte das novas práticas envolvendo a seção, tal como as novas
abordagens que emergem sumariamente sob a ótica cultural. Ao longo desse tempo, há uma
crescente no número de abordagens filosóficas (OLIVEIRA, 2015), além do acionamento de
outras áreas do conhecimento. Ao todo, foram 207 Dossiês produzidos entre maio de 2002 e
novembro de 2020, acarretando caráter fundamental à seção para o funcionamento da revista.
A primeira edição publicada tendo a Editora 17 (atual Editora Bregantini) à frente traz um
Dossiê sobre os 120 anos de nascimento do escritor Monteiro Lobato (edição #57).

Figuras 21 – Edição 57 (maio de 2002), a primeira da nova CULT.

Fonte: Acervo de imagens do autor.

Seguindo a cronologia da publicação, temos no mês de junho de 2002 o Dossiê em


ocasião dos 100 anos de Sérgio Buarque de Holanda (#58, junho de 2002); ocasião do
lançamento dos volumes finais da obra biográfica escrita por Joseph Frank e das novas

49
traduções de Fiódor Dostoiévski no Brasil (#59, julho de 2002); lógica e ética no pensamento
do filósofo Ludwig Wittgenstein (#60, agosto de 200217); sobre o crítico literário Antonio
Candido, em ocasião ao lançamento de livro (#61, setembro de 2002); os 100 anos de
nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade (#62, outubro de 2002); os 80 anos da
morte do escritor Lima Barreto (#63, novembro de 2002), finalizando com uma edição especial
sobre Cristianismo e Modernidade (#64, dezembro de 2002).

Figuras 22, 23 e 24 – Edições 59 (julho de 2002), 60 (agosto de 2002) e 61 (setembro de 2002).

Fonte: Acervo de imagens do autor.

O ano de 2003 é iniciado com Dossiê sobre a banda de rock inglesa The Beatles (#65,
janeiro de 2003). Na sequência, Dossiê sobre a Literatura Gay (#66, fevereiro de 2003); sobre
o cineasta brasileiro Glauber Rocha, em ocasião do lançamento de livros e DVDs (#67, março
de 2003); sobre o escritor William Faulkner (#68, maio de 2003); a ficção, a poesia e o teatro
do cantor Chico Buarque (#69, junho de 2003); os 100 anos de Pedro Nava (#70, julho de 2003);
os 100 anos do escritor George Orwell (#71, agosto de 2003); os 100 anos de nascimento do
filósofo Theodor Adorno (#72, setembro de 2003); a poética de Charles Baudelaire (#73,
outubro de 2003); o pensamento sobre política, Estado e o futuro na obra do filósofo Nicolau
Maquiavel (#74, novembro de 2003) e Dossiê sobre a liberdade, a vontade e o Bem em Santo
Agostinho (#75, dezembro de 2003).
Dossiê sobre a vanguarda de São Paulo, em comemoração aos 450 anos da cidade (#76)
inaugura os Dossiês do ano 2004, seguido por um panorama a respeito da Psicanálise e o novo

17
Temos aqui a segunda grande mudança gráfica de CULT, e assim como a primeira, realizada na edição #36 de
julho dos anos 2000, não há qualquer alteração na estrutura dos Dossiês na revista.
50
século (#77, fevereiro de 2004); os 40 anos da Ditadura Militar no Brasil (#78, março de 2004);
o uso da Razão no pensamento do filósofo Immanuel Kant (#79, abril de 2004); a Literatura
Japonesa (#80, maio de 2004); os 20 anos da morte do filósofo Michel Foucault (#81, de junho
de 2004); a Linguagem das Roupas (#82, julho de 2004); panorama sobre o pragmatismo da
filosofia estado-unidense (#83, agosto de 2004); a dialética da paixão conta as aproximações e
as distâncias amorosas na trajetória de oito autores18 (#84, setembro de 2004); um debate sobre
o passado e o futuro da democracia brasileira (#85, outubro de 2004); sobre a obra do escritor
Erico Verissimo, em ocasião de seu centenário (#86, novembro de 2004) e Dossiê sobre o
escritor Gabriel García Márquez (#87, dezembro de 2004).
Em 2005, CULT nos apresenta Dossiês sobre o encontro da razão e da ideia de fé na
filosofia de Nietzsche, Marx, Pascal e Santa Teresa (#88, janeiro); sobre o romance As Mil de
Uma Noites, em nova tradução direta do árabe (#89, fevereiro de 2005); os 100 anos do escritor
Júlio Verne (#90, março de 2005); os 25 anos da morte do filósofo Jean-Paul Sartre (#91, abril
de 2005); sobre a saga Harry Potter e a vendagem de livros no Brasil (#92, abril de 2005); o
cinema de Michelangelo Antonioni (#93, julho de 2004); as históricas relações culturais entre
franceses e brasileiros (#94, agosto de 2005); a violência contra o Estado e seus significados
(#95, setembro de 2005); os 30 anos do surgimento do movimento Punk (#96, outubro de 2005);
o pensamento dos filósofos Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Richard Rorty, John Rawls e
Jürgen Habermas (#97, novembro de 2005), encerrando com dossiê sobre Bento de Núrsia,
fundador da Ordem dos Beneditinos e sua atualidade (#98, dezembro de 2005).
Abre-se o ano 2006 com Dossiê sobre os conceitos de amor, filosofia e política em
Hannah Arendt (#99, janeiro); seguido nos meses seguintes por outros especiais: sobre o
semiólogo e filósofo Roland Barthes (#100, março de 2006); sobre o psicanalista Sigmund
Freud (#101, abril de 2006); sobre a Poesia (#102, maio de 2006); sobre o início da filosofia, o
amor e do mito à dialética platônica (#103, junho de 2006); o filósofo Norberto Bobbio e a
filosofia do direito (#104, julho de 2006); a Música Popular Brasileira (#105, agosto de 2006);
sobre o filósofo Walter Benjamin (#106, setembro de 2006); o mito grego, a existência humana
e a verdade na tragédia grega (#107, outubro de 2006); sobre o filósofo Gilles Deleuze (#108,
novembro de 2006), encerrando com Dossiê sobre o filósofo Baruch Espinoza, com escritos de
Marilena Chauí (#109, dezembro de 2006).

18
Apresenta a criação literária e os conflitos políticos nas relações entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir,
Clarice Lispector e Lúcio Cardoso, Hannah Arendt e Martin Heidegger, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
51
Em 2007, temos Dossiê sobre o escritor Paulo Francis (#110, fevereiro de 200719);
erotismo, censura e estética nas histórias em quadrinho (#111, março de 2007); passado,
presente e futuro da filosofia do direito (#112, abril de 2007); a arquitetura brasileira
contemporânea e a crise das cidades (#113, maio de 2007); o escritor Oscar Wilde como
símbolo da consciência homossexual (#114, junho 2007); o passado, o presente e o futuro da
televisão brasileira (#115, julho de 2007); o filósofo da existência Søren Kierkegaard (#116,
agosto de 2007); sobre psicanálise, linguagem, justiça, arquitetura e desconstrução na obra do
filósofo Jacques Derrida (#117, setembro de 2007); a renovação do pensamento de esquerda
(#118, outubro de 2007); sobre o cineasta Stanley Kubrick (#119, novembro de 2007),
encerrando com dossiê sobre a formação da estética (#120, dezembro 2007).
O ano de 2008 começa com Dossiê sobre a supremacia da dúvida na filosofia (#121,
fevereiro de 2008); o pensamento marxista nos Estados Unidos (#122, março de 2008); sobre
o filósofo Maurice Merleau-Ponty (#123, abril de 2008); a sociologia de Max Weber (#124,
maio de 2008); as vitalidades do pensamento e novas interpretações da obra do psicanalista
Jacques Lacan (#125, junho de 2008); os 40 anos das manifestações contraculturais de Maio de
1968 e seus anseios (#126, julho de 2008); sobre o filósofo Herbert Marcuse (#127, agosto de
2008); o sociólogo Pierre Bourdieu (#128, setembro de 2008); a filósofa Hannah Arendt (#129,
outubro de 2008); o legado do escritor Johann W. von Goethe (#130, novembro de 2008),
encerrando com Dossiê sobre a figura de Deus no pensamento contemporâneo (#131, dezembro
de 2008).
O Dossiê que abre o ano de 2009 trata da alma e da prosa russa, destacando autores
como Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Anton Tchekov e Liév Tolstói (#132, fevereiro); o
feminismo no pensamento do século 20 (#133, março de 2009); a herança do filósofo Michel
Foucault (#134, abril de 2009); um panorama da Literatura Norte-Americana do século 20
(#135, maio de 2009); os 80 anos de Jürgen Habermas (#136, junho de 2009); os impasses da
Democracia (#137, julho de 2009); os conflitos das Universidades e a degradação do ensino
superior (#138, agosto de 2009); uma reflexão sobre o sentido do trabalho (#139, setembro de

19
Desde os anos 2008 a revista CULT lança os chamados Dossiês Especiais. Publicados comumente em janeiro
de cada ano (exceção para edição #7, de julho de 2016), essas edições não entram na contagem oficial das edições
(salvo Especial Freud, n. 11, ano 23, lançado em janeiro de 2020, como edição de número 253 na ordem
cronológica da revista). Até a data de finalização deste texto, 11 Dossiês Especiais haviam sido lançados. São eles:
Escola de Frankfurt (#1, janeiro de 2008), Filosofia Francesa (#2, janeiro de 2010), Clássicos do pensamento social
(#3, janeiro de 2011), Filosofia conta o sistema (#4, janeiro de 2012), Grandes entrevistas (#1, janeiro de 2014).
O especial rendeu também a publicação do livro Revista CULT 20 anos – Grandes entrevistas (Editora Autêntica,
2017). Michel Foucault (#5, janeiro de 2015), Queer: cultura e subversão das identidades (#6, janeiro de 2016),
Psicanálise (#7, julho de 2016), Jacques Lacan: além da clínica (#8, janeiro de 2017), Hannah Arendt: um
pensamento atual (#9, janeiro de 2018) e Especial Simone de Beauvoir (#10, janeiro de 2019).
52
2009); a depressão (#140, outubro de 2009); a atualidade de pensamento do filósofo Antonio
Gramsci nos debates sobre política, cultura e educação (#141, novembro de 2009), encerrando
com Dossiê sobre o dramaturgo Samuel Beckett (#142, dezembro de 2009).
No ano 2010 são publicados Dossiês sobre Filosofia e Consolação (#143, fevereiro de
2010); a Perversão (#144, março de 2010); a ética em tempos de crise (#145, abril de 2010); o
amor e as (des)razões do coração (#146, maio de 2010); continuidades e rupturas na obra do
psicanalista Sigmund Freud (#147, junho de 2010); panorama do legado da Era Lula (#148,
julho de 2010); sobre o filósofo Friedrich Nietzsche (#149, agosto de 2010); o Mal (#150,
setembro de 2010); os rumos da cultura no Brasil (#151, outubro de 2010); sobre os
movimentos e os ícones da contracultura (#152, novembro de 2010), encerrando com Dossiê
sobre o Tempo (#153, dezembro de 2010).

Figuras 25, 26 e 27 – Edições 143 (fevereiro de 2010), 150 (setembro de 2010) e 153 (dez. de 2010).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

O ano de 2011 inicia-se com Dossiê sobre Mídia e Poder (#154, fevereiro de 2011);
seguido de Dossiê sobre a revolução cinematográfica de Glauber Rocha (#155, março de 2011);
sobre história, arte e política no mundo Árabe (#156, abril de 2011); o mito da juventude (#157,
maio de 2011); a ansiedade (#158, junho de 2011); os 50 anos de História da Loucura, obra do
filósofo Michel Foucault (#159, julho de 2011); sobre David Bowie, Bob Dylan e Queen, em
ocasião ao lançamento de produções biográficas sobre os artistas, inéditas até então no Brasil
(#160, agosto de 2011); sobre Freud apaixonado em cartas inéditas (#161, setembro de 2011);
sobre o antropólogo Claude Lévi-Strauss (#162, outubro de 2011); os escritores Fiódor
Dostoiévski e Liév Tolstói, em ocasião do lançamento da tradução direta do russo do romance

53
Guerra e Paz e da Nova Antologia do Conto Russo (#163, novembro de 2011), encerrando com
Dossiê sobre Fernando Pessoa e o cinema (#164, dezembro de 2011).
Em 2012, temos a publicação de Dossiês sobre os 100 anos de Jorge Amado (#165,
fevereiro); sobre o sociólogo Pierre Bourdieu, com textos inéditos (#166, março de 2012);
Dossiê grandes escritoras, reunindo nomes como Virginia Woolf, Jane Austen e Alice Walker
(#167, abril de 2012); mal-estar na cultura, em ocasião a 4ª edição do Congresso Internacional
CULT de Jornalismo Cultural20, e que tinha como tema a dialética entre a alta e baixa cultura
(#168, maio de 2012); sobre os novos rumos da esquerda (#169, junho de 2012); sobre
Nietzsche, o vício de Camus (#170, julho de 2012); anarquismo, feminismo e memória da
guerrilha como insurreição (#171, agosto de 2012); sobre os 300 anos do filósofo Jean-Jacques
Rousseau (#172, setembro de 2012); a obra do filósofo Theodor Adorno (#173, outubro de
2013); sobre o psicanalista Jacques Lacan e o sofrimento na contemporaneidade (#174,
novembro de 2012), encerrando com Dossiê sobre a realidade da alma humana no pensamento
de Platão, Santo Agostinho, Henri Bergson, Edmund Husserl e Sigmund Freud (#175,
dezembro de 2012).

Figuras 28, 29 e 30 – Edições 179 (maio de 2013), 183 (setembro de 2013) e 186 (dez. de 2013).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

O ano de 2013 começa com Dossiê sobre o escritor James Joyce (#176, fevereiro),
seguido pelo de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI (#177, março de 2013); o poeta Arthur
Rimbaud (#178, abril de 2013); os 200 anos do filósofo Søren Kierkegaard (#179, maio de
2013); sobre o filósofo Giorgio Agamben, com texto exclusivo e inédito (#180, junho de 2013);

20
O evento foi realizado em maio do mesmo ano.
54
Sigmund Freud em nova tradução (#181, julho de 2013); sobre a crise da crítica (#182, agosto
de 2013); a linguagem da periferia e a elite cultural do país (#183, setembro de 2013); o poder
da psiquiatria (#184, outubro de 2013); sobre a filósofa Judith Butler (#185, novembro de
2013), encerrando com Dossiê sobre a modernidade do frade Francisco de Assis (#186,
dezembro de 2013).
Em 2014, são publicados os Dossiês sobre o filósofo Vilém Flusser (#187, fevereiro);
debate sobre as novas diretrizes curriculares do Jornalismo (#188, março de 2014); sobre o
filósofo Antonio Negri (#189, abril de 2014); Psicanálise e Religião (#190, maio de 2014); os
30 anos da morte do filósofo Michel Foucault (#191, junho de 2014); os 25 anos dos Racionais
MC’s (#192, julho de 2014); a Teoria Queer, no primeiro Dossiê sobre o tema publicado em
uma revista não acadêmica (#193, agosto de 2014); sobre o escritor Franz Kafka (#194,
setembro de 2014); o filósofo Jacque Derrida (#195, outubro de 2014); Dossiê Culturas
Partilhadas (#196, novembro de 2014), encerrando com debate sobre a arte como inscrição da
violência (#197, dezembro de 2014).

Figura 31 – Edição 196 (novembro de 2014).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Já no ano 2015, temos a publicação de Dossiê sobre Gastronomia e Cultura (#198,


fevereiro); a linguagem do trauma (#199, março de 2015); os 100 anos de Roland Barthes
(#200, abril de 2015); psicanálise em outros verbetes (#201, maio de 2015); ditadura
heteronormativa (#202, junho de 2014); Literatura e Experiência (#203, julho de 2015);
filosofia da ancestralidade (#204, agosto de 2015); a cultura como trauma (#205, setembro de
2015); as estruturas da crise política no Brasil (#206, outubro de 2015); o pensamento brasileiro

55
das artes visuais (#207, novembro de 2015), encerrando com Dossiê sobre psicanálise e as
formas do político (#208, dezembro de 2015).

Figuras 32, 33 e 34 – Edições 198 (fevereiro de 2015), 205 (setembro de 2015), 208 (dez. de 2015).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Em 2016, são publicados os Dossiês Brasil: Pátria Educadora? (#209, fevereiro); sobre
as percepções do feminino e ações feministas (#210, março de 2016); a psicanálise e o corpo
(#211, abril de 2016); sobre o escritor Guy Debord (#212, maio de 2016); a nova geração de
poetas do país (#213, junho de 2016); sobre o cineasta Andrei Tarkovski (#214, julho de 2016);
o filósofo Theodor Adorno (#215, agosto de 2016); os 100 anos do linguista Ferdinand de
Saussure (#216, setembro de 2016); sobre o crítico literário Raymond Williams (#217, outubro
de 2016); o filósofo Georg W. Friedrich Hegel (#218, novembro de 2016), e Dossiê a quarta
onda – revolução feminista, negra, jovem, vadia e queer (#219, dezembro de 2016).

56
Figuras 35 e 36 – Edições 214 (julho de 2016) e 219 (dezembro de 2016).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

O primeiro dossiê de 2017 debate as mulheres na vanguarda da Revolução Russa (#220,


fevereiro); seguido pelos Dossiês sobre o filósofo Michel de Montaigne (#221, março de 2017);
os novos estudos e a recepção na atualidade do pensamento do filósofo Antonio Gramsci (#222,
abril de 2017); as variações sobre as lutas de classe (#223, maio de 2017); sobre o filósofo
Bento Prado Júnior, com diário inédito (#224, junho de 2017); Arte e Psicanálise (#225, julho
de 2017); sobre Artivismo das dissidências sexuais e de gênero (#226, agosto de 2017); o
Dossiê réquiem para uma nação, que debate o fim da sociedade salarial, a gramática da
violência, a força do Estado policial e o silêncio das ruas (#227, setembro de 2017); sobre Karl
Marx e as crises do capitalismo, em ocasião dos 150 anos da publicação de O Capital (#228,
outubro de 2017); sobre a escritora Clarice Lispector (#229, novembro de 2017), encerrando
com Dossiê sobre Arte e Autoritarismo (#230, dezembro de 2017).
Dá início ao ano de 2018 o Dossiê sobre o filósofo Benedito Nunes (#231, fevereiro); a
violência como ordem (#232, março de 2018); sobre a escritora Hilda Hilst (#233, abril de
2018); as pressões das forças conservadoras sobre a vida política do país (#234, maio de 2018);
os 40 anos do movimento LGBT no Brasil (#235, junho de 2018); a misoginia de Friedrich
Nietzsche (#236, julho de 2018); sobre o pediatra e psicanalista Donald Winnicott (#237, agosto
de 2018); a psicanálise entre feminismos e femininos, entre velhas discórdias e novas
aproximações (#238, setembro de 2018); os 80 anos de Vidas Secas, de Graciliano Ramos

57
(#239, outubro de 2018); a obra do filósofo Achille Mbembe (#240, novembro de 2018),
encerrando com Dossiê Sexologia Política (#241 dezembro de 2018).
Já em 2019, são publicados os Dossiês cartografias da masculinidade (#242, fevereiro);
o feminino de ninguém – desconstruções teóricas sobre libido, gozo, amor, gênero e
maternidade (#243, março de 2019); o pacote de Tróia – a lei anticrime de Sérgio Moro (#244,
abril de 2019); sobre o filósofo Walter Benjamin (#245, maio de 2019); a educação diante da
catástrofe (#246, junho de 2019); Filosofia e Cinema (#247, julho de 2019); sobre o sociólogo
Aníbal Quijano (#248, agosto de 2019); panorama sobre a história da psicanálise no Brasil
(#249, setembro de 2019); o Suicídio (#250, outubro de 201921); sobre parentalidade e
vulnerabilidades sociais (#251, novembro de 2019), encerrando com Dossiê sobre Fé e Política
(#252, dezembro de 2019).
Em 2020, CULT publicou os Dossiês sobre Filosofia e Macumba (#254, fevereiro); os
80 anos da poeta Orides Fontela (#255, março de 2020), Dossiê pulsão de morte (#256, abril de
2020) que resgata a atualidade da proposta de Freud sobre o tema; Dossiê Ética em tempos de
peste (#257, maio de 2020); a cultura do cancelamento (#258, junho de 2020); a personalidade
autoritária hoje na esteira das reflexões feitas por Theodor Adorno (#259, julho de 2020); a
atualidade da estratégia da semiótica (#260, agosto de 2020); os 80 anos da morte do filósofo
Walter Benjamin (#261, setembro de 2020), Dossiê sobre a perspectiva feminista decolonial
(#262, outubro de 2020), a clínica Junguiana (#263, novembro de 2020) e Dossiê Clarice
Lispector, em função de seu centenário (#264, dezembro de 2020).

Figuras 37, 38 e 39 – Edições 249 (set. de 2019), 250 (outubro de 2019) e 254 (fev. de 2020).

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

21
Terceira mudança gráfica de CULT, sem qualquer alteração na estrutura dos Dossiês.
58
Retomando o ponto de proximidade da revista com acadêmicos, para além do artefato
político de investimento educacional, essas relações da orientação macro da revista com os
interesses e demandas próprios dos profissionais envolvidos no desenvolvimento dos Dossiês
podem também ser observadas nas figuras de Juvenal Savian Filho (UNIFESP) e Marcos
Flamínio Peres (USP). Por muito tempo estes ocuparam os cargos de editores de conteúdo da
revista, assim como Moacir Amâncio e Eduardo Socha, que em algumas edições, atuaram como
editores convidados de literatura (edição #99, por exemplo, no caso de Amâncio) e de ciências
humanas (edições #141, no caso de Socha).
Além destes, muitos dos articulistas de CULT, também responsáveis pela elaboração de
Dossiês, passam a compor de modo recorrente e/ou intermitente a seção, como é o caso, por
exemplo, dos professores Vladimir Safatle (USP), Joel Birman (UFRJ), Newton Bignotto
(UFMG), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Christian Dunker (USP), Renan Quinalha
(UNIFESP), Gilson Iannini (UFMG); a filósofa Marcia Tiburi, das professoras Magda
Guadalupe dos Santos (PUC-MG; UEMG), Susana de Castro (UFRJ), Carla Rodrigues (PUC-
Rio), Guacira Lopes Louro (UFRGS), Berenice Bento (UFRN), Jeane Marie Gagnebin (PUC-
SP), Aurora Fornoni Bernardini (USP), para dizer de alguns nomes.
O fator Políticas Públicas de Estado configurara uma ambiência profícua para a adesão
a pautas específicas da sociedade. Como nos aponta Freitosa (2018, p. 442), quando ainda no
governo Lula, houve uma mudança na relação entre governança e o Movimento LGBT [QIA+,
sigla atualizada] com setores do Estado ou “um intenso trânsito e deslocamento de ativistas na
estrutura do Estado como gestores/as de uma novíssima política pública LGBT”, possível de
ser realizado. Tais alterações estruturais dos campos políticos e de poder fizeram com que
pautas específicas de certas populações fossem gestadas e, sobretudo, entendidas com
importância para o desenho de um parâmetro de democracia e de políticas para vidas vigentes.
Nesta guinada, queremos chamar atenção para um conjunto de temáticas que de modo
geral ascendem a partir dos anos 2003: a literatura gay; a herança do golpe civil-militar de 1964
no Brasil; debates sobre a Democracia; a violência contra o Estado e seu significado; renovação
do pensamento da esquerda ou seus novos rumos; o feminismo no pensamento do Século XX;
os impasses da Democracia; o conflito das Universidades e a degradação do ensino superior; o
sentido do trabalho; a atualidade do pensamento gramsciano sobre política, cultura e educação;
ética em tempos de crise; os rumo da cultura no Brasil; mídia e poder; anarquismo, feminismo
e memória de guerrilha; a linguagem periférica e a elite cultural do país; a Teoria Queer; arte

59
como inscrição da violência; a heteronormatividade compulsória; ancestralidade; a crise
política no Brasil e suas estruturas; percepções do feminino e ações feministas; a revolução
feminista, negra, jovem, vadia e queer; variações sobre a luta de classe; artivismo das
dissidências sexuais e de gênero; o debate sobre o fim da sociedade salarial, a gramática da
violência, força do Estado policial e o silêncio das ruas em protesto; a violência como ordem;
as pressões das forças conservadoras sobre a vida política do país; os 40 anos do movimento
LGBT; a misoginia de Friedrich Nietzsche; a perspectiva psicanalítica entre feminismos e o
feminino; sexologia política; cartografias da masculinidade; o feminino de ninguém; a lei anti-
crime de Sergio Moro; o suicídio; parentalidades e vulnerabilidades sociais; a fé e a política.
Há, entre continuidades editoriais como as efemérides autorais, de produção literária e
análises de obras, novas discussões no âmbito da política e abordagens até então nunca vistas
antes em Dossiê. A pauta Gay, por exemplo, aparece pela primeira vez na edição de fevereiro
de 2003 (edição #66), assim como o pensamento feminista, na edição de março de 2009 (edição
#133), ainda que seu primeiro e tímido registro possa ser observado na edição de número #5,
de janeiro de 1998. Discussão pela renovação do pensamento de esquerda aparece na edição de
outubro de 2007 (edição #118); debate sobre ditadura militar no Brasil, na edição de março de
2004 (edição #78); sobre democracia nas edições de outubro de 2004 (#85) e julho de 2009
(#137); dos conflitos envolvendo a educação nas edições de novembro de 2009 (#141),
fevereiro de 2016 (#209) e junho de 2019 (#246); a Universidade e o ensino superior na edição
de agosto de 2009 (#138); linguagens periféricas na edição e setembro de 2013 (#183); a Teoria
Queer e as discussões sobre heteronormatividade e sobre dissidências sexuais – ampliando e
atualizando o debate desde a primeira e restritiva aparição do tema, em 2003 – nas edições de
agosto de 2014 (#193), junho de 2015 (#202) e agosto de 2017 (#226); sobre a violência do
Estado na edição de setembro de 2017 (#227) e março de 2018 (#232); sobre a misoginia de
Friedrich Nietzsche, edição de julho de 2018 (#236); a ascensão das forças conservadoras no
Brasil na edição de maio de 2018 (#234); o suicídio, em outubro 2019 (#250) e o cenário que
mistura fé e política, em dezembro do mesmo ano (#252).
Como compreender essas temáticas nas abordagens dos dossiês CULT? A que se refere
esse movimento de diálogo com um contexto político e social, tendo-a ao mesmo tempo como
vetor de um gesto interpretativo? Qual tipo de leitura de tempo é solicitado? Antes, é preciso
pensar na ascensão mesmo de identidades socioculturais cuja revista tende a abordar, como
grupos historicamente minorados e que nas páginas dos Dossiês ganham lugar de destaque. As
condutas políticas lidas como aparatos culturais também abrem espaço para análises

60
sociológicas, históricas e mesmo jurídicas de acontecimentos que permanecem à vista social,
mas que emergem posteriormente nos Dossiês, como a pauta feminista, por exemplo.
Poderíamos qualificar tais condutas enquanto figuras de historicidade: encarar os Dossiês
enquanto produtos munidos de marcações históricas – recorrências, repetições, e cuja extensão
desse conteúdo, olhar o Dossiê para além do momento de sua publicação, compreenda as
tensões teóricas e argumentativas da seção, para além de si mesma, por meio de uma ação
humana reflexiva dos espaços de experiência capazes de acionar diferentes estratos de tempo
para compreensão de temáticas, por exemplo.
Outra perspectiva diria da importância de obras, do pensamento de autores/as, ao não
considerar sua produção como algo estático no transcorrer dos tempos e das alterações dos
espaços. No caso de Dossiês que realizam este tipo de análise, por exemplo, a obra seria
atualizada no tempo ou se atualizaria por ele pela observação das permanências sociais
apontadas com base na teorização. Conceitualmente, explica-se o mundo, mas este se adere ou
se desprende em vista as objetivações sociais quase sempre inconclusas, e isso as caracteriza
como formulações moventes e constantemente em construção. Para isso é necessário um
aparato capaz de acompanhar tal movimentação cognoscente – ou seja, da consciência e
práticas voltadas ao exercício do pensamento, a fim de demonstrar seu caráter atual ou como
propõem Adauto Novaes (2013, p. 24) “a vida social e a vida política estruturam-se já no feito,
na representação apenas e nos símbolos sem reconhecer que existem nelas um ‘segredo’, coisas
dessimbolizadas que devem ser chamadas à expressão”. Essa é a força do gestual ensaístico
para o Dossiê, que ganha fôlego ético e existencial.
Tal perspectiva tende a aparecer na fala de Fernanda Paola, atual diretora de
conteúdo/digital da CULT e do Espaço CULT, onde são ministrados cursos de iniciação e de
formação. Os Dossiês aparecem como lugar “privilegiado” de “explicação do mundo”:

O próximo dossiê [...] é parentalidades, que são formas de família. [...] é uma
nova visão da psicanálise sobre a parentalidade, que é como eles chamam
agora, e vulnerabilidades, que é a mãe negra, trans. Então, ninguém debate
muito isso, né? É como se tivesse parado no tempo da mãe branca, hétero…
E não, a maternidade e a paternidade estão muito além disso. O debate precisa
se atualizar. [...] Quer dizer, a gente pode tratar de área de cultura, e enfim, o
pensamento em todas as áreas das humanidades. [...] Em noventa era uma
coisa, agora é outra. Essas questões de parentalidade, por exemplo, elas são
novas, esse debate é novo [e] está muito restrito a um núcleo que está
pensando isso. Não tem muito texto sobre isso, não tem muito livro sobre isso,
não tem muita informação sobre isso ainda. Então, a CULT chega mostrando,
enfim, dando acesso a esse tipo de informação que é importantíssimo pra gente
reconsiderar os formatos e formas de expressão de amor, de família, de tudo.

