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Auri,

a anfitriã
Auri,
Caro leitor,

S
e eu fosse a dona desta casa, faria como uma de

a anfitriã
minhas protegidas em seus lares: convidaria a en-
trar e tomar um café. A conversa, certamente, pode

Aline Moura
ser longa. Contudo, não tenho autoridade para tal convite.
Isso está fora do meu alcance. Sou tão refém do sistema
que tudo rege quanto às mulheres que em mim vivem. Memórias do Instituto Penal Feminino
Eu, a própria prisão. E elas, minhas hóspedes. Prazer!
Chamo-me Auri. Gosto quando dizem que eu sou a an- Desembargadora Auri Moura Costa
fitriã. Estou aqui para convidá-lo a ler uma história. Na
verdade, um cruzamento ininterrupto de histórias. Elas
não são minhas, mas de minhas protegidas. Esqueça a
má fama construída por meus antepassados. Quero que
conheça meu labirinto através do que tenho a contar. Re-

Bárbara Almeida
sumida em minha impotência de abrigo, o que posso fazer
por essas mulheres é revelar as verdades usurpadas por
minhas paredes. Trago à órbita três crimes marcados pela
influência de terceiros. Namorados. Maridos. Amantes.
Venho oferecer as memórias revividas por Maribel, Jés-
sica, Cinara e Patrícia, mulheres que, ao desvendarem os
enigmas do passado, foram intensamente tocadas pelo
cárcere. Entre, mas não sente. Vamos passear pelas vi-
das das pessoas que dão sentido a minha existência.
De: Auri Aline Moura Bárbara Almeida
Auri,
a anfitriã
Auri,
a anfitriã
Memórias do Instituto Penal Feminino
Desembargadora Auri Moura Costa

Aline Moura
Bárbara Almeida
FICHA TÉCNICA

AUTORIA E EDIÇÃO . . . ALINE MOURA E BÁRBARA ALMEIDA


ORIENTAÇÃO . . . . . . . . . NAIANA RODRIGUES
PROJETO GRÁFICO . . . . . . . . . . ED BORGES
CAPA E DIAGRAMAÇÃO . . . . . . . . ED BORGES
FOTOGRAFIAS . . . . . . . . . . DANIEL MUSKITO
REVISÃO . . . . . . . . . . . EMANOEL PEDRO

Auri, a anfitriã: Memórias do Instituto Penal Feminino Desembargadora


Auri Moura Costa.

Livro-repor tagem apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso


na Graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalis-
mo, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

AGOSTO DE 2013
FORTALEZA , CEARÁ
Agradecimentos
Aline
Agradeço antes de tudo aos meus pais, Francisca e Benedito, pela
dedicação, cuidado e apoio; à minha irmã, Amanda; e ao meu sobrinho,
William. Dedico este livro também aos meus demais familiares, tanto
aos de Fortaleza quanto aos de Nova Iguaçu.
À Universidade Estadual do Ceará (UECE), que foi minha base,
e aos companheiros do curso de Letras. Aos amigos que me acom-
panharam desde o início dessa jornada que se chamou Universida-
de Federal do Ceará (UFC), Aline Lima, Fernando Wisse, Gabriela
Alencar, Ingrid Matela e Nina Ribeiro, e aos demais colegas da Tur-
ma 2009.2 do curso de Comunicação Social. Às amizades lindas que
construí pelos corredores da UFC e aos meus eternos conselheiros,
Ed Borges e Rochelle Guimarães.
À Tânia Alves, pela confiança de me enviar ao Miss Penitenciária
2012, onde encontrei a inspiração deste trabalho, e ao Plínio Bortolotti,
pelos ensinamentos e, principalmente, pelos puxões de orelha. Quero
mencionar os irmãos que ganhei em minha passagem pelo jornal O
Povo, Thaís Brito, Thiago Paiva, Danilo Castro, Lusiana Freire, Marcos
Robério, André Victor e Mauri Melo, e os diversos filhos que ganhei
através do projeto Novos Talentos.
À Bárbara Almeida, minha eterna parceira, pela segurança e pela
maturidade que me passou durante os meses de mergulho neste mundo
chamado Auri.

Bárbara
Agradeço, primeiramente, à minha família. Aos meus pais, Odilo e
Mazé, e também aos meus irmãos, Pedro e Vítor. Pelo amor e dedicação,
assim como pela visão de mundo que sempre alimentaram nossas rela-
ções. Devo a vocês o que esta obra significa em minha vida. Obrigada
por terem me acompanhado tão de perto.
Aos demais familiares, tios, tias e primos, minha gratidão pelo
apoio e entusiasmo. Dedico esta obra à Dona Mirtes, minha amada
avó, e também à Dona Mariquinha, um beija-flor que se alimenta de
doce amor em nossas memórias.
Agradeço ao Davi, meu namorado, pela confiança e estímulo. Ao
meu lado, sempre abriu portas para mundos curiosos e me instigou a
novas descobertas. Também quero mencionar os amigos que mergu-
lharam nessa viagem. São muitos, entre eles, Daniel Muskito, nosso fo-
tógrafo, Edson Feitosa, que fez filmagens, e também Ed Borges, nosso
talentoso designer gráfico.
À Aline Moura, companheira de outras andanças, agradeço pela
confiança nesta parceria e pelos ensinamentos que me concedeu com
sua amizade. Sua importância na minha vida agora é marca imortal.

As autoras
Agradecemos, de antemão, àquelas que nos receberam em suas
vidas. Às mulheres que se dispuseram a abrir suas feridas e suas pai-
xões, na esperança de semearem dias melhores a quem respira o mun-
do do cárcere. Mergulhar em suas realidades foi, simplesmente, fasci-
nante e revelador.
À Naiana, nossa orientadora, nossos sinceros abraços. Sabemos do
esforço para nos acompanhar nessa investigação, por isso, agradecemos
a paciência e a dedicação. Suas observações sempre nos salvaram da
escuridão e nos trouxeram à luz de felizes escolhas.
Aos queridos Ed Borges, responsável pelo belo e sensível projeto
gráfico deste livro, e Daniel Muskito, que com sua fotografia experimen-
tal nos proporcionou um novo olhar sobre a vida marginal. Não poderí-
amos ter escolhido pais melhores para a nossa filha, Auri.
À Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará, pela
atenção e disponibilidade, e à direção e demais funcionários do Ins-
tituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, por nos
receber de braços abertos.
Ao Plínio Bortolotti, à dona Mazé e aos demais amigos e familiares
que se dispuseram a ler nossos rascunhos e a ser nossos primeiros leitores.

E, enfim, a nossa Auri.


Sumário
Apresentação . . . . . . . . . 12

[Auri]
Prólogo . . . . . . . . . . . 24

[Maribel e Jéssica]
As estrangeiras . . . . . . . . . 38

[Cinara]
A amante dos livros . . . . . . . 72

[Patrícia]
A mãe do crack . . . . . . . . 108

[Para sempre, Auri]


Epílogo . . . . . . . . . . . 144

Referências bibliográficas . . . . . 160


Apresentação
Auri, a filha de duas mães
AURI, A FILHA DE DUAS MÃES

Relato escrito por Aline


A ideia de produzir este livro, com histórias de presidiárias, surgiu
após experiência na cobertura da primeira edição do concurso Miss Pe-
nitenciária Ceará. O evento foi realizado, em 2012, na quadra no Insti-
tuto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa e contou com
a participação das internas, com apresentações de dança e canto. Elas
eram o público e ao mesmo tempo a atração principal. Participaram
do concurso 13 candidatas de diversos faixas etárias e nacionalidades.
Ao me aproximar delas, confesso que me surpreendi por serem jovens,
bonitas e talentosas. Entre conversas rápidas nos bastidores do evento,
pude colher de relance alguns detalhes sobre essas mulheres. Na verda-
de, a aproximação inicial só fez aumentar a incógnita em torno delas.
Comecei a me questionar o quanto a vida daquelas mulheres não
tinha nada de óbvio. Não eram apenas criminosas. Eram seres huma-
nos com sonhos, fantasias e sentimentos. Foi interessante vê-las em um
contexto que fugia do cotidiano do cárcere. Pareciam-me acima de tudo
mulheres. Vaidosas por vezes. Inseguras quase todo o tempo. Ansiosas
pelo resultado. Preocupadas com a maquiagem, a roupa ou o sapato. O
pesar pela unha que quebrou durante o desfile. Algumas me questiona-
vam se elas tinham ido bem, ansiosas por elogios. Ali no meio daquela
festa, esquecia-me, por vezes, de que estava em um presídio.
De tudo, no entanto, o que mais inquietava era saber como aquelas
mulheres, tão iguais a qualquer outra em alguns aspectos, tinham aca-
bado em uma circunstância tão adversa. Como tentar extrair detalhes
tão sombrios de suas histórias durante um dia que era para ser de alegria
e leveza? Calei-me, então. Guardei para mim essa curiosidade. Quase
um incômodo por desejar mergulhar um pouco mais. Quando retornei
ao meu local de trabalho, fui praticamente bombardeada por perguntas
vindas de colegas, também sedentos por mais detalhes das histórias de
quem vive ultrapassando os limites das leis. Respondi que esses deta-
lhes não teriam espaço em uma pauta do jornalismo cotidiano. Meio de
brincadeira, profetizei: “Isso daria um livro”. E realmente deu.
Por que, então, não poderia ser um livro escrito por mim? Daí
para, enfim, tomar a coragem de assumir que queria levar esse projeto
adiante foi um passo. Fiz o projeto e sugeri como tema do meu Trabalho
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AURI, A ANFITRIÃ

de Conclusão de Curso (TCC) na graduação em Comunicação Social,


com habilitação em Jornalismo. O passo seguinte foi definir como eu
gostaria de me apropriar do tema. Resolvi que o ideal era ouvir o que as
próprias presidiárias tinham a contar. Saber, por elas, por quais estradas
já passaram e como escolheram os caminhos que as levaram até o cár-
cere. Assim, decidi dar voz àquelas mulheres e traçar perfis. A intenção
não seria estabelecer nenhum tipo de julgamento, mas ter como linha
de abordagem a forma como as personagens se veem e narram a pró-
pria trajetória de vida, mesmo possuindo traços fantasiosos. Como elas
constroem a própria verdade.

Relato escrito por Bárbara


Lembro-me do dia no qual Aline fez essa cobertura. Enquanto ela
era estagiária da editoria de cidades, em um jornal impresso, eu tam-
bém estagiava na redação desse mesmo periódico, na editoria de eco-
nomia. Antes disso, Aline e eu participamos da mesma turma de um
curso de imersão para estudantes de jornalismo, realizado pelo grupo
comunicacional desse jornal, em suas redações. Nos conhecemos du-
rante a bateria de exames e entrevistas de seleção, enquanto dividíamos
o nervosismo daquele instante. Do primeiro contato, recordo que ela ti-
nha a espontaneidade e franqueza que gosto de ver nas pessoas. Dentre
as centenas de candidatos, ficamos entre os oito escolhidos e, quando
findado o curso, fomos contratadas como estagiárias.
Além disso, nós duas também éramos colegas de classe na Univer-
sidade Federal do Ceará (UFC), desde quando ingressei na instituição.
E a partir de então, fizemos vários trabalhos juntas, incluindo um labo-
ratório de radiojornalismo e um jornal-laboratório.
Na redação, nos víamos todos os dias. No horário de almoço jor-
nalistas e estagiários se reuniam na copa, não só para saciar a fome,
mas também para trocarmos ideias e jogar conversa fora. E foi assim
que fiquei sabendo da pauta que Aline acabara de cobrir, na peniten-
ciária feminina. Ela estava simplesmente encantada com o contato
que havia feito com o lugar e com as pessoas de lá. Desconstruía para
mim e para todos os presentes os estereótipos que tínhamos em torno

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AURI, A FILHA DE DUAS MÃES

daquele ambiente, falando das belas candidatas ao concurso de Miss


Penitenciária Ceará.
E, enquanto lavava o seu depósito do almoço na pia, de costas para
mim, soltou: “sabe que isso daria para escrever um livro-reportagem?”.
Deu uma pausa e voltou com uma entonação de quem havia tido uma
ideia brilhante: “Taí, encontrei o tema do meu TCC!”. Desde então, eu
era uma das espectadoras que ficava fascinada só em ouvi-la contar sua
experiência com as presidiárias. O cárcere não era um tema com o qual
eu tinha familiaridade, apesar de ter despertado interesse para outras
temáticas relacionadas.
No semestre seguinte, faríamos a disciplina de Projeto Experimen-
tal. Eu também precisava de um tema, pois queria escrever meu TCC no
formato de livro-reportagem. Pensei em falar sobre casas de recuperação
de adictos, mas não levei a ideia para frente. Por ser filha de arquiteto,
sempre estive em contato com a observação da cidade. Decidi, portanto,
falar sobre um elemento fundamental para as pessoas que habitam uma
cidade, que é a praça. Escolhi uma praça com significado para mim. O
único diferencial da minha proposta, até agora, era a perspectiva de nar-
rador. Fascinada com um romance de uma escritora cearense chamada
Natércia Campos, tinha no livro A Casa meu ideal de narrativa. Ele tra-
zia uma narração em primeira pessoa de uma casa interiorana do sertão
nordestino, sobre seus habitantes e a vida em volta deles.
Contudo, no semestre seguinte já partiríamos para a pesquisa. An-
tes que ele começasse, investiguei o meu objeto com mais cuidado, para
desenvolver o projeto. Hoje, vim conseguir denominar o que me faltava
naquela época. Eu não sentia paixão. Fiquei às voltas com esse senti-
mento, visitando a praça e buscando elementos motivadores. Enquanto
isso, Aline continuava a todo vapor em sua pesquisa, dividindo comigo
constantemente suas emoções. Algumas pessoas tentaram desanimá-la
de seu objeto, por acreditarem ser muito difícil. Entre outras pessoas,
eu era uma daquelas que a encorajava. O objeto era mais que perfeito!
Terminado e apresentado os projetos, chegava a hora de arrega-
çar as mangas. A Universidade entrou em greve, o que nos daria mais
tempo para investigar. Voltei à praça vários dias seguidos. Eu adoro o
lugar, mas não conseguia justificar a escolha de um livro-reportagem
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AURI, A ANFITRIÃ

para falar dela, nos moldes que eu gostaria. Quando começou o período
de matrícula, uma ideia latente passava a povoar meus pensamentos.
Não parava de pensar na riqueza de histórias que aquela penitenciária
do tema de Aline poderia retratar. Segurei a ansiedade por alguns dias,
até que não aguentei. Sentei com Aline e fiz a proposta. Queria saber se
ela aceitaria dividir sua pesquisa comigo. Como parte da proposta, ela
precisaria comprar não só a mim, mas também a penitenciária como
narrador em primeira pessoa. Para minha sorte, ela disse sim.

Relato escrito por Aline


Com a entrada da Bárbara, o projeto continuou com a proposta de
contar a verdade daquelas mulheres, mesmo ganhando novas configu-
rações. Agora, seria o espaço quem contaria as histórias. Essa perspec-
tiva deu ainda mais força à proposta de dar voz às mulheres que vivem
no cárcere. Afinal, o espaço apenas poderia contar o que ouviu de suas
“hóspedes”. O importante era dar voz a esse estranho elemento chama-
do memória. Assim como o mestre Plínio Bortolotti nos falou, certa vez,
não faltariam aquelas que queiram conversar, desabafar suas angústias.
Essa seria nossa sorte e dos demais aventureiros do “mundo externo”,
que tentam desbravar os labirintos do cárcere.
Voltar ao Auri para a primeira entrevista foi um misto de ansieda-
de e nervosismo. Tínhamos, inicialmente, uma lista de possíveis nomes
para se transformarem em nossas entrevistadas. Nomes que me marca-
ram no dia em que pisei no IPF, pela primeira vez. Apresentamos a lista
à direção, que nos encaminhou a primeira delas. Logo a nossa primeira
tentativa já nos trouxe uma incrível história. Cada vez que mergulháva-
mos mais nessa história, mais pensávamos que apenas esta já renderia
material suficiente para um livro. Com o tempo, fomos discutindo sobre
os perfis que queríamos contemplar para abordarmos vivências dife-
renciadas. Assim, alguns nomes foram deixados de lado, com um pesar
no coração, pois sabíamos que seriam boas histórias. Infelizmente, nem
mesmo um livro conseguiria contemplar todo o universo que encontra-
mos ali. Quem sabe uma trilogia? Nem mesmo assim.
Todas as entrevistas que fizemos sempre duravam mais de uma
hora. Às vezes, quase duas. Saíamos exaustas, assim como nossas entre-
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AURI, A FILHA DE DUAS MÃES

vistadas. Foram duas entrevistas com cada uma. Exceto por um delas,
a mais falante de todas. Com essa, foram três entrevistas de quase duas
horas. Cada uma de nossas entrevistadas tinham características peculia-
res. Com uma, tínhamos que ser insistentes para conseguir adentrar um
pouco em seu mundo. Era mais fechada. Outra, já bem falante e caris-
mática, parecia querer convencer em sua fala. Outra conseguia dominar
a entrevista com maestria, chegava a discursar, de tão bonitas que eram
suas respostas. Por último, tinha a entrevistada mais tranquila de todas.
Falava de boa sobre tudo, com um jeito engraçado, apesar da escuridão
que sua história envolvia. Além delas, também conhecemos, em conver-
sas rápidas, professoras, agentes, demais funcionários e outras internas.
Vários elementos da pesquisa de campo ficarão marcados em nossa
memória. A estrada que nos deu ainda mais sede. Sentíamo-nos aventu-
reiras. A adrenalina sempre percorria nossas veias nas viagens até Itaitin-
ga. A vista do complexo penitenciário, imponente de longe e de perto. A
casinha cor-de-rosa diante do estacionamento. A espera na recepção que
nos dava tempo para observar o cotidiano daquele local. O exame com o
detector de metal. A passagem pelo portão. O infinito corredor de pare-
des rosas que tínhamos a nossa frente. O barulho do trabalho. Tudo isso
ajudou a construir o universo da nossa narradora, a Auri.