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Entrevista concedida por PAOLA, Fernanda. Diretora de conteúdo/digital e
do Espaço CULT [10.2019]. Entrevistador: Janderson Silva. São Paulo: 2019.
Arquivo .mp3 (1:37:32). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Apêndice A da dissertação.

O Dossiê é uma produção colaborativa em que se publicam produções


intelectuais/artísticas de formação em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e contribuem com
suas pesquisas, análises e resultados sobre as ações e as coisas do mundo. Dissemos na
introdução da dissertação que o Dossiê vem a ser: produção que visa demonstrar uma ampla
compreensão de um tema previamente conhecido, mas que resulta, pela investigação, no
desvelamento de algo ainda não posto à mostra. Suas lógicas funcionam nessa perspectiva
também. Dentre as abordagens que podemos apreender dos Dossiês CULT, de maneira mais
geral, existem três mais evidentes: produções introdutórias à obra ou pensamento de um autor
ou autora considerado fundamental ou fundante para o mundo ocidental; outra de caráter mais
analítico em que situações no tempo ou períodos históricos são postos em análise e outra que
funciona como uma junção dessas duas perspectivas.
Estruturalmente falando, o Dossiê sempre se faz da seguinte maneira: o tema pode ser
encomendado pela editora-chefe da revista CULT a um editor externo, assim como o material
pode ser sugerido por autores ou autoras externas, sendo comum o reaparecimento de nomes e
figuras. Este ou esta ficará responsável pela edição e coordenação do material junto aos demais
pares. Inicialmente, a cada Dossiê, tem-se um texto introdutório que condensa a ideia por trás
da realização daquela produção. Ali, está retido seu argumento central, a apresentação concisa
dos demais textos que compõem o material, de seus autores e autoras, e o que se espera com a
incitação da discussão em questão.
O que podemos dizer sobre a questão ensaística no Dossiê CULT advém menos de uma
categorização com base em elementos que comporiam o que chamar de ensaio, e mais de sua
força e vitalidade de pensamento no transcorrer das edições. Nesse sentido, temos o Dossiê que
vêm à tona para refletir sobre um assunto em determinada perspectiva naquele momento
específico do curso do tempo. Isso faz reunir, então, diferentes visões me torno de um tema – e
isso faz com que variados pontos de vista possam ocorrer sobre a temática ensaiada, ainda que
a linha de pensamento que rege toda e qualquer produção no âmbito da CULT esteja alinhado
à esquerda do pensamento.
Suas abordagens, principalmente a partir do ano 2002, sob o manto da cultura, são
abordagens civilizatórias, diríamos, que reivindicam posturas que recusam a supressão da vida
como política. Arraigadas na cultura, teriam no postulado da diversidade e da diferença seu
62
maior campo de debate. A ascensão e profusão de pautas, pensamentos e ações voltadas a essas
áreas marcarão presença de modo bastante aprofundando nesse segundo momento da CULT.
Os temas nos ensaios dos Dossiês CULT são responsáveis por tonificar seus enunciados,
portanto, por estabelecer uma linguagem pela qual seus articulistas vão iniciar, dar
prosseguimento e realizar as conexões entre as reflexões realizadas na sua comunicação.
César Aira (2018, p. 235), a respeito do tema para o ensaio diz sobre a diferença entre
este e o romance, para quem, o segundo, o tema se revelaria no final, “figura desenhada pelo
que se escreveu” que é “independente das intenções do autor, se é que houve alguma intenção,
e que quase sempre a contradiz”. A inversão dessa lógica, para o autor, denunciaria certa
deliberação de tipo comercial ou mercenária.
Já no ensaio, essa relação se daria de modo diferente, pois

O tema vem antes, e é esse o lugar que garante o tom literário ao ensaio. A
separação entre intenção e resultado, que a literatura realiza no romance,
ocorre no ensaio por uma generalização do prévio; tudo se transporta ao dia
antes de escrever, quando se escolhe o tema; se a escolha é acertada, o ensaio
já está escrito antes de ser escrito; é isso que o objetiva em relação aos
mecanismos psicológicos do auto e faz do ensaio algo mais que uma
exposição de opiniões (AIRA, 2018, p. 235).

Para o autor, o ensaio sempre é constituído por um duplo: A + B, isso ou aquilo, “Poder
e sobrevivência”, “Realismo e nova realidade”, escreve o Nobel de Literatura Elias Canetti; “A
democratização no Brasil (1979-81): cultura versus arte”, escreve Silviano Santiago;
“Simulações e sigilo”, escreve Carl Sagan; “Os olhos de Diadorim”, escreve Wander Melo
Miranda, e o Eu. Nesse sentido, diz que “o vínculo imediato do autor com seu tema impõe os
protocolos da enunciação” (AIRA, 2018, p. 240) expondo limites e traçando fronteiras.
O vínculo, aquilo que tem capacidade de ligar uma coisa a outra sobre qual fala o autor
se relaciona aos espaços e tempos que servem de matéria para um ensaio. Para Cássio Hissa
(2002, p. 169) “o ensaio é continuidade de exercício e ausência de fins” pois “todo os momentos
são ensaios que se sucedem e que se interpenetram”. “A vida é sua execução”, portanto, seu
tempo é ininterrupto. Como o tempo presente, o ensaio é e já foi. Também por isso reclama a
liberdade de estar. Sendo a vida o seu tempo, seus temas não seriam diferentes. São pequenos
universos de interpretações e sobre interpretações compatíveis com a tarefa de leitura do “real”.
Dessa maneira, tentamos dizer o que é o Dossiê CULT, como e ao que ele está atento
no tempo em que se insere, assim como dizer sobre a produção acadêmica contemporânea que
busca responder demandas sociais vigentes e cujo interesse científico em áreas específicas a

63
revista se vincula também as acompanha. Porém, há que se problematizar essa “forma” Dossiê
e as complexidades que a envolvem.

3. CULT e as questões (críticas) do tempo

Na tentativa de lançar um olhar amplo para o social, instigados pela ótica da cultura, é que os
Dossiês caracterizam o seu tempo: ora a psicanálise é âmbito cultural, ora a filosofia é âmbito
cultural, ora a política, o cinema, a música, a religião, a literatura, as artes, pois dizem de
práticas sociais relativa à vida dos seres humanos. Assim como temas sobre grupos
historicamente marginalizados, subjugados, de dinâmicas sociais distintas que diz respeito aos
marcadores de raças, etnia, classes sociais, gêneros e orientações sexuais em certa medida. O
tempo do Dossiê é o tempo desta cultura alargada.
Atuando em uma espécie de fluxo/contrafluxo conceitual, poderíamos encarar a
produção científica por parte dos departamentos de Ciências Sociais e Humanas e publicados
nos Dossiês como produções que possibilitam a observação de mecanismos de fundamentação
teórico-prático que visam a despatologização do mundo oficialesco de base comunicacional?
Falamos sobre a cultura, e vale retomar a concepção de Williams (2015, p. 12): “Uma cultura
são significados comuns, o produto de todo um povo, e os significados individuais
disponibilizados, o produto de uma experiência pessoal e social empenhada de um indivíduo”.
O Dossiê, espaço privilegiado, em CULT, para realização de tais ações, dirige seu o olhar para
o mundo em diferentes esferas no âmbito da cultura. Direcionado para a investigação dos
processos cristalizantes de compreensão do universo na dinâmica do pensamento acadêmico
científico; ora no tensionamento investigativo das bases teóricas para explicação de nuances
históricas e de seus processos, ora partindo da historicidade dos processos de cristalização
social como ponto inicial de uma reflexão teórico-simbólica.
Pensando nessa perspectiva, teríamos, dois tipos de Dossiês: os de caráter teórico-
introdutório, preocupados em explicar, expor ou recompor elaborações fundamentalmente
teóricas e muitas vezes consideradas fundamentais para o pensamento ocidental sobre o mundo
e suas tentativas de apreensão social da realidade, e Dossiês analíticos-situacionais, que visam
compreender a partir de situações cotidianas, ancoradas em um relativo de elaborações teórico-
simbólico, situações práticas do mundo. Ou seja, com base em processos teóricos de apreensão,
seus textos discutem e analisam diferentes tipos de acontecimentos nas mais diferentes esferas
sociais de modo específico.

64
Pensando nessas estruturas, visualizando tudo o que foi produzido neste espaço,
podemos nos ater às dinâmicas de elaboração conceitual destes complexos conjuntos formados
pelos Dossiês. Ao lidarmos com Dossiês com uma pegada acadêmica que envolve discussões
a respeito de aspectos da cultura e da sociedade, falamos de uma produção de conhecimento,
ou seja, como construção cognoscitiva de instância fundamentalmente simbólica e
sumariamente teórica sobre a sociedade. A origem da construção simbólica, segundo Berger e
Luckmann (1985) dá-se em processos de reflexão subjetivos que podem ser compreendidos a
partir de sua objetivação social conduzidas por instituições capazes de produzir a ligação entre
os temas significativos e o universo social em curso.

Enquanto o universo simbólico legitima a ordem institucional no mais alto


nível de generalidade, a teorização relativa ao universo simbólico pode ser
considerada, por assim dizer, uma legitimação de segundo grau. Todas as
legitimações, das mais simples legitimações pré-teóricas de significados
institucionalizados distintos até o estabelecimento cósmico de universos
simbólicos, podem, por sua vez, ser consideradas como mecanismos de
manutenção do universo. Estes mecanismos, conforme é fácil ver, exigem
desde o início uma grande complicação conceitual (BERGER e
LUCKMANN, 1985, p. 143).

Funcionando como procedimentos para manutenção do universo, da reiteração de suas


compreensões, o campo do simbólico somente consegue ser “ranhurado” em suas estruturas se
deste é possível encontrar um problema. Este problema precede de elaborações também do
mesmo campo simbólico para emergir e se integrar enquanto algo a se tornar notadamente
problemático. É um duplo teórico e de embate: a reiteração de uma perspectiva é manutenção
das bases simbólicas cristalizadas tornadas imperceptíveis por serem fenômenos de construções
historicamente produzidas e de difícil acesso pela naturalização da atividade humana. Mas é
também por meio de bases simbólicas de elaboração conceituais igualmente históricas e
complexas que um giro na compreensão dos mundos pode ser descortinado. Portanto, “todo
universo simbólico é incipientemente problemático. A questão consiste, portanto, em saber em
que grau tornou-se problemático” (BERGER E LUCKMANN, 1985, p. 144).
Essas ranhuras, incômodos epistemológicos, a que os autores chamam de grupos
heréticos, constituem não só uma ameaça teórica para o universo simbólico, mas uma ameaça
potencial para alteração das práxis de ordem institucional legitimada, pois portam uma
definição diversa da realidade “oficial” em questão.

É muito menos chocante para a condição de realidade do nosso próprio


universo ter de tratar com grupos minoritários de dissidentes, cuja oposição é
ipso facto definida como loucura ou maldade, do que enfrentar uma outra
65
sociedade que considera as nossas próprias definições da realidade como
ignorantes, loucas ou completamente más (BERGER E LUCKMANN, 1985,
p. 146).

Encarar certas realidades como dissidentes ou minorias relega uma carga histórica que
pode ser vista como uma elaboração conceitual de enquadramento no mundo, orientando a
leitura e o entendimento sobre essas dissidências e minorias como fora da “lei”, ou, em segundo
caso, na subversão conceitual própria do caráter dissidente pela ótica da resistência, por
exemplo. Ao mesmo tempo, não compreender o instaurado como instauração própria, que
passou a existir por base procedimental de um aparato legal, e optando pela não interrogação
do dado tido como sumariamente natural e realístico, é aceitar as coisas como instaurações
divinas. A depender do conceito empregado, existe a negação ou a legitimação da existência.
Todavia, sua reiteração expõe limites. Para ultrapassá-los, seria necessários novos esforços
conceituais.

É importante acentuar que os mecanismos conceituais da conservação do


universo são eles próprios produtos da atividade social, assim como todas as
formas de legitimação, e só raramente podem ser compreendidos
separadamente das outras atividades da coletividade em questão.
Especificamente, o êxito de particulares mecanismos conceituais relaciona-se
com o poder possuído por aqueles que operam com eles. O confronto com
universos simbólicos distintos implica um problema de poder, a saber, qual
das definições de realidade em conflito ficará “fixada” na sociedade
(BERGER E LUCKMANN, 1985, p. 147-148).

Como dispositivos de poder podem seguir, conforme sugerem os autores, uma ordem
mitológica, teológica, filosófica ou mesmo científica, por exemplo, ressaltado suas
combinações e alterações que tendem a variar historicamente. Ao que concerne à ciência (e
também à teologia e à filosofia) esta “passa a ser propriedade de elites de especialistas, cujos
corpos de conhecimento foram crescentemente afastados do conhecimento comum da
sociedade em conjunto” (BERGER E LUCKMANN, 1985, p. 152). A era moderna da ciência
teria duras responsabilidades no desenvolvimento, secularização e complicação da conservação
do universo por ir de encontro com a forma sagrada em relação à vida cotidiana, privando-a da
legitimação divina e da inteligibilidade teórica que a ligaria ao universo simbólico de pretensa
totalidade. Portanto, ainda como dizem Berger e Luckmann (1985), o membro leigo da
sociedade não saberia mais manter conceitualmente seu universo, embora ainda presuma saber
quem são os especialistas por sua manutenção. Bastante oportuna é situação oferecida pelos

66
autores para explicar uma última aplicação de mecanismo conceitual para conservação do
universo: o dispositivo terapêutico.
Ocupado em preconizar outros tantos mecanismos conceituais de controle social na
contramão da emergência de desviantes às definições “oficiais”, o recurso terapêutico na
sociedade funciona com base em um arcabouço também conceitual de apreensão-justificação
para explicar mesmo estes desvios perante a uma realidade “ameaçada”.

Por exemplo, numa coletividade que institucionalizou a homossexualidade


militar, o indivíduo obstinadamente heterossexual é um candidato seguro à
terapêutica, não somente porque seus interesses sexuais constituem evidente
ameaça à eficiência de combate de sua unidade de guerreiros-amantes, mas
também porque seu desvio é psicologicamente subversivo para a virilidade
espontânea dos outros. Afinal de contas, alguns destes, talvez
“subconscientemente”, podem ser tentados a seguir seu exemplo. Em nível
mais fundamental, a conduta do dissidente desafia a realidade social como tal,
pondo em questão seus procedimentos operatórios cognoscitivos admitidos
como certos (“os homens viris por natureza amam uns aos outros”), e os
procedimentos normativos (“os homens viris devem amar uns aos outros”).
De fato, o dissidente provavelmente representa um insulto aos deuses, que
amam uns aos outros no céu, assim como seus devotos na terra. Este desvio
radical requer uma prática terapêutica solidamente fundada numa teoria
terapêutica. É preciso haver uma teoria do desvio (uma “patologia”) que
explica esta condição chocante (digamos, postulando a possessão demoníaca).
É preciso haver um corpo de conceitos diagnósticos (digamos, uma
sintomatologia, com práticas apropriadas para aplicá-la em julgamos por
ordálio), que não somente permita de maneira ótica a precisa especificação
das condições agudas, mas também descobre a “heterossexualidade latente” e
a rápida tomada de medidas preventivas. Finalmente, deve haver uma
conceitualização do processo curativo (digamos, um catálogo de técnicas de
exorcismos, cada qual com adequada fundamentação teórica) (BERGER E
LUCKMANN, 1985, p. 153-154).

Como dispositivo de poder, funcionando como lentes, as elaborações teóricas são


mecanismo fundamentais de instituição e de leitura das realidades. É sobre essa perspectiva que
nos valemos à operacionalização de um recorte. A fim de observar tematizações que burlam
estruturas teórico-sociais em caráter de comunicação é que selecionamos quatro Dossiês
lançados entre os anos de 2013 e 2017.
O primeiro diz de um compilado teórico em que o conceito de Queer é levado a cabo
como mecanismo subversivo das identidades e da cultura. Lançado em novembro de 2013, o
Dossiê #185 realiza uma apresentação em grande escala da obra da filósofa norte-americana
Judith Butler, com texto de apresentação escrito pela editora do material, a filósofa Marcia
Tiburi; uma entrevista realizada pela professora Carla Rodrigues e quatro textos escritos pelas
professoras Guacira Lopes Louro, Joana Plaza Pinto, Leticia Sabsay e Susana de Castro.
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Na sequência, lançado em agosto de 2014, o Dossiê #193 traz a primeira produção não
acadêmica sobre a Teoria Queer, com texto de apresentação escrito pela editora do material, a
professora Carla Rodrigues; três entrevistas realizadas por Carla Rodrigues, Andrea Lacombe,
Emma Song e Pedro Camargo; três textos escritos pelos professores Richard Miskolci, Berenice
Bento e Karla Bessa, e uma charge de Laerte Coutinho.
O Dossiê #202 traz uma discussão a respeito da heteronormatividade como cultura, com
texto de apresentação escrito pelo editor do material, o professor Leandro Colling e mais quatro
textos escritos pelos professores Denilson Lopes, Berenice Bento, André Musskopf e Rogério
Diniz Junqueira.
Em dezembro de 2015, a Edição #205 de CULT traz o Especial Queer, contento uma
entrevista e duas resenhas de livro feitas pelo professor Pedro Paulo Gomes Pereira; um ensaio
pelo professor Richard Miskolci; uma entrevista e uma resenha de livro pela professora Carla
Rodrigues. Esta edição não apresenta um Dossiê do tema sobre o qual essa dissertação se
debruça, mas atualiza sua perspectiva por meio de um ensaio escrito pelo professor Richard
Miskolci (edição #193) que leva o título “Diversidade ou diferença?”, onde se discute as
diferenças entre tolerar e acolher a diversidade. Uma espécie de aparo das arestas.
Por último, lançado em agosto de 2016, o Dossiê #226 traz uma discussão sobre o
Artivismo das dissidências sexuais e de gênero, com texto de apresentação escrito pelo
coordenador do material, o professor Leandro Colling (que coordena também o Dossiê #202) e
mais quatro textos escritos pelos professores Tiago Sant’Ana, Djalma Thürler, Paulo César
Garcia, Rafael Guimarães, Cleber Braga; pelo jornalista Marcelo Trói, também responsável
pela entrevista e depoimentos de Wallace Ruy, Rico Dalasam, Liniker e Raquel Virginia.
Diante desse recorte, entre professores e professoras, pesquisadores das áreas das
Ciências Humanas e Sociais, especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, ativistas e
a(r)tivistas, temos suas formas de expressão textual em Dossiê – seja no sentido da expressão
de uma opinião ou na construção de grandes ideias, e em última instância, de formas de pensar
e compreender o mundo, como é o caso das investigações de base argumentativa que propõe.

Nosso próximo tópico, ao encontro dessa característica, transitamos pelo histórico da formação
do que se denomina intelectual, à luz das figuras responsáveis por essas ações de ler e interpretar
o mundo em Dossiês da revista CULT.

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3.1. Entre opinião e a construção de grandes ideias: intelectuais-acadêmicos

No histórico da revista, entre essas figuras, estão linguistas, filósofos, sociólogos,


psicanalistas, historiadores, jornalistas, teólogos, cientistas políticos e sociais, teóricos da
literatura, feministas, artistas, poetas, músicos, entre tantas outras áreas do conhecimento. Para
além disso, em sua grande maioria, essas pessoas ocupam espaços universitários, sejam eles
professores ou professoras, livre-docentes, alunos e alunas dos cursos de mestrado e doutorado
de instituições públicas ou privadas do Brasil e do mundo.
Portanto, uma questão de grande importância para o desenvolvimento do trabalho diz
respeito ao papel que esses representantes de uma intelectualidade viriam a exercer na
contemporaneidade. Isso, tendo em vista o modus operandi dos Dossiês CULT.
No entanto, não cabendo à essa pesquisa uma genealogia do intelectual, propomos ainda
que de modo introdutório, expressar algumas ideias sob o que concerne a questão da opinião,
uma vez que, dentre os lugares cuja atividade ensaística é exercida de modo mais sistemáticos
na CULT, estão as colunas de opinião e Dossiês. Esse importante ponto de vitalidade, ao que
chamamos aqui de construção de grandes ideias, e de uma forma de construí-las e expressá-las,
somos levados a tentar compreender e interpretar o que viria a ser o intelectual que figura nas
páginas dos Dossiês CULT e como tais figuras auxiliam na construção desses emaranhados de
ensaios, ou seja, ideias.
O termo opinião designa “qualquer conhecimento (ou crença) que não inclua garantia
alguma de validade” (contrapondo-se à ciência), assim como “qualquer asserção ou declaração,
conhecimento ou crença, que inclua ou não uma garantia de validade” (ABBAGNANO, 2012,
p. 850-851). Todavia, seu campo ampliou-se e, “acima de tudo, perdeu-se nitidez dos limites
entre ciência e opinião, visto não haver lugar ou região da ciência em que não haja intersecção
entre opinião e verdade” (ABBAGNANO, 2012, p. 851). Já a ideia é uma representação em
geral, sentido introduzido na linguagem filosófica por Descartes que a entendia como “o objeto
do pensamento em geral” (ABBAGNANO, 2012, p. 611), forma pela qual podemos nos ver
cientes de um determinado pensamento. Isso quer dizer, “a ideia expressa aquele caráter
fundamental do pensamento graças ao qual ele se torna imediatamente ciente de si mesmo”
(ABBAGNANO, idem, ibidem).
Esse amplo espectro das palavras relaciona sistemas de crenças e de pensamento a
modelos de ajuizamento com pretensões de verdade. Nesse sentido, dirá Francis Wolff (2010,
p. 38) que

69
O pensamento racional começa com a comunicabilidade, com a dizibilidade.
Sozinho, tenho meus humores, meus sentimentos, minhas crenças, minhas
opiniões, minhas convicções. Se eu quiser inculcar minhas crenças, minhas
opiniões, minhas convicções a uma criança, basta-me a autoridade: “Acredite
em mim, estou lhe falando, sou seu pai, seu educador, seu superior, você
precisa acreditar em mim”. Porém, se eu quiser convencer um ser que
considero meu igual, preciso argumentar, e assim minha convicção poderá
deixar de ser minha para se tornar um pensamento compartilhado. Preciso
fornecer razões de pensar isso ou aquilo. E se eu encontrar razões válida para
todo mundo, a qualquer momento e em qualquer lugar, que fazem que
qualquer outro ser falante, contanto que não tenha preconceitos e seja de boa-
fé, tenha de acreditar em mim, então minha argumentação está universalmente
válida e meu pensamento adquirirá o maior valor, o qual não será mais
vinculado a mim, mas ao simples pensamento. Por exemplo: qualquer um
pode demonstrar que 2 +2 = 4 ou que a soma dos ângulos de qualquer triângulo
é de 180 graus. Não é uma questão de opinião. É a forma mais alta de
pensamento, o pensamento racional. E trata-se de um pensamento sem
pensador.

No entanto, para o autor, a mais complexa forma de pensamento se dá

por exemplo, atrás do meu pensamento banal sobre o tempo que faz hoje
existe na verdade uma ciência, a meteorologia, que estuda os fenômenos
atmosféricos (as nuvens, as depressões, as precipitações), ciência complexa
que mobiliza a mecânica dos fluidos, mas também outros ramos da física ou
da química, e que se apoia em modelos matemáticos muito elaborados. E a
palavra “meteorologia” vem do grego antigo, em que meteor designa as
partículas em suspensão na atmosfera e logos significa discurso ou
conhecimento racional. Pois a reflexão sobre o saber racional que chamamos
de ciência nasceu no pensamento grego clássico. Atrás do simples gesto de
me cobrir se eu estiver com frio ou de ligar o ventilador se estiver com calor,
há toda uma técnica humana (a domesticação do carneiro, a tecelagem da lã,
sem falar da eletricidade) que foi possibilitada por milhares de descobertas e
de invenções devidas à engenhosidade humana: em suma, existe uma
experiência milenar de pensamento acumulado. E a palavra “técnica” provém
do grego technè, que significa know-how racional que chamamos de “técnica”.
Finalmente, atrás do meu ato banal de dar esmola ou não ao mendigo, há (ou
poderia haver) todo um pensamento sobre os deveres de socorrer um ser
humano, sobre as consequências de meu gesto (melhorar provisoriamente a
situação de um indivíduo? Ou, pelo contrário, incentivar a mendicância?),
sobre os princípios do meu gesto (aliviar-me de um sentimento de culpa? Ou,
ao contrário, tratar qualquer outro como um igual?) ou sobre as virtudes, por
exemplo, sobre a caridade individual, que tem a ver com ética, ou sobre a
justiça social, que tem a ver com política. As palavras ética e política também
vêm do grego, da palavra ethos, que significa costumes, e de polis, que
significa vida em sociedade. E a reflexão sobre as normas, sobre os valores
universais das condutas, sejam elas individuais ou coletivas – isto é, ética e a
política –, nasceu no pensamento grego clássico. Eis a experiência de
pensamento mais completa que pode haver atrás do meu ato ou da minha
abstenção: o pensamento ético ou político (WOFF, 2010, p. 45).