Relato escrito por Bárbara


As primeiras entrevistas, para mim, foram de descoberta. Eu nun-
ca havia pisado num complexo penitenciário, nem havia feito qualquer
contato com o cárcere, além de delegacias. Nossa primeira entrevistada
era uma estrangeira, mas muito articulada, tanto no idioma português
como na imagem que gostaria de passar. Levei vários puxões de orelha
da Aline por ter me envolvido e me preocupado demais com a situação
da personagem. É verdade, nessas horas, o mais difícil, pra mim, era me
manter emocionalmente longe das entrevistadas. Dali em diante, esse
passou a ser o meu exercício a cada visita.
As manhãs de entrevista eram, simplesmente, incríveis. Bagunça-
vam completamente as nossas rotinas já muito atribuladas, mas eram
sempre muito animadoras. Aline descia na rodoviária próxima à mi-
nha casa, para irmos até Itaitinga no meu carro. Passamos bons mo-
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AURI, A ANFITRIÃ

mentos nesse percurso. Era quando conseguíamos discutir cuidado-


samente sobre os aspectos da nossa pesquisa, quando não estávamos
ouvindo música. Às vezes, porém, fazíamos tudo ao mesmo tempo,
em meio a muita euforia.
Na volta, estávamos sempre extasiadas e com as ideias fervendo
em nossas cabeças. Fazer este trabalho em dupla, com uma parceira
tão centrada e de apurado senso lógico como Aline, foi crucial. Suas
ponderações sempre foram iluminadoras. E aquela troca nos alimen-
tava mais e mais.
Outras entrevistas, por outro lado, conseguimos fazer fora da pe-
nitenciária. Isso era muito produtivo, pois além de ganharmos tempo,
conseguíamos investigar também os aspectos que estavam sobre o con-
trole da instituição. A cada nova entrevista, tanto os entrevistados como
nós estávamos mais amadurecidos. Aos poucos, tínhamos mais segu-
rança na nossa proposta e nos apercebíamos de tudo em volta. Nosso
foco não era só as personagens. Mas também compreender como aquele
universo, respirado por elas, interagia com as pessoas que lá habitavam.

Relato escrito por Aline


O processo de escrita se mostrou ainda mais desafiador que as ou-
tras etapas enfrentadas até então. Como daríamos vida a ideia de cons-
truir um narrador em primeira pessoa? Mais ainda, um narrador que é,
ao mesmo tempo, o espaço? Dividimos a histórias e cada uma escreveu
sozinha uma parte. Após esse momento, tentamos unificar nossos es-
critos em um único texto. Foi um mexe daqui, tira dali, bota acolá. De
tanto mexer, o texto do primeiro capítulo pareceu ganhar o mesmo tom.
No entanto, pecamos no mais essencial. O narrador em primeira pessoa
não estava ali ainda. Eu, principalmente, ainda me sentia refém do texto
“hardnews”. Precisávamos mergulhar de vez na ideia do espaço como
narrador. Era a hora de apenas se permitir.
Com o foco no narrador em primeira pessoa, resolvemos criar
uma identidade feminina pra aquele espaço. Quem melhor do que uma
mulher para falar de mulheres? Mais do que anfitriã, a narradora seria
como uma mãe para suas hóspedes. Assim, nasceu a Auri. Ao passo que
escrevíamos, tentávamos encaixar termos que pudessem demarcar a
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AURI, A FILHA DE DUAS MÃES

presença da narradora, tais como “minhas hóspedes”, “meus cômodos”,


“meus domínios”, “mundo exterior”, “leis dos homens”. É interessante
pensar como essa entidade que temos como narradora vê o mundo fora
de si mesma, regido essencialmente por homens. Ainda mais ela, que
sempre lidou apenas com mulheres e com toda a subjetividade inerente
a natureza feminina.
As reflexões da narradora abordaram intensamente temas como
gênero e identidade sexual. No entanto, isso não foi algo delimitado an-
tes da pesquisa em campo. Isto nos foi exposto da forma mais natural.
As questões se apresentaram a nós, ao passo que mergulhávamos nas
histórias e no cotidiano das personagens. Optamos por individualizá-
-las, assim como a narradora, por meio de suas características princi-
pais. Assim, surgiu o título do livro e de seus capítulos.

Relato escrito por Bárbara


No nosso caso, escrever e entrevistar não foram processos separa-
dos. Logo no primeiro capítulo, percebemos que o volume de informa-
ções era tão grande que não fazia sentido deixar para escrever depois.
Precisávamos de tudo muito fresco: não só as informações, mas tam-
bém as nossas percepções. Os primeiros resultados eram mais animado-
res pelo conteúdo, do que pela forma. Esta ainda não estava muito cla-
ra. A linguagem para a nossa narradora, a própria penitenciária, ainda
era muito precária. Pois o mistério que cercava a história nos enlaçava
muito mais do que a narradora. E isso tanto nos confundia, quanto às
pessoas que nos auxiliavam.
Só depois de começarmos as outras entrevistas, depois de muito
exercitarmos a reescrita e de termos buscado beber água de fontes ins-
piradoras, como Foucault, Capote, Jorge Amado, Eliane Brum, é que
conseguimos estruturar a nossa linha narrativa. Depois, vieram outras
contribuições, como reportagens jornalísticas sobre o sistema penal e
escritores mais próximos das periferias, como MV Bill e Celso Athayde,
membros da Central Única de Favelas (CUFA). Conseguimos encon-
trar, enfim, a nossa identidade. Aliás, a nossa não, a identidade de Auri.
A penitenciária que ganhou vida a partir de suas reclusas.

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AURI, A ANFITRIÃ

Auri não é simplesmente uma cadeia. Ela é uma morada. E, para


além de “vigiar e punir” infratoras, ela tem um espírito maternal que
almeja cumprir o papel de cuidar e regenerar. Todavia, Auri não é a
instituição a qual representa. Sua função é acolher, apenas. Nem mesmo
suas protegidas têm a certeza de sua companhia, quanto mais os “ho-
mens da lei” e as pessoas que ali trabalham. Mas todos têm garantido a
sua proteção. E, por isso, Auri conhece mais do que ninguém as versões
espontâneas das histórias de vida de suas internas. Neste livro, ela, pois,
é quem decide revelar o que acontece por dentro de suas paredes.

Boa leitura!

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Prólogo
[Auri]
Eu, a hospedeira
de memórias
“Tem gente que vira bicho.
Gente que vira anjo. E até quem
subverte todos os sentidos.”
Auri
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

É
difícil falar de si mesma. Ainda mais quando nem sei ao certo o
que sou. Apenas camadas de concreto ou algo mais espiritual? A
única certeza que tenho é a de que minha existência só encon-
tra sentido nas criaturas completamente orgânicas que habitam meus
labirintos. Apenas quando aqueles seres, à época estranhos, passaram
a circular por meus cômodos, foi que realmente me dei conta da mi-
nha própria existência. A cada fêmea que adentrava meus limites, mais
eu parecia ganhar vida. O turbilhão de histórias que com elas vieram
passou a agir como um plasma mágico em minhas veias atrofiadas. O
pulsar dessas histórias ganhou velocidade a ponto de fazer meu coração
de cimento bater pela primeira vez. À medida que meu coração pulsa-
va, mais longe fazia chegar esse plasma até atingir meu cérebro. Com
ele, meus olhos e ouvidos se abriram para tudo que acontecia em meus
domínios. Eu, herdeira de um dos ofícios mais hediondos da humani-
dade, assumi a responsabilidade de acalentar essas almas berrantes com
a minha proteção.
Do alto e ao redor, vivo a cercá-las. Vim a lume porque dei à luz
junto com muitas delas. Sou uma extensão de suas maternidades. A par-
tir de então, capto tudo ao meu redor. Consumo as histórias como um
alimento. Sinto que o pulsar de vida em mim só aumentou nos meus 13
anos de existência. Ironicamente, a única coisa que esse pulsar não des-
pertou foi minha boca. O que quer que tenha me dado o dom de existir
pareceu ter se esquecido de me dar o dom de comunicar. Pelo menos até
agora. Sim, porque agora chegou a minha vez de falar o que vi, ouvi e até
mesmo senti. Compartilharei o que aprendi com as mulheres que pas-
saram a transitar por meus corredores, a habitar meus cômodos e a dar
vida a cada extremidade do meu corpo de concreto. São elas o sangue
que percorre minhas veias. Eu sou a anfitriã, e elas, minhas hóspedes.
Você, meu convidado neste dia de visita especial. Se apreciar, quem sabe
possa me visitar mais uma vez ou mesmo se tornar hóspede, mas se for
uma fêmea, é claro. Meu papel é de abrigo. Por isso, não posso rejeitar
cor de pele, classe social ou orientação sexual. Todas serão sempre, na
eternidade do meu existir, muito bem-vindas.
Fico localizada às margens de uma rodovia federal, especificamente
no km 27 da BR 116. O município é Itaitinga, localizado na Região Me-
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AURI, A ANFITRIÃ

tropolitana de Fortaleza, capital do Estado do Ceará. Próximos a mim,


existem outros como eu, embora nós nunca tenhamos nos comunicado.
Talvez, por isso, eu não tenha me apresentado ainda. Desculpe-me, mas
não estou acostumada com essas formalidades. Eu me chamo Instituto
Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, mas pode me cha-
mar apenas de Auri. Antes de mim, uma estrutura já velha recebeu essa
alcunha, mas agora ela não acolhe mais hóspedes. Não é mais anfitriã
para ninguém, creio eu. Todas as infratoras surpreendidas pelas auto-
ridades locais são enviadas a mim. Portanto, sou a única penitenciária
feminina do Ceará. Chegam-me mulheres vindas de vários municípios
cearenses, principalmente da Capital. Assim como chegam mulheres de
outros cantos do mundo. Tornaram-se vítimas da minha hospitalidade
por terem ferido as leis dos homens que regem não só o mundo lá fora,
mas também o universo paralelo de minhas entranhas.
Quando fui erguida, eu possuía três “alas de convivência”, como
gosta de denominar a direção. Para mim, mais parecem cortiços como
costumo ver nas novelas de épocas, transmitidas pelos aparelhos de te-
levisão espalhados por meus cômodos. As alas mais antigas são também
as menores, intituladas por A, B e C. As alas A e C possuem 30 celas com
espaço para duas ou três hóspedes. A ala B, por sua vez, possui apenas
15 celas individuais. Tirando o fato de serem conhecidas como “loucas”,
por serem deficientes mentais, as hóspedes da ala B têm muita sorte por
ter um espaço só seu. Quando estão na fase de calmaria, elas chegam a
dividir celas com minhas outras hóspedes, para também desfrutarem
do convívio social. Mas quando vêm os ventos ruins, as loucas se isolam
e preferem voltar para as celas individuais. A verdade é que seus gritos
sempre assustam aquelas consideradas “normais”. Talvez, por esse efeito
assustador ou incômodo, a direção tenha reservado uma cela especial
desta ala para receber as minhas internas mais rebeldes. Apelidada cari-
nhosamente de “cu de cobra”, a tranca é o castigo mais temido em meus
domínios. Mesmo assim, é sempre muito bem frequentada.
Cinco anos após a minha inauguração, senti meu corpo ser estica-
do. Meu pulsar se ampliou ainda mais com a construção de duas novas
alas: as alas D e E são as maiores. Cada uma com 30 celas com espaço
para quatro hóspedes, às vezes, cinco, dependendo da demanda até seis.
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EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

Com esta ampliação, minha capacidade subiu de 134 vagas para 374. No
entanto, como sou generosa, o número de hóspedes sempre é superior
a 400, por pouco não batendo a casa dos 500. Minha população é bem
flutuante. Nunca tive ou terei um número fechado, porque acolho, além
das mulheres já condenadas, aquelas que estão sob minha custódia de
forma provisória, aguardando o julgamento dos homens. Se existir de-
veras esse lance de “destino”, toda mulher em conflito com a lei pode
estar certa de que, se as coisas derem errado, seu desaguar será em mim.
Certa vez, vi em um noticiário na televisão que menos de 10% das
pessoas presas no Ceará são mulheres. Talvez, isso explique coisas bi-
zarras que costumo ver na burocracia do sistema que rege o transcorrer
das coisas em meus domínios. Exemplo disso é a ficha de identificação
inicial das minhas hóspedes, que chega a perguntar se elas possuem bar-
ba e bigode. Por mais caracterizadas de macho que muitas sejam, sei que
são fêmeas, porque todas menstruam. No entanto, não se engane. Ser
mulher vai muito além do que sangrar todo mês.
O sistema que tudo rege foi quem ainda não percebeu as especi-
ficidades de ser mulher. Por tudo que já vi, acho que essa entidade que
nos controla, a mim e a minhas hóspedes, engatinha lentamente para
compreender a minha lógica interna. Afinal, sou muito mais do que es-
tas paredes rosas e do que os concursos de beleza realizados em meus
territórios, como o “Miss Penitenciária” ou o “Auri Beleza”. Por outro
lado, estou muito bem cotada entre minhas primas de outros estados.
Já ouvi muitos elogios a meu respeito. O principal é o fato de ter sido
construída especialmente para o fim a que até hoje me proponho, o de
ser uma penitenciária. Não sou apenas um prédio adaptado para servir
de depósito de mulheres, como foi o caso daquela velha Auri que me
antecedeu. Disso, pelo menos, eu me orgulho.
Orgulho-me, principalmente, por tomar como missão devolver
minhas protegidas mais amadurecidas e cidadãs para a sociedade dos
homens. Independentemente da eficácia do método utilizado pelo sis-
tema que tudo rege, muitas se transformam, mudando as concepções
sobre si mesmas e sobre suas existências. Algumas, quando liberadas,
chegam a retornar para meus vãos numa missão diferente: a de traba-
lhar e, ao mesmo tempo, ajudar suas antigas parceiras, como egressas.
29
AURI, A ANFITRIÃ