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Wolff (2010), caracteriza três grandes experiências de pensamento humano – a ciência,
a técnica e a ética ou política, e que estariam perdendo sua autonomia na contemporaneidade
“porque a técnica moderna desde o século XVII é cada vez menos empírica, cada vez menos
fruto do acaso, do tateamento, da engenhosidade inventiva – e cada vez mais uma aplicação
das descobertas científicas” (WOLFF, 2010, p. 48). Pois,

Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a


si mesmo, ideias que fogem, que desparecem apenas esboçadas, já corroídas
pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos.
São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São
velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e
silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não
sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Recebemos
chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas ideias. É por
isso que queremos tanto agarrar-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que
nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e as
regras protetoras, semelhança, contiguidade, causalidade, que nos permitem
colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma a outra segundo uma
ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” (o delírio, a loucura)
de percorrer os universos no instante, para engendrar nele cavalos alados e
dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não
houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anticaos objetivo:
“Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado..., minha
imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento, o pesado
cinábrio com [190] a representação da cor vermelha. E, enfim, para que haja
acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação se reproduza,
como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada
vez que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos,
com nossos órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor
uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma
opinião, como uma espécie de “guarda-sol” que nos protege do caos
(DELEUZE E GUATTARI, 2010, p. 237-238).

Nesse sentido, conforme Deleuze e Guattari (2010, p. 238), a arte, a ciência, e a filosofia
traçariam “planos sobre o caos”, ou seja, querem que mergulhemos no caos. Para os autores,

O que o filósofo traz do caos são variações que permanecem infinitas, mas
tornadas inseparáveis sobre superfícies ou em volumes absolutos, que traçam
um plano de imanência secante: não mais são associações de ideias distintas,
mas re-encadeamentos, por zona de indistinção, num conceito. O cientista traz
do caos variáveis, tornadas independentes por desaceleração, isto é, por
eliminação de outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de
modo que as variáveis retidas entram em relação determináveis numa função:
não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre
um plano secamente de referência, que vai das probabilidades locais a uma
cosmologia global. O artista traz do caos variedades, que não constituem mais
uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem em ser do sensível, um ser
da sensação, sobre um plano de composição, anorgânica, capaz de restituir o
infinito.

71
Nessa empreitada enxergamos a figura do intelectual que, para Sartre (1994, p. 30-31),

[...] é o homem que toma consciência da oposição, nele e na sociedade, entre


a pesquisa da verdade prática (com todas as normas que ela implica) e a
ideologia dominante (com seu sistema de valores tradicionais). Essa tomada
de consciência – ainda que, para ser real, deva se fazer, no intelectual, desde
o início, no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua função –
nada mais é que o desvelamento das contradições fundamentais da sociedade,
quer dizer, dos conflitos de classe e, no seio da própria classe dominante, de
um conflito orgânico entre a verdade que ela reivindica para seu
empreendimento e os mitos, valores e tradições que ela mantém e que quer
transmitir às outras classes para garantir sua hegemonia.
Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha
porque interiorizou seu despedaçamento. É, portanto, um produto histórico.
Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem
acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz.

Francisco Weffort (1994) na apresentação do livro Em defesa dos intelectuais, reunião


de três conferências proferidas por Sartre nas cidades de Tóquio e Quioto, em 1965, no Japão,
esquematiza: “Um físico que se dedica a construir uma bomba atômica é um cientista. Um
físico que contesta a construção da bomba é um intelectual. [...] Só quando se rebela, o
‘especialista’ se torna um intelectual” (WEFFORT, 1994, p. 7). Esse é também o tom que dita
um rumo da história dessa figura, desde sempre abastada em suas condições civis de classe
média, relegados à condição de interpretantes da condição humana, hommes de lettres, niilistas,
de influência sócio-política, viajantes-viajados do mundo e dos tempos ao que sabemos pelo
cânone, pelo menos. Sempre malquisto, fala o que ninguém gosta de ouvir. Vejamos, por
exemplo, a condição para o surgimento da palavra intelectual na França do final do século XIX.
Contavam-se 13 dias de janeiro de 1898. Uma carta intitulada J’accuse era dirigida ao
Presidente da República pelo escritor Émile Zola que publicada no jornal L’Aurore exigia a
revisão do processo condenatório do oficial judeu Alfred Dreyfus por crime de alta traição
denunciando o comandante Esterházy, o verdadeiro culpado (ROUANET, 2006). Na ocasião,
vários artistas, professores, estudantes, arquitetos, advogados, médicos compõem uma petição
apoiando o escritor. Os que repudiam a medida, contrários à Zola, rapidamente a depreciam e
nomeiam o documento como petição dos intelectuais. Da tomada de posição por parte de Zola,
pela audácia do escritor em dirigir-se ao Presidente da República, pela organização contrária
frente à uma questão antissemita, se traduz por uma atitude antipática e zombeteira. O
intelectual nasce contrário à injustiça e fadado à chatice.

72
Francis Wolff (2006, p. 47) dirá que desde essa época, e no decorrer de todo o século
XX, a palavra intelectual vai se referir “àqueles que, exercendo uma atividade intelectual, usam
seu prestígio adquirido nessas atividades para intervir no debate público e defender valores
universais (justiça e verdade, em particular)” ou seja, é quem “transforma uma autoridade
intelectual em autoridade política em nome de uma autoridade moral”. É importante, na
definição do autor, compreender o que este chama de atividade intelectual: do contrário às
atividades manuais, por exemplo, agrícola, artesanal ou industrial e de função técnica, portanto,
categorias socioprofissionais ou atividades distantes em relação aos processos utilitários de
produção e distribuição.

Por isso os intelectuais a que nos referimos procedem essencialmente das


atividades ditas de criação (artes, letras, ciências) e também,
secundariamente, das práticas de mediação: informação, educação. É preciso,
pois um alto grau de desenvolvimento econômico, social, cultural, e de
diferenciação das tarefas, para que haja intelectuais assim definidos (WOLFF,
2006, p. 48).

Para o filósofo italiano Antonio Gramsci, como afirma Sérgio Rouanet (2006, p. 73) por
exemplo, o intelectual “é o elemento de ligação entre infra-estrutura e a superestrutura. É ele,
portanto, que faz funcionar o bloco histórico e que ajuda ou a estabilizá-lo ou a promover sua
transformação”. Este depende diretamente do nível das forças produtivas composta por
sociedade política e sociedade civil, pois visam um projeto hegemônico baseado no consenso,
estando sempre a serviço de sua classe. Diante às mais diversas leituras, seu entendimento
parece ser somente de ordem histórica, dificultando sua proximidade e apreensão em contextos
sociedade bastante específicos, relegando aos interessados uma sensação de tempos que
gostaríamos de, possivelmente, ter vivido. Ou não.
Sérgio Rouanet (2006), em texto sobre A crise dos universais, parte da provocação feita
pelo crítico e escritor brasileiro membro da Academia Brasileira de Letras Eduardo Portella em
ensaio sobre os fantasmas dos intelectuais em que constata o declínio dessa personagem sem
aura (vale um extenso parêntese: o primado da universalidade é considerado pelo autor como
condição de existência e tarefa para o intelectual, tarefa esta em profunda crise. Citando as
características particularistas da sociedade e dos sistemas mundiais, o autor argumenta que o
intelectual precisa visar “à eliminação dos particularismos repressivos, que impedem a fruição
concreta dos direitos universais do homem” (ROUANET, 2006, p. 82). É o que este chama de
ética da universalização, que conforme emprega o autor, significaria combater discrepâncias de
benefícios materiais e culturais, concentrados nas mãos de uma minoria, das discrepâncias de

73
riquezas entre nações, alçando uma nova divisão internacional do trabalho, além do combate as
discrepâncias de poder pela retomada desse parâmetro22).
Rouanet (2006) demonstra que as condições sociais mudaram e se antes os intelectuais
eram vistos como guias espirituais, intérpretes, conselheiros de seu povo, sua atividade, hoje,
se diferenciaria por três razões: 1) o progresso da democracia, pois aqui o intelectual atuaria
livremente em condições democráticas da sociedade. Em casos extremados, como foi o período
da Ditadura Militar no Brasil, o intelectual, segundo o autor, era tido como “a voz de uma
sociedade amordaçada” (ROUANET, 2006, p. 76). Após a redemocratização, os destinos
voltam às mãos dos cidadãos e de seus representantes governamentais democraticamente
eleitos. Haveria, no entanto, uma relação nesta máxima já que, mesmo tendo sua aura
diminuída, este mesmo intelectual precisaria ressurgir em períodos em que as democracias
correm perigo; 2) a profissionalização do trabalho intelectual responsável por aprofundar a
relação entre intelectuais e os ambientes universitários:

Hoje a figura do intelectual generalista e sem vínculo universitário está


desaparecendo. Em seu lugar estão surgindo profissionais, ‘especialistas do
saber teórico’, para parafrasear Sartre – demógrafos que nunca ouviram falar
em Rousseau, cientistas políticos que nunca leram Proust –, e todos
exemplarmente weberianos, e evitando com o máximo de zelo, como
aprenderam na universidade, a formulação de juízos de valor (ROUANET,
2006, p. 76).

Abre-se com isso uma questão formativa – mesmo com a acidez sartreana. Ancoradas
na divisão social do trabalho, há um crescente nível de especialização e de excelência
acadêmica em diferentes áreas da ciência. No entanto, há certa relação de hierarquia impedido
que o segundo passo, “pelo qual esses especialistas acendem ao espaço público, usando um
discurso que se articula necessariamente em torno de juízos de valor” (ROUANET, 2006, p.
76) não seja efetivamente dado.
A última das três razões diz respeito ao desenvolvimento acelerado da cultura de massa,
que “julga já possuir todo o saber de que necessita, e não está disposta a ouvir vozes críticas
que venham a perturbar sua boa consciência” (ROUANET, 2006, p. 76-77). É a hegemonia
pelo conformismo mobilizado pela indústria cultural.

22
Edward Said (2005, p. 31) também advoga a favor dos parâmetros universalistas. Diz ele: “O objetivo da
atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento. Penso que isso ainda hoje é verdade, apesar
da acusação repetida com frequência de que ‘as grandes narrativas de emancipação e esclarecimento’ – como o
filósofo francês contemporâneo Lyotard chamada tais ambições heróicas associadas à idade ‘moderna’ – já não
têm aceitação na era do pós-modernismo. De acordo com essa visão, as grandes narrativas foram substituídas por
situações locais e jogos de linguagem; agora os intelectuais pós-modernos enaltecem a competência, e não os
valores universais como a verdade e a liberdade”.
74
Em qualquer caso, o intelectual é indesejável, porque introduz a negação e a
transcendência numa sociedade que se instalou no pensamento afirmativo e
na imanência. Isto não significa que tenha desaparecido toda necessidade de
aconselhamento. Mas essa função não é mais exercida pelos intelectuais. Até
recentemente, o intelectual dava conselhos à sua comunidade, assumindo o
papel de velho Nestor, na Ilíada, e ao poder, escrevendo livros para o uso dos
governantes, como O Príncipe. Hoje ele está perdendo essas duas funções. O
aconselhamento comunitário é feito pelos pastores evangélicos, que
substituíram os padres católicos no cuidado das almas e das mentes. É feito
também pela publicidade eletrônica e pelas revistas (ROUANET, 200, p. 77).

Contemporaneamente irônico. Mas sigamos na linha que envolve o trabalho intelectual.


Talvez nossa discussão rume a um desenho lógico para tal aquiescimento do segundo passo
descrito por Rouanet.
Renato Janine Ribeiro (2006, p. 141) reclama exatamente por esta tomada de espaço.

O que caracteriza o intelectual é fazer uso público do conhecimento. Isso não


significa apenas falar em público – ele deve também efetuar todas as
mediações que convertem o que inicialmente seria trabalho arcano,
acadêmico, fechado sobre si, voltado apenas para o avanço interno do
conhecimento, em algo que passa a ser apropriado socialmente.

Discordando de Rouanet (2006) na proposição de datar o intelectual partindo do Caso


Dreyfus (citado no início da discussão) Ribeiro (2006, p. 141) toma por certo que “o intelectual
não poderia ser mais antigo que o Iluminismo” já que seu trabalho foi justamente o que
caracterizou a Encyclopédie, ou seja, “transferir para o grande público um conhecimento que
antes era encerrado entre os que podiam saber”. Segundo autor, a condição de existência para
o intelectual estaria na elaboração mesmo de uma linguagem. Seria uma questão de dupla
escrita e tradução do conhecimento, já que os autores do Iluminismo escreviam em língua
vernácula aquilo que por todos podia ser lido e consequentemente divulgado, em latim ou em
cartas restritas o que não era de acesso público.

Ele [o intelectual] é quem traduz em público os avanços do conhecimento.


Isso não quer dizer, porém, que então hoje lhe caiba a difusão do
conhecimento. Essa tem seus atores próprios. Na verdade, o intelectual é mais
quem discute a apropriação, o uso do conhecimento, do que aquele que o
difunde. O papel do intelectual consiste em articular valores e conhecimentos,
ideias e ideais. O intelectual debate o valor da ciência – como o faraó de
Platão, que examina uma a uma as invenções que lhe propõe o ministro
(RIBEIRO, 2006, p. 142-143).

Mas assim como o faz Rouanet (2006), concorda a respeito do patamar democrático
como prática de liberdade tanto para instituição de uma arena que visa a manutenção da
75
intelectualidade quanto para emancipação do seu povo. “Se a sociedade é democrática, o lugar
do faraó deveria ser ocupado pelo povo” (RIBEIRO, 2006, p. 144). Não caberia ao intelectual
legislar, a não ser que o que esteja em jogo seja a possibilidade mesmo de legislar.

É justamente porque ele não legisla que pode opinar, e mais uma vez usamos
a palavra – opinar – com um sentido positivo, que vai bem além da doxa, e
que está presente, por exemplo, no uso predominante, ainda que não
exclusivo, da expressão “opinião pública”. O intelectual assim adquire uma
autoridade que é sua, justamente porque não dispõe de poder (RIBEIRO,
2006, p. 145).

Levar à praça pública discussões da ciência é tarefa do intelectual. Este não é quem
divulga, mas quem lida com “o valor”, é “quem discute quanto valem as coisas, então ele é o
‘político’ do conhecimento, aquele que o converte em ação possível” (RIBEIRO, 2006, p. 146),
sendo o seu reino o das mediações. A mesma linha de pensamento também é avaliada por Said
(2006, p. 34-35):

A política está em toda parte; não pode haver escape para os reinos da arte e
do pensamento puros nem, nessa mesma linha, para o reino da objetividade
desinteressada ou da teoria transcendental. Os intelectuais pertencem ao seu
tempo. São arrebanhados pelas políticas de representações para as sociedades
massificadas, materializadas pela indústria de informação ou dos meios de
comunicação, e capazes de lhes resistir apenas contestando as imagens, as
narrativas oficiais, justificações de poder que os meios de comunicação, cada
vez mais poderosos, fazem circular – e não só os meios de comunicação, mas
também correntes de pensamento que mantêm o status quo e transmitem uma
perspectiva aceitável e autorizada sobre a atualidade–, oferecendo o que Mills
chama de desmascaramentos ou versões alternativas, nas quais tentam dizer a
verdade da melhor forma possível.

Por pertencer ao seu tempo, “o intelectual faz que a ciência se torne cultura” (RIBEIRO,
2006, p. 147). Todavia, antes de seguirmos para um encerramento, faz-se necessário voltar ao
início da argumentação de Ribeiro.
Este define o intelectual como “quem lida com assuntos humanos” (RIBEIRO, 2006, p.
137) que para o autor seria o cientista das Humanidades, especificamente, que se atém às
Ciências Humanas e Sociais, mas também às Letras, Filosofia e História. Assim, faz uma
primeira distinção entre o intelectual e o cientista: a exatidão.
O intelectual, para o autor, por lidar com o mundo dos “homens” trabalharia
irredutivelmente com a imprevisão e a indeterminação. Sendo assim, realizamos uma ponte
com o ensaio, pelas palavras de Max Bense (2018, p. 116), cuja “maestria consumada no ensaio
consistiria, pois, em levar o procedimento experimental encarnado na expressão verbal às raias

76
do teórico, até o limite em que começa uma outra espécie de prosa – a teoria”. Para o autor, o
ensaio, pode ser visto como a “origem de uma ordem de pensamento” (BENSE, 2018, p. 116).
A mescla entre sujeito e objeto nas Humanidades e nas Ciências Sociais Aplicadas seria
mais uma característica decisiva para acentuação dessa indeterminação, primeiro ponto básico
de diferença, seguida pela aplicação prática das elaborações científicas. Outro fator de
diferenciação, em relação às formas de intelectualidade presente em ambientes universitários
seria o aparato tecnológico para as ditas “ciências duras” e a formação de um público para as
ditas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Essa aplicação incidiria, retomando com as elaborações de Ribeiro (2006), sobre a
consciência, na maneira como todas as ciências acrescentam à nossa consciência algo a respeito
do mundo. No caso das Biológicas ou as Ciências Exatas, por exemplo, temos a produção de
vacinas, aviões, arranha-céus ou a construção de campos de concentração. Seus efeitos são, a
médio e longo prazo, sentidos pelos sujeitos. Relações diferentes se dão nas Ciências Humanas
e Sociais, em que a descoberta científica precisa ser matéria de consciência.

O trabalho de Freud terá sido completamente inútil se não chegar à


consciência. É possível planejar uma rede de saneamento básico nas cidades,
e assim reduzir a mortalidade infantil, sem que cidadãos saibam da
epidemiologia. Mas o vírus freudiano não terá efeito algum se as pessoas não
aprenderem pelo menos alguns de seus princípios, como a importância do
sexo na psique humana, o confronto entre o id e o superego, e portanto os
problemas que toda moral coloca, a existência da sexualidade infantil, e
portanto a relativização da criança inocente que Rousseau nos legou, e outros
pontos que podem, pelo menos, ajudar a reduzir a enorme culpa que os séculos
deixaram associada ao sexo e, ainda, pôr em dúvida a convicção, tão repartida,
de que nós temos razão e os outros não (RIBEIRO, 2006, p. 138).

Retomemos a frase, para nós, de extrema valia: “o intelectual faz que a ciência se torne
cultura” (RIBEIRO, 2006, p. 147). A cultura altera nossa percepção de mundo, é aquela que
muda o olhar, e tal como afirma, finalmente o autor

Esse modo complexo, pelo qual o conhecimento científico é apropriado sob a


forma dos mais distintos valores, e acaba tomando posse de parte de nossa
consciência, é o que designa um certo lugar, que é o que chamamos o do
intelectual. Assim, se há o que se criticar no intelectual – quando, por
exemplo, ele assume um certo conservadorismo, como sucede em face de
certas inovações científicas ou tecnológicas que sabemos quanto foi difícil ele
aceitar –, há também a sua grandeza, que está em fazer política do
conhecimento de ponta, em torná-lo cultura e em levá-lo para a praça, isto é,
para a cada comum da humanidade (RIBEIRO, 2006, p. 147).

77
Dito isso, nos questionamos: como lidar com o superávit na tomada da palavra que
tumultua as referências, nega a necessidade do trabalho de análise para compreensão da
realidade, mesmo deturpam-na falsamente na contemporaneidade? Como encarar a
contraposição ao intelectual-acadêmico (de base anti-intelectualista, diríamos), ao cientista, por
suas atitudes de “pensamento”, “de esquerda”, argumento ápice da simplificação tipicamente
fascista, conjuntamente com o aparato técno-capitalista que nega o logos em detrimento da
reprodutibilidade vazia das ações humanas em reiteradas tentativas de negações das epistemo-
logias? O aparato teórico e também intelectual é fortemente utilizado, na pior concepção do
termo, pelos que desejam engessar o mundo conformando-o segundo preceitos deliberadamente
conservadores proferidos por gurus ou ideólogos, por exemplo. Estes não seriam intelectuais,
pois estão fundamentalmente a serviço do conforto, e, como dirá Said (2005, p. 27) o importante
para um intelectual “é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”, se alinhando
ao ato crítica antes da solidariedade (Sartre dirá essa) é para nós o principal “serviço” que um
intelectual pode oferecer à sua sociedade.

Não há um déficit de tomada da palavra em nossa sociedade. Existe, sim,


déficit de compreensão. Ora, a vida intelectual concebe-se sempre como se ela
fosse definida pela função da resistência, de tomada da palavra, de alerta. Mas
ela se esquece de que seu verdadeiro trabalho é o trabalho da análise, de
compreensão da realidade (NOVAES, 2006, p. 11).

Endossando as palavras de Novaes, voltamos a citar Sartre (1994, p. 35-35) para quem

A verdadeira pesquisa intelectual, se pretende livrar a verdade dos mitos que


a obscurecem, implica uma passagem pela singularidade do pesquisador. Este
precisa se situar no universo social para capturar e destruir nele e fora dele os
limites que a ideologia impõe ao saber. É no nível da situação que pode agir
a dialética da interiorização e da exteriorização; o pensamento do intelectual
deve se voltar todo o tempo para si mesmo, para de apoderar sempre como
universalidade singular, quer dizer, singularizada secretamente pelos
preconceitos de classe inculcados desde a infância, mesmo que acredite ter
deles se desembaraçado e ter chegado ao universal. Não basta (para citar
apenas um exemplo) combater o racismo (como ideologia do imperialismo)
com argumentos universais, tirados de nossos conhecimentos antropológicos:
esses argumentos podem convencer no nível da universalidade; mas o racismo
é uma atitude concreta de todos os dias; em consequência, pode-se acreditar
sinceramente no discurso universal do anti-racismo e, nas longínquas
profundezas ligadas à infância, continuar racista e, ao mesmo tempo, se
comportar, sem saber, como racista na vida cotidiana. Assim, o intelectual
nada terá feito, mesmo que demonstre o aspecto berrante do racismo, se não
se voltar todo o tempo para si mesmo e dissolver um racismo de origem
infantil através de uma pesquisa rigorosa sobre “esse monstro incomparável”,
o eu.

78
Desse modo, haveria de saber o intelectual que o universal humano estaria
perpetuamente por se fazer. Seria a figura do intelectual algo intemporal. Fruto e produto de
seus tempos e contextos sociais e históricos, é um grande desafio pensar, de modo geral, o que
configuraria uma atitude intelectual na contemporaneidade. Em nosso caso específico,
interessa-nos a relação que este intelectual-acadêmico, ligado a centros de pesquisa voltados
para os estudos das Ciências Humanas e Sociais exerce no ato de interpretar certos aspectos do
mundo.
E, como diz Edward Said (2006, p. 80),

Não me lembro de Sartre ter dito alguma vez que o intelectual devia
permanecer necessariamente fora da universidade: o que ele realmente disse
foi que o intelectual nunca é de todo um intelectual como quando é rodeado,
induzido com agrados, encurralado, tiranizado pela sociedade para ser uma
coisa ou outra, porque só nesse momento e nessa base se pode construir o
trabalho intelectual.

Ainda assim, é bastante difícil escolher um caminho para falar do intelectual. Porém,
mais errôneo ainda seria conformá-lo. Transformá-lo em uma figura coesa, ainda que essa falta
de coesão seja característica cuja qual podemos identificar e qualificar certa atitude intelectual.
A consciência das temporalidades pelas quais é atravessado demanda dessa figura certa
capacidade de ver-se em movimento. E, assim como o ensaio, fraturado, pois é coeso nos limites
que concerne à análise das situações-tempo que propõe. Não opera um todo porque é um ser
limitado. Mas é um ser de postura, cuja atividade escrita também é inscrita. Por isso
consideramos que o ensaio é a sua melhor forma de expressão.
A atividade intelectual que se dá nos Dossiês CULT realiza-se através dos tempos em
que transitam os materiais, na relação com o ensaio, o Dossiê – sua estrutura, a cultura e a
sociedade. Trabalha com a profundidade do que suas cogitações podem levar a se dar no tempo
e no espaço disponíveis editorialmente. Seja em primeiro grau de tentativa, ponto inaugural,
mas não genealógico, em transcorrer; seja em seu entre, no papel de reanálise, maturação crítica
da crítica, momento em que caminha um pouco além do curso que não deixou de acompanhar.
Com isso, partimos para a segunda parte desta dissertação, que consiste na análise
propriamente dita.

79
PARTE II – Uma trajetória editorial: o Queer em questão

“Baseado em carne viva e fatos reais


É o sangue dos meus que escorre pelas marginais
E vocês fazem tão pouco, mas falam demais
Fazem filhos iguais, assim como seus pais
Tão normais e banais, em processos mentais
Sem sistema digestivo lutam para manter vivo
Morto, vivo, morto, vivo, morto, morto, morto, viva!”

Bomba pra caralho, de Linn da Quebrada

Entre muitos aspectos da forma ensaística nos Dossiês da revista CULT temos os
conceitos, seu “meio específico”, como dissera Adorno (2003), operados pelo ensaio cuja forma
quem dá são seus articulistas, intelectuais-acadêmicos, partindo de suas tematizações.
Diante do guarda-chuva conceitual que a questão Queer nos apresenta,
problematizamos os Dossiês de número #185, #193, #202 e #226. Estes quatro formam o eixo
central da questão trabalhada em CULT entre os anos 2013 e 2017.
Além disso, os ensaios presentes nas edições #196 e #205 nos servem de pontos-âncora
para um entre antes e depois de algumas discussões.

80
1. Ponto de partida: perspectivas téorico-introdutórias

1.1. O Queer e a filosofia: ponto inaugural

“A filósofa que desafia as classificações consagradas e cria um


novo pensamento sobre identidade, feminismo e sexo, revelando
novas linguagens para questões contemporâneas”
(Chamada de capa, edição #185)

Figura 40 – Edição 185 (novembro de 2013) – Dossiê Judith Butler.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Editado pela filósofa Marcia Tiburi, o Dossiê 185 (ano 16, de novembro de 2013, 66
páginas) analisa, em cinco ensaios, alguns aspectos da obra da filósofa estadunidense Judith
Butler. Em editorial, Daysi Bregantini (2013, p. 3) escreve sobre o material: “É um estudo
aprofundado (ainda mais para uma revista) do trabalho de Judith Butler, uma pensadora que se
afasta de suposições fáceis e declara a identidade como um processo sem fim, como um devir.
Um assunto perturbador, necessário e oportuno”.
Colaboraram na produção do material Marcia Tiburi, Carla Rodrigues, Guacira Lopes
Louro, Joana Plaza Pinto, Leticia Sabsay e Susana de Castro, com os respectivos textos “Judith
Butler: feminismo como provocação” (p. 20-23), “A filósofa que rejeita classificações” (p. 25-
29), “Uma sequência de atos” (p. 31-34), “O percurso da performatividade” (p. 35-37),
“Incertezas políticas e a relacionalidade” (p. 39-43) e “Queerificando Antígona” (p. 44-47).

81
No que concerne à edição e produção do material, apresentamos um quadro com seus
respectivos autores, atribuições e instituições conforme descritas no próprio Dossiê.

DOSSIÊ JUDITH BUTLER – TABELA DE COLABORADORES

Título do texto Autora/Autor Atribuição Instituição

Judith Butler: Marcia Tiburi Filósofa; editora do


feminismo como material
provocação

Entrevista: A filósofa Carla Professora do PUC-Rio


que rejeita Rodrigues Departamento de
classificações Comunicação Social

Uma sequência de Guacira Lopes Doutora em educação UFRN


atos Louro

O percurso da Joana Plaza Pesquisadora do CNPq e UFG


performatividade Pinto professora e colaboradora
do Grupo Transas do
Corpo

Incertezas políticas e a Leticia Sabsay Pesquisadora The Open University (UK);


relacionalidade Instituto de Pesquisas Gino
Germani (Universidad de
Buenos Aires)

Queerificando Susana de Professora do UFRJ


Antígona Castro Departamento de
Filosofia

Sobre a função de editora do material, realizamos duas considerações gerais sendo a


primeira a respeito das pautas dos Dossiês. Elas podem ser propostas por seus editores, como
no caso em questão, ou encomendadas pela editora chefe da revista, Daysi Bregantini, por
ocorrência de determinada situação ou interesse. O segundo ponto diz da tessitura do material
(seus textos) pelo argumento, responsável por alinhar e dar tom às perspectivas reunidas em
prol da realização do Dossiê.
O argumento, como o entendemos, diz de uma situação de comunicação que coloca em
jogo a construção de um raciocínio. Nessa situação, argumentar, conforme Breton (2003, p. 35)

é, primeiramente, agir sobre a opinião de um auditório de maneira a desenhar


um vazio, um lugar para a opinião que o orador lhe propõe. No sentido mais
forte, argumentar é construir uma interseção entre os universos mentais nos
quais cada indivíduo vive.
82
Considerada uma arte bastante delicada pelo autor, a argumentação diz ainda de um
contrato de comunicação estabelecido mediante uma dinâmica argumentativa que apela às
condições de convencimento e de partilha de uma opinião designadas por um molde ou uma
forma argumentativa dada, e não simplesmente por um conjunto de mensagens, objetivando a
construção de um vínculo social.
Por isso, e também conforme Breton (2003, p. 60-61) seria necessário delimitar “[...]
fronteiras para distinguir, do ponto de vista da comunicação e de sua intencionalidade, as ações
humanas que visam fazer partilhar uma opinião, das ações que buscam informar, seduzir... ou
ainda não dizer nada”.
Diante deste quadro, dirá, então, Tiburi (2013, p. 21), em texto que amarra o argumento
central do nosso primeiro Dossiê em questão: “Verdade que o tema central da obra de Butler é
o ‘gênero’, mas, olhando de perto, gênero não é um problema do campo da ‘sexualidade’, é um
problema político e, mais perigosamente, um problema ontológico”. A autora amplifica a
discussão a partir do ponto-chave da produção do Dossiê no momento em que desestabiliza a
rasa problemática envolvendo gênero e sexualidade, e chama atenção para atribuições do campo
político e de nível categorial da natureza empregada ao conceito de gênero, propondo uma
discussão pela implosão desse conceito. “O conceito é bem ato de pensamento [...] o
pensamento operando em velocidade infinita”, no lembra Deleuze e Guattari (2010, p. 29).
Tiburi (2013, p 23) finaliza face à junção dos textos competentes ao Dossiê, expondo a
relação entre os demais:

No texto de Guacira Lopes Louro, temos a chance de nos aproximar do olhar


perturbador de Butler como pensadora da subversão; no texto de Joana Plaza
podemos ver a conexão entre o “performativo” e a “vulnerabilidade” dos
corpos à linguagem; Leticia Sabsay nos fará pensar nas “normas de gênero” e
suas possibilidades de ressignificação; por fim, Susana de Castro nos oferece
uma leitura sobre Antígona, desde que Butler leu de um ponto de vista queer.
No todo, e em cada uma de suas partes, fica evidente o respeito das autoras e
sua dívida para com uma filósofa que está abalando as estruturas do
pensamento ocidental.

Seguindo o fio condutor traçado acima, Guacira Lopes Lopes Louro em “Uma
sequência de atos” apresenta o conceito de gênero, tão fundamental à obra de Butler, irrigado
por sua obra considerada, até aquele momento, mais popularmente conhecida, Problemas de
gênero – feminismo e subversão das identidades [Gender Trouble]. Louro intitula seu texto de

83
forma sugestiva, pois produz uma sequenciação da problemática do conceito de gênero
tomando-o dentro de um percurso provocativo no texto. Dirá Louro (2013, p. 31):

O que é gênero final? É algo com que nascemos? Algo que nos é designado
definitivamente, de uma vez por todas? Algo que aparentamos, por ações,
gestos, comportamentos, moda? Como se faz um gênero? Como alguém se
torna um sujeito de gênero? E quando isso acontece? O que sexto tem a ver
com gênero?
Judith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras. Ensaiou
respostas, mas longe de se mostrar satisfeita, continuou, ao longo de vários
livros e incontáveis artigos, entrevistas e palestras, refazendo as perguntas,
complicando o jogo, invertendo a lógica.

Seus atos são pontos de ação e de inferências em trânsito. Nesse sentido, continua
apresentando pontos desta sequenciação e chama atenção para outro conceito necessário para
compreender a teoria butleriana – o de performatividade. Com isso, inicia um resgate histórico
da fundamentação conceitual do termo (a abordagem histórica é feita de modo mais acentuado
no texto seguinte) ao que concerne às contribuições de dois pensadores importantes para o
trabalho de Butler.

Em Austin, ela vai buscar inspiração na teoria dos atos de fala (que distingue
entre os enunciados constatativos, aqueles que descrevem um fato, uma
situação, e os performativos, aqueles que, ao serem proclamados, produzem,
isto é, fazem acontecer aquilo que proclamam). De Derrida (que desconstruída
em parte a teoria de Austin), ela toma emprestada noções como
citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um modo próprio e explora
sua potencialidade para pensar o gênero e o sexo (LOURO, 2012, p. 32).

Em “O percurso da performatividade”, Joana Plaza Pinto esmiúça as contribuições e


empréstimos empregados por Butler das formulações teóricas de Paul Austin e Jacques Derrida,
numa acepção histórica para conceituação do termo.

Arrisco, aqui, a traçar um percurso dessa palavra [performatividade] em sua


obra, dentro dos limites que o espaço deste artigo e meu conhecimento
permitem. O risco é inerente ao se contar uma estória, ao se produzir
significado: a cada repetição, há uma alteração (PINTO, 2013, p. 36).

São sempre traços de percursos sob riscos inerentes. É um outo ato. Unidade da
sequenciação que se faz no Dossiê. Sua prosa teórica há de vir tangenciar a vida.
Caminhando um pouco mais na seara de questões, Leticia Sabsay em “Incertezas
políticas e a relacionalidade” realiza no texto, também partindo da teorização e de seus
processos, a aproximação dessa densa camada com a verdade das vidas cuja teoria se propõe

84
pensar. A autora chama para discussão sua dimensão política e cotidiana. Cita obras que até
aquele momento não haviam sido publicadas no Brasil como Bodies That Matter e On the
Discursive Limits of Sex. Há um caminhar na problematização, pois é aqui que o termo queer
aparece pela primeira vez, muito em voga pela problemática envolvendo a questão do
performativo (e não mais de apresentação do conceito de performance) e os “seres precários”.
O último texto do Dossiê, “Queerificando Antígona”, escrito por Susana de Castro,
apresenta e explica o movimento de (re)leitura feita por Butler das peças de Sófocles – a filósofa
também lê o conto de Édipo em Colono, em mais um momento de desmontagem do
ordenamento social implicado sócio-historicamente. Aqui, Castro demonstra como Butler,
partindo das leituras de Hegel e Lacan sobre Antígona, faz uma “desconstrução da família
mononuclear, formada por pai, mãe e filhos” (CASTRO, 2013, p. 47), conferindo a este núcleo
uma dimensão performativa.
De modo geral, cinco produções elencadas e voltadas à compreensão da obra de Judith
Butler por um viés pedagógico dão cara ao Dossiê de número 185, ao que denominamos
enquanto uma produção de caráter teórico-introdutório. Esta “categoria” de Dossiê pode
apresentar uma interconexão de perspectivas que aludem à uma teoria explicando-a, ao
introduzir seus conceitos, fundamentos e bases de formulação a nível histórico e social, muitas
das vezes; assim como pode também elencar exposições de uma vertente específica do
conhecimento que traz, quase sempre à baila, figuras intelectuais consideradas fundamentais ao
pensamento contemporâneo.
Ambas as situações demonstram um esforço de construção de um pensamento próprio
da/na revista, tanto por seus fundamentos editoriais quanto por suas escolhas em demonstrar
uma produção específica do conhecimento. A dimensão ensaística, neste caso, a cargo das mais
variadas experimentações em relação à obra de Buetler em inserção (à época) no contexto
brasileiro visa dar conta de aspectos fundamentais de sua obra lidando com uma dimensão
puramente teórica e histórica da construção e consolidação de suas bases, e tangenciando, ainda
que de maneira breve, outras dimensões que não unicamente teóricas.
A perspectiva crítica é exposta sob a ótica dos intelectuais que produzem e realizam
suas cogitações para o material. São figuras já bastante conhecidas do contexto da revista e
estão alinhados às conformidades editoriais que dão cara à CULT ou a um pensamento mais à
esquerda. Tal proposta fica bastante clara diante da figura da editora do material, responsável
por ter com as demais autoras e autores sobre o desenvolvimento das proposições e que precisa

85
levar em consideração certas lógicas da própria revista, não estando o Dossiê deslocado ou
descolado de seus interesses editoriais primordiais.
No caso deste Dossiê específico, encontramos uma espécie de viagem formativa, muito
designada pela sequenciação realizada por Louro sobre o conceito de gênero; a apresentação
do percurso teórico que alude à teorização do conceito de performatividade realizado por Butler
em Austin e Derrida, no texto de Joana Plaza Pinto; recaindo no aspecto político da “coisa em
si” na vida, tal como realiza Leticia Sabsay; chegando à (re)leitura de um fundamento da própria
vida, como no caso das tragédias gregas Antígona e Édipo, de Sófocles, uma espécie de
reestruturação das bases mitológicas como caminho para (ree)existências, realizado por Butler.
Dos ensaios há ainda uma entrevista com Judith Butler realizada por Carla Rodrigues e
traduzida por Cadu Ortolan. Nesta que carrega o título “A filósofa que rejeita classificações”,
Rodrigues propõe explicitar o diálogo entre a obra de Butler com as de Hegel, Derrida,
Foucault, Lacan e Beauvoir. Além disso, busca empreender à própria autora respostas para
reflexões do campo da linguagem, o feminismo e problemáticas no campo da medicina, como
o caso envolvendo a mudança no DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual, Manual
diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) em relação à patologização do chamado
transtorno de gênero são entendidos pela fonte direta.
Do que concerne aos ensaios “Uma sequência de atos” (p. 31-34) e “O percurso da
performatividade” (35-37) ficam marcadas as sucessões e caminhos pelos quais a teoria
butleriana é apresentada pelas autoras Guacira Lopes Louro e Joana Plaza Pinto,
respectivamente.

1.2. Queer em trânsito: um conceito em evidência

“A reflexão contra a normatização torna-se uma questão política


contemporânea e denuncia umas das faces mais perversas do
capitalismo: a do controle da singularidade dos corpos”
(Chamada de capa, edição #193)

A primeira consideração a respeito do Dossiê 193 (ano 17, de agosto de 2014, 66


páginas) diz da proposta de ser o primeiro material publicado por uma revista não acadêmica
sobre o que no Dossiê denominam a Teoria queer. Em editorial, Daysi Bregantini diz o
seguinte: “Apresentamos, depois de tantas dificuldades, o primeiro dossiê queer do Brasil – e
talvez do mundo – publicado por uma revista não acadêmica. Foi preparado com rigor e muito,

86
muito respeito. Nosso interesse é o de aproximar a Teoria queer de nossos leitores porque a
consideramos fundamental e obrigatório” (p. 3).

Figura 41 – Edição 193 (agosto de 2014) – Dossiê Teoria Queer.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Ainda que se reconheça o primeiro Dossiê de número #185, o material em questão


poderia consistir no momento em que a discussão, um pouco mais amadurecida que antes, passa
a transitar para fora dos contextos puramente teóricos da “Teoria queer”, como diz o Dossiê. É
importante reproduzir, aqui, posicionamento do professor Leandro Colling (2018, p. 516) em
artigo publicado no livro História do movimento LGBT no Brasil em que, numa nota de rodapé,
diz o seguinte:

Tenho preferido a expressão estudos queer e não teoria queer porque essa
última dá a ideia de que existe uma teoria fechada em torno de determinados
temas, o que não ocorrer com o queer. A expressão queer, no plural, pelo
contrário, deixa o campo mais aberto para evidenciar e pensar as grandes
diferenças existentes entre as pessoas estudiosas.

Importante notar, neste primeiro momento, que Colling (IHAC/UFBA), é um articulador


recorrente nos Dossiês CULT, editor dos Dossiês presente nas edições #202 e #226 da CULT.

Editado por Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro


(UFRJ), a edição 193, em seu Dossiê, propõe mostrar a amplitude do tema “Teoria queer”.
Diferentemente do Dossiê 185, não é possível identificar a autoria do texto que introduz as
87
questões trabalhadas no material (ainda seja quase natural que o editor do material realize esse
movimento) cujo argumento central para produção está nele contido, além do modo como o
ordenamento relacional dos textos é apresentado. Tal ausência de autoria não é exclusiva, mas
bastante característica de alguns Dossiês temáticos.

Este dossiê temático reúne três artigos e duas entrevistas com pensadores
identificados com a Teoria queer, a fim de mostrar sua amplitude – o queer
atravessa áreas de saberes como a sociologia, a filosofia, a história, a
antropologia e a comunicação -, sua relevância política e sua importância
contemporânea ao afirmar o corpo como objeto de regulações e campo de
disputa. Suas origens estão nos movimentos libertários dos anos 1970, como
conta o sociólogo Richard Miskolci em um artigo cujo conteúdo histórico se
mistura a uma arguta análise crítica. [...]
[...] o artigo de Berenice Bento discute dois pontos essenciais para o
dossiê. Primeiro, a dificuldade de tradução do termo queer. Seu uso em inglês
apontaria para uma subordinação aos teóricos norte-americanos, o que
contradiz a ideia de um pensamento contra-hegemônico. [...] O segundo ponto
notável de seu artigo é o debate sobre pessoas trans, aquelas cujos corpos
interrogam a naturalização dos gêneros imposta a partir da existência de uma
determinada genitália.
Encerra o dossiê texto de Karla Bessa, ao recuperar nos estudos fílmicos
imagens que interrogam a sexualidade além dos modelos tradicionais do amor
romântico, heterossexual, monogâmico e conjugal. Nas telas e nos textos, o
espírito transgressor da Teoria queer (p. 32).

Este é também um caso de Dossiê teórico-introdutório uma vez que apresenta uma
interconexão de perspectivas que aludem a uma teoria explicando-a, ao introduzir seus
conceitos, fundamentos e bases de formulação histórica e social. Aqui, outra característica deste
tipo de Dossiê se sobressai: o Dossiê como mecanismo pedagógico. Tal aparecimento se dá
pela observação de que neste material não há uma figura central cuja teorização se ancora como
foi o caso de Judith Butler no Dossiê #185. Os esforços não estão concentrados em compreender
um conjunto de formulações específicas de uma pensadora, mas do caráter geral dos estudos
queer (no Dossiê denominado Teoria) nos âmbitos educacional, civil, histórico e teórico.
Colaboram para o Dossiê Richard Miskolci, Carla Rodrigues, Berenice Bento e Karla
Bessa com as respectivas produções: “Crítica à hegemonia heterossexual” (p. 33-35), “Queer
o quê? Ativismo e estudos transviados” (p. 42-46), “A Teoria queer e os desafios às molduras
do olhar” (p. 48-54). Há, além das produções listadas, uma entrevista com a professora Guacira
Lopes Louro, realizada por Carla Rodrigues (p. 36-37), com a pesquisadora Leticia Sabsay (p.
38-41) realizada por Andrea Lacombe e Emma Song; com a fotógrafa Laurence Philomène (p.
47) realizada por Pedro Camargo e com a cartunista e chargista Laerte Coutinho, realizada pela

88
redação (com publicação de um cartum da artista). Apresentamos um quadro com seus
respectivos autores, atribuições e instituições conforme descritas no próprio Dossiê.

DOSSIÊ TEORIA QUEER: O GÊNERO SEXUAL EM DISCUSSÃO


TABELA DE COLABORADORES

Título do texto Autora/Autor Atribuição Instituição

Crítica à hegemonia Richard UFSCAR


heterossexual Miskolci

O potencial político da Teoria Carla Editora do material UFRJ


queer Rodrigues

Des-heterossexualizar a Andrea Pesquisadora do Núcleo de Unicamp


cidadania é ainda uma frente Lacombe Estudos de Gênero – Pagu
de batalha (Unicamp)

Des-heterossexualizar a Emma Song Ativista e feminista pró-sexo


cidadania é ainda uma frente
de batalha

Queer o quê? Ativismo e Berenice Bento UFRN


estudos transviados

Delicadeza transviada Pedro Assistente de arte


Camargo

A Teoria queer e os desafios às Karla Bessa Universidade


molduras do olhar King's College

Vestidos de Laerte Da redação Cartunista e chargista

Assim como explicitado no texto que amarra as questões trabalhadas em Dossiê,


Richard Miskolci escreve “Crítica à hegemonia heterossexual” realizando um movimento de
historicização da Teoria queer, tanto no âmbito educacional-acadêmico quanto no da sociedade
civil e dos movimentos sociais, operacionalizando tais áreas como dispositivos numa
contextualização que demonstra as origens e os processos de teorização, complexificação e
apreensão temática. Dirá Miskolci (2014, p. 34): “A recepção brasileira da Teoria queer se deu
– desde o início – articulada às nossas necessidades e problemáticas buscando incorporá-la em
práticas sociais”. O autor faz um diagnóstico da disseminação dos conhecimentos envolvendo
a Teoria queer a fim de demonstrar sua capilarização (reconhecimentos).
O tema da educação é fio condutor da entrevista realizada por Carla Rodrigues com
Guacira Lopes Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
89
tida como uma das precursoras dos estudos queer no Brasil, difusora do pensamento de Judith
Butler no país, em especial nesse campo23. Sob o título “O potencial político da Teoria queer”,
além de nos apresentar a figura de Louro enquanto profissional da educação, identificamos os
primeiros ecos da edição #185, a primeira na linha temporal da revista a tratar de temas
relacionados (a problemática do gênero junto ao tema da sexualidade).
A entrevista se sobressai, também, devido à busca por raízes no tratamento da questão
ao pinçar aspectos como tradução do termo, os motivos de mantê-lo no original, as implicações
dessa escolha no debate e o aspecto político no questionamento da normatividade de gênero.
Autora de um dos textos constituidores do Dossiê #185, Leticia Sabsay, socióloga
especializada em estudos de gênero, professora da Universidade de Londres e integrante do
grupo de pesquisa Vulnerabilidade e Resistência, dirigido por Judith Butler, é entrevistada pela
dupla Andrea Lacombe e Emma Song. A abordagem da entrevista gira em torno de temas como
cidadania, políticas afirmativas, trabalhadoras sexuais e a rearticulação da Teoria queer junto a
outros conceitos como descolonização e pós-colonialismo.

O convite da revista CULT para contribuir neste dossiê, levou-me a relembrar


a força que textos de algumas teóricas queer tiveram em minha trajetória. Revi
meus dilemas provocados pela falta de um suporte teórico para minhas
angústias durante a produção de minha tese de doutorado. Naquele momento,
nos inícios dos anos 2000, pouquíssima bibliografia tinha sido traduzida para
o português. Fosse pelo tema da minha pesquisa (transsexualidade) ou pelo
recorte teórico que elegi para interpretá-la (estudos queer), sentia um frio na
barriga quando pensava que teria que enfrentar uma banca no meu Programa
de Pós-Graduação em Sociologia. Quando me perguntavam sobre o tema de
minha pesquisa e eu dizia do que se tratava, eu escutava geralmente, um
"hmmm…, mas você não está fazendo uma tese de Psicologia?". A mesma
estranheza era notável quando eu tentava explicar os meus aportes teóricos:
"Queer?! O que é isto?". Talvez um dos maiores dramas dos trabalhos
considerados pioneiros seja a falta de espaços mais consolidados para os
diálogos, dimensão fundamental para a produção científica.

Muitos podem identificar o texto de Bento como um ensaio logo num primeiro
momento, pela forma mais testemunhal, do aparecimento do Eu-narrativo de forma mais
explícita, apesar de entendermos que o ensaio está além desta condição.

23
Leandro Colling, em texto Impactos e/ou sintonias dos estudos queer no movimento LGBT do Brasil, publicado
no livro “História do movimento LGBT no Brasil”, organizado por James N. Green, Renan Quinalha, Marcio
Caetano e Marisa Fernandes (Alameda, 2018), recupera outros estudos e alarga essa visada que se dá como
controversa.
90
No texto, a autora narra sua trajetória enquanto pesquisadora curiosa e incomodada com
a abordagem das experiências trans na literatura considerada oficial em dissonância com suas
próprias práticas e observações.

Não demorou muito para eu concluir que o problema da literatura ensinada


nas universidades padecia de um problema: os seus formuladores não sabiam
nada, absolutamente nada, dos sujeitos que diziam interpretar. Eram pequenos
fragmentos pinçados das visitas das pessoas trans aos consultórios e que eram
lidos por uma determinada concepção de normalidade de sexualidade e de
gênero (BENTO, 2014, p. 43).

Segue sua discussão introduzindo conceitos, fazendo-os se debater em um profícuo


relato envolvendo patologização, constituição das identidades de gênero, normas de gênero,
tecnologia dos corpos e, novamente, aspectos envolvendo a tradução, seja a necessidade ou não
necessidade, do termo queer e suas implicações políticas e consequentemente práticas na vida
social ainda que, “Depois de quase quinze anos do meu encontro com estes estudos, ainda
escuto com frequência: ‘Queer o que?’”.
Retomando o fluxo de entrevistas, a fotógrafa Laurence Philomène conversa com Pedro
Camargo a respeito de sua estética na fotografia, o envolvimento do seu trabalho com o conceito
de gênero não binário (ainda que em uma entrevista o conceitual aparece mais uma vez) de
modo a contribuir para o pensamento a respeito de tais questões e seu ativismo.
Último texto a compor o Dossiê, “A Teoria queer e os desafios às molduras do olhar”
traz Karla Bessa apresentado um panorama a respeito dos estudos feministas na área da crítica
cinematográfica, desenvolvendo o conceito de análise fílmica interessada na perspectiva queer,
relacionando-a com os estudos feministas e de gênero. O jogo textual se constitui pela ótica da
representação enquanto mecanismo de poder trazendo ao olhar do leitor diferentes tipos de
leitura pelas quais se pauta as análises.
Fechando o Dossiê, há a publicação de um cartum de Laerte Coutinho e que traz como
foco narrativo de sua produção artística a problemática do gênero e da performatividade
utilizando as considerações de Judith Butler. Ao final, é realizada uma entrevista cuja
problemática do gênero retorna de modo particularizado tendo a vida da própria Laerte como
fio condutor.
De modo geral, apesar de grafar “O gênero sexual em discussão” como subtítulo, o
Dossiê não trata o gênero como conceito de primeira ordem, assim como no Dossiê #185, por
exemplo. Aqui, o dispositivo de maior relevância ensaística, além do histórico (e isso pode se
tornar um consenso) é o educacional, ou pedagógico de formação.

91
1.3. Um ensaio transversal: rumo à analítica de contextos

Após as duas primeiras edições com especiais Queer, há publicação de um primeiro


“entre” editorial, que faz a ponte entre a natureza na trajetória dos Dossiês deste eixo central-
temático na/da revista. Trata-se do ensaio escrito por Richard Miskolci, “Uma outra história da
república: amor, ordem e progresso”, na edição de novembro de 2014, fora do Dossiê especial
daquela edição, mas costurando uma trajetória do queer em CULT.

Figura 42 – Edição 196 (novembro de 2014) – Dossiê Culturas Compartilhadas.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

No ensaio, que não está presente em Dossiê específico, Miskolci (2014, p. 53-55)
pontua: “Há uma outra história da nação a ser contada”.
O autor trabalha com um método em que apresenta e introduz conceitos – o de nação,
com Benedict Anderson; o de literatura, com Avery Gordon; desejo, desenvolvido pelo próprio
autor e novos conceitos como o de des-heterossexualização tensionando-os com dados da
realidade prática. Essa mesma estrutura – conceito, desenvolvimento histórico, novos
conceitos, tensionamentos com dados da realidade – vai emergir com maior robustez teórica e
analítica no Dossiê Especial da edição #202.

Somos desentendes desse processo histórico autoritário e injusto que começou


a ser contestado com o retorno à democracia na década de 1980. Conquistas

92
democráticas recentes como as ações afirmativas, ao contrário do que afirmam
seus pálidos críticos, configuram demanda meritória pela dessacralização da
cidadania assim como as demandas LGBT clamam por sua des-
heterossexualização. O desejo da nação tem se libertado de sua amarra secular
que o vinculava ao projeto hegemônico de uma elite que se fantasiava como
branca e heterossexual (MISKOLCI, p. 55).

Todavia, um modo histórico de ensaiar se vê presente, pois retoma constituições e


períodos da República (a história oficial, velha história) e os coloca face àquilo que o autor
chama de outra história, história reprimida.

Se a história oficial tendeu a apagar as resistências aos intuitos da República


Velha, as alternativas tenderam a ignorá-las porque ambas, apesar de tudo o
que as distingue, foram pouco afeitas aos vestígios das experiências que não
costumam ter registro em documentos oficiais. Onde estariam, então, as pistas
desse passado que sobreviveu mais pela memória do que pela história? Nas
lacunas dos arquivos, nos documentos que foram considerados irrelevantes ou
secundários e na literatura da época (MISKOLCI, p. 53).

A temática do ensaio diz respeito às repressões do desejo, à homossexualidade,


branquitude e outras formas de supressão e de hierarquização da sociedade.

93
2. Óticas contextuais: perspectivas analítico-situacionais

2.1. Constante processo de amadurecimento

“A cultura que insiste em não reconhecer e aprender com as


diferenças sexuais e de gênero”
(Chamada de capa, edição #202)

Figura 43 – Edição 202 (junho de 2015) – Dossiê Ditadura Heteronormativa.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Editado pelo professor Leandro Colling, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências


da Universidade Federal da Bahia (IHAC/UFBA), o Dossiê 202 (ano 18, de junho de 2015, 66
páginas) traz como proposta “pensar como os preconceitos para com as sexualidades e gêneros
dissidentes impactaram e ainda impactam o desenvolvimento cultural da nossa sociedade”
(COLLING, 2015, p. 22).
O Dossiê marca também um importante momento para a CULT – seus 18 anos de
história. Em importante editorial, Daysi Bregantini (2015, p. 6) refirma o tom da revista e,
principalmente, de seus Dossiês:

[...] Começa que o conteúdo da CULT privilegia o saber científico, sem o


facilitário da abordagem rasa e resumida, recomendada a um público que
supostamente não foi levado a desenvolver gosto especial pela leitura. A
revista é também pautada sem parti pris, está isenta de preconceitos e não
toma cuidados ou estabelece reservas, o que constitui quase uma afronta em
94
um país acostumado a ter sempre os nortes apontados para a defesa de
interesses restritos. Entende-se, assim - e temos aí outra dificuldade -, por que
a CULT carece de anunciantes. Suas causas, à esquerda, definitivamente, não
interessam ao mainstream.