Porém, várias não são impactadas por algo que as faça crer que o mundo
exterior lhes receberia de forma diferente da hostilidade costumeira.
Sobre minha cartografia, tenho um muro com mais de cinco me-
tros de altura em minhas extremidades, lembrando uma antiga forta-
leza, além de 11 guaritas de segurança distribuídas por todo o meu pe-
rímetro. Contudo, apenas uma é usada com o objetivo óbvio de vigiar
meus domínios. Em meus limites, gosto de sentir os ventos que correm
trazendo a esperança das visitas, as notícias das cidades vizinhas e as
trabalhadoras cativas. Na minha entrada, quem chega logo dá de cara
com a sala da recepção, seguida de uma escada que leva ao piso su-
perior, onde ficam as cabeças que administram a rotina de tudo que
acontece por aqui. Logo após a escada, têm um detector de metal e um
grande portão de ferro.
Ultrapassando aquele limite crucial, dá-se com o meu corredor
central. Ele é plano e liso, seguindo reto muitos metros a diante, quan-
do faz uma curva à esquerda, formando o meu corpo um L. Com o
primeiro passo, já se pode sentir a umidade do ambiente carcerário e a
barulheira das atividades de rotina. Feito os braços de uma enorme cen-
topeia, todos os demais compartimentos vão se ligar ao corredor central
dali em diante. O primeiro pavilhão é destinado ao atendimento médico
e, do outro lado, às salas para defensores, psicólogos e assistentes sociais.
Ali também fica o parlatório, onde minhas hóspedes podem conversar
com advogados, pesquisadores e jornalistas.
Mais adiante, temos os espaços reservados ao trabalho e ao estudo:
lavanderia, padaria, escola, cozinha e também refeitório, destinado às
agentes e aos demais funcionários. Em seguida, temos uma fábrica de
roupas e o ateliê de costura. A partir daí, seguem-se as cinco alas divi-
didas em ziguezague, intercalando-se sem que as entradas fiquem uma
diante da outra. No final do corredor, virando à esquerda, fica a ala E.
Já na parte externa, temos a fábrica de material de limpeza, onde
algumas internas fabricam os produtos usados por todas. Além disso,
também temos o venustério e o ginásio poliesportivo, onde ocorrem
respectivamente as visitas íntimas e as comuns. Separada da minha
estrutura principal, uma casinha cor-de-rosa abriga a creche destina-
da especialmente às minhas hóspedes com filhos recém-nascidos. As
30
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

grávidas são levadas para parir em outro local. Quando retornam, vão
direto para a creche com o filho ou filha, que pode ficar junto à mãe até
completar um ano de vida. Depois disso, pelo que sei, a criança ou fica
com algum parente, ou vai para a adoção.
No prédio principal, as paredes rosas do corredor central podem
causar uma impressão positiva a quem chega, mas, para quem já está
acostumada, elas não costumam significar nada mais do que uma cor
qualquer. No interior, uma linha amarela, pintada por cima do piso, cor-
ta o corredor por toda sua extensão. É sobre ela que minhas hóspedes
devem caminhar, com a cabeça baixa e as mãos atrás do corpo. Uma
coisa que logo devem aprender é andar na linha amarela, já que não
aprenderam a “andar na linha” antes de chegar até mim. Em determina-
dos ponto do corredor, a linha guia tem várias quebras de continuidade.
Segue na vertical bem no centro do piso, mas faz uma curva na hori-
zontal, voltando a seguir na vertical novamente mais próximo à parede.
Assim como minhas hóspedes, tudo em mim parece ser meio torto. A
quebra, porém, é para não se aproximarem da entrada das alas. Afinal,
qualquer facilidade pode significar um risco para quem controla.
Regras sobre por onde caminhar e como se portar são comuns.
Fazem parte da disciplina à qual toda mulher que a mim chega é sub-
metida. Cada uma delas tem um espaço físico determinado onde deve
habitar. Suas celas são seus lares a partir do momento que passam pe-
los meus portões. Cada ala funciona como uma pequena comunidade.
Não é permitida a comunicação entre uma ala e outra. “Lugares deter-
minados se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de
romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço
útil”, li certa vez em um dos livros na minha biblioteca. Não teria como
concordar mais.
O nome do livro é Vigiar e Punir, de um francês chamado Michel
Foucault. O título resume bem o intuito para o qual fui criada. Foucault
diz que sou uma arquitetura funcional e hierárquica. Meus cômodos
permitiriam a fixação da disciplina imposta pelo sistema. Essa se efeti-
varia, assim, no estabelecimento da censura, na obrigação de ocupações
determinadas e nos ciclos de repetições. O francês é muito feliz ao defi-
nir uma espécie de “esquema anátomo-cronológico do comportamento”.
31
AURI, A ANFITRIÃ

Uma linha amarela, pintada sobre o piso do meu corredor central, sinaliza o local por
onde minhas hóspedes devem caminhar, com a cabeça baixa e as mãos para trás.
32
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

O conceito é geral a todos os tipos de sistemas disciplinares, como es-


colas, hospitais, forças armadas, e não apenas a mim. No esquema de
Foucault, são definidos não só a posição do corpo ou os lugares que os
sujeitos devem ocupar, mas também a direção, a amplitude e a duração
de cada movimento desses mesmos sujeitos. “O tempo penetra o corpo,
e com ele todos os controles minuciosos do poder”.
O que posso dizer é que o controle das atividades, dos horários e,
principalmente, do corpo impõe o ritmo coletivo e obrigatório do meu
cotidiano. As celas são abertas logo após o nascer do sol e novamente
trancadas uma hora antes de ele se pôr. À noite, ninguém pode circu-
lar pelos meus corredores. Já durante o dia, as mulheres podem transi-
tar, mas apenas em suas próprias alas. Algumas costumam se sentar no
chão, próximas à grade que as separa do corredor central, na tentativa
de observar um pouco do movimento fora da ala, ou mesmo investigar
as novidades que podem ser captadas dali. No entanto, mesmo assim,
ficam sob constante observação das agentes. As guardiãs da disciplina
ficam a postos nas entradas de cada ala, atentas a qualquer movimenta-
ção que fira as normas de comportamento.
Quando uma de minhas hóspedes deseja ser conduzida ou “pas-
sada”, como costumam falar, para algum setor de atendimento, elas re-
correm às agentes, que verificam com sua superior se a solicitação é
viável ou não. Existe todo um controle do trânsito delas pelo corredor
central. As que trabalham ou estudam também precisam participar des-
se procedimento, caso queiram “subir” ou “descer” em meus labirintos.
Apesar de ser completamente plana, é assim que todas se referem ao ato
de adentrar por meu corredor. Quanto mais você entra em meu esque-
leto, mais você desce na linguagem própria que se formou entre quem
em mim vive ou trabalha. Quanto mais próximo da entrada, mais você
emerge na minha hierarquia espacial.
Minhas hóspedes podem até parecer ao sistema peças de um ma-
quinário. No entanto, para mim, elas são mais do que corpos sem iden-
tidade trajando a mesma farda. São seres humanos e toda a história de
vida que isso implica. Humanas como são, minhas hóspedes são insur-
gentes por natureza. Por maior que seja a disciplina, elas sempre en-
contram brechas para burlar o controle. Com sussurros silenciosos, por
33
AURI, A ANFITRIÃ

exemplo, a comunicação entre as alas nunca para. Eu não poderia espe-


rar coisa diferente se tratando de especialistas em burlar normas. Bilhe-
tes são proibidos. Mesmo assim, eles passam de mão em mão, levando
as notícias mais atuais, como um pombo-correio. Assim, de uma forma
ou de outra, todas acabam sabendo o que acontece com todas elas.
No entanto, a insurgência não passa despercebida pela administra-
ção. Ela conta, como aparato de controle, com o regulamento e a disci-
plina, a qual, como diria Foucault, é uma maneira específica de punir,
um modelo reduzido de tribunal. Assim, a disciplina comporta por si
só, além de leis próprias, seus delitos especificados e suas formas parti-
culares de sanções. Na busca por reduzir os desvios de comportamento,
minhas hóspedes recebem castigos que variam da restrição de benefí-
cios a uma temporada na tranca. Se existe a máxima que diz que castigar
é exercitar a disciplina, não faltam aquelas que a praticam diariamente.
Cerca vez, quando eu tinha apenas dois anos de existência, meus
vãos foram palco de uma rebelião. Até pouco antes de ela estourar, eram
permitidas a entrada e a circulação de moedas entre as reclusas. Nunca
vi em meus territórios objetos tão sem funcionalidade prática quanto
aqueles pedaços de metal laminado ou de papel colorido. Ainda assim,
quem os possuía era capaz de exercer tremendo poder sobre a ordem
interna. A hierarquia entre minhas hóspedes passou a girar cada vez
mais em torno daqueles objetos.
Um dia, as moedas chegaram a ameaçar o controle institucional,
pois os valores escritos nesses objetos desencadearam intensos conflitos
entre minhas protegidas. A instituição não permitiria que o controle
fosse usurpado de suas mãos. Somente ela poderia ficar no topo da hie-
rarquia social própria de meu universo. Qualquer prática que pudesse
gerar algum tipo de desordem seria coibida. Aquele mercado monetá-
rio, então, tornou-se proibido e os valores ficaram, a partir daí, sob a
custódia da direção.
A medida foi recebida com fúria por algumas mulheres, que se re-
voltaram contra a instituição. Queimaram colchões e quebraram as ce-
las. O fogo, no entanto, não chegou a comprometer minhas fundações.
Foi extinto após as insurgentes serem contidas pela força das armas e
pelas sanções. Até hoje, tudo aquilo que ofereça risco ou se apresente
34
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

como ameaça ao controle do sistema é terminantemente proibido. Jo-


gos de azar e cartomancia, por exemplo, podem incitar a indisciplina e
consequentemente o desgoverno. Portanto, além de vetados são perse-
guidos e punidos.
Mas não só de castigos sobrevive a disciplina imposta às minhas
hóspedes. Se para aquelas que ferem o regulamento existem sanções,
para as que andam na linha existem as gratificações. Para cada 12 horas
de estudo ou três dias de trabalho, um dia de sua estada sob minha pro-
teção é reduzido. Aquelas que trabalham, seja na oficina de costura, na
fábrica de roupa ou mesmo nos afazeres da minha rotina interna, devem
ficar atentas às regras. Sair da linha pode levar à perda de benefícios.
Deixar de trabalhar significa mais tempo em minha companhia. “A dis-
ciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem
hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando”, conclui Foucault.
A maior parte de minhas hóspedes não trabalha. Estas sofrem ain-
da mais com a passagem do tempo. Algumas frequentam a escolinha,
onde professoras se reservam entre as várias modalidades do ensino
supletivo. Apesar do número majoritário de alfabetizadas, poucas são
aquelas que terminaram o Ensino Médio. Ainda mais raras são as com
ensino superior completo. A leitura acaba sendo um refúgio, mesmo
para as mulheres que nunca tiveram acesso a uma biblioteca. Vi algumas
que nunca foram fãs de livros se tornarem leitoras fervorosas. Assim
como minhas hóspedes, também dou minhas voltas com alguns títulos.
Entre tantos livros que circulam pelas mãos delas, sempre encontro um
que me chama a atenção. Foi assim que conheci Foucault.
O que sei, aprendi com as mulheres que já tiveram a mim como
morada. Apesar de onipresente, nem de longe sou onisciente. Não te-
nho em mim as verdades de tudo o que se passou em suas vidas an-
teriores. Nem mesmo sei o que se passa em suas mentes. Desconheço
as profundezas de seus sentimentos. Afinal, apesar de toda disciplina,
elas ainda podem manter seus pensamentos afastados de qualquer vi-
gilância. Mesmo em suas mentes, no entanto, o controle ainda se faz
eficaz. Cria raízes, lentamente, até instaurar uma espécie de domesti-
cação invisível. E elas acabam por incorporar um conceito de si mes-

35
AURI, A ANFITRIÃ

mas que lhes é exterior. Enxergam-se como um parafuso frouxo de


uma complexa engrenagem.
Aprisionada em minha impotência, o que posso fazer por minhas
hóspedes, então, é revelar as verdades usurpadas pelas paredes dos meus
labirintos. O irônico do meu universo é que nem mesmo as pessoas que
em mim encontram seu ganha-pão saberão a crueza da verdade sobre
como essas mulheres vieram parar no cárcere. Eu mesma não me confio,
já ouvi tantas versões e contradições. Nas minhas entranhas, o mundo
real se mistura ao ideal e, ao mesmo tempo, ao fantástico. O mundo
real está mergulhado a todo instante em delírios, sonhos, saudades e
uma enorme distância da vida em liberdade. Junto a nossos espíritos, o
tempo também parece estar aprisionado. Corre em compassos frouxos,
escorregadios. Leva a consciência de cada uma a travar suas próprias
metamorfoses. Tem gente que vira bicho. Gente que vira anjo. E até
quem subverte todos os sentidos.
Quero apresentar, portanto, a minha intercessão sobre seus julga-
mentos. Não os julgamentos dos tribunais, mas, sim, aquelas condena-
ções morais. As pungentes sentenças humanas que, fatalmente, estigma-
tizam suas identidades por toda a vida. Muitas vezes, antes mesmo de
me conhecerem, essas mulheres já foram condenadas pela sociedade dos
homens. Por isso, vou me debruçar em unir as peças do quebra-cabeça
de suas histórias. Antes e depois de suas prisões. Dentre as centenas de
mulheres sob minha proteção, trago à órbita três crimes marcados pela
influência de terceiros. Suas índoles, todavia, não são inquestionáveis.
Mas seus destinos foram irremediavelmente determinados por seus
parceiros. Namorados. Maridos. Amantes. E as consequências foram
transferidas aos filhos.
Venho oferecer as memórias e as versões revividas por Maribel e
Jéssica, estrangeiras flagradas como mulas do tráfico internacional de
entorpecentes; Cinara, condenada como coautora de um duplo assassi-
nato; e Patrícia, viciada em crack e presa por tráfico de drogas. Mulheres
que, ao desvendarem os enigmas do passado, foram intensamente toca-
das e reveladas através do cárcere.

36
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS

Acima, placa da lavanderia, que compõe o pavilhão de serviços. Abaixo, à esquerda, bor-
dado feito na oficina de costura e, à direita, interna caminhando no meu corredor central.
37
Capítulo 1
[Maribel e Jéssica]

As estrangeiras
“Tudo o que eu queria, ele me
dava. Sempre. Ele falou que íamos
ficar em um hotel cinco estrelas.”
Maribel

“Disseram que eu vinha para o Rio de


Janeiro. E depois de tudo, não conhe-
ço nenhuma praia. Dirá Copacabana!”
Jéssica
AS ESTRANGEIRAS

P
ara quem está fora dos meus muros, penso eu, deve ser difícil
imaginar uma presidiária no papel de vítima. O óbvio mesmo
deve ser vê-las como culpadas, assim como foram julgadas pela
Justiça. Mas não é preciso estar encarcerada para saber como é difícil
carregar a coroa de culpada. Em geral, mesmo a vítima mais convicta se
culpa por algo, por ter sido ingênua, ambiciosa ou simplesmente apai-
xonada por algo, alguém ou alguma ideia.
Tenho para mim que, no fundo, as pessoas já conhecem ou des-
confiam da “grama em que pisam”. Vejo os humanos, tais quais os de-
mais seres vivos, seduzidos pelos próprios instintos, feito os gatos ne-
gros e famintos que circulam por essas áreas. Todos sentem o cheiro do
perigo, mas sucumbem a uma curiosidade felina, que fareja cegamente
a possibilidade de gozo mais adiante. E, por assim dizer, toda pessoa
está vulnerável a essa busca inconsciente pelo misterioso, ou até mesmo
por uma dose de adrenalina. Mas toda mulher que já habitou uma de
minhas celas, irremediavelmente, foi condenada à primeira vista, senão
pelo peso da lei, sentenciada pela sociedade e pelas próprias memórias.
O que não se sabe por aí afora é que, mesmo elas, autoras de crimes,
sobrevivem a um limbo. A tênue fronteira entre ser culpada ou vítima
em suas próprias consciências. Culpadas ou vítimas de seus próprios
atos que as levaram ao mesmo destino, que as trouxeram a mim. Para
algumas, maldito esqueleto de grades e concreto, que não passa de um
lugar de passagem. Para outras, no entanto, sou o lugar de seus últimos
dias. Um celeiro de angústia e de pagamento. O balcão do acerto de con-
tas. Apesar de tudo, me orgulha ser um lugar de encontro. Pois quem já
sobreviveu ao confinamento sabe que, em algum momento, foi preciso
encarar o caminho interior, rumo às profundezas da alma e, quem sabe,
a uma mudança de trajeto.
Esse percurso é mais doloroso para as minhas hóspedes que se jul-
gam vítimas de uma conspiração. Tudo e todos conspiraram para que
elas acabassem aqui, na sua versão particular do inferno na terra. Foi o
que logo percebi quando aquela jovem loira, de tristes olhos azuis, saiu
da viatura de capturas. Quando levantou a vista e, finalmente, trocamos
olhares, pude perceber o quanto eu lhe pareci assustadora. Suas feições
eram bem distintas das mulheres que costumo receber. Uma estrangei-
41
AURI, A ANFITRIÃ

ra. Mais uma para agitar os ânimos das brasileiras. Para acirrar a antiga
rixa entre as nativas e as aventureiras de além-mar. Em seguida, notei
que não era apenas mais uma estrangeira. Eram duas. A outra era uma
jovem negra, com olhar desafiador. Olhar de quem, mesmo estando em
sua primeira experiência no cárcere, já contava com bagagem de mun-
do. Um mundo que sempre a marginalizou.
Tempos depois é que fui entender como elas vieram parar aqui.
Da época em que as duas estrangeiras reviviam suas aflições, contadas
para minhas outras hóspedes, pude juntar, em minha infinita teia de re-
talhos, recortes de quem fora pisoteado por uma forte crise econômica.
Os noticiários, transmitidos pelas televisões, contavam um pouco da
crise que assolou a Europa durante todo o ano de 2011 e progrediu para
2012. Era, portanto, o mesmo período em que as duas iniciaram sua
saga internacional. Endividado, o Velho Continente sofria horrores com
a falta de emprego, renda e de capital circulando. Enxotava de lá quem
nativo não fosse ou quem não estivesse para gastar. Eis aqui, portanto, a
história de duas fugitivas, estrangeiras do Velho Mundo.
Contarei, então, a história que sei do crime cometido pela jovem
negra dominicana Maribel e por sua “parceira”, a espanhola Jéssica –
gringas que deixaram a Espanha com apostas altas no Brasil. Duas ha-
bitantes de Madrid, capital da Espanha, um dos países mais agredidos
pela crise. Criaturas impetuosas cujos corações têm sede cosmopolita.
Forte impulso de vida que as ensinou a desafiar o que viesse pela frente,
movidas pelo entusiasmo e coragem de seus gênios tinhosos. Em co-
mum, o gosto pela cólera que sentem os teimosos: o efeito quase febril
do risco. Duas histórias entrelaçadas em que a compulsão pelo amor
sentenciou a consciência e a liberdade.