[...] Talvez um dos bons frutos dessa longevidade seja mostrar, a quem for
necessário, que existe um público interessado em conhecimento formal e em
pesquisa acadêmica realizados dentro das boas universidades deste país. DNA
desta publicação, os dossiês são decididos e preparados com meses de
antecedência, porque partem de uma apuração rigorosa e se completam com
a elaboração esmerada dos textos finais. São pensados e editados por
especialistas que dedicam a vida ao conhecimento. A fórmula é conhecida e
aprovada pelos leitores, que demonstram seu apoio ao nosso critério editorial
assinando ou comprando a revista, muitas vezes para usá-la em suas próprias
pesquisas [...].

Colaboram na produção do material Leandro Colling, Denilson Lopes, Berenice Bento,


André S. Musskopf e Rogério Diniz Junqueira, com os respectivos textos “O que perdemos
com os preconceitos” (p. 22-25), “De volta à festa” (p. 26-29), “Verônica Bolina e o
transfeminicídio no Brasil” (p. 30-33), “Por mais viadagens teológicas” (p. 35-37) e “Pedagogia
do armário” (p. 38-41).

DOSSIÊ DITADURA HETERONORMATIVA – TABELA DE COLABORADORES

Título do texto Autora/Autor Atribuição Instituição

O que perdemos com os Leandro Colling professor, coordenador do Núcleo de UFBA


preconceitos? Pesquisa e Extensão em Culturas,
Gêneros e Sexualidades (NuCuS)

De volta à festa Denilson Lopes professor de Comunicação UFRJ

Verônica Bolina e o Berenice Bento professora de Ciências Sociais UFRN


transfeminicídio no
Brasil

Por mais viadagens André S. professor de Teologia Faculdade


teológicas Musskopf EST

Pedagogia do armário Rogério Diniz pesquisador INEP


Junqueira

Sob a função de editor do material, o professor Leandro Colling escreve “O que


perdemos com os preconceitos?”, texto que abre o Dossiê, agrupa seus pressupostos, além de
ser espaço onde trabalha, de maneira um tanto quanto detalhada, três conceitos fundamentais
para a ideia que rege o Dossiê.
95
Como e em que medida esses procedimentos [os preconceitos] impedem o
nosso desenvolvimento cultural? Como é possível perceber isso em diversas
áreas? O que perdemos ao recusar o aprendizado possível com as diversidades
e dissidências sexuais e de gênero existentes ao nosso redor? Que
colaborações essas diversidades e dissidências oferecem para pensarmos, de
forma mais ampla, a nossa cultura?
Tendo essas perguntas em mente, convidamos quatro pessoas com
reconhecida produção na área para escrever os textos que integram este dossiê.
Denilson Lopes escreveu sobre a recente produção cinematográfica brasileira
e de como, através dos afetos, encontros e de outros laços, é possível aprender
sobre o que as pessoas preconceituosas perdem em suas vidas, a exemplo de
outras formas de estamos juntos, outros encontros e outras subjetividades.
Berenice Bento, a partir do caso da travesti Verônica Bolina, defende
que a transfobia, além de matar, nos revela sobre as mortes pelas quais nós
choramos e propõe a tipificação do crime de transfeminicídio em diálogo com
os elementos estruturantes do feminicídio. Mostra também como exigimos
que todas as pessoas sigam plenamente uma suposta coerência entre genitália
(sexo) e gênero.
Enquanto isso, André Musskopf reflete sobre religião de uma forma
diferente a que temos visto nos últimos tempos. Em dez de se concentrar em
críticas aos fundamentalistas, ele propõe uma teologia indecente a partir de
experiências que já existem, analisadas e descritas em seu livro Via(da)gens
teológicas. Por fim, Rogério Junqueira disseca a escola, essa fábrica produtora
de uma cultura que insiste em não reconhecer e aprender com as diferenças
(COLLING, 2015, p. 22).

Delineada e traçadas as perspectivas, Colling começa a orientar nossa caminhada até os


limites do conceito de homofobia apresentando o argumento que sustenta o material:

Neste dossiê, os preconceitos em torno da diversidade sexual e de gênero serão


escrutinados para além do conceito de homofobia, que não dá conta de
entender as especificidades da lesbo-transfobia e de como opera a
heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade. Homofobia é um
conceito criado para pensar a repulsa geral às pessoas homossexuais, ou fobia
aos homossexuais (COLLING, 2015, p. 22).

Com o estabelecimento da crítica que visa ultrapassar a problemática da insuficiência


conceitual do termo homofobia, o autor trata de inserir outras elaborações também de ordem
teórica ao construir bases para sua compreensão – no caso a heterossexualidade compulsória e
a heteronormatividade.
Vera Lins (2006, p. 271) diz que “o ensaio trabalha com conceitos”, e que estes “vão se
articulando na linguagem, à medida em que o ensaio avança” (p. 273). Estas considerações
aproximam o ensaio, como frisa Lins, ao que György Lukács (2018) chama de poema
intelectual. Assim, o autor inicia seu percurso. Para tratar do conceito de homofobia, parte da
leitura do livro Homofobia lançado em 2010, por Daniel Borrillo, que tenciona investigar, entre
outras problemáticas, as origens do termo Homofobia identificado, segundo Colling, leitor de
96
Borrillo, na ocasião da publicação de um artigo, em 1971, por K. T. Smith que “tentou analisar
as características de uma personalidade homofóbica” (p. 23).
Traz, ainda dentro das leituras que realiza do livro de Borrillo, outra definição para
homofobia, como “temor de estar com um homossexual em um espaço fechado e, no que
concerne aos homossexuais, o ódio até a si mesmos”, inicialmente proposta por G. Weinberg
(p. 25). Com isso, o autor finaliza explicando os usos gerais do termo, utilizado para “descrever
qualquer atitude e/ou comportamento de repulsa, medo ou preconceito contra os homossexuais”
(p. 23). Nesse momento, passa à problematização: diz a homofobia não se restringir às
violências físicas, mas também simbólicas assim como também não se restringe apenas a
ataques direcionados às pessoas homossexuais, mas também “os heterossexuais que,
porventura, pareçam aos olhos homofóbicos como homossexuais” (p. 23)
Apresenta a questão de modo simplificado, ainda que embasado, e mostra como a
homofobia pode atingir qualquer indivíduo lido enquanto homossexual. Há uma primeira
tentativa de aberta do espectro conceitual ou de rachadura conceitual cujo entendimento ele
planeja fazer retroceder transformando a homofobia em uma coisa menor em si (é insuficiente)
ao buscar por uma inflexão que “muda os rumos da conversa”, pois elenca o seguinte:

O conceito de homofobia é controverso e, ainda que muitas pessoas defendam


o seu uso, em função dele já ter sido incorporado por boa parte da sociedade,
ou que o ampliem para além de aspectos de ordem psicológica, como faz
Rogério Junqueira Diniz, no artigo Homofobia: limites e possibilidades de um
conceito em meio a disputas, publicado na revista Bagoas, a ideia de fobia
está, queiramos ou não, dentro do campo das patologias. Enquanto isso,
sabemos que aprendemos no dia a dia quem deve ser respeitado e quem pode
ser injuriado, portanto, não estamos falando de uma patologia em sentido
estrito/inato, mas de um problema social/cultural (COLLING, 2015, p. 23).

A passagem acima é significativa pois nela o autor realiza o primeiro movimento de


desarticulação objeto-conceito do termo homofobia tratando-o não como uma questão
ontológica ligada às existências homossexuais, mas como um problema cognoscível e
relacional, uma vez que o estigma – o patológico, não é inato ao Ser existente e, portanto,
enfrenta problemas de ordem conceitual.
Essa situação é reiterada quando Colling trata também do agrupamento dos radicais
homo (semelhante) + fobia (medo) na decodificação do termo pela gramática.

[...] para nós, “homo” significa homossexual e, por isso, o conceito de


homofobia fica reduzido a uma identidade, isto é, aos homossexuais
masculinos, e invisibiliza a multiplicidade de outros sujeitos e identidades.

97
Isso faz surgir novos conceitos, tais como lesbofobia, bifobia, travestifobia,
transfobia (COLLING, 2015, p. 23).

Decorre disso o principal problema envolvendo o conceito de homofobia para o texto,


ou seja, seu caráter insuficiente, por meio de uma inflexão que descortina outra abertura,
também de ordem conceitual, a respeito das existências não contempladas até então (ou
contempladas de maneiras patológicas, visto que esse entendimento também se dá mediante
uma construção conceitual acerca desta possibilidade de existência, os corpos “abjetos”,
conforme Judith Butler).
Há, então, um segundo momento no texto em que o autor recorre ao oposto de uma
curvatura teórica seguindo à construção de uma outra compreensão passando a tratar dos
conceitos de heterossexualidade compulsória e heteronormatividade.
Numa invertida, ele problematiza o existente (Ser) de modo a exortá-lo não como mero
comportamento “padrão” da sociedade, no caso da heterossexualidade compulsória, mas
elencada à uma problemática política e sócio-organizacional, ligado à heteronormatividade,
para a construir os pilares desse outro modo (mais justo) de encarar a questão da repressão e
violência heteronormativa, tema central do Dossiê.
Diferentemente do primeiro caso, em que demonstrou uma insuficiência do conceito de
homofobia, neste ponto Colling não trabalha de modo a desconstruir parâmetros e usos, mas de
modo a inscrevê-los em uma espécie de vocabulário gnoseológico para leitura social
necessários a um contrafluxo de ordenamento teórico-prático.
Ao falar da heterossexualidade compulsória, o autor parte de três textos publicados na
década de 80 que auxiliam na percepção de um modus operandi heterossexual estruturado.
De autoria de Adrienne Rich, o texto Heterossexualidade compulsória e a existência
lésbica aborda, conforme lê Colling, a falácia do casamento e da orientação sexual, voltadas
para os homens, tidas como coisas inevitáveis, e tendo como doutrinas ideológicas o romance
heterossexual, os contos de fadas, os programas de TV e o cinema. Isso denomina o que a autora
chama, conforme Colling, de mecanismos de propaganda coercitivas da heterossexualidade em
relação às experiências lésbicas.
Os demais textos abordados pelo autor, O pensamento heterossexual e Não se nasce
mulher, de Monique Wittig, auxiliam na afirmativa feita por Colling de que, para Wittig, que
pensa a heterossexualidade também em relação às lésbicas, “o que constitui uma mulher é uma
relação social específica com um homem, chamada por ela de servidão ou até escravidão, que
implica várias obrigações (trabalho doméstico, deveres conjugais, e produção ilimitada de

98
filhos) que dariam sustentação à sociedade heterossexual” (COLLING, 2015, p. 24), ou seja, e
ainda conforme a leitura de Colling sobre a produção de Wittig, “a heterossexualidade não é
uma orientação sexual, mas um regime político que se baseia na submissão e na apropriação
das mulheres” (COLLING, 2015, p. 24).
Das considerações acerca das duas passagens o autor conceitua a heterossexualidade
compulsória como algo que

na exigência de que todos os sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta


como única forma considerada normal de vivência da sexualidade. Essa ordem
social/sexual se estrutura através do dualismo heterossexualidade versus
homossexualidade, sendo que a heterossexualidade é naturalizada e se torna
compulsória. Isso ocorre, por exemplo, quando buscamos as causas da
homossexualidade, de um fetiche vigente ainda hoje inclusive entre militantes
e pesquisadores que se dizem pró-LGBT. Ao tentar identificar o que torna
uma pessoa homossexual, colocamos a heterossexualidade como padrão,
como um princípio da vida humana, do qual, por algum movimento, alguns se
desviam (COLLING, 2015, p. 24).

Parte daí um segundo e importante movimento relacionado aos conceitos trabalhados


neste momento do texto. A questão que se apresenta não é a busca do grau zero para a
homossexualidade, que inversamente produz um sentido “natural” para a heterossexualidade
uma vez que nunca houvera a necessidade de se realizar tal inflexão a respeito do conceito –
nunca houvera patologias heterossexuais. Tal ação se realiza por meio da elaboração de um
mecanismo (contra)conceitual direcionado aos limites ontológicos da heterossexualidade que
retira seu status de prática natural e inata de todo e qualquer Ser existente.

Para não incorrer nesse erro conceitual e político, teríamos que substituir a
questão de uma causa da sexualidade para problematizar que mecanismos
tornam alguns sujeitos aceitáveis, normalizados, coerentes, inteligíveis e
outros desajustados, abjetos. Sairíamos de uma busca pela causa para uma
problematização dos mecanismos de produção das abjeções (COLLING,
2015, p. 24).

E continua Colling (2015, p. 24)

A partir de então, heterossexualidade e homossexualidade são consideradas


formas possíveis de vivência da sexualidade, ao menos em tese, em muitos
lugares do planeta (mas não em todos). Mesmo que a “ciência” tenha retirado
a homossexualidade (e mantido a transsexualidade) na lista das doenças, no
senso comum as pessoas ainda acreditam que ser normal e sadio é ser hétero.
Além disso, algumas concepções “científicas” partem ainda da
heterossexualidade como natureza humana e se apoiam no dualismo hétero
versus homo.

99
Por último, o autor trabalha o conceito de heteronormatividade. A partir da leitura de
Michel Warner, criador do conceito, este “busca dar conta de uma nova ordem social”, isto é,
diz de uma operacionalização da vida que pretende organizá-la conforme “o modelo
‘supostamente coerente’ da heterossexualidade” (p. 24), nos diz Colling. Neste momento traz à
tona a dimensão política do conceito, tanto no que concerne à heterossexualidade compulsória,
em relação às práticas sexuais e, agora, à heteronormatividade, que vai dizer de uma coerção
político-social.

Enquanto na heterossexualidade compulsória todas as pessoas devem ser


heterossexuais para serem consideradas normais, na heteronormatividade
todas devem organizar suas vidas conforme o modelo heterossexual, tenham
elas práticas sexuais heterossexuais ou não. Com isso entendemos que a
heterossexualidade não é apenas uma orientação sexual, mas um modelo
político que organiza as nossas vias.
Se na heterossexualidade compulsória todas as pessoas que não são
heterossexuais são consideradas doentes e precisam ser explicadas, estudadas
e tratadas, na heteronormatividade elas tornam--se coerentes desde que se
identifiquem com a heterossexualidade como modelo, isto é, mantenham a
linearidade entre sexo e gênero: as pessoas com genitália masculina devem se
comportar como machos, másculos, e as com genitália feminina devem ser
femininas, delicadas.
Enquanto a heterossexualidade compulsória se sustenta na crença de
que a heterossexualidade é um padrão da natureza, a heteronormatividade
advoga que ter um pênis significa ser obrigatoriamente masculino, isto é, o
gênero faz parte ou depende da “natureza”; existe uma relação mimética do
gênero com a materialidade do corpo (COLLING, 2015, p. 24-25).

De maneira geral, o texto recorre a conceitos de modo a destituí-los, no caso da


homofobia, e instituindo novos (vocabulários) no caso da heterossexualidade compulsória e da
heteronormatividade, dotando-os de certo peso.
Fica a cargo dos demais textos que compõem o Dossiê uma acepção prática do que
Colling trabalha em sua abertura, pois estes serão norteados por tais inferências e conceitos,
contribuindo para a ideia geral, ainda que trazendo de modo premente suas
percepções/vivências pessoais voltadas a linhas específicas de trabalho. O autor finaliza
dizendo: “Os impactos disso tudo em nossa cultura são muito bem analisados nos textos que
integram este dossiê” (COLLING, 2015, p. 25).

O primeiro texto que compõe o conjunto Dossiê da edição #202, “De volta à festa:
filmes da nova safra do cinema brasileiro trazem história de possibilidades de outros futuros e
outras formas de estar junto”, da autoria de Denilson Lopes, de modo geral, traz um apanhado
de filmes nacionais – 11, no total – que trata do tema das sexualidades e da diversidade de
100
gênero sob análise. Ancorada discussão no tema central do Dossiê, o autor apresenta uma
proposta ligada ao universo dos filmes, pois estaria em voga

[...] toda uma geração de jovens cineastas, vários deles sem terem ainda
realizado longas, para quem um olhar queer, para além das formas normativas
das hétero e das homossexualidades, poderia trazer uma forma distinta de
compreensão sobre as sexualidades. Esta é a minha aposta neste artigo
(LOPES, 2015, p. 26).

O que perdemos com os preconceitos? A pergunta abre o texto de Leandro Colling,


texto-base, texto-argumento do Dossiê, que estabelece uma crítica pela insuficiência conceitual
de um termo tão difundido socialmente. Visa com isso propor um diálogo a respeito e a partir
de uma questão: o que perdemos negando as diferenças sexuais e de gênero? De Denilson Lopes
temos a primeira camada do conjunto, da conversa, ensaio-resposta à pergunta central no
Dossiê.
Em uma espécie de narrativa pedagogia, o autor demonstra acreditar na potência fílmica
como recurso narrativo que apela às emoções para limar os cercamentos sociais de expressão
de indivíduos em relação aos campos da sexualidade e do gênero. Utiliza disso como dispositivo
ensaístico, pois recorre a estas estórias-filme para levar adiante seu ponto: o que pode um
encontro? De corpos, dos espaços e dos tempos das narrativas em tela, mas também de vidas,
de pensamentos e de ideias.
O Eu, ferramenta e componente do ensaio (é conveniente que o ensaísta ensaie a si
mesmo, foi o que nos disse Starobinski) aparece como expressão historicizante do autor quando
este nos conta ter ido à turma “OK”, “lugar de encontros, performances, diversas disputas e de
histórias a serem contadas e atualizadas” (p. 28-29), no centro do Rio de Janeiro. Aqui, na
expressão da pretensa ideia, temos que

Talvez essa seja a grande potência desses filmes e talvez essa multiplicação
de sensações e outras formas de estar no mundo sejam algumas das coisas que
nós perdemos com os diversos preconceitos que rondam as sexualidades.
(BENTO, 2015, p. 29)

Em “Verônica Bolina e o transfeminicídio no Brasil: agredida pela polícia, seu rosto


desfigurado tornou-se a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de
gêneros”, Berenice Bento traz, novamente o Eu, mas de modo mais premente: a tencionar a
expansão duma visão primária e pessoal da violência acometida por Bento do acontecimento
para um âmbito de análise mais ampla. “Depois que vi a foto de Verônica Bolina, fui invadida
por uma sensação de tristeza sem nome” (p. 30), diz a autora.
101
Com isso escancara seu dever cívico, lembrando novamente formulação de Starobinski
(2018, p. 21) sobre o que estaria em jogo para Montaigne em seus ensaios “não é a verdade do
autorretrato: é a obrigação cívica e um dever de humanidade”.
Logo no começo do texto, escreve Bento (2015, p. 30)

Uma mulher negra, com seios expostos, o rosto completamente deformado


por agressões de policiais, cabelos cortados, estirada no chão. Essa cena
aconteceu dentro de uma delegacia, portanto, eram os operadores das normais
legais os responsáveis pelo desejo, encarnado em cada hematoma no corpo de
Verônica, de matá-la.

É a textualidade do horror em linguagem trágica, da sensação dilacerante que toma conta


de Berenice Bento. A supressão do corpo transgressor que ultrapassa os limites modernos do
corpo e que nos transporta à uma situação limite, faz emergir um texto-limite com expressão
de linguagem que necessita ir além pelo cogitare, reflexão, é também potencial de corporeidade
da ideia.

[...] Com isso, a sociedade perde vidas e deixa de aprender sobre relações de
gênero, o lugar reservado ao feminino, e sobre como opera a exigência de uma
suposta compatibilidade entre genitália e gênero de uma pessoa, fruto de um
determinismo biológico que se manifesta de diversas formas. [...] Este ensaio
é apenas uma tentativa anêmica de entender a violência que justifica
diariamente a existência de Verônicas nas prisões, nas escolas, nas ruas. É das
relações sociais mais difusas que o Estado retira sua legitimidade para matar
as pessoas trans (BENTO, 2015, p. 30).

Da denúncia envolvendo o corpo que não importa, abjeto, termo já mencionado


anteriormente em Dossiês do tema, importa dar forma-texto ao horror, nomeá-lo, encará-lo no
transcorrer. A produção do ensaio se torna dever ético, pois, lembremos: Berenice Bento, à
época da publicação, era professora de Ciências Sociais da Universidade do Rio Grande do
Norte (UFRN) e escreveu livros – como o que resultou da sua tese de doutoramento – sobre a
temática da sexualidade e do gênero na experiência trans. Atualmente é professora do
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Como em outros momentos do Dossiê, Bento também trabalha o âmbito conceitual do
acontecimento. Aqui propõe dar nome legítimo ao crime envolvendo Verônica Bolina, ainda
que em seu caminhar, como ela mesmo diz, seu texto, seja uma tentativa anêmica (p. 30)

Sugiro nomear esse tipo de assassinato como transfeminicídio, reforçando que


a motivação da violência advém do gênero. O conceito de feminicídio foi
usado pela primeira vez para significar os assassinatos sistemáticos de
102
mulheres mexicanas. Seguindo uma tendência legal internacional, o Brasil
aprovou uma lei que define os assassinatos motivados por questões de gênero
como feminicídio. Ao acrescentar o “trans”, por um lado reafirmo que a
natureza da violência contra as pessoas trans é da ordem do gênero conforme
discutirei, e por outro lado, reconheço que há singularidades nos crimes contra
essa população, principalmente os que vitimam fatalmente as mulheres trans
(BENTO, 2015, p. 30-31).

Ao historicizar o processo pelo qual retém a possibilidade de nomear o tipo de violência,


caracteriza o termo/conceito: “O transfeminicídio se caracteriza como uma política
disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada
pela negação de humanidade às suas existências” (BENTO, 2015, p. 31).
Assim como Colling e Lopes (e assim como fez Tiburi e todas as demais figuras que
trabalharam na produção dos Dossiês #185), Bento reivindica o trato conceitual (no caso de
Bento, referindo-se ao acontecimento) em tensão com o conceito insuficiente de homofobia,
demonstrando, mais uma vez, e ainda que de modo fatídico, a necessidade pela bela busca de
uma compreensão mais ampla da realidade.

[...] no âmbito conceitual [travestis e pessoas trans] são consideradas como


vítimas de homofobia. Acredito, ao contrário, que as mortes das mulheres
trans são uma expressão hiperbólica do lugar do feminino em nossa sociedade.
A identidade de gênero, pela qual a pessoa lutou e perdeu a vida, lhe é retirada
no momento de se notificar ou contabilizar a morte. Toda a biografia de
resistência e de agência da pessoa trans assassinada é apagada quando se
devolve o corpo aos braços do determinismo biológico. E assim, é comum
escutarmos: “Um” travesti morreu, vítima de homofobia (BENTO, 2015, p.
31).

Há, ainda, um segundo momento no texto. Neste Bento realiza um manejo


argumentativo dando-lhe um segundo impulso. Dirá que “se o feminino representa aquilo que
é desvalorizado socialmente, quando esse feminino é encarnado em corpos que nasceram com
pênis, há uma ruptura inaceitável com as normas de gênero” (BENTO, 2015, p. 31), apresentado
mais uma vez, e de modo bastante conciso, toda a problemática envolvendo o Dossiê. “Quando
há essa ruptura, nos deparamos com a falta de aparatos conceituais e linguísticos que deem
sentido à existência das pessoas trans”, o que a faz concluir que, para além da abjeção do corpo
transgressor, existir “algo de poluidor e contaminador no feminino (com diversos graus de
exclusão) que precisa ser melhor interpretado” (p. 31).
A liberdade criativa da escrita ensaística permite uma espécie de valsear idílico
excitantemente preciso. A autora condensa processos em linhas. São poucos os parágrafos
necessários para compreender a complexidade da ideia expressa, pois Bento reivindica uma
análise também do ordenado feminino do acontecimento, o que culmina na abordagem do
103
feminicídio na elaboração voltada à cunhagem do termo transfeminicídio. Mas, além de uma
violência contra o corpo abjeto é também uma violência contra aquilo que é lido enquanto
“coisa feminina” (p. 31), num duplo teor de violência.
Fazendo-se ainda mais compreender, elenca seis características estruturantes para o
transfeminicídio, trabalhando também com a categoria de mecanismo (contra)conceitual
denunciando suas funções degradadoras: “Da mesma forma que a sociedade precisa de modelos
exemplares, de heróis, os não-exemplares, os párias, os seres abjetos também são estruturantes
para o modelo de sujeitos que não devem habitar a nação” (p. 33).
E encerra:

Não estou certa de que essas sugestões evitariam as violências sobrepostas (de
raça, gênero e classe social) e o quase óbito de Verônica, mas de uma coisa
estou segura: não é possível o Estado continuar impunemente assassinando,
violando, torturando, amedrontando as pessoas trans sem que haja a
indignação necessária para fazê-lo (p. 33).

Seguindo a rítmica dos textos, André S. Musskopf atual professor da Universidade


Federal de Juiz de Fora (UFJF), no Instituto de Ciências Humanas, departamento de Ciências
da Religião, colabora no Dossiê com o texto “Por mais viadagens teológicas: as religiões se
tornaram um entrave nas discussões e na garantia de direitos no âmbito da diversidade sexual
e de gênero”.
Sua argumentação para produção do texto consiste no seguinte:

Religião é um dado da cultura. Seja qual for a abordagem teórica que se utilize
para refletir sobre ela – inclusive no campo da teologia – não há com pensar
cultura sem pensar na forma como as diferentes expressões religiosas se
materializam como manifestações culturais. O sonho – ou delírio – de um
mundo “sem religião”, ainda quando se admita e respeite o direito à não-crença
religiosa, contradiz a própria ideia de diversidade, inclusive na perspectiva dos
Direitos Humanos assim como hoje são compreendidos e defendidos. O
problema parece estar na suposta impossibilidade de (re)concilicar diversidade
religiosa e diversidade sexual e de gênero.

A temática central das diversidades sexual e de gênero segue embasando a discussão,


agora, atrelado ao tema Religião. César Aira (2018, p. 238) vai dizer que o ensaio sempre tem
dois temas: “para que algo seja ensaio, sempre tem que se tratar disso ou daquilo… e eu. Do
contrário, é ciência ou filosofia”.
Na primeira parte do texto Musskopf apresenta sua questão mais pungente e pretensa à
reflexão que propõe realizar no Dossiê tecendo sua crítica.

104
Seja nas perspectivas identitárias assimilacionistas ou no próprio
aburguesamento do queer na sua versão cult ou fashion, o dogmatismo em
relação à religião talvez seja seu principal ponto de insucesso. Avessos a
qualquer discussão sobre o tema - a menos que seja para denunciar,
justamente, a violência e o sofrimento causados - perdem a oportunidade de
dialogar criticamente e, deus-me-livre, articular-se com as formas de
resistência em seu interior e construir perspectivas libertadoras no campo da
cultura e da religião.