Desarranjos nupciais
Foi no frigir dos dias que pude conhecer a essência dessas garo-
tas. Pouco a pouco. Afinal, qualquer um que caísse preso em um país
estranho, se deparando com o malquerer aparente por ser estrangeiro,
teria razões suficientes para desconfiar até das sombras. Por isso, tam-
bém não faltaria motivos para se proteger a qualquer custo, vestindo
as mais diferentes carapuças. Foi um projeto insistente, muito diferente
42
AS ESTRANGEIRAS

do natural processo de reconhecimento com o qual já estou habituada,


que é bem mais sossegado. Este, não. Nada familiar. Tudo o que conheci
dessas gringas foi a partir de seus relatos e de obstinada observação.
Maribel, por exemplo.
Com o passar de certo tempo, pude perceber que a vinda dela ao
Brasil soava mais como a reafirmação de sua natureza de repatriada.
Como um déjà vu distorcido de um dos momentos mais difíceis de sua
infância. O dia quando, contra a própria vontade, precisou largar sua
vida na República Dominicana para viver em um lugar novo, hostil até
mesmo aos olhos infantis.
Novamente, um oceano a separou de casa. Não era difícil, nos mo-
mentos de ócio em sua cela, que lembranças antigas ou há muito esque-
cidas voltassem à tona. Ela, assim com muitos dos filhos de minhas hós-
pedes, foi criada pela avó. Aos seus cuidados, Maribel me pareceu ter sido
muito feliz. Mais do que isso. Parecia que, com a avó, ela saboreara uma
dose despretensiosa de liberdade. O ressentimento evidente pelo pai bio-
lógico e a relação fria com a mãe fizeram com que a figura da avó repre-
sentasse para ela o que de mais amoroso teve em sua precoce vida.
Quando ouvia Maribel contar a história da mãe, Milagros, era im-
possível não associá-la à saga de muitas outras jovens latino-americanas
que vão a algum país rico em busca de melhores condições de vida. A
tia levou a mãe para trabalhar como faxineira na Espanha. Quando lá
chegou, no entanto, não havia emprego algum. Apenas a verdade crua
do tráfico de pessoas. A dominicana fora vendida a um homem e passou
a suportar uma rotina de abusos. Anos depois, Maribel soube que a mãe
conseguira uma boa condição de vida, casando-se com um bancário,
com o qual teve outros dois filhos. O trajeto entre ser uma imigrante ile-
gal e a esposa de um cidadão espanhol nunca ficava claro nas conversas
que eu ouvia. Talvez nem mesmo Maribel soubesse.
Com a nova situação, Milagros resolveu dar uma vida melhor à
filha que deixara recém-nascida na América Central. Aos nove anos,
Maribel teve que lidar com uma nova realidade em Madrid. No mínimo,
acho curioso nunca ter visto a garota suspirar ao falar da mãe. Parecia
que nem tinha um elo umbilical com ela. Por vezes, o tom chegava a ser
agressivo. Suponho que, talvez, fossem marcas e recalques do abandono
43
AURI, A ANFITRIÃ

que sofrera, voltando-lhe à memória. Sua mãe de coração ficou na Re-


pública Dominicana, para onde Maribel nunca mais retornou. Viu a avó
apenas mais uma vez, quando ela fora visitá-la. Anos depois, a matriarca
faleceu, sem que nem a filha nem neta comparecessem ao funeral.
A relação conturbada com a mãe resultou em várias temporadas
em abrigos para menores. Ironicamente, esses abrigos poderiam ser
um prelúdio do que viveria como minha hóspede. A primeira ida foi
quando a mãe se separou do pai dos seus irmãos e foi morar com outro
homem. O novo contexto familiar foi insuportável para a então pré-
-adolescente. O novo companheiro batia em Milagros, que descontava
na filha. Aos 12 anos, foi ao primeiro abrigo, após fugir de casa. Ela só
seria aceita se denunciasse a mãe por maus tratos. Caso contrário, seria
obrigada a voltar para casa. Sem pensar duas vezes, Maribel denunciou.
Como seu confidente invisível, percebi que a diferença de trata-
mento dada pela mãe aos irmãos mais novos era o que mais a magoava.
Maribel sentia que, por ser negra, era menos querida. Por ter herdado as
feições do pai biológico, que nunca representou nada além do vazio de
uma figura paterna, a menina se via estigmatizada. Esse era apenas um
dos estigmas que iria carregar no decorrer de sua vida.
Em meus domínios, porém, o fato de ser negra não lhe pesava mais
do que o estrangeirismo. Feito uma grande senzala, a maioria das inter-
nas tem suas raízes raciais fincadas na etnia negra. Entre tons de pele
que passeiam do moreno mais amarelado até o negro puro, minhas hós-
pedes costumam se reconhecer como mulatas, negras ou mesmo mes-
tiças. Há ainda as apelidadas de amarelas, por causa do tom mais claro
da pele. Por outro lado, um grande número de mulheres se considera
branca. E não são poucas. São tantas misturas raciais e sociais que a cor
de pele, escura ou clara, não costuma vir à frente de outros julgamentos.
Com as estrangeiras, não era diferente.
E Maribel, a propósito, era uma mulata de cair o queixo. Pelo
porte físico, poderia muito bem ser uma modelo de capa de revista. A
dominicana tem o corpo todo comprido, como se fossem os membros
repuxados nas extremidades. Braços e canelas alongados e o tronco
esguio, de estrutura e postura muito firmes. Enquanto esteve presa,
penso que devia ter mais de 1,70 de altura, o que lhe empunhava ares
44
AS ESTRANGEIRAS

majestosos no andar. Traços refinados contornavam o seu rosto. Cí-


lios compridos para o olhar dilatado. O nariz mais parecia que lhe era
emprestado, de tão delicado. Mas a boca, claro, deveria ser grande e
carnuda só para retrucar a eloquência da afiada língua. Com jeito de
menina, Maribel estava no auge de sua beleza quando caiu no cárcere,
contando apenas 20 anos de idade. Já Jessica, tinha 19. Assim como
elas, a maioria esmagadora das minhas hóspedes é jovem. São mulhe-
res em idade fértil e economicamente produtivas. Metade delas ainda
não atingiu a faixa dos 30 anos.
Nas conversas entre as centenas de mulheres que na proteção de
meus muros vivem, já viveram ou ainda viverão, sempre surgem his-
tórias de desilusões amorosas e impulsos adolescentes. Engraçado que
eles determinam muitas das trajetórias. Assim, soube que, como tantas
outras, Maribel deixou a casa da mãe ainda muito jovem, aos 14 anos,
para viver com um rapaz. Paco, na época com 15 anos, viria a ser o ma-
rido de Maribel e pai dos seus dois filhos. Com o nome da mãe, ela se
apresentou ao rapaz, e é assim que ele gosta de chamá-la até hoje.
Os jovens resolveram brincar de “casinha”. Alugaram um aparta-
mento e Maribel ficou grávida. Em suas divagações, ela deixava esca-
par que o cubículo, chamado de lar, em nada lembrava a casa sonhada
por ela em suas brincadeiras de infância. Com a avó e a mãe, ou ainda
nos abrigos que frequentou, Maribel podia encontrar segurança e pro-
teção, mesmo não tendo completa liberdade. Pela primeira vez, estava
por conta própria. E, ainda assim, sentira-se amarrada. Amarrada às
responsabilidades.
O abandono é uma realidade avassaladora no cotidiano das mu-
lheres que em mim vivem. Maribel sentiu o gosto disso ainda em sua
vida na Espanha. Preso por roubo, Paco deixou a jovem sozinha e com
um filho na barriga. De novo, ela foi parar em um abrigo. Em seguida,
a jovem voltou a morar com a mãe. Fez o caminho de volta. Maribel
deu à luz Iago, seu primogênito. Paco saiu do reformatório sem de-
monstrar interesse em conhecer o filho. Não procurou Maribel. No
entanto, mesmo antes de ouvir o desenrolar da história, eu já sabia
que ela não passaria muito tempo quieta, mesmo depois de mais esta
desilusão.
45
AURI, A ANFITRIÃ

A inquietude da dominicana, penso eu, foi o que a fez deixar o


filho com os irmãos menores para ir atrás de Paco. As incertezas sobre
o futuro a atormentavam naquela época e continuaram a atormentá-la
aqui. Cara a cara com Paco, ela o encontrou cheio de dúvidas. Ele queria
aproveitar a recém-reconquistada liberdade. Não sabia se queria ficar
ou não com ela. Não sabia se queria ser pai. Por tantos lamentos que já
ouvi, entendi que, para os homens, costuma ser mais fácil se desprender
de responsabilidades, principalmente em relação aos filhos. Em geral,
com as mulheres, o laço é mais definitivo, mais forte. Quase impossível
de ser quebrado. Quase.
Sem saber ser “mãe”, a jovem também se viu tentada a se despren-
der. Afinal, mal sabia cuidar de si mesma. Como cuidaria de outro ser?
Maribel não mostrava arrependimento ou rancor por Milagros tomar
a responsabilidade do neto para si. Enquanto estava cercada por meus
muros, ela concordava que fora a decisão mais acertada. Lá fora ou aqui,
sempre esteve cega pela paixão por Paco.
O casal passou meses longe do primogênito. No entanto, o destino
quis que o segundo filho do casal, Juan, viesse em seguida. A situação
financeira da família foi ficando cada vez mais difícil. A crise econômica
explodiu em suas costas no momento mais crítico de suas finanças. Na
cadeia, sempre que via uma referência à crise na televisão, Maribel revi-
via as dificuldades daquela época. Ela e Paco ficaram sem trabalho e re-
solveram também se separar de Juan, que foi morar com a avó paterna.
Essa mesma crise criou o redemoinho de situações que fez a tra-
jetória de Maribel se cruzar com a de Jéssica , sua cúmplice no crime
pelo qual foram presas. Assim como durante a temporada em que foram
alojadas sob minha hospitalidade, as jovens viveram sob o mesmo teto
na Espanha. Paco foi quem lançou a Ramón, seu amigo de infância e
também marido de Jéssica, a proposta de morarem juntos. E, a partir
de então, os quatro decidiram dividir um apartamento e os custos disso.
Um pouco menos precoce que Maribel, Jéssica só saiu de casa aos
18 anos para viver com o namorado. Calada e retraída, não foi fácil re-
colher as migalhas de sua história. No entanto, havia momentos em que
uma revolta parecia explodir dentro dela. Momentos em que a espa-
nhola contava como conhecera o homem que despertou os piores e os
46
AS ESTRANGEIRAS

melhores sentimentos em seu espírito ainda tão jovem. Em três anos,


ela passou de criança mimada de classe média para uma presidiária em
um país subdesenvolvido. Por isso, nunca se esquecerá daquela tarde,
quando sentada em um parque madrileno, percebeu-o pela primeira
vez, enquanto observava um grupo de dominicanos jogar basquete.
Ela, 17 anos. Uma ninfa de beleza paralisante. Eu vi em suas fotos.
Alva, olhos claros, fios dourados, estatura mediana e expressões frias,
como um típico europeu. Ele, mais um estrangeiro “escurinho” nas ruas
de Madrid. O rapaz deixou a família e a América Central quando con-
tava também 17 anos. Queria desbravar uma vida melhor na Espanha,
país de mesmo idioma que o seu. Culpada, ela se lembrava dos pais que
tanto insistiram em não aceitar o rapaz. Ainda mais culpada, eu a via
chorar ao lembrar Heitor, o filho mestiço que seus pais acabaram por
acolher na sua ausência.
Vinda de uma família estruturada, Jéssica habitou-se ao bom e ao
melhor. Por aqui, ganhou fama de querer ser superior. Presunçosa, “na-
riz empinado”. Era o que mais se falava sobre ela. Com seu rosto triste,
sempre que podia, mostrava como, desde a infância, fora a vítima per-
feita. Problemática e irrequieta na adolescência, sofreu crises depressi-
vas, transtornos alimentares e bullying praticado por crianças malvadas
que gostavam de persegui-la. A graciosa dançarina de flamenco, tão im-
ponente e segura no palco, sentia-se, no íntimo, rejeitada.
O desdém com que a tratavam aqui é reflexo de sua postura pre-
conceituosa em relação aos latino-americanos. Mais do que o senti-
mento da supremacia europeia, o que mais a motivava a pensar como
pensava era o rancor e mágoa que tinha de seu ex-amor. “Não é racis-
mo, sendo que a maioria dos estrangeiros que estão na Espanha são
bandidos ou filhos deles”, soltava Jéssica, deixando o preconceito falar.
Mesmo assim, ela se envolveu com um imigrante latino. A europeia
acabou juntando-se à multidão de rejeitados, marginalizados pelos
verdadeiros cidadãos madrilenos.
Ramón apresentou-lhe, então, o submundo dos excluídos, quando
os dois alugaram um apartamento no subúrbio. A gravidez veio logo
em seguida. Pela vizinhança circulava o tráfico de drogas, não muito
diferente dos relatos das outras internas que aqui por perto cresceram.
47
AURI, A ANFITRIÃ

A presença do mercado ilícito parece fazer parte da realidade das comu-


nidades mais pobres, assim como o trabalho sério, a vida cotidiana e a
dignidade de muitos outros. Ramón não traficava, mas fazia uso exage-
rado de entorpecentes e gostava de sumir em farras com seus amigos.
Em poucos meses na vida de casal, Jéssica teve o bebê, Heitor.
A inspiração do nome veio da novela preferida de Jéssica durante a
gestação. A criança veio ao mundo negra como o pai. Apesar do nome
de galã televisivo, Heitor em nada lembrava a etnia que costuma ser
representada nas televisões. Cada vez mais, o bebê apresentava fei-
ções parecidas com as de Ramón. Dava pra perceber a semelhança,
comparando as últimas fotos enviadas pela mãe de Jéssica às outras
guardadas na sua cela.
Ficar apreensiva com a falta de notícias da filha não é novida-
de para os pais da espanhola. Assim como minha hóspede, a mãe de
Jéssica suspeitava do sofrimento da filha, através de um sentido que
nunca realmente entendi como funciona. O desassossego denotava-
-se na voz trêmula, nas frases pausadas e na respiração incontrolável
quando falava com Jéssica ao telefone. No casamento precoce da filha,
ela também desconfiava dos sumiços do genro. “Eu sei onde ele está,
foi procurar trabalho”, justificava, na época. Ela podia dizer facilmente
ao patrão ou aos pais que estava doente, mas, certamente, estaria cho-
rando com o filho do lado.

O adultério
Quando começou a dividir um apartamento com Maribel e Paco,
Jéssica passou a sofrer muito mais com as “escapulidas” do marido. O
sofrimento de “corna”, no entanto, não era só dela. Assim como Ramón
tinha em Paco um companheiro de aventuras, Jéssica tinha em Maribel
uma companheira de “chifres”. Independentemente das esposas, eles se-
riam parceiros quer fossem nas prolongadas noites entorpecidas com
maconha, cocaína e outras drogas ou nas traições com diversas mulhe-
res. As depravações não passavam de suspeitas, por vezes, mas chega-
ram a ser flagrantes, por outras.
De fato, a amizade e a vida libertina dos maridos tornaram-se
uma paranoia constante na vida das esposas. A princípio, Jéssica apenas
48
AS ESTRANGEIRAS

doía-se de despeito pelo marido. Já Maribel guardava qualquer demons-


tração de Victor, mas, no fundo, sabia que não ficaria quieta por muito
tempo. Ela nunca me pareceu o tipo de mulher que fica bem no papel
de submissa. Não foi assim com a mãe. Não seria assim com o marido.
Ao compartilhar os “chifres coroados pelos maridos”, como as mu-
lheres que em mim vivem costumam falar, as jovens dividiam também
as desilusões e todo o ímpeto inconsequente da juventude. O que inclui,
por assim dizer, as vinganças. Nesse período, Maribel começou a tra-
balhar em uma casa noturna. No entanto, o que viria a acontecer nos
próximos meses acabaria por despertar uma sede por algo mais do que
poder pagar as contas ao final do mês. Foi a partir daí que comecei a
entender como elas vieram parar aqui.
Sempre ouvia Maribel falar sobre a necessidade, que tinha na épo-
ca, de uma noite de diversão. Foi o que a levou a conhecer, em compa-
nhia de Jéssica, uma boate próxima ao seu trabalho. Uma boate bolivia-
na. Ali conheceram o homem, supostamente chamado de Javier, que
hoje apontam como responsável pelo crime que cometeram. Maribel
descrevia a boate como um lugar descolado. Já Jéssica me mostrou ou-
tro lado dessa história. As memórias da espanhola formava um cenário
bem mais inóspito. Com uma freguesia de todas as nacionalidades, a
maioria latino-americana, o estabelecimento estaria em uma ruela es-
condida e com ares de ilegalidade, por causa, talvez, dos estrangeiros
que ali circulavam. Pelos menos, era o que Jéssica dizia.
Na tal boate, elas conheceram um grupo de imigrantes bolivianos.
Entre eles, certamente, Javier se destacava. A aparência física dos boli-
vianos não agradara as jovens. Eram feios. Enquanto Maribel concluíra
que, ao menos, eles deveriam ter dinheiro, Jéssica ficara desconfiada. A
dominicana era bastante enfática ao esclarecer o motivo de se envolver
com Javier: favores financeiros, presentes, dinheiro. Admitia não gostar
dele. Por isso, recebia críticas da amiga. Mas, Maribel parecia não ligar,
na época. “Tudo o que eu queria, ele me dava. Sempre”, era como se
habitou a justificar.
Como eu já esperava, o despeito também foi elemento motivador.
Paco levava outras mulheres para casa, enquanto Maribel trabalhava.
Ela sabia por Jéssica, que via tudo. Para não comprometer a amiga, a
49
AURI, A ANFITRIÃ

dominicana se via atada, sem poder reclamar das traições do marido.


Com o peso da deslealdade do marido, ela formou uma lógica muito
simples em sua cabeça. Se Paco saía com mulheres feias e não ganhava
nenhum euro, pelo menos, ela estava resolvendo sua vida ao sair com
Javier. Ela sabia que era errado. A vida não é fácil. Mesmo assim, ela
quis essa opção. E teve que assumir tudo aquilo que essa decisão trouxe
como consequência.
À Jéssica, era paradoxal a estreita relação de Javier com as duas,
principalmente, diante da tempestade que assombrava o continente em
razão da crise.
– Ele nos bancava. Perguntou se eu tinha filho. Me mandou com-
prar comida e coisas para ele. Ia dizer que não? – desabafou em uma
tarde de fúria com Maribel, quando já estavam encarceradas. – Yo era
demasiado tonta, Fran. Demasiado tonta.
Francilene, parceira de cela e confidente, foi a única amiga que
Jéssica teve durante sua estada como minha hóspede. Sim, as antigas
parceiras transformaram-se em rivais depois do cárcere. Desconfia-
vam uma da outra e mal se falavam. Exceto para assuntos burocráticos.
– E Javier dizia que fazia o que da vida? – questionou Fran.
– Ele se apresentou como pintor de paredes. Andava em um carro
adesivado com o nome de uma empresa de pintura.
– E na Espanha pintor de parede tem grana assim? – estranhou
Fran.
– Pintor de parede que nada. Ele era o chefão lá naquela boate. Era
tudo fachada para uma casa de prostituição.
– Ainda assim tu ia lá?
– Eu não sabia. Agora, a Maribel sabia. Eu tenho certeza que ela
sabia. E também só fui lá uma vez – garantiu.
– E como você recebia os presentes desse Javier?
Jéssica titubeou ao tentar responder. Fran percebeu, mas silen-
ciou em respeito. Ela sabia que a garota ficava nervosa sempre que se
via obrigada a contar suas aventuras anteriores ao cárcere. “Estoy con-
fusa”, dizia, no “portunhol” costumeiro, como quem passou por uma
amnésia. Dava a impressão que a envergonhava até mesmo verbalizar

50
AS ESTRANGEIRAS

as “mancadas” que já cometeu. Ou então, no mínimo, havia algo ali


que poderia comprometê-la.
Havia peças mal encaixadas nos relatos de Jéssica. Tanto que che-
guei a ouvi-la dizer que esteve na presença do Javier “pelo menos dez
vezes”, embora eu não saiba onde. Desta vez, a revelação foi dada a
duas estudantes que pesquisavam sobre a vida carcerária. Pesquisa-
dores, por sinal, sempre aparecem por aqui, com um entusiasmo que
me soa estranho, às vezes. Nunca se sabe o que realmente farão com
os dados e conversas coletados aqui dentro. Mas nunca faltam aquelas
presidiárias que queiram alguém que as ouça. Essa é a sorte dos jorna-
listas, psicólogos ou cientistas sociais que costumam desbravar meus
labirintos.
O parlatório, geralmente, é o local dessas conversas. Tudo ali
guarda certa “formalidade”. Nessa mesma entrevista, ela negou envol-
vimento com outros homens, diferentemente de Maribel, que nunca
refutou seu envolvimento com Javier. Após alguns meses, Javier veio
com uma proposta que ia um pouco além da costumeira generosidade
que demonstrava. Ele queria presentear Maribel com uma viagem ao
Brasil. Neste ponto, as versões de ambas as jovem eram parecidas.
Era verão. Fazia calor na Espanha. O que mais saía na televisão
eram as praias brasileiras. Homens e mulheres sambando. A publici-
dade só aumentava o imaginário do Brasil como um paraíso perdido
na América. Javier sugeriu que Maribel convidasse Jéssica. Ele pagaria
as despesas da viagem para as duas. Mesmo com um filho ainda bebê,
Jéssica topou.
Aos maridos, falaram que iriam à despedida de solteiro de uma
amiga. Paco questionou quem bancaria a viagem. Pelo visto, não esta-
va disposto a gastar dinheiro com os caprichos da mulher. Maribel fa-
lou que usaria o próprio e que ficasse despreocupado. Ramón rejeitou
ainda mais a ideia. Achava que Jéssica estava se deixando influenciar
pelas ideias de Maribel. A dominicana, contudo, não aceitava ser a má
influência da história, como Ramón insistia em apontar. Para Maribel,
Jéssica era tão “putilla” quanto ela. E talvez, até pior.
Entre o tilintar de garfos e facas e o cheiro do almoço muito tempe-
rado, Jéssica comia acompanhada de uma colega de serviço no refeitório
51
AURI, A ANFITRIÃ

da ala A. Na conversa, desdenhava de sua ingenuidade e uso comedido


de “desconfiança”, à época da proposta da viagem. Se pudesse voltar no
tempo, teria investido uma boa dose de suspeita, como aprendeu aqui
dentro.
– “Meninas, não querem conhecer outro país?” – imitou Jéssica,
esticando os braços abertos em um convite e amaciando a voz, exata-
mente como fez Javier. Tanto ele como ela própria subestimavam sua
inteligência.
A colega, raquítica e encurvada sobre a comida, riu, com a boca
“cheinha”. Jéssica deu um gole no suco de maracujá e afastou o cabelo do
rosto, descansando-o atrás das orelhas. Continuou:
– Disseram que eu vinha para o Rio de Janeiro. E na TV espanhola,
sai toda hora o Rio de Janeiro. Toda hora! E depois de tudo, não conheço
nenhuma praia. Dirá Copacabana!
– Bé isso? E não passaram pelo Rio, não? O que é que tinha nas
passagens? – retrucou a outra, demonstrando certa obviedade no ra-
ciocínio.
De fato, o verdadeiro destino estava impresso no bilhete aéreo e,
por si, delatava o intuito da viagem. Jéssica emendou a resposta, ime-
diatamente, que se esquivava da lógica comum para expor aquela que se
formara em sua cabeça:
– Eu pensei: não vamos para o Rio de Janeiro, mas para Porto
Velho1 ,que deve estar perto, né? Quando vi o nome, eu pensava que
4

era um porto belo, bonito... lindo! E quando eu cheguei... Foi uma


coisa horrível. Não tomei banho porque o rio estava preto.
Cerrou os lábios, com as mãos no queixo e cotovelos apoiados
na mesa. Deixou o vasilhame da comida de lado. Mais uma vez as so-
brancelhas caíam por sobre o olhar paralisado. Se as duas estrangeiras
sabiam ou não o que aquele destino significava, nunca saberei. Qual-
quer coisa podia dizer aquele olhar.

1 Porto Velho, capital da Rondônia, fica no extremo oeste do Brasil, próximo à


fronteira com a Bolívia. Com pouco mais de 400 mil habitantes (IBGE, 2010), a cidade
é mais uma sitiada pelo tráfico e pelos usuários de crack. Do Rio de Janeiro até lá são
mais de três mil quilômetros de distância geográfica e tantos outros em realidade socio-
econômica.
52
AS ESTRANGEIRAS

Porto das desilusões


O primeiro contato com Porto Velho, capital da Rondônia, foi as-
sustador para as garotas. Espantaram-se com a cidade entregue à epi-
demia do crack. “Na zona em que eu estava, era todo mundo fumando
crack. Quando saíamos, o que sobrava de comida eu dava pra eles. Mas
penso que eles nem comiam”, falou Jéssica do Brasil que não espera-
va. Com meus botões, fico a imaginar tamanho o poder que essa droga
deve ter mundo a fora. No mínimo um exército de zumbis, como nos
quadrinhos da biblioteca. Vejo-a mesmo aqui na prisão, entrando sor-
rateiramente e sendo consumida em surdina. Na ala E, por sinal, há
uma porção de viciadas. Elas chegam com uma aparência cadavérica,
de magreza e fome exageradas. E o corpo leva meses, entre colapsos e
mal-estar, até se recuperar.
Nas diferentes vezes em que a espanhola contou sua versão, houve
controvérsias sobre quem recepcionara, de fato, as convidadas de honra.
Ora Jéssica dizia que fora o “namorado” de sua parceira, talvez o próprio
Javier. Mas depois, corrigia-se e falava de um suposto “primo” de Javier,
Marco. Restam-me a dúvida e certa desconfiança. Já Maribel sempre
fora bem enfática ao negar a presença de Javier no Brasil. O discurso da
dominicana era bem mais afiado do que o de Jéssica, mas, nem por isso,
mais livre de suspeitas.
As estrangeiras chegaram ao presídio escoltadas por policiais fe-
derais. Ouvi um deles confabular sobre o flagrante com a chefona das
agentes, Dona Luna, aquela que domina a portaria, controlando quem
entra e quem sai. Ele disse que o mandante, esse tal Javier, é um podero-
so narcotraficante, chefe de uma quadrilha boliviana e procurado pela
polícia internacional. Na verdade, esta não seria sua identidade real,
apenas mais um codinome.
Marco ou Javier, o certo é que alguém as levou até a Bolívia. De-
cididamente, Porto Velho não teria muito mais a oferecê-las além do
que já tinham visto. Na cidade de Guajará-Mirim, que ficava próximo,
havia apenas um rio dividindo as realidades brasileira e boliviana, como
bem lembrava Jéssica, por ter recusado um banho nas águas escuras do

53
AURI, A ANFITRIÃ

rio. Os três tomaram um barco até Guayaramerin2 e tiveram o primeiro


5

contato com o território boliviano.


Foram dez dias em Guayaramerin, cidade da zona franca, fronteira
com a cidade brasileira Guajará-Mirím. Nos dois territórios, as jovens
perceberam uma curiosa miscigenação, de um mesmo povo com traços
indígenas, mulatos e brancos. Compraram de um tudo: roupas, maquia-
gens, celulares, presentes. Luxos que não tinham mais na prisão, onde
se resguardavam de contar qualquer “pirangagem” que tenham feito por
lá. Uma delas, descoberta pela polícia brasileira, pesou na sentença das
estrangeiras. Uma fotografia, capturada por um celular apreendido du-
rante a prisão, mostrava as jovens portando armas.
Ao pousar para a foto, sentiram-se poderosas. Maribel queria
sentir o tesão de empunhar uma arma, e o amigo boliviano as levara
para praticar tiro. Acima do risco e até de possíveis tendências agressi-
vas, uma arma simboliza o desejo e sentimento do mais puro “poder”.
Diante de um igual e até dos mais fortes, ricos e poderosos, não há
páreo para uma arma de fogo. Pelo que vejo em meus corredores, esse
instrumento de força bruta nasceu para um mundo onde a justiça e o
sistema não reconhecem seus filhos mais desamparados. E é para eles
que elas existem. Nem sempre empunhada, na busca pelo poder, mas,
frequentemente, sob sua mira, como alvo de quem já exerce as formas
mais ignorantes de autoridade.
Em um lugar afastado, rodeado por natureza, mata e bichos, o
alvo foi uma garrafa plástica. Jéssica não atirou. Teve medo. Suplicava
apenas para não matar nenhum animal. “Eu gosto muito de animais”,
falava do episódio, como se tudo fosse mera brincadeira. O primei-
ro advogado que elas contrataram em Fortaleza avisou que não seria
nada fácil desmanchar provas como estas. O aviso foi a única coisa que
deixou. Em pouco tempo, passou a perna nas duas, levando o pouco
dinheiro que sobrara.

2 A travessia de Guajará-Mirím, no lado brasileiro, para Guayaramerin, na Bo-


lívia, pode ser feita de barco pelo rio Mamoré. O comércio de importados e eletrônicos
atrai brasileiros de todos os cantos, pelos baixos preços em comparação ao valor do
Real. Todavia, a fronteira também é conhecida pelo tráfico de drogas e de pessoas,
inclusive, crianças.
54
AS ESTRANGEIRAS

Os dias correram na Bolívia e já estava em tempo de voltar para


casa. O boliviano levou até o hotel onde estavam hospedadas as pas-
sagens de avião. Na despedida, entregou também presentes para seus
filhos e orientou todo o itinerário. Depois da fronteira, a dupla pegaria
um ônibus para Porto Velho. De lá voltariam ao primeiro hotel em que
se hospedaram, Hotel Guajará, e tomariam o táxi até o aeroporto. O em-
barque no voo internacional para Europa, só em Fortaleza. De lá, elas
não mais desceriam em Madrid. O destino agora era Lisboa, Portugal,
onde o “amado” de Maribel a esperaria para um passeio à altura. “Ele fa-
lou que íamos ficar em um hotel cinco estrelas”, lembrou a dominicana.
Os tais presentes eram três “mantas infantis”. No interior delas ha-
via 5,514 kg de cocaína pura, somando tudo. Falando assim, ninguém
recorda que tipo de brinquedo é esse. Mas de tanto Maribel descrever,
memorizei. Na verdade, as crianças brincam com essas mantas estira-
das sobre o chão. “Sabe amarelinha?”, Maribel pergunta pra quem não
entende. Depois responde que as duas gincanas têm essa característica
de serem executadas no chão. Então, as mantas têm a superfície toda
pintada de bolas coloridas, em quadrantes. O objetivo do jogo está em
sortear entre os participantes as cores dos círculos nos quais eles vão re-
pousar os pés e as mãos. E os membros dos jogadores vão entrelaçando-
-se, aleatoriamente.
A mala de Maribel guardara os presentes. O embarque no aero-
porto de Porto Velho foi tranquilo. Em Fortaleza, no entanto, a droga
na bagagem não passou despercebida. Depois de despachada no check-
-in, câmeras filmavam as garotas enquanto passavam para o embarque.
Jéssica suspeitou daquilo. Por alguma razão, a incomodou. Questionou
à amiga o porquê das filmagens. Maribel tirou-a de tempo. “Deixa, eles
sabem que somos famosas”, brincou.
Em 29 de setembro de 2011, no Aeroporto Internacional Pinto
Martins, os brinquedos foram detectados como disfarce para o tráfico
internacional de entorpecentes. O embarque nem chegou a ser iniciado,
pois um agente da Polícia Federal antecipou-se. Abordou gentilmente as
garotas, revistou as malas e comprovou a presença da cocaína, usando
uma esponja para identificar a droga. A abordagem da polícia, a visto-
ria da bagagem, as acusações de tráfico internacional de drogas. Tudo
55
AURI, A ANFITRIÃ

acontecia muito rápido enquanto as garotas se consumiam em desespero.