Diferentemente dos demais textos até então observados no Dossiê, neste, o autor não
trabalha um conceito específico, mas explora uma relação advinda de outras investigações
publicadas em seu livro Via(da)gens teológicas (eis aí o Eu), entre a experiência de dissidência
de gênero e sexual com a teologia.
Apresenta, então, uma outra perspectiva a ser observada sobre a problemática
envolvendo o grande tema da diversidade sexual e de gênero, ao que ele dá nome (à relação)
de teologias homossexual, gay, lésbica, queer.

Alguns exemplos nessa linha são J. Michale Clark (Beyond the ghetto, Defying
the darkness), David Comstock (Gay theology without apology), Robert Goss
(Jesus acted up, Queering Christ), Elizabeth Stuart (Gay and lesbian
theologies). Embora não haja necessariamente uma relação direta e seja
possível tecer diversos questionamentos em termos de teologia e organização,
a emergência de grupos cristãos ou igrejas com perspectivas
diversas/dissidentes com relação a questões de gênero e diversidade sexual –
bastante conhecidos como grupos e/ou igrejas “inclusivas” – é também
evidência de perspectivas não hegemônicas no campo da religião
(MUSSKOPF, 2015, p. 36).

O autor tem consciência da provocação que faz e reivindica de quem lê uma apreciação
dessa perspectiva, assim como o fez, ao indicar, na ocasião do Eu, sua procura por “[...] explorar
justamente essa relação partindo da forma como se constroem historicamente o que se tem
chamado de religiosidade e sexualidade brasileiras” (p. 36).
Especificamente este texto, ainda que proponha novas perspectivas, se apresenta de
modo bastante “truncado”, pois trabalha com autorreferenciais, coagindo quem lê a uma menor
liberdade de construção de perspectivas.
Ainda que essa impossibilidade de avanço possa acontecer, Musskopf demonstra o que
a aceitação do convite à uma exploração conjunta do seu tema poderia gerar no debate.

Enfim, uma sociedade sem preconceitos em relação às sexualidades e ao


gênero aliada a uma outra perspectiva analítica em relação às religiões poderia
fazer emergir, com mais intensidade e escala, as práticas religiosas já
existentes que constituem as nossas viadagens teológicas (MUSSKOPF, 2015,
p. 37).
105
O último texto a compor o Dossiê #202 foi escrito por Rogério Diniz Junqueira,
“Pedagogia do armário: a heternormatividade está na ordem dos círculos escolares instaurando
um regime de controle e vigilância da conduta sexual, do gênero e das identidades raciais”.
Envolvendo a temática educacional, Junqueira (2015, p. 38) traz o seguinte.

Nos últimos anos, no Brasil, a escola passou a estar no centro das disputas
políticas em torno da diversidade sexual e de gênero. A sala de aula é um
espaço legítimo para discutir gênero e sexualidade? É importante assegurar
políticas educacionais que promovam a cultura dos direitos humanos e o
reconhecimento das diferenças nessa área? Existe homofobia na escola? Se
sim, ela representa um problema educacional?

Nesta produção o tema da sexualidade e da diversidade sexual, baseada nos conceitos


de heteronormatividade e heterossexualidade compulsória, conjuga-se com o da pedagogia. “A
heteronormatividade está na ordem do currículo escolar e, desse modo, tende a estar presente
em seus espaços, normas, ritos, rotinas, conteúdos e práticas pedagógicas” (JUNQUEIRA,
2015, p. 38).
É este o campo e espaço de tensão que o texto busca fazer dialogar. Como a escola,
instituição normativa e normalizadora, trabalha questões de gênero e sexualidade na afirmação
da heterossexualidade como única possibilidade legítima de expressão sexual e de gênero?
Pergunta que pode surgir.
O texto não propõe observar insuficiências conceituais ou novas bases, e chega mesmo
a trazer de volta o termo homofobia para o páreo.

O termo homofobia é comumente empregado em referência a um conjunto de


emoções negativas em relação a homossexuais. Porém, relacionar a
homofobia apenas a um conjunto de atitudes individuais implica
desconsiderar que as distintas formulações na matriz heterossexual, ao
imporem a heterossexualidade como obrigatória, também controlam o gênero.
Assim, parece mais adequado entender a homofobia como um fenômeno
social relacionado a preconceitos, discriminação e violência voltados a contra
quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem transgressão ou
dissintonia em relação às normas de gênero, à heteronormatividade, à matriz
heterossexual. Seus dispositivos atuam capilarmente em processos
heteronormalizadores de vigilância, controle, classificação, correção,
ajustamento e marginalização com os quais todos se confrontam (p. 39).

Quase destoa da acepção do termo utilizado Colling. Mas, numa justificação, Junqueira
traz, ainda, que

Dizer que a homofobia e o heterossexismo pairam sobre todos não implica


afirmar que afetem indivíduos e grupos de maneira idêntica ou indistinta.
106
Embora a norma diga respeito a todos, e seus dispositivos de controle e
vigilância possam revelar-se implacáveis contra qualquer um, a homofobia
tem alvos preferenciais (p. 39).

Não há um diálogo explícito entre os dois textos, mas é possível identificar diferentes
posturas em relação a compreensão da homofobia, por exemplo. Ainda que Junqueira proponha
também uma espécie de síntese de ordem nominal ao traçar o termo homo-lesbo-transfobia.
No entanto, o grosso da análise está na relação escola e a pedagogia do armário por
meio de uma produção de ordem heterossexista. Traz a leitura de duas autoras, Mary Douglas
(Pureza e perigo) para falar a respeito da produção da marginalização de indivíduos que
destoam da heteronormatividade contribuindo para definição do sujeito “normal” e Eve
Kosofky Sedgwick (A epistemologia do armário), para falar do armário como “processo de
ocultação da posição de dissidente em relação à matriz heterossexual” (p. 40), que mais do que
regular a vida de pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo, submete-as “ao
segredo, ao silêncio [...] ao desprezo público” (p. 40).
Em sua análise faz, então, aplicar este conceito na problemática envolvendo a escola, e
traz outra leitura, agora

[...] nas palavras de Deborah Britzman, a escola, lugar do conhecimento,


mantém-se, em relação à sexualidade, ao gênero e ao corpo, como um lugar
de censura, desconhecimento, ignorância, violência, medo e vergonha. [...] a
pedagogia do armário, ao ensejar o enquadramento, a desumanização, a
marginalização, opera no cerceamento da autonomia (p. 41).

Com isso, chega ao ápice da sua análise a respeito da produção desse mecanismo
cerceador de liberdade. Outra vez, aparece aqui uma construção teórico-conceitual numa defesa
em relação às práticas sociais repressivas, dando nomes a processos institucionais, portanto,
“legais”, de violência, apagamento e exclusão. Faz, portanto, com que ações repressivas, essas
respostas, tenham seu aspecto natural problematizado, destituindo-as e, portanto

É insuficiente denunciar o preconceito e apregoar maior liberdade sem desafia


a normal. Vale investir na desconstrução de processos sociais, políticos e
epistemológicos da pedagogia do armário por meios dos quais alguns
indivíduos são normalizados enquanto outros são marginalizados. Em vez de
buscar um respeito vago, importa desafiar códigos dominantes de
significação, desestabilizar relações de poder, fender hierarquizações,
perturbar classificações e questionar a produção de identidades reificadas,
hierarquizações e segregações (p. 41).

Com isso, produz uma crítica a certos processos somente denunciadores, propondo uma
incrustação pelo cerne das questões, seu mais profundo.

107
2.2. Uma seção transversal: ponte especial entre edições

“Temos que pensar o lugar de corpos movendo-se livremente dentro


de uma democracia”.
(Chamada de capa, edição #185)

Figura 44 – Edição 205 (setembro de 2015) – Especial Queer.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Chegamos ao segundo momento de travessia. Esta edição não é um Dossiê, mas um


Especial em função da realização do “I Seminário Queer” que aconteceu em São Paulo, em
setembro daquele ano (2015), realizado e promovido pela CULT.
Daysi Bregantini (p. 6), em editorial, escreve

Em agosto de 2014, Carla Rodrigues, professora da UFRJ, editou o dossiê “O


gênero sexual em discussão”, e assim a CULT apresentou em uma publicação
não acadêmica, pela primeira vez no país, a teoria queer, que dá sustentação
a estudos ainda pouco difundidos, mas cuja importância nas esferas cultural,
sociopolítica e comportamental é inegável.

E continua, “A cultura queer sai da academia e ganha o centro das atenções na vida
social em caráter mais amplo, embora o verdadeiro protagonista dessa narrativa que vem sendo
construída coletivamente deva ser assumido por cada um de nós”. Daysi Bregantini também
diz sobre a edição: “Inspirada por reflexões vigorosas, essenciais às ideias de justiça social e de

108
direitos humanos, a CULT se sente muito orgulhosa de ter se transformado em uma grande
divulgadora da cultura queer no Brasil” (p. 6).
A despeito das motivações por trás da produção do material em questão, fato é que o
Especial, editorialmente falando, ocupa a maior parte desta edição.
Além disso, a temática do Especial possui ligação direta com as questões discutidas nos
Dossiês #185, #193 e #202 (novembro de 2013, agosto de 2014 e junho de 2015,
respectivamente) sobre a obra de Judith Butler, “O gênero sexual em discussão” e “Ditadura
heteronormativa”, editados por Marcia Tiburi, pela professora Carla Rodrigues e pelo professor
Leandro Colling. Forma-se uma tríade teórica que visa dar conta do conceito de Queer e de
questões fundamentais do seu entorno – a diversidade sexual e de gênero, suas diferenças e a
subversão das identidades, com participação de ensaístas que compõem esse circuito de escrita
e argumentos.
ESPECIAL QUEER

Título do texto Autora/Autor Atribuição Instituição

Entrevista com Marie- Pedro Paulo Professor livre docência de Unifesp


Hélène/Sam Bourcier Gomes Pereira Antropologia

Diversidade ou diferença? Richard Miskolci Professor associado de Sociologia e UFSCAR


coordenador do Quereres – Núcleo
de Pesquisa em Diferenças, Gênero
e Sexualidade

Entrevista com Judith Carla Rodrigues Professora doutora em filosofia e UFRJ


Butler: a perfomatividade vice-coordenadora do laboratório
de gênero e do político Khôra de Filosofia das Alteridades

Judith Butler, condições de Pedro Paulo Professor livre docência de Unifesp


vida e o horizonte do gomes Pereira Antropologia
representável (resenhas)

Da família ao parentesco Carla Rodrigues Professora doutora em filosofia e UFRJ


vice-coordenadora do laboratório
Khôra de Filosofia das Alteridades

Compõem o Especial presente na edição #205 de CULT uma entrevista realizada por
Pedro Paulo Gomes Pereira com Marie-Hélène/Sam Bourcier, filósofo/a, sociólogo/a e ativista
queer, integrante do corpo docente da Universidade de Lille III, na França (p. 11-15); um ensaio
do professor Richard Miskolci que atualiza uma questão fundamental para toda a discussão
envolvendo os referidos Dossiês promovendo um realinhamento de perspectiva sob o título
“Diversidade ou diferença? Tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher, deixar-se
109
influenciar e se transformar por ela” (p. 16-19), produção de fundamental importância para nós
(já falaremos disso); uma entrevista com a filósofa Judith Butler (p. 20-26) realizada por Carla
Rodrigues e três resenhas de livros da filósofa estadunidense, Relatar a si mesmo, Quadros de
guerra e O clamor de antígona, escritos por Pedro Paulo Gomes Ferreira e Carla Rodrigues.
A entrevista com Marie-Hélène/Sam Bourcier, realizada por Pedro Paulo Gomes Pereira
gira em torno da apresentação da figura de Marie-Hélène/Sam Bourcier, sua trajetória
intelectual e opiniões acerca das questões envolvendo o tema guarda-chuva da tríplice
diversidade sexual e de gênero, suas diferenças e a subversão das identidades.
Dentre as enunciações feitas por Marie-Hélène/Sam Bourcier, encontramos frases
como: “desviando alguns de seus conceitos para pensar o gênero [...] a partir de um ponto de
vista minoritário e político”, quando fala da teoria queer da primeira onda que queerizou
perspectivas de autores como Deleuze, Lacan, Foucault e Derrida; palavras como
“desvencilhados”, quando trata dos gêneros em relação ao sexo biológico; “ploriferação”,
quando se refere à soltura de certas amarras das normativa de gênero; “a drag queen foi elevada
ao topo para que se fizesse compreender”, “as sexualidades desmoronaram”. “Mas nada teria
acontecido na teoria sem as subculturas queer nas quais já eram vividas e reivindicadas as
identidades de gênero e as sexualidades diferentes, desviantes, onde o gender fuck era usual”
(p. 12). Tudo isso consistiria na proposta de “traduzir essa teoria queer”, fazer compreender os
movimentos do corpo, de seu corpo (Marie-Hélène/Sam Bourcier) no confronto com a norma
estabelecida.

[...] compreender que a realidade é não somente construída, mas que passa
pela performance e pela performatividade com o corpo e também com a
linguagem é um modo bastante ativo e acessível de desnaturalizar as coisas e
de fazer política; de poder responder: “queer” é uma ofensa e foi englobada
por quem a recebia em um momento em que puderam se empoderar.

Interessante pensar na entrevista como composição. Pelo percurso formativo de Marie-


Hélène/Sam Bourcier são trazidos esclarecimento tão potentes quanto a formalização textual
num ensaio, e muito do que está em jogo é sintetizado em falas como “Traduzir [o queer] é
também aumentar e partilhar nossos universos referenciais” (p. 15). Perspectivas críticas,
bastante pontuais também são iniciadas ou minimamente desenvolvidas na entrevista: “O
casamento não é um direito. É um privilégio e uma idiotice. É essa a política daqueles que
chamo de “bons-homos” e os same sex”.
Mas ponto alto do Especial consiste no ensaio do professor Richard Miskolci,
“Diversidade ou diferença? Tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher, deixar-se
110
influenciar e se transformar por ela”. Aqui, o autor trabalha num realinhamento de perspectiva
bastante fundamental para que se atualize o debate e torno das concepções teóricas (e práticas,
consequentemente) das temáticas envolvendo gênero e sexualidade.
Contrapõe as perspectivas da diversidade e da diferença no trato aos conflitos políticos
e históricos das sociedades norte-americana e canadense para demonstrar que

Nesses países, a noção de diversidade engendrou a de multiculturalismo, uma


forma de compreender as diferenças internas à nação como uma riqueza
cultural. Ao mesmo tempo, diversidade e multiculturalismo se construíam
como um adendo ou reforma das instituições sem problematizá-las mais
profundamente, apenas disseminando o valor da tolerância à diferença (p. 16).

E partindo disso, tece sua principal crítica demonstrando a necessidade de uma mudança
de ângulo de vista.
No início da década de 190, começaram a surgir as críticas, dentre as quais
destaco a forma como a diversidade se baseia em uma concepção de cultura
frágil e estática assim como compreende horizontalmente as relações de poder
dentro de uma nação. Culturas não são estáticas tampouco o poder existe sem
hierarquias e conflitos, portanto a diversidade e o multiculturalismo se
revelam incapazes de superar a problemática para a qual foram criados. Eles
buscavam materializar o que alguns chamam – ironicamente – de “política do
arco-íris”: a utopia de uma sociedade que poderia manter suas diferenças de
lado, sem conflitos, negociações e mudanças na cultura como um todo (p. 16).

Com isso, traz em contraposição as duas perspectivas em que 1) a perspectiva da


diversidade não seria pacífica, mas “busca contornar o conflito com uma concepção de
sociedade multicultural baseada na expectativa de que o reconhecimento de grupos
subalternizados não modificará as relações de poder e a própria concepção vigente de justiça e
direitos” (p. 17). Diante disso, critica: “De forma direta – e um tanto impressionista – é possível
dizer que constitui uma vertente política construída sob a perspectiva daqueles que detêm o
poder, já têm acesso a direitos e propõem estendê-os a outros sem modificar a estrutura
institucional em que se baseiam” (p. 17).
Sobre a perspectiva da diferença o autor pontua que 2) “reconhece que os dilemas das
nações contemporâneas são resultado de conflitos entre as instituições estabelecidas e a
emergência de demandas dos já citados grupos sociais, portanto, ela aponta para a necessária
negociação política e cultural que pode criar sociedades mais justas” (p. 17).

Ao reconhecer conflitos históricos, os pensadores dessa linha também


consideram salutar a transformação institucional para negociá-los. Sobretudo,
questionam a possibilidade de apenas estender direitos sem problematizar a
própria concepção vigente de cidadania, a qual contribui para disseminar
desigualdades (p. 17).
111
É interessante notar o modo como a apresentação de perspectivas e sua necessidade de
mudança, no caso da diferença em detrimento da diversidade, em contraposição à apresentação
e apreensão de conceitos fundamentais e basilares para constituição do percurso de pensamento
que um Dossiê propõe difere deste Especial.
Há uma pequena parte do ensaio dedicado ao Brasil. Nesta, Miskolci diz que

A maioria dos programas estatais adotaram o termo diversidade e o uso de


referências ao multiculturalismo para descrever iniciativas para lidar com as
recentes demandas por reconhecimento e direitos. Infelizmente, tal adoração
vocabular tendeu a ser feita de forma acrítica e se disseminou, sem o devido
debate, até mesmo nos movimentos sociais (p. 19).

Mas busca demonstrar uma possibilidade de contorno:

A perspectiva das diferenças, afinadas com as demandas históricas dos


movimentos sociais, propõe repensar a nação brasileira como ainda a
compreendemos e, neste exercício cultural e político, refletir sobre como
reformar a cidadania, de maneira que ela não seja apenas disponível a alguns,
antes suficientemente democrática para abarcar a todos e todas.

Já a entrevista com a filósofa Judith Butler, diferentemente da que compõe a edição 185,
não se propõe mais a apresentar sua obra [sua obra é modo de dizer, as edições anteriores se
apoiaram na, até aquele momento, única obra traduzida da autora no país, texto considerado
fundamental] de modo detalhado e categórico, mas traz, pela ocasião do lançamento de novas
traduções de seus livros, um pequeno apanhado das novas perspectivas no encalço do
pensamento butleriano.

Autora de uma obra marcada pela retomada da filosofia política numa situação
em que o pensamento escravizado para enfrentar as acusações de importância
diante dos grandes desafios do complexo cenário ada vida contemporânea,
relativismo, niilismo moral, Judith Butler chega ao Brasil acompanhada do
lançamento de dois livros que comprovam o fôlego de seus pensamento para
muito além das questões de gênero, pelas quais se notabilizou por aqui desde
a tradução, em 2003, de Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade.
Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, pela Civilização
Brasileira, e Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, pela Autêntica
Editora, chegam para se somar a O clamor de Antígona: parentesco entre a
vida e a morte, editado em 2014 pela Editora UFSC (ver resenhas nesta
edição), e começam a delinear melhor o perfil dessa pensadora cuja marca de
gênero é ao mesmo tempo fundamental e necessariamente insuficiente. Desde
Nietzsche, mesmo considerando os desdobramentos na obra de Michel
Foucault (de quem Butler é tida como continuadora) e seu conceito de
biopolítica – principalmente entre seus leitores franceses –, a materialidade
dos corpos não havia ocupado tamanha centralidade no pensamento filosófico.

112
O especial é finalizado com resenhas, além de uma “Biblioteca Queer”, com livros de
autoras como Eve Kosofsky Sedgwick, Guacira Lopes Louro, Berenice Bento, Jorge Leite
Júnior e Richard Miskolci.

2.3. Tangenciando a dimensão da vida

“A arte enfrenta a violência normativa dos nossos dias”


(Chamada de capa, edição #185)

Figura 45 – Edição 226 (agosto de 2017) – Dossiê Artivismo das dissidências sexuais de gênero.

Fonte: Acervo de imagens do autor, 2020.

Editado pelo professor Leandro Colling, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o


Dossiê 226 se constitui como um amplo material que proporciona, essa é uma hipótese, a
construção de uma base analítica voltada para o ensaio em sua máxima expressão (“ensaio
como forma de arte”, LUKÁCS, 2018) não porque se enquadra como produção artística ou se
faz na análise destas, mas intercambia polos em relação que acabam expressando a vida.
O debate proposto pelo Dossiê, conforme editorial (pág. 4) sugere é: “Estamos
assistindo à emergência de um conjunto de produções muito mais focadas na problematização
e desconstrução das normas do que na clássica afirmação identitária?”. Para enfrentar essas
questões e refletir sobre elas, foram convidados pensadores da academia e das artes. O

113
resultado, segundo Colling, está um ‘bafo’. Concordamos e acrescentamos: essa revolta é
deslumbrante!”.
É um Dossiê extenso, são 11 tópicos divididos em oito textos escritos por acadêmicos e
artistas. Do que concerne ao primeiro grupo, o professor Leandro Colling escreve o texto que
amarra as questões tratadas em Dossiê e realiza o link com o espectro conceitual em
perspectiva.

Tenho usado a expressão “dissidências” em contraposição à ideia de


“diversidade sexual e de gênero”, já bastante normalizada, excessivamente
descritiva e muito aproximada do discurso da tolerância, ligada a uma
perspectiva multicultural festiva e neoliberal que não explica como
funcionam, como são produzidas e como se cristalizaram as hierarquias
existentes na tal “diversidade”.

A proposta do Dossiê consiste na análise de

[...] determinadas produções artísticas e tentar responder às seguintes


questões: quem são esses e essas artistas, de onde surgiram e o que fazem?
Como e quais linguagens artísticas usam para realizar seus trabalhos? Seria
correto dizer que, ao mesmo tempo que problematizam as próprias linguagens
artísticas “tradicionais”, problematizam também as normas sobre gênero e
sexualidade? Como cada coletivo ou artista produz seus trabalhos? Quais são
os antecedentes dessas produções, em especial no nosso país? Que processos
de subjetivação são acionados por essas produções? Trata-se de produções que
poderiam ser inseridas no clássico paradigma das identidades (gay, lésbica,
trans) ou estamos assistindo à emergência de um conjunto de produções muito
mais focadas na problematização e desconstrução das normas do que na
clássica afirmação identitária?
A fim de enfrentar essas questões, convidamos um grupo de onze
pessoas da academia e das artes para produzir este Dossiê [...] (p. 18-19)

Em sua argumentação, Colling faz referência ao ensaio “O que temem os


fundamentalistas”, publicado na CULT #217, de outubro de 2016, cujo tema era o artivismo
das dissidências sexuais e de gênero. O autor nos conta que tratou brevemente no texto o
conceito de artivismo, “que não é aceito pacificamente por muitas pessoas” (p. 18) e apontou
para uma emergência de artistas e coletivos artivistas para dar razão à questão.

Talvez a mais importante das razões esteja exatamente na própria necessidade,


consciente ou não, de reagir diante do quadro terrível no qual estamos
inseridos, marcado por um crescente conservadorismo, em sua expressão mais
visível através de um fundamentalismo religioso, que elegeu os temas da
sexualidade e de gênero como seus principais problemas (p. 18).

114
O Dossiê também foi também fruto de um encontro em comemoração aos 10 anos do
grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), atual Núcleo de Pesquisa e Extensão em
Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), realizado naquele ano, em Salvador, Bahia.
Importante destacar uma última questão envolvendo o Dossiê que, segundo Colling

[...] não pretende tratar de todas as produções da atualidade. Da mesma forma,


a proposta não é enquadrar todas em uma categoria, ou seja, de artivismo e/ou
de queer. No entanto, será possível perceber como essas produções dialogam
com uma nova política de gênero que tem sido pensada, há anos, por várias
pessoas, acadêmicas ou não, que se filiam aos estudos queer, bastante diversos
entre si, diga-se de passagem.

Aqui, os ensaios chegam à dimensão da vida (tangenciar) pela arte. Thiago Sant’Ana
escreve sobre o cinema de Jomard Muniz de Britto e sobre as peças do grupo Vivencial,
produções potentes e que, de acordo com o autor

[...] já traziam consigo linhas gerais que poderiam ser identificados como
grandes batalhas para a perspectiva queer, como a desnaturalização da
sexualidade, a quebra dos binarismos de gênero e a própria necessidade em
pensar diversos atravessamentos envolvendo diferentes marcadores sociais
como raça e religiosidade (SANT’ANA, p. 21).

Pela ótica do teatro também escrevem Djalma Thürler, Marcelo de Trói e Paulo César
Garcia a respeito do Teatro Oficina e o Dzi Croquettes e sua influência sobre o trabalho da
Ateliê voador Companhia de Teatro. “A discussão sobre o que estamos chamando de artivismo,
além de polêmica, não chega a ser unanimidade entre artistas que utilizam a arte como protesto
e tampouco nos meios acadêmicos”, escrevem os autores, uma vez que a tal expressão diz de
artistas que “usam a arte de maneira combatia, com fins políticos” (p. 25). Essa perspectiva
logo transita pelas páginas seguintes: quando Rafael Guimarães e Cleber Braga ensaiam sobre
a música pop brasileira e seus artistas que interseccionam dissidências sexuais e de gênero com
classe e etnia; quando artistas como Wallace Ruy, Rico Dalasam, Liniker e Raquel Virginia,
vocalista da banda As Bahianas e a Cozinha Mineira, refletem, ainda que de maneira curta,
sobre a arte militante.
Nos limites do que concerne ao aparato teórico, Amara Moira reflete sobre as
masculinidades hegemônicas a partir das figuras de João W. Nery e Anderson Herzer,
personagens que desestabilizam a noção de macho e, por consequência, de homem. Por fim,
em uma potente reflexão acerca da Arte Queer, Rosa Maria Blanca elenca: “A arte não trabalha

115
com tautologia. Ou seja, a arte não se propõe a ilustrar, cartografar ou repetir teorias, ciências
ou crenças” (p. 42).

No que concerne à edição e produção do material, apresentamos o último quadro com


seus respectivos autores, atribuições e instituições conforme descritas no próprio Dossiê.