Completamente atônitas, entre justificativas vagas ou emudecidas.
Na sala da Polícia Federal, argumentaram desconhecer a procedên-
cia da droga. O agente não foi convencido. Acreditasse ou não, a droga
estava com elas. Argumentaram ainda durante o julgamento. O juiz não
acreditou. Foram julgadas a 13 anos e quatro meses de prisão. Por uma
longa temporada, muros altos bloqueariam o horizonte por todos os lados
para que olhassem. Não veriam qualquer vestígio de suas antigas vidas.
Por muito tempo, teriam apenas a mim como sinônimo de lar.

Inóspito viver
O silêncio consumiu suas últimas esperanças de acordar daquele
pesadelo. Retidas por dois dias na delegacia de capturas, as jovens es-
trangeiras ainda aguardaram uma solução repentina para aquele episó-
dio. Como as reviravoltas melodramáticas das telenovelas que minhas
hóspedes costumavam acompanhar na televisão. No entanto, esta his-
tória em nada lembra um folhetim. Foram presas em flagrante, com in-
dícios suficientes de autoria. A confirmação de que estavam longe do
papel de mocinha injustiçada da teledramaturgia veio quando avistaram
pela primeira vez os meus altos muros. Quando foram entregues a mim.
Em mim, o tempo demora a passar. E as novatas, por mais que re-
sistam, logo farão parte desse ciclo. Enquanto lá fora o mundo segue seu
ritmo frenético, em mim, reina a rotina fria de uma prisão. Umedecida
ela por tímidas doses de esperança e pelo suor do trabalho diário das
prisioneiras. Pois, a despeito do ócio que envenena o cárcere, o sistema
dispõe do labor e da disciplina, como forma de estímulo à redução de
pena. Uma tentativa de “ressocialização”, que também projeta os esfor-
ços em exercer mais controle sobre a rotina das internas. Afinal, o traba-
lho mantém corpos e mentes ocupados, longe de revelia qualquer.
Já eu, no posto que vivencio, nada posso fazer por essas mulheres.
Não passo de uma observadora dotada de sensível instinto materno.
Fatídicas “faculdades acolhedoras”, como se vivesse até uma materni-
dade imaginária. Nos dramas que compartilho, sou onipresente, é ver-
dade, mas sem o menor poder de ação. Para a minha salvação, nestas
entranhas, gira um mundo paralelo, com códigos e crenças autênticos.
56
AS ESTRANGEIRAS

Se, à luz do dia, minha alma passa despercebida para muitas delas, é
para mim que revelam seus anseios em preces noturnas, choros aba-
fados e até na ansiedade das visitas. No dia a dia, porém, cada uma
segue assumindo a carapuça que lhe convém para sobreviver. Afinal,
o que determina a vida de uma presidiária são suas companhias de
cárcere. E não há como fugir disso. A única possibilidade, para elas e
para mim, é adaptar-se.
Mulheres como Maribel e Jéssica, recebo quase todos os meses. A
grande maioria da população carcerária entrou aqui por envolvimento
com o tráfico de drogas, influenciada pelos namorados, maridos ou
por uma simples questão de sobrevivência. Tem delas que chamam
esse instinto de “necessidade financeira”. Modéstia à parte, não sou
como qualquer presídio brasileiro. A televisão já veio diversas vezes
para mostrar isso, desde os tempos da inauguração. Entretanto, apesar
das condições amenas das minhas celas, por muito que já vi e pre-
senciei, não acredito que será o cárcere a resolver ou ordenar as vidas
das mulheres que em mim adentram. Por tantas que tempos depois
retornam.
Sem dominar nem mesmo o básico do português, as garotas logo
sentiram o peso da dura convivência com as outras presidiárias. As
duas foram levadas à ala D. A segunda mais populosa, depois da ala
E. As presas desse corredor não trabalham. Brigas são comuns, pois
há um clima de “facção” entre as mulheres que ali habitam. Por essa
razão, algumas celas ficam fechadas e o acesso ao pátio é restrito. Nas
minhas duas maiores alas, a D e a E, é onde mais se encontram celula-
res, drogas e outros problemas. Mas também é mais onde se encontra
o companheirismo.
As estrangeiras, geralmente, enfrentam mais adversidades para se
adaptar, em comparação com as brasileiras. Destinadas a uma cela com
mais seis detentas, nos primeiros dias, Maribel e Jéssica viram-se obri-
gadas a dormir no chão. Sentiram a hostilidade das colegas. Os perten-
ces que permaneceram com elas foram, aos poucos, surrupiados. Elas
eram as “gringas”. Não conseguiam nem mesmo tentar se “misturar” às
demais. Havia a barreira linguística, claro. Mas mesmo sem conhecê-las,
as outras não perdoavam. As estrangeiras já gozavam de muitas regalias.
57
AURI, A ANFITRIÃ

Entrada da ala E, que possui 30 celas, com capacidade para quatro internas. No centro
da ala, tenho um pátio comum, onde minhas hóspedes podem interagir durante o dia.
58
AS ESTRANGEIRAS

Recebiam dinheiro dos consulados, conseguiam trabalho e outros bene-


fícios rapidamente, além de contarem também com mais celeridade em
seus processos, visto que eram assuntos federais.
Foi lá que as jovens conheceram as primeiras histórias das valen-
tonas. Em um universo completamente feminino, são elas quem distri-
buem as cartas. Quem cantam de galo. E não são poucas. O lugar pode
não ter o odor masculino, mas está repleto de suas “virtudes” competiti-
vas. Foi exatamente de uma das “pitbulls” que vieram as primeiras lições
de sobrevivência. Não se deixar pisar foi a principal. Logo, Maribel e
mesmo Jéssica perceberam que ali não havia lugar para uma mocinha
de folhetim.
Essas e outras importantes lições vieram de Carla, a primeira gran-
de aliada que Maribel conseguiu no presídio. As estrangeiras a conhe-
ceram depois de uma das suas muitas infrações. Foi enviada à cela das
meninas após o castigo. Em mim, castigo pode ser sinônimo de uma
temporada em um dos meus cômodos mais temidos: a tranca. Alguns
meses depois, Maribel e Jéssica descobririam porque o local fora esco-
lhido como punição para algumas internas.
Conhecida por aprontar, foi justamente a “garota encrenca” da pri-
são que se compadeceu da situação das estrangeiras. Para as agentes, ela
era o mau exemplo. Para Maribel, representou uma mão amiga. Apesar
de ser uma “pitbull”, Cássia foi a única que ajudou quando a dominicana
mais precisou. A partir daí, a parceria entre Maribel e Jéssica, já muito
abalada após a prisão, foi se diluindo cada vez mais. Cada uma, a seu
modo, foi encontrando seu caminho de sobrevivência, afastadas pelas
grades e pelos ressentimentos.
Jéssica não se “misturava”. Chegou-me atarantada, perturbada pela
dor e pela mágoa. O medo borbulhava-lhe as entranhas, embora não
perdesse a altivez. Se ao cárcere chegara, sinônimo do “fundo de poço”,
melhor, então, optar pelo isolamento. Daqui por diante, dispensaria
toda e qualquer má companhia. Depois de tudo dar errado, a sua pró-
pria companhia era suficiente e lhe oferecia riscos bem menores. Logo
conseguiu uma ocupação dentro do presídio e, para sua sorte, foi trans-
ferida para a ala A. A ala do bom comportamento. Da assepsia. Passa-
riam ainda nove meses até que conseguisse essa transferência.
59
AURI, A ANFITRIÃ

Quando a transferência chegou, livrou-se não só dos problemas


com as outras detentas, mas também de Maribel. Cansou-se das tor-
mentas e desconfianças de sua amizade. A esta altura quase não reco-
nheciam a si mesmas, quanto mais uma a outra. Ao passo que Maribel
lhe apresentou o prazer de descobrir os mais fugazes encantos deste vas-
to mundo, provocou-lhe o pior dos dissabores. A sensação do engano.
Relutava contra esse sentimento, pelo medo da solidão no país estranho.
Mas, no confinamento, impossível repulsar pensamentos e, muito mais,
sentimentos.
Já na ala A, Jéssica recebeu uma nova parceira em sua cela. A garota
tinha feito fama no Ceará inteiro. Na verdade, a fama havia sido obra do
namorado dela, o famoso “Ninja nu”. Os dois foram presos, acusados de
assassinar uma adolescente, ex-namorada do rapaz. Deste então, ambos
apareceram como procurados em todos os programas policias e jornais
de Fortaleza. Com a repercussão do crime hediondo, durante o qual
quase decapitaram a cabeça da vitima a facadas, o “cabrinha” começou
a gravar vídeos desafiando a polícia, depois divulgados na internet. As
imagens, exibidas na TV, mostravam-no conduzindo uma motocicleta
com o corpo à mostra, nuzinho como veio ao mundo. A namorada, por
sua vez, compartilhava mensagens satânicas.
Cada novidade sobre o caso deixava os apresentadores dos pro-
gramas policiais histéricos. As internas se deleitavam com a história ao
mesmo tempo em que ficavam desconfiadas com a futura hóspede que
eu receberia. Daiane, a tal namorada do “Ninja Nu”, deu sorte em con-
seguir uma ocupação fácil no presídio, sendo transferida para a ala A,
logo para a cela de Jéssica e Fran. Se havia desconforto com a chegada
de mais uma hospede à cela, o pior deles foi que a menina era “per-
guntadeira” demais. Deu trabalho às colegas. Pegou Jéssica para Cristo,
certa noite. A novata tinha conhecido Maribel na oficina de costura da
tia Neném, o que lhe aguçou a curiosidade de saber o motivo do rancor
entre as duas.
Deitada sobre suas “pedras”, as prateleiras que comportam os col-
chões onde dormem minhas hóspedes, Fran dormia, enquanto Jéssica e
a novata assistiam TV. Daiane, a tal menina, contou que achara a domi-
nicana muy amable. Maribel, de fato, é de um carisma indubitável. En-
60
AS ESTRANGEIRAS

ciumada, Jéssica pulou o contar da história algumas partes, até chegar


ao momento do flagrante.
– E tu quer bem dizer que não suspeitou de nada, nesses dias na
Bolívia? – indagou Daiane.
– No. Apenas algumas veces quando ela sumia com um cara que
conhecemos.
– E o que ela disse das “paradas” na mala?
– Ela disse que não sabia. Foi como ela se defendeu no dia da au-
diência. Pra mim, também falou que não sabia. Mas como levar cinco
quilos e meio de cocaína na mala, um verdadeiro iceberg, e não perce-
ber? – Jéssica contorcia-se para não explodir um berro de indignação.
Daiane pareceu sentir o clima de tensão. Achou melhor deixar
que a televisão roubasse a cena. Jéssica respirou fundo e o pensamento
escapou:
– No fundo, não tenho rancor dela, não. Serviu para aprender. Eu
pensava que ninguém podia me machucar, só o pai do meu filho. Quan-
do eu estava fora, só queria festa, só queria meu marido, só queria coisas
de “louqueira”. E aqui fui saber como amo meu filho, meus pais, e quem
me quer realmente.
Naquela noite, dormiu feito um bebê. Leve e em mergulho profun-
do. E pelas noites e dias seguintes, as duas estrangeiras continuaram se
evitando, até os últimos instantes em que as alcancei. Antes de partirem
ainda se estranharam bastante. Qualquer recomendação ou questiona-
mento soava como afronta, petulância. Jéssica torcia até mesmo para
que a direção deixasse Maribel sair antes dela, pois não queria “nem
saber dessa mulher”.
A mágoa entre as duas era um fenômeno curioso. Ao passo que se
repeliam, havia também uma refinada sintonia entre elas. Quase imper-
ceptível, a não ser pelas revelações inesperadas de Jéssica. Era como se
ambas continuassem partilhando as mesmas dores, as mesmas dúvidas
e os mesmos segredos. A espanhola, por vezes, carregava uma expressão
amargurada com o destino que traçou a si mesma. Dizia que foi a única
“laranja”. Loira, branca, de olho azul, só para disfarçar. Mas ainda assim
carregava uma maciça cruz dos atos inconsequentes e desvarios em que
decidiu mergulhar.
61
AURI, A ANFITRIÃ

Maribel foi pelo caminho inverso de Jéssica, que optou pelo iso-
lamento. Conseguiu, enfim, se enturmar. Entrou de vez para o jogo
hierárquico da prisão. Através de Carla, ganhou fluência não só no
português, mas também na linguagem particular entre aquelas acos-
tumadas com a marginalização. Fluência e influência em alto grau
para uma presidiária estrangeira. “Fiz uma pirangagem”, arriscou no
linguajar, dia desses. Pior que a tal “pirangagem” foi o que a levou à
tranca pela primeira vez.
Para piorar, a essa altura, ela não contava mais com o companhei-
rismo de Carla. Esta fora solta após seis meses de convivência com a
dominicana. Mas até aí, Maribel já conquistara a amizade de outras
parceiras. Por acobertar certas irregularidades dentro da prisão, ga-
nhou até fama de laranja. Uma bateria de celular, certa vez, fora en-
contrada em sua cela. Drogas, celulares e outros apetrechos do gênero
até entram pelos portões, passando despercebido pela revista, mas rá-
pido se pega quando utilizados. Maribel e as parceiras foram manda-
das para a tranca.
Lugar hostil para qualquer ser humano, a tranca era um ambiente
para animais como um chiqueiro. Não é por menos que foi apelidado de
“cu da cobra” pelas mulheres que em mim habitam. Tanto faz que sejam
duas ou vinte as infratoras, hão de se revezar entre o chão e a única pe-
dra, todas no mesmo cubículo fétido. Maribel sentira pela primeira vez
a dureza de não ver a luz do sol. Apenas um resquício de luz conseguia
chegar aos seus olhos, através do portão da cela. Só mesmo na hora mais
clara do dia, a dominicana visualizava as formas do cubículo que dividia
com mais quatro colegas. Era imundo.
Foram longos 14 dias de escuridão, desconforto e sujeira. Banho
não se tomava ali, pois não havia banheiro ou vaso sanitário. Apenas um
buraco a um canto, destinado às necessidades básicas. Do buraco vinha
o odor de dejetos humanos. Não só os delas, os dejetos de todo o pre-
sídio passava por baixo da tranca, disputando com ratos e baratas que
moravam ali. O odor atormentava as rebeldes. No entanto, o que mais
atormentava eram os gritos. Os gritos e choros não cessavam, seja dia
ou noite. A tranca ficava na mesma “ala das loucas”, a ala B, destinada às
internas com problemas mentais.
62
AS ESTRANGEIRAS

Quando não estavam gritando ou conversando sozinhas, as loucas


aprontavam com as agentes, atirando objetos de suas celas ou mesmo
defecando para fora das grades. Era exatamente ali onde as internas que
aprontavam eram trancadas. Não só as veteranas sentiam o gosto da ala
B. A triagem também era feita naquele mesmo espaço. Toda hóspede
que chegasse tinha que passar seus primeiros dias na ala B. Em celas
com condições mais amenas comparadas às da tranca, é verdade, mas
não menos impactantes para quem começou a me conhecer intima-
mente. Este é o meu real cartão de visita.
Às duas da tarde, as presas voltavam ao trabalho e aquelas que não
trabalhavam aquietavam em suas celas. O calor desta região no semiá-
rido atinge a potência máxima por volta desse horário. Até os bichos se
recolhem e ficam paralisados feito estátuas, entre a digestão do almoço
e a economia energética que o calor provoca. Maribel já estava contan-
do sua quarta tarde de recolhimento na tranca. A umidade das celas,
guardada nas paredes e no piso de cimento cru, embriagava as internas
ociosas de sono, inclusive Maribel e suas parceiras indisciplinadas.
– Diabo dessas doidas não me deixam pregar o olho, velho. Parece
lobo. Cala a boca aí, porra! – Berrou Narcélia, a presa mais “machuda”
da cela da dominicana. Ela tentava cochilar depois do almoço, enquanto
era sua vez de ficar sobre a pedra.
– Olha o enxame aí, pelo amor de Deus, Narça. Assim as guardas
vão deixar a gente mais dois dias nessa escrotice aqui. – alertava Eugê-
nia. A garota suava em bica toda vida que as agentes pressionavam para
descobrir quem era a dona do objeto.
– Tou ”interada”, viu, Eugênia? Esse nervosismo só pode ter uma
razão. Não sei o que tu ainda tá esperando. Fudida tou eu, aqui nessa
jaula, vendo a hora levar outra “coça” da polícia, por causa de treta dos
outros – devolveu Narcélia, em uma de suas costumeiras provocações.
– Não mexe com quem tá quieto, Narcélia. Se tu não sabe de quem
era a “parada”, segura aí tua onda que é o melhor que tu faz.
Maribel e as outras duas parceiras riram da discussão, mas, olhan-
do-se, com reservada desconfiança. Nem todas sabiam de quem era a
bateria de celular. Maribel manteve sua expressão sonolenta, abraçou os
joelhos, sentada no piso da cela, para dormir ali mesmo.
63
AURI, A ANFITRIÃ

– Olha a zoada aí, vocês! Quero ninguém gritando aqui, não. E


acho melhor nem continuarem. – alertou o vozeirão corpulento de
Dona Luna, batendo seu molho de chaves nas grades de entrada da ala
B. A chamada foi suficiente.
– Né nada, não, Dona Luna. A senhora desculpa aí. – emendou
Eugênia.
No décimo quarto dia, Eugênia finalmente assumiu a culpa. Ma-
ribel, assim como as outras, havia sido paciente até então. Claro, havia
“ordens superiores” para que Eugênia tivesse se segurado por tanto tem-
po. A dominicana, coitada, era que tinha menos direito a reclamar, já
que buscava se infiltrar. Para as parceiras, Eugênia pelo menos contou
a história completa. Ela só cumprira ordens de Tigresa. O apelido de
felina vinha para casar com sua posição privilegiada no jogo “manda
quem pode, obedece quem tem juízo”. Era uma das chefonas. Para Mari-
bel, mais uma mulher com seios como os seus, mas com vontade de ser
homem. Ela não tinha escolha, só poderia mesmo obedecer. Por causa
disso, Eugênia ficou ao todo trinta dias na escuridão e no fedor.
Com certa graça, a dominicana revelou o que sentiu quando co-
nheceu a companheira de cela. Eugênia aparecera em programas po-
liciais. Programas que, por sinal, têm bastante audiência por aqui. To-
das param diante da televisão para ver quando a sua “quebrada” ganha
destaque. São nesses programas que se veem representadas. Quando
viu a história da jovem que matara o próprio pai a facadas, um “to-
mara que ela não venha para minha cela” foi o que primeiro veio na
cabeça de Maribel. Ironicamente, Eugênia foi enviada exatamente para
a cela da dominicana.
Apesar de estar na ala A, Jéssica também teve sua dose de ala B.
Estar na “melhor ala” não garante afastamento completo de perturba-
ções. Ela foi para a tranca uma vez, por causa de uma suposta intriga
motivada por inveja. Cristina “formara” para ela. Acusou a espanhola
de querer ter vantagens sobre as outras, pegando comida na cozinha
enquanto deveria varrer o corredor. A garota delatou a espanhola para
uma das agentes. Em seguida, Jéssica foi enviada ao castigo.
Passou um dia na tranca, dividindo o aperto da cela minúscula, o
mal-estar e o calor com outras três presidiárias arredias. Na tranca, os
64
AS ESTRANGEIRAS

ratos faziam companhia a elas, vindos, junto com o fedor, do buraco


usado como sanitário. Jéssica ouviu gritos e choros das loucas, a noite
inteira. A diretora tirou-a de lá, quando soube de sua punição. Nunca
havia aprontado antes. Até ali, dedicara-se ao serviço de varrer o corre-
dor todas as manhãs. Na condição de estrangeira, não podia receber o
ordenado3, mas sempre soube que as presas da ala A têm mais respeito
6

das agentes. Recebera, assim, um voto de confiança.

Medos, tabus e mitos


Até mesmo no aspecto sexual, a masculinidade impera neste cos-
mo. Uma boa parcela das mulheres já se assumira homossexual antes
mesmo de chegar. São masculinas desde a forma de andar até o timbre
de voz. Tem também as roupas, os cortes de cabelo e as tatuagens. Fize-
ram à Jéssica a caveira de muitas detentas, possivelmente homossexuais.
Contavam lendas internas. Uma delas rezava o seguinte: havia uma pre-
sa lésbica que tentava pegar todas as estrangeiras e, se não conseguisse
por bem, matava a escolhida. A espanhola tremia. Chorava como uma
criança. Depois de se aproximar da tal figura, riu-se por cair na brinca-
deira de mau gosto. Jéssica a adorou.
Quando Maribel e Jéssica foram passadas para a ala D, algumas de-
tentas logo as olharam com interesse. “Elas vão me comer todinha”, sol-
tou Jéssica, quase alto. O rosto franzido falava por si. Ao cair na prisão,
toda mulher passa pelos assédios. Muitas não cedem. Outras despertam
para essa possibilidade com o passar do tempo. Com a solidão, com a
dor, com a carência. Com Jéssica não foi diferente.
Logo que chegou, a espanhola ainda guardava certa obsessão por
Ramón. No primeiro telefonema que teve direito, ligou para ele. Não
para os pais. Trocaram juras de amor e declarações. Na segunda liga-
ção, no entanto, o telefone estava desligado. Através da mãe, soube que
ele entregara Heitor aos avós. O bebê tinha pouco mais de um ano. De
Paco, que escrevera a Maribel, veio a notícia mais triste. Ramón esta-

3 Pela legislação brasileira, o presidiário que trabalha consegue reduzir o tempo


da pena e ainda ganhar algum dinheiro para a família. As estrangeiras do Auri, porém,
não possuem Cadastro de Pessoa Física, portanto, não podem receber. Às vezes, con-
seguem auxílios com os consulados.
65
AURI, A ANFITRIÃ

va com outra mulher, que já esperava outro filho dele. Jéssica sofreu.
“Estou com raiva de tudo. Não quero homem, não quero nada”, dizia
frequentemente.
Por outro lado, Fran deu-lhe o chão que muitas vezes faltava. Deu-
-lhe o consolo e a segurança que Maribel arrancara. Fran logo se apai-
xonou por Jéssica, mas soube se chegar. Pouco a pouco, demonstrou
seu interesse sob forma de carinho, cuidado e companhia. Para quem
vivia resignada ao peso do fracasso, Fran conseguiu arrancar sorrisos da
espanhola. Conseguiu conquistar sua confiança.
Com uma revolta que só crescia pelo antigo companheiro, Jéssi-
ca nutriu uma aversão por homens. Afinal, um deles foi o responsável
por tudo de ruim que acontecera em sua vida. Chegou à conclusão de
que o mais sensato mesmo era ter alguém que lhe fizesse bem, mesmo
que essa pessoa não despertasse aquele tipo de amor em seu coração.
“Prefiro estar com alguém que me faça bem e que eu não ame, do que
ficar com alguém que eu ame e me faça mal”, concluiu certa vez, ao ser
questionada sobre sua relação com a parceira de cela.
Entre o amor e a paz, ela optou pela paz. Paz pela qual há muito
ansiava seu espírito. Foi assim que Jéssica cedeu. “Ela é minha mulher.
Pronto. Falei. Ela é muito boa, boa demais. Tranquila, a minha Fran”,
assumindo de vez a relação. Fran caiu no xadrez por roubo e pegou pena
de oito anos e oito meses. Já estava presa há mais de dois. Aos poucos,
começaram a se reconhecer como um casal, dentro e fora do cárcere.
Faziam planos para o futuro. “Casamento, né?”, propôs Jéssica.
O cárcere não é só uma passagem para quem está dentro. Bra-
sil, Porto Velho, Guayaramerin, Fortaleza e eu, inclusive, somos todos
mundos completamente estranhos. Com linguagens e costumes pró-
prios, até culturais. Completamente desconhecidos à Jéssica, que não
tinha a quem recorrer, antes de Fran. Afagava-lhe o coração receber as
cartas da família. Sua mãe escrevia contando as novidades do filho, dos
irmãos e do país. A Espanha permanecia em crise. O patriarca trabalha-
va de vendedor numa loja de calçados, mas não recebia há meses.
Em momentos como esses, ela lamentava estar perdendo a chance
de acompanhar o crescimento do filho, Heitor. Mas o que ela não tinha
noção era que também estava se distanciando de si mesma. O corpo
66
AS ESTRANGEIRAS

de dançarina de Jéssica chegou muito torneado, rígido e gracioso. Ela


era um sucesso, ainda que se incomodasse com isso. Com o passar dos
dias, que se vão como meses, seu espírito se abalou. Abateu também
sua aparência e o aspecto sempre vívido. Não havia para quem se cui-
dar. Ninguém viria no dia de visita. A única vez que fitou o seu reflexo,
durante sua estada como minha hóspede, foi numa ocasião puramente
acidental. Por engano, entrou no banheiro das agentes. Quase em cho-
que, assustou-se com aquela estranha mulher que surgiu em sua frente.
Havia onze meses que ela não se via em um espelho. Achou-se gorda,
pálida, horrível. Foi a dor que a envelhecera.
A exemplo de Jéssica, a vaidade é uma das muitas regalias que dei-
xaram de fazer parte do cotidiano de minhas hóspedes. Ver a própria
face refletida no espelho passou de prática usual para direito negado à
sua condição de presidiária. Espelho não é permitido. Seria facilmente
utilizado como arma. O que para muitos não passa de lixo descartável,
entre meus muros, pode significar uma chance de enxergar sua própria
imagem. Embalagens laminadas são instrumentos úteis para as inter-
nas. Foram as embalagens de biscoitos que serviram de saída na busca
por algum resquício de si mesmas.
Já Maribel, mais do que vaidosa, era uma garota astuta. Logo
aprendeu um ofício que traria alguns trocados a mais. Com uma linha
nas mãos, ela se tornou a depiladora oficial da ala D. Sobrancelha, axilas,
buço e região íntima. Com destreza, ela logo se livrava dos pelos indese-
jados. Em troca, ganhava R$ 3 por região depilada. Com o rendimento,
ela adquiria elementos básicos da higiene feminina, como xampu, sabo-
nete e absorvente. Eram todas especiarias no comércio informal entre
as detentas.
Em um sábado, a cela da dominicana ficava lotada. A algazarra
não era motivada por brigas ou intrigas. Pelo menos, não nos sábados.
Era o dia da beleza. Maribel chegava a depilar sete colegas. Também
fazia tranças. Iam todas na sua cela atrás de atendimento. Queriam ficar
bonitas para o dia seguinte. Todas as quartas-feiras e domingos, prin-
cipalmente, a dominicana via suas colegas serem chamadas uma a uma
pelas agentes. Alguém tinha vindo vê-las. A ala, aos poucos, ficava vazia.
Mesmo sem esperanças de ouvir seu nome, Maribel sempre se dirigia
67
AURI, A ANFITRIÃ

ao refeitório de sua ala. Ficava à espera. À espera de um chamado. De


alguma ex-colega que se lembrara de visitá-la. Quem sabe Carla.
Nessas horas, eu sabia que a tristeza em seu rosto era a saudade
de Paco apertando. Aumentavam as dúvidas. Será que ele estaria com
outra? Voltariam a ficar juntos algum dia? As cartas demoravam a che-
gar. Ligações apenas uma vez por mês. Por três minutos, ela poderia
ouvir uma voz conhecida. Um pedacinho de casa. O martírio da sauda-
de aumentava quando a ligação não era completada. Nem sempre teria
alguém em casa para atender ao telefonema.

Enfim, uma reviravolta


Após um ano e três meses de cárcere, Maribel escutou de Jéssica
a notícia que mudaria todas as perspectivas que tinha para seus próxi-
mos anos de vida. Dra. Naiana, a defensora pública que atende minhas
hóspedes, informara à espanhola sobre a nova condição. Como nunca
havia se visto em minha ainda curta existência, condenadas por tráfico
internacional de drogas iriam embora com menos de quatro anos de
prisão. A defensora explicou a Jéssica que o desembargador federal
Francisco Wildo, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, proveu,
em parte, as apelações das estrangeiras. Reduziu as penas privativas de
liberdade de 13 anos e quatro meses em regime fechado para quatro
anos em regime aberto.
Através do princípio non bis in idem, o desembargador interpretou
que elas foram punidas duplamente pela mesma infração, já que os au-
tos estavam considerando a quantidade total da substância encontrada
para cada uma. Pelo que explicou a Dra. Naiana, o cálculo deveria ser
por cabeça, dividindo a quantidade ao meio. Além disso, o fato de elas
serem menores de vinte e um anos na época do delito também aliviou a
pena. Diante da justiça internacional, esse é o limite para a menoridade
e, por isso, o juiz aplicou uma atenuante no processo. Como elas já ha-
viam cumprido 2/5 do estabelecido, ganhariam o direito à liberdade tão
logo saísse a ordem de soltura.
Animadas, as duas chegaram a comemorar juntas. Depois, vie-
ram as reflexões. No caso de Maribel, sua prole era motivo de preocu-
pação. Assim como Milagros era uma estranha à Maribel quando mãe
68
AS ESTRANGEIRAS

e filha se reencontraram, esta será uma estranha para os filhos quando


retornar à Espanha. A ironia da vida foi ao ponto de a jovem repetir
duplamente o que mais condenava na própria mãe. Mesmo antes de
vir ao Brasil, as crianças já viviam com as avós. Ficaram ainda longo
tempo sem ver aquela que os colocou no mundo. À dominicana resta-
va a esperança de que os filhos a reconhecessem. Esperando que tanto
a mãe quanto a sogra tenham os ensinado quem é a sua verdadeira
mãe.
– Por mais que eu pensasse nos meus filhos, eu sempre queria
festa, estar com minhas amigas. Agora aprendi que amigas vêm e vão.
A família não – discursou às parceiras quando retornou à cela com a
novidade.
Calejada, ela listou àquelas mulheres o que aprendeu com o cárce-
re. Aprendeu a não julgar ninguém pela cara. Aprendeu a focar no que
realmente importa. Aprendeu que a vida é uma só, mas, para desfrutar,
é preciso limite. Aprendeu a pensar bem no passo que vai dar. Apren-
deu que na vida tudo tem um preço. Nada é tão fácil quanto parece ser.
Maribel logo se lembrou do mar, do gosto salgado da água, do cheiro
da maresia. Também ansiosa por avisar aos parentes que logo estaria
voltando para casa. De repente, também sentiu vontade de agradecer
pelo milagre.
– Vou a uma igreja – gritou em meio à algazarra que se formou
entre as mulheres da ala D.
Enquanto isso, Jéssica passou seus últimos dias como minha hós-
pede em meio ao nervosismo. Não trabalhava porque nem isto ajudava
a passar o tempo. Ansiava demais se ver longe dos meus muros. A pri-
meira coisa que sonhava em fazer era falar com seus familiares. Queria
sentar em frente a um computador para ver o filho.
Em uma sexta-feira, sairiam dos meus muros para, pela primeira
vez, conhecer a cidade onde caíram no quase inevitável destino de quem
se dá mal no esquema do tráfico de drogas. Destino de quem se torna
consciente ou inconscientemente uma “mula”. No Brasil, ainda não vi-
ram a praia. Apenas a água escura do rio que as conduziu até a Bolívia.
Agora sim, poderiam explorar a beleza da geografia brasileira, genuina-
mente livres de interesses alheios.
69
AURI, A ANFITRIÃ

Sei que sozinha sou apenas a hostilidade de grades e muros. Por


isso, também me dói a perda de minhas hóspedes. Mas, tenho que acei-
tar minha linearidade, em comparação com a ciclicidade de suas vidas.
Ambas ainda teriam que aguardar mais alguns meses até a saída do do-
cumento de expulsão do país. Quando saísse, elas finalmente seriam
deportadas. Até lá, ainda precisariam conviver com as incertezas de es-
tarem sozinhas em uma cidade que continua tão estranha quanto era na
primeira vez que chegaram aqui. Uma cidade ironicamente chamada de
Fortaleza.

70
AS ESTRANGEIRAS

Agentes penitenciárias controlam a entrada e saída das alas. Uma equipe de agentes, pos-
tada diante da cada uma das cinco alas, monitora a movimentação das internas no pátio.