DOSSIÊ ARTIVISMO DAS DISSIDÊNCIAS SEXUAIS E DE GÊNERO

Título do texto Autora/Autor Atribuição Instituição

Artivismo das dissidências Leandro Colling Professor, integrante do Grupo de UFBA


sexuais e de gênero Pesquisa em Cultura e
Sexualidade

Terceira margem do Queer Tiago Sant'Ana Professor UFBA

Outras cenas de Djalma Thürler Professor UFBA


enfrentamento, ontem e hoje

Outras cenas de Marcelo de Trói Jornalista


enfrentamento, ontem e hoje

Outras cenas de Paulo César Professor UNEB


enfrentamento, ontem e hoje Garcia

Vidobras dissidentes na Rafael Professor UFSB


música pop brasileira Guimarães

Vidobras dissidentes na Cleber Braga Professor UNIFAP


música pop brasileira

Doce invasão Amanda Assistente de edição e editora/site


Massuela

O que pode um corpo? Marcelo de Trói Jornalista


Entrevista com Linn da
Quebrada

Quem pode se dizer homem? Amara Moira Doutora em Literatura Unicamp

Quem tem receito da arte Rosa Maria Doutora em Ciências Humanas e UFSC;
Queer? Blanca professora UFSM

116
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução desta dissertação perguntamos: como a relação entre o ensaio e seus articulistas
pode ser lida no conjunto de textos que trata a questão Queer na seção Dossiê

Sendo assim, a partir da nossa análise, ancorada pelos nossos percursos teóricos, alguns
apontamentos podem, então, ser realizados.
Primeiro, alguns aspectos gerais do que vêm ser o Dossiê na CULT. Ele é produzido
por professores e professoras e diferentes Universidades do país e do mundo. Possuem uma
coordenação própria, a partir do momento em que um de seus pares fica a cargo de coordenar
um grupo de colaboradores que produzirão textos – ensaios, entrevistas de uma edição em
específico. A proposta “de pauta” para o material pode ser feita por um externo ou ser
encomendada pela diretoria da revista. Aqui, temos o primeiro ponto a considerar. Nem todo
texto publicado em Dossiê se conforma no que poderíamos chamar de ensaio. Isso é notável
pela análise que demonstram como as diferentes nuances textuais funcionam em cada Dossiê
em cada material – entre Dossiês, Especiais e ensaios esporádicos.
A fluidez textual difere dos materiais publicados nas edições #185 e #202, por exemplo,
em que, no primeiro caso, se assemelha mais ao Dossiê #193. Isso possivelmente ocorrer pelo
caráter das produções. Os Dossiês de número #185 e #193 têm como categoria distintiva uma
natureza de cunho teórico-introdutório. Ambas as produções apresentam uma interconexão de
perspectivas que aludem a um conjunto de aspectos que pretendem explicar uma teoria ao
introduzir seus conceitos fundamentais, com base e formulação de nível histórico e social, além
de elencar algumas exposições de uma vertente específica do conhecimento que traz à baila
figuras intelectuais consideradas fundamentais.
Além disso, o ponto inaugural do eixo que leva o tema à frente é dado no Dossiê #185,
o primeiro em toda a história dos Dossiês CULT a tratar do tema das diferenças sexuais e de
gênero de modo mais incisivo e extenso.
Já ao que concerne especificamente ao Dossiê #193 e seu caráter teórico-introdutório,
este é tido como a primeira produção sobre o tema publicada em uma revista não acadêmica.
Mas o que isso poderia significar, tendo em vista a elaboração anterior (#185)? A despeito do
tema da primeira abordagem (#185), a palavra queer aparece uma única vez no preâmbulo que
introduz a entrevista feita por Carla Rodrigues com Judith Butler. Até aquele momento, a
produção da filósofa não era difundida no país de modo muito amplo, tendo, inclusive, apenas

117
um livro traduzido por aqui até a data de publicação da edição #185, em novembro de 2013.
Diante disso, é possível observar, principalmente na viagem formativa realizada por Guacira
Lopes Louro em seu texto “Uma sequência de atos”, onde apresente o conceito de gênero e de
performatividade, seguida por Joana Plaza Pinto, quando esmiúça as contribuições de Paul
Austin e Jacques Derrida inseridas nas teorizações de Judith Butler.
Já o Dossiê #193 vem como uma tentativa de transposição da síntese do que é mais caro
ao que, em certo momento, fora tratado no Dossiê #185 sob a ótica do que chamam no material
de Teoria queer (e não Estudos queer, como preferem outros pares), sob um novo conjunto de
questões que traíram à baila elaborações voltadas aos campos da educação, sociedade civil e da
História. Pela sua estrutura, ele pretende-se mais pedagógico que a edição anterior (#185). A
partir do texto de Richard Miskolci, que critica a hegemonia heterossexual num esforço teórico
de incorporação da Teoria queer, o autor retomará historicamente a construção de pensamento
do termo ao demonstrar sua força crítica frente aos âmbitos social mas, sobretudo políticos (e
esse movimento que ecoará de maneira ainda mais sistemática no Dossiê #202); e o importante
ensaio de Berenice Bento, sobre sua relação com a literatura disponível para realização da sua
pesquisa de doutoramento – em uma narração mais intimista, algo que faz compreender pela
sua própria experiência como o percurso até aquele momento de realização do Dossiê foi
extenso, mas que muito ainda havia de ser percorrido.
As duas entrevistas que compõem o material (#193), no entanto, parecem funcionar de
forma a cravar de modo um pouco mais sistemático algumas respostas para as questões
envolvidas diretamente com a Teoria queer. Carla Rodrigues entrevista Guacira Lopes Louro,
em que são feitas duas perguntas relacionadas à amplitude disciplinar da Teoria queer, visto
que Louro é especialista no campo da educação: uma sobre a tradução do termo queer para o
português e sobre o que haveria de político em questionar a normatividade de gênero.
A segunda entrevista que compõe o material, realizada por Andrea Lacombe e Emma
Song com a professora argentina Leticia Sabsay (que também está presente no Dossiê #185),
assim como o ensaio do professor Miskolci, também fala da des-heterossexualização, mas,
agora, relacionando esse paradigma com a cidadania.
Inserido no recorte, estão os ensaios presente nas edições do “entre”. Convém falarmos
das primeiras questões transversais, presente na edição da CULT de número #196. Escrito pelo
professor Richard Miskolci, o ensaio que tem como título “Uma outra história da república:
amor, ordem e progresso” funciona como um espaço propulsor (tentativa) para a elaboração
mais sistemática do Dossiê #202. Não é espantoso que um momento “entre” Dossiês seja feito

118
por vias ensaísticas. Ali, o professor alinhava questões, manejava outros conceitos, entrevia,
para, então, seguir rumo a elaborações mais aprofundadas.
O Dossiê de número #202 parece ser o ápice do refinamento ensaístico por parte
estrutural de um Dossiê, e pelas elaborações propostas por seus articulistas que ali figuram.
Essa edição da revista também marca um certo amadurecimento da publicação – seus 18 anos,
e é bastante sintomático que o Dossiê, ou seja, o DNA da revista, para a data seja sobre um
tema em torno das diferenças sexuais e de gênero na cultura. Em editorial, Daysi Bregantini
reafirma o tom da revista e de seus Dossiês ao endossar o saber científico, sua luta frente às
questões fora da agenda restrita de outras “corporações culturais”, com suas causas à esquerda,
e cujas figuras que produzem o que ali é veiculado “dedicam a vida ao conhecimento”. E isso,
de certo modo, se dá a ver em uma inscrição.
Como dito, o refinamento ensaístico parece alcançar seu ápice no Dossiê #202. O
professor Leandro Colling, responsável pela edição do material, realiza um ensaio cujo
caminhar ruma aos limites do conceito de homofobia, numa espécie de movimento para
desarticulação do objeto-conceito do termo. Isso porque Colling não trabalha de modo a
descontruir parâmetros e usos, mas a inscrever outros vocábulos para leituras sociais
necessárias a um contrafluxo de ordenamento teórico-prático. Como diz o filósofo trans Paul
Preciado (2020), existe a necessidade de instituir novas linguagens para ir de encontro a todo o
fluxo que insiste em ter como natural algo uníssono em curso. Ainda de acordo com o autor,
essa leva de novos termos críticos é indispensável, pois funcionaria como um solvente das
linguagens normativas. É antídoto contra as categorias dominantes, ainda que seja preciso ter
atenção a essas mesmas epistemologias dominantes que tomaram de assalto as estruturas
cognitivas da diversidade sexual. É uma urgência dupla.
Nesse sentido, Colling elabora um mecanismo (contra)conceitual direcionado aos
limites ontológicos dos conceitos sobe os quais ensaia. Movimento aproximado é o que realiza
também a professora Berenice Bento no ensaio “Verônica Bolina e o transfeminicídio no
Brasil”. De modo a tensionar uma visão primária e pessoal da violência acometida por Bento
do acontecimento trágico para um âmbito de análise mais ampla. É o que Montaigne dizia
pretender que seus ensaios realizassem: um dever cívico e de humanidade.
Entre manejos argumentativos temos a continuidade rítmica textual nas produções de
André S. Musskopf e Rogério Diniz Junqueira, este último, sobretudo, seguindo o ordenado
teórico-conceitual na produção de uma defesa em relação às práticas sociais repressivas ligadas

119
ao que ele chama de “pedagogia do armário”, dando nomes a processos institucionais, portanto,
“legais” de violência, apagamento e de exclusão.
Chegamos, então, ao nosso segundo momento de travessia. O Especial que compõe a
edição #205 de CULT passa facilmente por um Dossiê. Em virtude do “I Seminário Queer”,
realizado pela CULT e pelo Sesc-SP, é que este Especial existe. Esse cenário, que nos remete
aos “limites da ágora” de que falava Renato Janine Ribeiro (2006), à produção do primeiro
Dossiê queer em uma revista não acadêmica, como é o caso do Dossiê #193, mas a outras
movimentações de que realiza CULT na promoção do conhecimento. O Espaço CULT, escola
livre, oferece uma programação de cursos de aperfeiçoamento e de formação profissionais
orientada pelos professores e especialistas que transitam pelas páginas da revista. Coordenado
por Fernanda Paola, no espaço já foram ministrados cursos que figuraram antes da CULT em
formato de Dossiê.
Entre os cursos, temas como o feminismo, questões de gênero, direito, história,
sociologia, filosofia, literatura e psicanálise. Ao que concerne nosso tema em específico, já
foram ministrados cursos de “Introdução ao pensamento de Judith Butler”, pela professora
Berenice Bento e, mais recentemente, o curso “As artes e as dissidências sexuais e de gênero”,
ministrado pelo professor Leandro Colling. Outro dado interessante são as recentes publicações
dos livros “Parentalidade” (2020) e “Gênero” (2020), coleção lançada em parecia da CULT
com a editora Autêntica, e organização de Daniela Taperman, Thais Garrafa e Vera Iaconelli,
o mesmo “time” que produziu o Dossiê presente na edição de número #251 da revista.
A importância desses dados para o trabalho diz respeito às lógicas por trás da produção
de conhecimentos voltados às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e em como isso é feito a
partir de uma espécie de “mecenato” cuja CULT encabeça. Diz de um esforço árduo (se
levarmos em conta as atuais políticas de educação e cultura) do país, em uma vontade de defesa
das artes, da literatura e das ciências alinhadas a uma ideologia à esquerda do pensamento.
Mas retomando as atenções sobre nosso segundo momento de travessia, o Especial se
compõe como um grande apanhado de atualização das perspectivas acerca das questões
envolvendo as diferenças sexuais e de gênero. Vemos surgir nomes como Marie-Hélène/Sam
Bourcier, enquanto outros como Judith Butler retornam. No entanto, material importante é o
ensaio escrito novamente pelo professor Richard Miskolci em que este, agora, parece fazer um
“ajuste de pontas” sobre a perspectiva da diversidade em detrimento da diferença, numa
retomada pelo histórico dos dois conceitos, o que suas adesões acarretam e como isso é visto,

120
inclusive, no Brasil. O ano é 2015, e ao final do material, temos a Estante, onde estão escritas
algumas resenhas de novos títulos de Butler publicados em território nacional.
Em certa medida, CULT parece ter sido uma das maiores responsáveis pela divulgação
do trabalho da filósofa no Brasil. Em 2013, ano de publicação do Dossiê #185 apenas o livro
“Problemas de gênero: feminismo e subversão das identidades”, havia sido traduzido. Em 2015,
já havíamos a publicação de “Relatar a si mesmo: crítica da violência ética”, “Quadros de
guerra: quando a vida é passível de luto?” e “O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e
a morte”.
Por fim, o Dossiê de número #226 foi também editado pelo professor Leandro Colling,
e deu origem ao curso no Espaço CULT, em 2020. O Dossiê debate, agora, a questão das
dissidências sexuais e de gênero na arte. É interessante observar como os termos se atualizam,
como o espectro da temática central, digamos assim, tem diversos acúmulos ao redor. Com
muitas produções histórias e ensaios potentes, Tiago Sant’Ana, escreve sobre referências queer
fora do âmbito das academias, mas voltadas ao teatro, ao nos contar sobre as peças do grupo
Vivencial. Assim faz também Djalma Thürler, Marcelo de Trói e Paulo César Garcia sobre o
Teatro Oficina e o Dri Croquettes que influenciaram outra companhia de teatro, a Ateliê
voadOR. Outros ensaios giram em torno da música, inclusive com depoimentos de arti(vi)stas;
e ensaio sobre os limites das masculinidades hegemônicas.
Esse grande compilado de textos, entre ensaios, entrevistas, depoimentos, constituem o
eixo formado por CULT na discussão que encabeça sobre o Queer, as diferenças e as
dissidências sexuais e de gênero em Dossiês.

O Queer como tema da cultura e o problema da intelectualidade

Entre os Dossiês analisados consta, de maneira geral, uma extensa reflexão acerca das
normatizações envolvendo as liberdades e as diferenças de gênero e sexualidade como questão
política e de controle dos corpos. Entre teorias e conceitos, um vasto campo se abre entre figuras
intelectuais que se reúnem em torno dos Dossiês para refletir e, até mesmo, debater, tais
questões. O Dossiê #185, responsável por apresentar de modo mais pragmático o pensamento
da filósofa estadunidense Judith Butler abriga questões cadentes até os dias de hoje, ainda que
a atualidade dos anos 2013 (e até mesmo antes, muito antes disso) possam ser visualizadas em
diferentes instâncias sociais.

121
O que fica, à primeira vista, diz do caráter temporal dos materiais veiculados em CULT.
Sua duração é longa, é anterior e posterior e a revista nos entres. Tendo em vista que a crise em
torno das questões de identidade de gênero e sexualidade tem se aprofundamento, sobretudo na
atualidade, coisa que, de certo modo, era atitude esperada. Isso, pois, essas questões vêm de
modo a provocar verdadeiros “abalos sísmicos” nas estruturas patriarcais, quando se levado, e
unicamente, em consideração, seu status político. Daí também temos a potência da teorização.
Desse constructo, podemos observar as relações entre seus intelectuais acadêmicos,
discussão realizada ainda na primeira parte da dissertação. Esses diferem, por exemplo, dos
intelectuais do caso Dreyfus pelas circunstâncias do tempo e das mudanças sociais que diferem
nossas relações das relações do século XVIII. Todavia, algumas funções parecem permanecer
no âmbito da figura intelectual: sua abordagem crítica – e aí temos o ensaio, logo na abertura
do trabalho, que funciona como expressão daquilo que o intelectual tem por primeira função:
refletir sobre o seu tempo.
O que alinha Dossiê, o ensaio enquanto forma de expressão de pensamento e
Intelectuais-acadêmicos, é justamente a crítica que se estabelece ao operacionalizar temas,
conceitos e a crítica como substrato. Incitação de uma reflexão, que é substrato do movimento
que orquestram intelectuais em Dossiês. Resultam disso palavras, mas principalmente uma
tomada de postura perante o mundo e as coisas do mundo. Disso decorre a importância do
aparato teórico. hooks (2017, p. 85) ilustra a situação de forma interessante: “Encontrei [na
teoria] um lugar onde eu podia imaginar futuros possíveis, um lugar onde a vida podia ser
diferente. Essa experiência ‘vivida’ de pensamento crítico, de reflexão e análise de tornou um
lugar onde eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora”. Ainda assim, relação entre
teoria e prática produz uma falsa dicotomia, “o falso pressuposto de que a teoria não é uma
prática social” (hooks, 2017, p. 91) tem minado pessoas e espaços de produção. O resultado
disso, entre a deslegitimação, falta de investimento, perseguição, esvaziamento, é o anti-
intelectualismo como moeda.
Diante do que é histórico a respeito de figuras intelectuais, isso não é novidade, assim
como uma espécie de voluntarismo torpe para supressão e aprofundamento das crises que
sociais em momentos de perturbação extrema, como o fascismo. Todavia, a resposta para e todo
e qualquer problema também não é somente a produção teórica, mas a nomeação de atos, uma
vez que essas ações abrem um poderoso acesso de comunicação e de interpretação, de descrição
e intervenções críticas no combate e na destituição de elementos do status quo.

122
Para mim, essa teoria nasce do concreto, de meus esforços para entender as
experiências da vida cotidiana, de meus esforços para intervir criticamente na
minha vida e na vida de outras pessoas. [...] Enquanto trabalhamos para
resolver as questões mais prementes da nossa vida cotidiana (nossa
necessidade de alfabetização, o fim da violência contra mulheres e crianças, a
saúde da mulher, seus direitos reprodutivos e a liberdade sexual, para citar
algumas), nos engajamos num processo crítico de teorização que nos capacita
e fortalece (hooks, 2017, p. 97).

Por si só o conhecimento teórico não explica o mundo. Este, muitas vezes, o conforma
quando orquestrado para privações, seja hierarquizando, seja deixando de fora outras formas
de conhecer que não as delimitadas por seus processos. Ao mesmo tempo “ele está aí”, e é por
isso também que seus sistemas devem ser confrontados e operacionalizados. Diante da
demorada e gradual mudança das ideias, da conquista de corações e a disputa pela gramática
das mentes, Paul Preciado (2020, p. 33) na Introdução da sua mais recente publicação no Brasil
diz: “A voz que treme em mim é a voz da fronteira”. E o autor mesmo diz:

Realizando um ato de idealismo político-científico, médicos e juízes negam a


realidade do meu corpo trans para continuar afirmando a verdade do regime
sexual binário. Então, a nação existe. O júri existe. O arquivo existe. O mapa
existe. O documento existe. A família existe. A lei existe. O mapa existe. O
centro de internamento existe. A psiquiatria existe. A fronteira existe. Até
deus existe. Mas meu corpo trans não existe (PRECIADO, 2020, p. 223).

No que diz respeito às produções em Dossiê, são flexões, inflexões conceituais que
movimentaram suas páginas e palavras em detrimento de um conjunto de atos que representam
a vida de diferentes pessoas. São movimentos temporais e no tempo (editorial e social), que
estão traçados em Dossiês, encarnados e articulados por seus representantes cívicos que
embaraçam o mundo “des-aplainado”, realizando cogitações acerca dos mais variados temas.
Talvez, a partir deste ponto, é possível começar.

123
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126
EDIÇÕES DA REVISTA CULT CONSULTADAS

CULT, n. 001, de julho de 1997


CULT, n. 011, de junho de 1998
CULT, n. 012, de julho de 1998
CULT, n. 013, de agosto de 1998
CULT, n. 014, de setembro de 1998
CULT, n. 016, de novembro de 1998
CULT, n. 017, de dezembro de 1998
CULT, n. 018, de janeiro de 1999
CULT, n. 026, de setembro de 1999
CULT, n. 053, de dezembro de 2001
CULT, n. 054, de janeiro de 2002
CULT, n. 056, de março de 2002
CULT, n. 057, de maio de 2002
CULT, n. 099, de janeiro de 2005
CULT, n. 141, de novembro de 2009
CULT, n. 143, de fevereiro de 2010
CULT, n. 156, de abril de 2011
CULT, n. 183, de setembro de 2013
CULT, n. 193, de agosto de 2014
CULT, n. 196, novembro de 2014
CULT, n. 198, de fevereiro de 2015
CULT, n. 200, de abril de 2015
CULT, n. 202, de junho de 2015
CULT, n. 205, de setembro de 2015
CULT, n. 221, março de 2017
CULT, n. 226, de agosto de 2017
CULT, n. 251, de novembro de 2019

Uma tabela com todas as edições dos Dossiês CULT pode ser acessada aqui.

127
APÊNDICE – Entrevista com Fernanda Paola (Diretora de conteúdo da
CULT)

Entrevista realizada na Sede da Revista CULT em São Paulo, dia 8 de outubro de 2019,
Entrevista com Fernanda Paola, diretora de conteúdo/digital e do Espaço CULT.

(Diz quem são os membros fixos da equipe) [FERNANDA] “[...] e aí a gente trabalha com
bastante colaborador. Para as edições impressas, no online também a gente tem colunistas que
escrevem pra gente e tal, e sempre foi essa meio a fórmula da CULT, né. Por isso que a gente
tá feliz e bem e não tá declarando falência, com uma super equipe, como muitas empresas de
jornalismo estão. Então é uma forma mó legal, saudável. Funciona super bem”.

1'22''

[FERNANDA] “Acho que a gente é uma revista de pensamento crítico, que eu costumo dizer,
então a gente sempre trabalha com questões que são mais profundas. Você diz, assim, 'eu tenho
revistas CULT antigas'; muito assinantes e muitos leitores da CULT tem, porque você consegue
recorrer às edições antigas, não como se fosse hoje, mas, assim, aquele conteúdo ele não expira,
ele não é factual. A gente trabalha com questões atuais, mas com um olhar muito mais profundo
em cima delas. Então, isso nunca vai expirar, entendeu? Então, eu acho que isso é uma coisa
muito legal, uma revista de colecionador mesmo, né. A gente fez uma feira agora na Mário de
Andrade, a gente levou edições antigas e a gente vendeu todas. E você não vê isso em outras
publicações, né. Ah, vou comprar uma Veja antiga, ninguém vai comprar nada antigo porque
aquele assunto já foi. E a gente tem esse nosso DNA, né, de trabalhar essas questões, esse
pensamento crítico, e eu acho que assim, no mundo de hoje, especialmente, super polarizado,
super difícil, com um governo fascista, desculpa, mas é, a gente é um lugar que as pessoas
recorrem para ter informação com confiança. Enfim, as pessoas sabem que quem escreve, o que
a gente publica, é com todo absoluto cuidado e responsabilidade sempre, entendeu? A gente
não é uma revista de política, mas obviamente a gente é bem… tem um lado, a gente é bem…
a gente nunca deixou de falar em que lado que a gente tá, e a gente é uma revista de esquerda,
não é uma revista, né, é uma marca, então a gente também tem os nosso cursos aqui, a gente
faz evento, então tudo que a gente faz é com o pensamento mais voltado à esquerda, os nosso
colaboradores, e tal, e então é isso, a gente não é uma revista de política como é uma Carta
Capital, por exemplo, mas acho que a maioria das pessoas que nos seguem nos leem e tal sabem
que a gente tem um lado bem evidente e também isso é importante, porque nem sempre foi
assim, né. Eu acho que depois, faz pouquíssimo tempo que as pessoas começaram a se colocar
em que lado elas estavam. Acho que a CULT sempre deixou bem claro em que lado ela estava,
e eu acho honesto também com quem nos lê, entendeu? E é isso. A gente publica dossiê de
psicanálise, de filosofia, e é isso, né. Não política necessariamente, mas os autores que a gente
debate, os pensamentos que a gente debate são pessoas, enfim, que estão no lado da esquerda
da força.”

128
[Preocupação com uma maneira de pensar]

[FERNANDA] “A gente traduz um pouco do pensamento que é muito restrito à academia,


então, assim, tem muito debate dentro da academia que pouco sai de lá. [Claro] hoje tem muitos
psicanalistas que falam para muita gente, tem filósofos que falam, mas nem sempre foi assim,
e ainda é pouco. Então, a nossa ideia é levar para mais pessoas um debate que às vezes é muito
restrito a poucas, e que é muito interessante, que é muito importante, que, enfim, que haja essa
expansão de pensamento, de pensamento crítico sobre as coisas. Você tem que ter instrumentos
para isso. Eu acho que é o que a gente quer dar. A gente trabalha com uma causa, obviamente
a gente tem algumas causas aqui que são importantes para nós, minorias sociais, enfim,
pensamento negro, pensamento LGBT como você falou. Isso é importante para nós enquanto
seres humanos que gerimos essa empresa, e sim, é levar; assim, tanto nos nossos cursos, quando
a gente faz curso aqui a gente faz uns cursos com pessoas que às vezes só dão curso de
formação, de pós-graduação, mestrado, doutorado, dentro das faculdades ou em universidades,
então a gente tenta levar para um maior número de pessoas. Isso, é claro, ainda é restrito, né, a
gente não é um veículo gigantesco, a gente não chega a tanta gente assim, mas a gente faz um
trabalho que me parece, assim, pelo feedback que cada mais, inclusive com redes sociais,
porque antes isso não existia, então, era menos o feedback, né, não dava muito para saber. Mas
o que importa são as pessoas: as pessoas usam a CULT e os textos e as colunas e o nosso debate
para as vidas delas, entendeu. E isso é que importa, né. Acho que em um país que não, enfim,
que a educação é uma coisa super complicada, pouca gente consegue acesso; as universidades,
enfim, estaduais ou federais não dão conta, né, de tanta gente assim, enfim, a base é complicada
também. Educação é cara. Eu acho que a gente consegue, a gente busca não cobrar caro o nosso
produto, nossos cursos, a revista. A gente tem uma assinatura digital que custa acho que R$107
e você tem um ano para ler todo o conteúdo já impresso. É baratíssimo, entendeu, porque a
ideia é que as pessoas leiam e acessem e compartilhem, enfim. Então, acho que assim, o objetivo
é traduzir e levar para mais pessoas um debate muitas vezes restrito, e que importa como
formação humana. Acho que é meio por aí.”

8'40''

[FERNANDA] “O dossiê cada caso é um caso. A Daysi, ela é a mais próxima a esse fluxo. A
gente tem uma rede de colaboradores, que, enfim, muita gente sugere dossiê pra CULT, porque
é um lugar que, como para nós, de aumentar essa comunicação com as pessoas, para os
pensadores também é, porque muitas vezes, eles também ficam restritos no debate, então, ficam
se retroalimentado. A gente tem muita sugestão de colaborador. E aí gente entende o que é
interessante pra gente na composição da revista como um todo. Então, a gente teve agora um
debate sobre suicídio [dossiê 250, de outubro de 2019] que a gente nunca tinha feito e que é
importante. Para mim, na minha opinião, é um dos melhores dossiês que a gente já publicou na
vida inteira. Para mim, isso é pessoal, quanto mais chegar a mais pessoas… quanto mais as
pessoas se interessarem, quer dizer que a gente tá falando de uma coisa importante. Porque
assim, acho muito importante também falar sobre certos aspectos da filosofia, autores e tal, mas
sei lá, vai falar sobre Hegel, legal, muito maravilhoso, só que pouca gente tem interesse sobre
aquilo. Entendeu? É legal que tenha, é importantíssimo, mas na área de psicanálise, por
exemplo, a gente falou esse ano sobre masculinidades, foi um dossiê belíssimo, sobre suicídio,
sobre feminismos e femininos, foram alguns dossiês que eu pontuo que foram muito
importantes, que as pessoas, que não são os leitores convencionais da CULT, digamos assim,
leram. Falaram, 'puta, que legal, a CULT existe. Putz, que legal, vou assinar. Que legal essa
revista'. Então, a gente consegue chegar naquelas pessoas que é só muito difícil. 'Ai, a CULT é
difícil'. Tudo bem, às vezes ela é, confesso, até para mim ela é, mas dá para todo mundo ler,
129
todo mundo consegue, entendeu, então vamos chegar em todo mundo e falar com todo mundo,
todo mundo, assim, prepotência, mais gente.”

12'48''

[FERNANDA] “Você vai ter 30 páginas aí, com cinco, acho que são cinco, autores e autoras
da psicanálise, e é super complexo, mas qualquer um consegue ler. E qualquer um consegue
entender, então, questões que, nesse assunto especificamente; a gente não sabe muito sobre
suicídio, né, é um tabu. As pessoas não conversam sobre isso. E, assim, certamente alguém
conhece alguém que já, enfim, alguém com quadro de depressão, alguém que já se suicidou,
enfim, todo mundo tem isso em seu espectro de vida. Não tem como não, a não ser que seja
uma pessoa muito isolada da humanidade, da sociedade. Então, essa é a ideia. O próximo
dossiê, já em primeira mão, como não vai sair, você não tá fazendo uma matéria, é
Parentalidades, que são formas de família, né, que não é; o filho é da mãe, tem uma aldeia que
cuida, tem um pai, tem a mãe, enfim, é uma nova visão da psicanálise sobre a Parentalidade,
que é como eles chamam agora, e vulnerabilidades, que é a mãe negra, trans, então, ninguém
debate muito isso, né. É como se tivesse parado no tempo da mãe branca, hétero… e não, a
maternidade e a paternidade estavam muito além disso. O debate precisa se atualizar, né. A
gente precisa atualizar o debate. Acho que isso é importante também. A gente não ser estático.
Porque eu acho que você definir quem você é enquanto pessoa, enquanto publicação, é muito
complicado, né. Abrangentemente a gente é uma revista de cultura e de pensamento crítico.
Quer dizer, a gente pode tratar de área de cultura, e enfim, o pensamento em todas as áreas do
pensamento humano, mas ao mesmo tempo a gente vai, enfim, a gente é isso, em noventa e…
era uma coisa agora é outra. Essas questões de Parentalidade, por exemplo, elas são novas, esse
debate é novo, e é lindo esse debate porque ele está muito restrito a um núcleo que está pensando
isso. Não tem muito texto sobre isso, não tem muito livro sobre isso, entendeu, não tem muita
informação sobre isso ainda. Então, a CULT chega mostrando, enfim, dando acesso a esse tipo
de informação que, cara, é importantíssimo pra gente reconsiderar os formatos e formas de
expressão de amor, de família, de tudo, né. Então, eu acho que também essa atualização
[gráfica] da CULT; acho que o layout também chega para mostrar um pouco isso, né, que a
gente tá atualizando o pensamento e eu espero que seja sempre assim, que a gente não fique
estático: 'a gente é isso e ponto'. A gente já foi uma revista mais de literatura, por exemplo, logo
que a Daysi comprou a revista, ela pode te contar melhor, ela comprou essa revista. Essa revista
já era editada e estava tipo à beira da falência. Não, tava falindo mesmo. E aí ela comprou.
Minha mãe é filósofa de formação e tal, mas aí ela comprou e, cara, ela herdou essa revista de
literatura, e aí ela falou, 'putz, literatura só, não, vamos trabalhar filosofia, vamos trabalhar
outras áreas de pensamento', e eu acho que aí foi um belíssimo acerto dela, entendeu? Entender
que uma revista não precisa… Eu acho que, legal ter revista de literatura… Quatro Cinco Um,
acho super legal, mas é mais difícil, né, em uma sociedade como a nossa, você restringir a sua
área de atuação de atuação na cultura. Infelizmente. Tem lugares que tem várias publicações de
literatura e todas têm muito sucesso, e aí ela percebeu que não, que a gente poderia ampliar a
discussão, e eu acho que a gente ampliou muito e isso também desenvolvendo os cursos livres
que a gente desenvolve aqui que são super legais. Tem muito curso pop aqui. Também é
interessante para as pessoas que têm medo da marca, entendeu? E é isso, a gente fala sobre
feminismo há tanto tempo, entendeu, a gente fala sobre queer. O assunto do queer não era um
assunto aqui no Brasil. É um debate novo, né, recentemente novo, e a gente trouxe a Judith
Butler para falar no Sesc. A primeira vez que ela veio fomos nós, então, puta, desculpa, que do
caralho, entendeu? A gente trazer um assunto como esse. E eu sempre falo, eu acho que a gente
vive em uma bolha, tá; a gente tem uma periferia gigantesca aqui, a gente tem pessoas que não
tem acesso ainda a esse tipo de informação, o meu sonho seria que todo mundo pudesse ter,
130
acho que é um sonho nosso, de todo mundo, assim, que pensa. Mas mesmo assim, eu acho que
a gente ampliou uns debates ali, a gente começou a falar de umas coisas que, por mais pequeno
que a gente seja, a gente tem uma voz meio grande e a gente consegue levar o debate para outros
veículos e para outras pessoas começarem a debater e cria uma onda de debate, entendeu. A
gente também tem esse papel, porque também não tem muita competição, eu acho que tem mais
união, né, então se a gente tá debatendo um assunto e outras pessoas começam, que legal. Eu
acho que tem muita gente que se apropria de discursos, marcas que se apropriam de discursos
porque tem que falar e tem as cotas, e acho que isso não vale, mas acho que tem muita gente
fazendo coisa que vale, entendeu. E acho que a gente faz parte dessa rede.”

19'34''

[Questão de público]

[FERNANDA] “Eu acho que cresceu. Acho que a gente tem mais assinantes, a gente tem mais
leitor, a gente tem de seguir, a gente tem mais fã. Acho que muito por conta das redes também,
mas eu acho que o nosso público ele é jovem. Existem pessoas que seguem lendo a CULT, sim,
mas eu acho que o público jovem é um público que ainda quer mudar e ainda sonha, e ainda
tem, sei lá, algumas ideias que talvez quando a gente fica mais velho, eu tenho 38, a gente para
um pouco de acreditar nas coisas e fala 'putz, então essa é a vida', entendeu? Eu acho que é meio
por aí. Então, o público, enfim, ainda tem alguma coisa de modificar o mundo, de entender que
é possível sim; claro que eu falo isso, mas os nossos colaboradores têm 40 anos para 35 anos
mais, vai, porque tem um cara que chama Pedro Ambra que é um psicanalista maravilhoso que
eu acho que tem 33 ou 34, que fez o [Dossiê] Masculinidades, e é um gênio. Maravilhoso.
Então, acho que a maior parte do público é jovem, é universitário, e tá ali, depois da
universidade está fazendo algum outro tipo de formação, ou uma pós e tal, mas a gente tem
muito público que assina a CULT há muitos anos, então, assim, que o pai assina que o filho lê,
uma coisa meio familiar. E eu acho que a gente aumenta, sim, o nosso alcance, de uma forma
positiva. A gente muita pouca crítica quando a gente como alguma coisa mais política, eu vejo
muito isso, também cuido das nossas redes. Amanda cuida, mas eu meio que gerencio, então
eu vejo muito, sei lá, a gente pode colocar o Lula, por exemplo, ou o Moro; a gente tem um
colaborador que chama Wilson Gomes, que é baiano, e que escreve muito de política.
Maravilhoso. As colunas dele dão mais impacto nesse sentido dos haters, e tal, mas é pouco
ainda, é tipo; e mesmo nas redes, as redes são uma coisa meio inexplicável, né, as pessoas
chegam por algum motivo, elas ficam e depois percebem onde elas estão. E mesmo aí eu
percebo que não tem muita confusão, assim, tem gente que, sei lá, #Bolsonaro17, tem um ou
dois que colocaram essa hashtag no nosso… não tá contaminado, entendeu? E eu vejo outras
publicações que não são de direita, não se dizem de esquerda, mas enfim, e que tem muito mais
hater ali, então, assim, eu acho que a CULT ela tem uma comunicação bem honesta e o público
que gosta da gente, eles sabem com quem eles estão falando. Posicionamento é muito
importante, a gente sempre achou posicionamento muito importante aqui. Eu sempre achei
posicionamento importante sempre, porque eu nunca entendi quem lia a Folha [de S. Paulo] e
achava que a Folha era de esquerda ou de direita. Quem vê a Globo, que não sabe o quê que é.
E nos Estados Unidos, por exemplo, a gente sabe, né, se é republicano se é democrata, é mais
claro essa comunicação. Eu acho isso importantíssimo. Então, assim, dizendo do público: ele é
jovem, mas ele não é só jovem, eu acho que é um público que realmente tem interesse em
debater e mudar as coisas como elas estão. Acho que, sei lá, você é novo também; eu ainda
quero mudar, mas é porque eu trabalho com isso, e eu não me conformo com as coisas. Mas,
você vai ver, com o tempo passando, as pessoas começam a se conformar mais. Então, as
pessoas que estão na academia, que estudam, que estão nessas áreas, mais velhas, leem, mas as
131
que não tão mais jovens também leem, entendeu? Mas é difícil também, apontar certamente
quem é o público, entendeu. A gente sabe por conta de feedback, por conta de assinantes, aí a
gente sabe com quem a gente tá falando, mas tem muito mais gente além disso que lê e espalha,
e debate que a gente não sabe. Mas, é isso. Eu acho que restringir é sempre ruim, sabe, e como
eu falei, a gente é isso ou o nosso público é esse, mas certamente, assim, as Universidades
assinam a gente, as escolas assinam a gente. Tem escola, inclusive, que nos espanta, assim,
escola super playboy de São Paulo, que custa super caro. É verdade. A gente fica em choque
aqui. Como a gente é uma equipe pequena, a gente meio sabe de tudo o que acontece, 'gente, a
escola, sei lá, X que custa R$10 mil a mensalidade assinou a CULT", eu falo: Oi? Quem são
essas pessoas? Será que esses pais sabem que a CULT está lá? Eles vão proibir! Pode ser
horrível. [Risos] Mas assim, tem, entendeu? Eu acho que muito do que aconteceu depois desse
governo aí, de 2018, que a CULT virou um oásis, sabe? Tipo, as pessoas vieram para cá
correndo em busca de informação séria e responsável, e que não é mentirosa. Pode concordar
ou discordar, mas que a fonte é segura, a gente sabe, todo mundo que lê sabe, sabe? Eu acho
que isso importa.”

27'40''

[O modo como o dossiê é construído, pensando na figura do intelectual-acadêmico]

[FERNANDA] “Eu acho que essa ideia de buscar a informação em quem está estudando
profundamente a informação é muito importante, porque as pessoas estudam as coisas, né. E a
gente esquece, assim, que as pessoas estudam as coisas, se debruçam em cima de temas, assim;
vou falar de Hegel, o Vladimir [Safatle] estuda Hegel pra cacete, a Marilena Chauí que é outra
musa nossa, que enfim, desde sempre, já foi capa da revista duas vezes; duas, eu acho; também
se debruça sobre as coisas que ela estuda. Ela tem essa preocupação. Então, eu acho que a nossa
ideia, tem os assuntos e tem quem escreve. Eu acho que a gente buscar quem escreve e quem
estuda, é uma responsabilidade muito grande, a gente não pode falar de um assunto que a gente
não entende. Todo mundo aqui é jornalista. A Daysi tem filosofia na formação, mas ela também
trabalhou com assessoria de imprensa por décadas, então, assim, a gente sabe falar sobre
suicídio? Não. A gente quer falar? Sim. Quem sabe falar? Fulano, fulano e fulano. É isso, eu
acho que tem gente aqui que estuda desde, sei lá, foi para a universidade e já foi para o mestrado,
doutorado e tal, e ah, tem gente que acha que não interessa cultura, não interesse esse tipo de
coisa, que isso interessa a poucas pessoas. Não é verdade. Interessa a muita gente e eu acho que
o debate qualificado é um debate por quem estuda as coisas que está debatendo. Pode até ser
"informal", entendeu, tem gente que informalmente; que não tem acesso, e que estuda muito.
A gente vai ter agora um curso aqui com um drag que chama… Von Hunty? [Rita]. É!
Maravilhosa. Amo. A gente ama a Rita. Rita chama… Rodrigo? Não sei. Rita veio aqui como…
é um homem que se veste de Rita. E ele vai dar um curso aqui pra gente que é sobre trabalho,
sobre opressão, poder, um monte de coisa. A Rita tem formação em Letras, informal ela estudou
pra cacete, ela vai dar um curso aqui sobre coisas. Legal, entendeu? Primeiro porque ela é uma
drag que fala com um monte de gente, tem um canal no YouTube maravilhoso, e que fala de
coisas que... cara, a gente não imagina uma drag falando, por nosso preconceito… não, drag
não fala… não, fala. Entendeu? É tipo uma… e ela não tem essa formação, ela não tem tipo um
mestrado, um doutorado, essa trajetória inteira, mas ela tem um baita de um estudo nisso tudo,
uma vivência nisso tudo, um interesse nisso tudo, uma assilidade nisso tudo, então, ela vai dar
um curso aqui. Então, acho que assim, também tem um meio termo nas coisas, agora para
escrever algum sobre, sei lá, o Renan Quinalha que escreve bastante sobre LGBT aqui, que é
ativista, e, enfim, o cara sensacional, maravilhoso, dá curso aqui pra gente também… Pô, o cara
estudou isso a vida inteira. Tudo bem, a vida dele é pouca, ele é super jovem. O cara estuda as
132
questões, o movimento, da onde veio, o quê que ganhou, o quê que perdeu, pra onde vai, quem
é, coisas que só quem estuda consegue falar! Tem a vivências das pessoas, mas tem as pessoas
que estudam a vivência das pessoas, né. As pessoas que estão na academia. E, pô, é um trabalho
dificílimo. Assim, eu conheço algumas pessoas e assim... vocês fizeram alguma outra coisa
além de estudar? Porque a vida… é uma entrega, né? Então, eu acho que a CULT, ela traz as
pessoas para falarem porque a gente confia nessas pessoas para falarem desses assuntos. E a
gente confia, em quem receber essa informação, está recebendo uma informação valiosa que
pode usar, pode não gostar, pode achar…, mas com certeza é uma informação muito bem
apurada, muito bem trabalhada e muito bem estudada. Tem uma responsabilidade no
jornalismo, né. Tinha, pelo menos. Houve uma época que o jornalismo era super responsável,
porque tem um poder ali. Não só jornalismo factual, dos furos e das manchetes. O jornalismo
intelectual, o jornalismo cultural. Se você fala de um livro, que você indica um livro para
alguém ler, você tem que ter alguém que está indicando esse livro que não é o pai do cara, que
alguém que leu e que lê um monte de livros e que sabe teoria da literatura, que entende o que
tá falando. É a responsabilidade. Eu acho que tudo corre para isso, entendeu? A gente tem
vontade de falar, por exemplo, uma ideia nossa de falar com crianças, falar com pessoas que
estão em formação. Quem que vai falar com essas crianças?”

133
ANEXO – Acervo pessoal de revistas do pesquisador

N. MÊS/ANO TEMA
1 julho de 1997 Padre António Vieira
2 agosto de 1997 Biografia de Fiódor Dostoiévski
3 outubro de 1997 Grupo 47
4 novembro de 1997 Literatura brasileira
5 dezembro de 1997 Clarice Lispector
6 janeiro de 1998 Ficção científica
7 fevereiro de 1998 Loucura e literatura
8 março de 1998 O legado de Cruz e Souza
9 abril de 1998 A obra de Emílio Villa
10 maio de 1998 Barroco
11 junho de 1998 Futebol e prosa
12 julho de 1998 Antonio Candido
13 agosto de 1998 Albert Camus
14 setembro de 1998 Lúcio Cardoso
15 outubro de 1998 Bienal de São Paulo
16 novembro de 1998 Stéphane Mallarmé
17 dezembro de 1998 Estudos Culturais
18 janeiro de 1999 Fernando Pessoa
19 fevereiro de 1999 Joan Brossa
20 março de 1999 A cultura na Rússia contemporânea
21 abril de 1999 Salão e Bienal do Livro: a moeda da cultura
22 maio de 1999 João Paulo Paes
23 junho de 1999 Literatura de testemunho
24 julho de 1999 Machado de Assis
25 agosto de 1999 Jorge Luis Borges
26 setembro de 1999 Carlos Drummond de Andrade
27 outubro de 1999 Literatura portuguesa
28 novembro de 1999 Sigmund Freud
29 dezembro de 1999 Cultura e gastronomia
30 janeiro de 2000 Erotismo, pornografia e literatura
31 fevereiro de 2000 James Joyce
32 março de 2000 Gilberto Freyre

134
33 abril de 2000 Robert Arlt
34 maio de 2000 Jean-Paul Sartre
35 junho de 2000 Marilena Chauí
36 julho de 2000 Franz Kafka
37 agosto de 2000 Friedrich Nietzsche
38 setembro de 2000 Eça de Queirós
39 outubro de 2000 Expressionismo
40 novembro de 2000 Oscar Wilde
41 dezembro de 200 Nelson Rodrigues
42 janeiro de 2001 Graciliano Ramos
43 fevereiro de 2001 Guimarães Rosa
44 março de 2001 Martin Heidegger
45 abril de 2001 Literatura argentina
46 maio de 2001 Literatura Espanhola
47 junho de 2001 António de Alcântara Machado
48 julho de 2001 Osman Lins
49 agosto de 2001 Caetano Veloso
50 setembro de 2001 Vanguarda surrealista
51 outubro de 2001 Cecília Meireles
52 novembro de 2001 Grupo Oulip
53 dezembro de 2001 Literatura e Islã
54 janeiro de 2002 Poesia de Cordel
56 março de 2002 Literatura norte-americana
57 maio de 2002 Monteiro Lobato
61 setembro de 2002 Antonio Candido
62 outubro de 2002 Carlos Drummond de Andrade
66 fevereiro de 2003 Literatura gay
83 agosto de 2004 Os Estados Unidos e a filosofia
98 dezembro de 2005 Bento de Núrsia: o que Deus espera do Homem?
99 janeiro de 2005 O conceito de amor, filosofia e política em Hannah Arendt
A supremacia da dúvida: a atitude cética na filosofia como
121 fevereiro de 2008
método para a denúncia crítica dos dogmas
123 abril de 2008 Merleau-Ponty com texto inédito de Marilena Cahuí
1968: muito além de maio - os episódios em que a história de
126 julho de 2008 encheu de liberdade e esperança devem ser lembrados para
tentar fazer com que vença a esperança dos vencidos

135
131 dezembro de 2008 Deus no pensamento contemporâneo
133 março de 2009 O feminismo no pensamento do século 20
Antonio Gramsci: a atualidade do pensador italiano nos debates
141 novembro de 2009
nacionalistas sobre política, cultura e educação
Filosofia e consolação: a filosofia pode transformar o sofrimento
143 fevereiro de 2010
humano em potência positiva?
Ética em tempos de crise: o dilema da ação em um mundo de
145 abril de 2010
indiferença e cinismo
Os rumos da cultura no Brasil: especialistas analisam os
151 outubro de 2010 caminhos das artes plásticas, música, literatura, cinema, teatro e
filosofia
Contracultura: os eventos incandescentes do movimento e seus
152 novembro de 2010 ícones: Bob Dylan, Timothy Leary, Allen Ginsberg, Jack
Kerouac, Jim Morrison, Marcuse
Mundo árabe: música, história, literatura, arqueologia, política,
156 abril de 2011
comportamento, revolução e artes plásticas
O mito da juventude: bullying, drogas, famílias disfuncionais,
157 maio de 2011 cirurgias plásticas e a ideologia do novo - que significa ser
jovem hoje?
162 outubro de 2011 Lévi-Strauss: o criador de mitos
Dostoiévski e Tolstói: lançados em tradução direta, Guerra e Paz
163 novembro de 2011 e Nova Antologia do Conto Russo questionam lugar do homem
no mundo
166 março de 2012 O intelectual total: Pierre Bourdieu
Mal-estar na cultura: Robert Darnton, Vladimir Safatle, David
168 maio de 2012 Kessler e Gonçalo Tavares discutem a tensão entre alta e baixa
cultura
172 setembro de 2012 Rousseau 300 anos: o criador da modernidade
Adorno: o filósofo contra o capital - obra do pensador alemão é
173 outubro de 2012
central para entender a teoria estética contemporânea
176 fevereiro de 2013 Metamorfoses de Joyce
O Papa intelectual: fracasso ou vitória? O legado de Joseph
177 março de 2013 Ratzinger, o sentido de seu pontificado e renúncia; fé, crítica da
cultura, ética e filosofia
É hora de ler Rimbaud: a transgressão do poeta que
178 abril de 2013 revolucionou a literatura e terminou a vida como traficante de
armas
179 maio de 2013 200 anos Kierkegaard: o desafio da existência
Giorgio Agamben: um filósofo para o século 21. Em texto
exclusivo, o pensador italiano reflete sobre a dificuldade da
180 junho de 2013
leitura. Especialistas brasileiros e estrangeiros abordam as
consequências políticas e éticas de sua obra
A língua de Freud e a nossa: nova tradução acirra disputa.
181 julho de 2013
Instinto, pulsão, repressão, ego, eu, catexia, recalque.
182 agosto de 2013 A crise da crítica?

136
Rap, funk e tecnobrega: a linguagem da periferia cria uma nova
183 setembro de 2013
estética que modifica a agenda da elite cultura do país
O poder da psiquiatria: o que está por trás da psiquiatrização da
184 outubro de 2013
vida cotidiana
Judith Butler: a filósofa que desafia as classificações
consagradas e cria um novo pensamento sobre identidade,
185 novembro de 2013
feminismo e sexo, revelando novas linguagens para questões
contemporâneas
A modernidade de Francisco de Assis: o legado de um rebelde
186 dezembro de 2013 que influenciou a arte, a literatura e a história da civilização
ocidental
187 fevereiro de 2014 O filósofo da imagem, do design e da linguagem
O fim do jornalismo crítico? Novas diretrizes instigam o
188 março de 2014
confronto entre teoria e prática
Antonio Negri: o pensador da potência política - um marxismo
pouco ortodoxo, que coloca "Marx além de Marx", ensina que a
189 abril de 2014
história e o pensamento estão em movimento. Ao militante cabe
reinventar a ação política
Psicanálise e religião: no divã com jesus - a busca da felicidade
190 maio de 2014 faz proliferar novas religiões que oferecem serviços milagrosos
e satisfação em curto prazo
Michel Foucault: pensar é resistir - trintar anos após da morte do
191 junho de 2014 filósofo, o barco carregado de loucos continua à deriva e excede
os horizontes da compreensão
Racionais MC's: a voz de trovão anticordial - o grupo que marca
192 julho de 2014
um acontecimento político dentro da cultura completa 25 anos
Teoria queer: o gênero sexual em discussão - a reflexão contra a
normatização torna-se uma questão política contemporânea e
193 agosto de 2014
denuncia uma das faces mais perversas do capitalismo: a do
controle da singularidade dos corpos
Franz Kafka: a literatura como experimentação política e
194 setembro de 2014
filosófica
Jacques Derrida: a originalidade de uma obra que convida a
195 outubro de 2014
atravessar um abismo sem rede de segurança
Culturas partilhadas: pensadores do oriente e do ocidente
196 novembro de 2014 refletem sobre a urgência de nos reconhecermos pelo olhar do
outro
197 dezembro de 2014 A arte como inscrição da violência
Gastronomia é cultura? formação, identidade e história da
198 fevereiro de 2015
alimentação
199 março de 2015 A linguagem do trauma: entre o poético e o político
200 abril de 2015 Centenário Roland Barthes
Psicanálise em outros verbetes: coxinha, internet, as margens da
formação, o chato do vinho, amizade, mimimi... Psicanalistas de
201 maio de 2015
linhas diversas apresentam discussão inédita sobre teoria e
prática dos consultórios

137
Ditadura heteronormativa: a cultura que insiste em não
202 junho de 2015
reconhecer e aprender com as diferenças sexuais e de gênero
Literatura e experiência: a hora e a vez dos testemunhos e das
203 julho de 2015
narrativas dos oprimidos
Filosofia da ancestralidade: crítica das razões mestiças,
204 agosto de 2015 atualidade da negritude, os gregos não inventaram a filosofia,
pensamento afro-brasileiro, simbolismo de Exu
A era do trauma: a psicanálise e a compreensão do indivíduo
205 setembro de 2015
moderno
206 outubro de 2016 Estruturas da crise política
207 novembro de 2015 O pensamento brasileiro nas artes visuais
208 dezembro de 2015 A psicanálise e as formas do político
209 fevereiro de 2016 Brasil: pátria educadora?
210 março de 2016 Percepções do feminino e ações feministas
211 abril de 2016 Psicanálise
212 maio de 2016 Guy Debord e a sociedade do espetáculo
213 junho de 2016 Poemas para o nosso tempo: a nova geração de poetas do país
214 julho de 2016 Andrei Tarkovski e o cinema de poesia
215 agosto de 2016 Adorno e a reinvenção da dialética
216 setembro de 2016 Saussure 100 anos depois
O lugar impar de Raymond Williams na linguagem do
217 outubro de 2016
marxismo ocidental
218 novembro de 2016 Hegel: um pensamento que revela a filosofia em movimento
A quarta onda: a revolução será feminista, negra, jovem, vadia,
219 dezembro de 2016
queer ou não será nada
221 março de 2017 Montaigne filósofo: ensaiar a própria vida
Diálogos inéditos: Gramsci - os novos estudos e a recepção de
222 abril de 2017
seu pensamento na atualidade
225 julho de 2017 Os juízos da psicanálise sobre a arte e os artistas
Artivismo das dissidências sexuais e de gênero: a arte enfrenta a
226 agosto de 2017
violência normativa dos nossos dias
Réquiem para uma nação: o fim da sociedade salarial, a
gramática da violência, a forma do Estado policial, o silêncio
227 setembro de 2017
das ruas... O surgimento de um Estado que não é favorável à
vida
Marx e as crises do capitalismo: 150 anos de O Capital - nem
228 de 2017 profecia, nem dogma. Por que os economistas erram tanto em
suas previsões? Os espectros que podem voltar
Benedito Nunes: o filósofo da poesia - estudiosos que
231 fevereiro de 2018 conviveram com o crítico paraense analisam a importância de
sua obra para a vida intelectual brasileira
Os 40 anos do movimento LGBT no Brasil: o desejo de
235 junho de 2018
transformação e uma revolução política por fazer

138
Nietzsche misógino? Eugenista? Reacionário? O pensamento do
236 julho de 2018
filósofo nas questões contemporâneas
237 agosto de 2018 Winnicott e o entendimento do humano na psicanálise
238 setembro de 2018 A psicanálise entre feminismos e femininos
239 outubro de 2018 O imenso Graça: Vidas Secas, 80 anos
240 novembro de 2018 Achille Mbembe e a crítica da razão negra
Sexologia política: o ódio ao gozo do outro. A retórica moralista
241 dezembro de 2018 e o controle social de corpos e desejos. Quando a mentira serve
à homofobia
Cartografias da masculinidade. Fantasma do mito viril; O
242 fevereiro de 2019 colapsado da lógica indenitária; Destinos do masculino;
Maneiras plurais de ser homem
O feminino de ninguém: as desconstruções teóricas sobre libido,
243 março de 2019
gozo, amor, gênero e maternidade
244 abril de 2019 Pacote de Tróia: a lei anticrime de Sérgio Moro
245 maio de 2019 Walter Benjamin: cultura e crítica em tempos de novas barbáries
247 julho de 2019 Como a filosofia pensa o cinema?
Vamos falar de suicídio? Psicanalistas refletem: quem matamos
250 outubro de 2019
quando matamos a nós mesmos?
Parentalidade e vulnerabilidades: héterno, homo, mono ou
251 novembro de 2019
pluriparental
Fé e política: teólogos refletem sobre os movimentos
252 dezembro de 2019
progressistas e conservadores no cristianismo
253 janeiro de 2020 Especial Freud

EDIÇÕES ESPECIAIS

01 janeiro de 2010 Filosofia Francesa Contemporânea


01 janeiro de 2014 Grandes entrevistas
05 janeiro de 2015 Michel Foucault
06 janeiro de 2016 Queer: cultura e subversão das identidades
07 julho de 2016 Psicanálise
08 janeiro de 2017 Jacques Lacan: Além da clínica
09 janeiro de 2018 Hannah Arendt: Um pensamento atual
10 janeiro de 2019 Simone de Beauvoir e os paradoxos do feminino

CULT – ANTOLOGIA POÉTICA

01 Poemas para ler antes das notícias

139

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