O parlatório possui quatro cabines, sendo reservado para conversas entre minhas hóspe-
des e advogados, pesquisadores e jornalistas, que ficam separados por uma grade de ferro.
71
Capítulo 2
[Cinara]

A amante
dos livros
“É como se eu tivesse morrido. Pra
mim, seria um favor se ele me ma-
tasse. Sabe o que é isso? É o horror
de ter visto uma pessoa morrer”.
Cinara
A AMANTE DOS LIVROS

D
a cela, ela ouviu os gritos. Levantou os olhos do inseparável
livro pela primeira vez, depois de muitos minutos. Sempre fi-
quei impressionada ao vê-la se desprender deste mundo atra-
vés das páginas de um dos inúmeros livros guardados em minha bi-
blioteca. Com o exemplar a tiracolo, ela saiu da cela e se dirigiu à área
comum da ala A, o pátio. Era sábado. Não tinha trabalho nem estudo.
As grades que davam para o corredor central já estavam tomadas por
suas colegas de ala. Mesmo assim, tentou chegar mais perto para ver
o que acontecia.
Logo soube que o tumulto fora gerado durante a passagem de duas
presas para o castigo. O que ela mais tarde entenderia é que a dupla for-
mava um casal e receberia, cada uma, um castigo diferente. Enquanto
uma seria levada para a ala C, a outra passaria uma boa temporada na
tranca. Não era preciso passar muito tempo como minha hóspede para
entender que, em mim, relacionamentos amorosos são o principal de-
sencadeador de brigas. Pelas histórias que escuto dessas mulheres, pos-
so supor que não é só no cárcere que relacionamentos podem bagunçar
a vida de alguém.
Durante a passagem, muitas presas indignadas gritavam com as
agentes que tentavam, com dificuldade, separar as duas amantes. Uma
delas era mais resignada. Deixou-se levar até a entrada da ala C. A outra
era uma das pitbulls. Raivosa, chegava a bufar. Não se conformava com
a decisão. No entanto, por mais valentona que fosse, ela não era imune
ao sistema. Até poderia funcionar uma hierarquia entre as fiéis mora-
doras da minha fria carcaça de concreto. Mas, ao final das contas, todas
deveriam se submeter à autoridade da instituição, diante da qual sou
apenas uma estrutura impotente.
A instituição não é material como eu. É algo quase espiritual. Vai
muito além do corpo de funcionários que em mim batalham todos os
dias para fazer valer seus ordenados. A instituição é algo enraizado,
histórico, ligado a um governo que rege o mundo dos homens lá fora,
assim como rege o mundo paralelo por trás destas propriedades. Eu
aprendi todos esses conceitos, tão abstratos, com aquela amante dos
livros. Com aquela mulher que, mais do que todas que já passaram
por aqui, indigna-se com os tais mecanismos de controle do Estado.
75
AURI, A ANFITRIÃ

– Está resistindo de besta. Não vai adiantar de nada – comentou


uma colega ao seu lado – Ela bem que tava merecendo uma lição. Tava
querendo ser muita coisa, essa daí, arrumando confusão a torto e a di-
reito. Só que ela não é nada. É mais uma bandida como todas nós.
– Não deixamos de ser gente só porque estamos aqui – retrucou
Cinara.
– Eu sei. Mas, olha pra ela. Nem gente parece. Parece mais um
animal.
– Um animal ferido e encurralado – sussurou mais para si mesma.
Era evidente seu incômodo com a indiferença de algumas colegas
da ala A em relação às de outras alas. Para muitas dali, o regime semia-
berto estava próximo, era uma questão de tempo e paciência. Por isso,
estavam mais preocupadas em não se meter em encrenca e em reduzir
sua temporada como minha hóspede. Eu sempre me perguntava se es-
tariam erradas em agir assim, por desejar-me “ver pelas costas”. Para
Cinara, o excesso de cautela das companheiras, somado à hostilidade
pelo resto da população carcerária, era sinal de egoísmo.
Ficava igualmente incomodada em ter seus direitos privados. Não
podia ser uma cidadã plena. Não podia nem sequer votar. Isso a irri-
tava profundamente. Paradoxalmente, o controle institucionalizado a
importunava, ao mesmo tempo em que a consolava. Ele supria uma
carência natural do seu modo de se relacionar com o mundo, o que,
no passado, desencadeou sua vinda para o xadrez. Desde sempre, Cina-
ra confundia os significados de “proteção” e “controle”. É uma mulher
volátil ao domínio, embora hoje tenha desenvolvido certa “resistência”,
especialmente no plano das ideias.
– “À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um casti-
go que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as
disposições. Que o castigo fira mais a alma que o corpo”4 – recitou em
voz alta um trecho que memorizara de Vigiar e Punir, aquele mesmo
livro que nunca largava.

4 O trecho foi extraído do livro “Vigiar e Punir: nascimento da prisão”, do filósofo


francês Michel Foucault (2010, p. 21). Publicada originalmente em 1975, a obra faz le-
vantamento histórico da legislação penal e dos métodos punitivos adotados pelo poder
público, sendo dividida em quatro partes: suplício, punição, disciplina e prisão.

76
A AMANTE DOS LIVROS

Sem esperar resposta da colega, voltou para a solidão de sua cela.


Solidão que apenas naquele momento começava a abraçar como amiga.
Ela sabia que, inevitavelmente, as amantes sairiam com ferimentos na
alma e no corpo. Isso fazia parte do processo de “domesticação do espí-
rito”, conceito que, assim como eu, aprendeu com Foucault.
Por tudo que já vi e ouvi, posso afirmar que o destino é mais que
irônico. Como explicar que aquela amante de homens violentos e con-
troladores acabasse se tornando uma crítica ferrenha da forma como o
Estado controla o indivíduo, seja encarcerado ou não? Ela, que mesmo
hoje parece temer a completa liberdade. Por medo do abandono, sem-
pre se associou ao controle como um consolo à sua carência afetiva.
Chegou a privar-se da própria identidade na busca por um homem
que a protegesse de tudo e de todos. Na busca pelo homem ideal que
nunca a abandonaria. Sinto que acabei assumindo esse papel. Eu fui a
única que nunca a abandonou. No final das contas, serei irreversivel-
mente aquela que ficará para trás. De uma forma ou de outra, todas
acabam seguindo em frente.

A menina lobisomem
Cinara raramente ligava a televisão. Preferia mesmo a companhia
dos livros. Certa vez, presenciei o que me pareceu um fluxo de memó-
rias tomando seu corpo, como uma “entidade”, parecida com as cenas de
rituais evangélicos que passam na televisão. Sozinha em sua cela, mer-
gulhada em uma leitura, de repente, ela emergiu como que encantada,
atraída, por um som mágico. Um som que parecia surgir das profunde-
zas de suas memórias. Talvez ela tenha pensado que estava sonhando.
Não estava. Mas parecia. O som que a despertara vinha de uma das cai-
xas de som instaladas em minhas paredes, transmitindo a nossa rádio
interna, chamada de Rádio Livre. De novo, a ironia. Como se possuída
por um espírito traquino, seu corpo começou a se agitar freneticamente.
Seu quadril remexia-se para um lado e para o outro. Suas mãos pare-
ciam balançar uma saia imaginária, enquanto a cabeça acompanhava
o ritmo. Ela dançava muito bem. Era como se Cinara deixasse que “um
lobisomem” se apossasse de seu corpo.

77
AURI, A ANFITRIÃ

“Vira, vira, vira homem, vira, vira, vira lobisomem”5, dizia a can-
ção. E ela virou. Parecia possuir uma alegria tão despretensiosa, quase
infantil. Quando o som terminou, retornou do frenesi e deixou-se
ficar sentada no chão. O sorriso selado na boca, enquanto olhava fi-
xamente para a parede da cela, sem nada ver. Apesar de nada falar,
eu senti que a música a fizera lembrar coisas do passado. Lembrara
a infância feliz com os pais, ainda casados, e a dança quando o pai
colocava o seu disco preferido. Lamentou baixinho não ter vivido
aquela época eternamente. Mais que isso. Suas feições imprimiam em
seu rosto os lamentos de todas as decepções que tiraram a inocência
daquela criança que só queria virar lobisomem. Que, de tanto querer,
acabou virando.
– É difícil falar de memórias porque a gente nunca sabe se é uma
memória nossa ou uma memória construída na gente. – refletiu certa
vez ao ser questionada por uma colega sobre a separação dos pais –
Não lembro da minha mãe presente. Era muito pequena. Eu não lem-
bro dela brincando comigo. Ela não conversa sobre esse período. São
os tabus familiares.
A menina Cinara não nasceu nas minhas proximidades. Tão
pouco veio de além-mar como as estrangeiras, Maribel e Jéssica. Nas-
ceu e cresceu no ABC Paulista6. Foi lá que viveu seus primeiros cinco
anos de felicidade. Também foi lá, durante a infância, que teve de lidar
com a separação e com o abandono. Ainda tão nova, sofreu decepções
que marcaram toda sua trajetória. A separação dos pais a distanciou
de ambos. O pai, que tanto adorava, não morava mais com ela. A mãe,
mesmo fisicamente próxima, cavou uma distância afetiva da menina.
Na vida da mãe, só havia espaço para a tristeza. Assim, Cinara se viu
sozinha pela primeira vez.

5 O trecho é parte da canção “O vira” do grupo musical brasileiro Secos e Mo-


lhados, composta por João Ricardo e Luhli.
6 A Região do Grande ABC é uma área industrial da Região Metropolitana de
São Paulo, capital do Estado de São Paulo. A sigla vem das três cidades que original-
mente formavam a região: Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano
do Sul (C). Devido à influência da Igreja Católica, na época de suas fundações, essas
três cidades ganharam nomes de santos, fato que originou a sigla “ABC” Paulista.

78
A AMANTE DOS LIVROS

Cinco anos depois, a mãe se casou novamente, indo morar com o


novo marido em outro país. Ela e a irmã foram entregues ao pai. Levan-
do uma vida de “boêmio solteirão”, ele teve de lidar com duas meninas,
que voltaram à sua vida bruscamente. As filhas sempre conheciam as
namoradas do papai. Namoradas. Nenhuma durava tempo suficiente
para se tornar um referencial feminino. A avó paterna ocupou o vazio
materno. “A mãe do meu pai foi a pessoa que me ensinou tudo. Quando
ela morreu, foi como se a minha mãe tivesse morrido. Eu senti mais do
que o meu pai”, li, certa vez, em seus escritos.
A Cinara que conheci era uma mulher desconfiada. Falante e co-
municativa por um lado. Por outro, extremamente recuada. Quem a via
interagir com a maior parte das minhas hóspedes não imagina o quan-
to raramente ela se abria para alguém. Quando a amante dos livros se
tornou bibliotecária, teve permissão de transitar entre as alas com seu
carrinho de livros. Conversava, dava conselho e carões, principalmente
se percebesse que um dos livros fora mal cuidado. Mesmo assim, não
dava abertura. Impunha-se contra intimidações e pedidos de favores,
comuns a quem tem certo fluxo no corredor central.
Cinara talvez seja uma das internas com mais respeito e respaldo
por parte da instituição, conquistados com compromisso e ética, desde
quando se entregou à polícia para ser encarcerada. Foi o que viabilizou
um caminho, desta vez, progressivo, ainda que iniciado do zero.
No entanto, mesmo a mais desconfiada das mulheres precisa de um
confidente. De alguém que a escute. De alguém que acolha suas aflições.
A escrita servia como exorcismo tanto quanto a leitura servia como re-
fúgio. Nas cartas enviadas à família, ela trava suas batalhas com seus
próprios demônios. Foi em seus escritos que descobri suas angústias e
resgatei um pouco de suas memórias. Assim, soube que o primeiro na-
morado que a marcou foi também o primeiro que a agrediu fisicamente.
A marca do relacionamento ficou em sua garganta quando o namorado
tentou estrangulá-la em um rompante de ciúme. “É a bebida”, tentava
justificar. Sonhando em encontrar um príncipe encantado, ela nunca
batera de frente com ele. Mesmo assim apanhou.
De todos os homens violentos que conhecera, o destino quis que
sua vida fosse completamente transformada por aquele que mais encar-
79
AURI, A ANFITRIÃ

nara o papel de “encantado”. Um deus grego de corpo escultural e voz


profunda. Alto, belo e sedutor. Mesmo com todos os artefatos estéticos,
Erick a conquistou pelo jeito “protetor”. À época, ela não percebera. Até
hoje, não sabe precisar se eram ações conscientes ou apenas reflexos de
sua natureza de dominador. Com dois meses de namoro, ele já guardava
seus documentos. Ela não precisaria mais se preocupar com nada. Seu
“príncipe” cuidaria de tudo. Eram doses sutis de dominação.
Erick não chegou a feri-la fisicamente. Mas ele se mostrou o mais
monstruoso de todos. Mesmo sem comprometer seu corpo material,
Cinara sentiu que ele a matara. Matara algo dentro de sua alma. Aos 22
anos, Cinara presenciou um duplo homicídio, do qual foi julgada como
coautora pela justiça cearense. No entanto, ainda se passariam muitos
anos até que a pena fosse decretada e ela entregue a mim. O desenro-
lar do redemoinho que culminou na morte de duas pessoas teve início
quando os namorados viajaram ao Ceará, onde vivia um tio de Erick.
Aos seis meses de namoro, a ideia soou como uma espécie de lua de mel
para Cinara. Após um tempo em um hotel, o casal se hospedou na casa
do parente de Erick. “Um belo dia, ele trancou a mim e à empregada no
banheiro e matou o tio e o primo”, escreveu em uma carta.
Por ter comportamento exemplar e exercer função importante na
biblioteca, destacava-se entre as detentas. Era sempre apontada pela di-
reção quando surgia uma equipe de reportagem. Um pouco descon-
fortável, recusava-se a entrar em detalhes sobre as mortes. Não queria
alimentar o desejo de sangue de pessoas que nada tinham a ver com sua
história, com sua dor.
– Se ele foi violento fisicamente comigo em algum momento? Não.
Depois disso, quanto tempo eu fiquei com ele? Três anos. Se ele me ame-
açava? Não a mim, mas à minha família. – respondia, já de forma auto-
mática, às mesmas perguntas de sempre.
– E quanto à empregada? – questionou uma repórter.
– A empregada ficou amarrada no banheiro. Minha culpa. Eu
amarrei a empregada. Amarraria você e você aí também se fosse preciso.
– disse apontando para a repórter e para o fotógrafo que a acompanha-
va. – Eu estava com uma arma apontada para minha cabeça. Amarraria
quem quer que fosse.
80
A AMANTE DOS LIVROS

– Ele premeditou o crime e não pensou que a empregada poderia


testemunhar contra vocês?
– Ele ia matar ela também. Nos colocou em um carro e levou a um
matagal.
– E depois? – insistiu a repórter diante do silêncio que se formou.
– Então, mata as duas. Foi o que eu disse. – respondeu Cinara, pa-
recendo retornar de uma viagem por suas memórias.
– Não teve medo de morrer também? – a repórter pareceu espan-
tada com a reação dela.
– Naquele momento, eu não estava mais viva. Não dá para descre-
ver. É como se eu tivesse morrido. Pra mim, seria um favor se ele me
matasse. Sabe o que é isso? É o horror de ter visto uma pessoa morrer.
Uma pessoa que, por sinal, me tratou muito bem. Naquele momento, eu
queria que ele me matasse. Eu queria morrer. – depois de uma pausa, foi
sua vez de questionar instintivamente – Você já viu alguém morrer? Já
viu alguém estremecer até a morte? O corpo tendo espasmos, chegando
a parecer que estava mais vivo do que nunca?
– Não – respondeu a repórter, sem mais palavras.
– O engraçado é que eu ainda falei: Erick, ele está vivo. Vamos
chamar uma ambulância! Sabe o que ele me falou? – perguntou enca-
rando a repórter – É normal. São movimentos involuntários. Naquele
momento, ele era a pessoa mais calma do mundo, como quem já possui
um conhecimento prévio e certa vivência nesse tipo de feito.
De tanto ouvir Cinara narrar alguns pontos daquele dia, pude
recriar minha própria versão do que aconteceu. Pude ver como se as
aquelas vidas tivessem sido ceifadas em um dos meus cômodos. Tran-
cada no banheiro, o filme de sua história com Erick, até aquele dia, deve
ter passado na cabeça de Cinara. Uma história que só tinha seis meses.
Uma história que estava apenas começando.
Ela mal notara os gritos abafados da empregada e o barulho de
luta corporal seguido de silêncio vindos da porta que dava para a sala
de estar. O medo revolvia todos os sentidos. O desespero escorreu da
garganta para o ventre, em uma dor de barriga avassaladora, provocada
pelo pânico. Correu para o vaso sanitário. Resumida em sua debilidade
diante da situação, prostrou-se a rezar um Pai Nosso. Ali mesmo, en-
81
AURI, A ANFITRIÃ

quanto defecava, na manifestação mais crua do desespero. Envergonha-


da por convocar Deus diante daquele horror, ela notou que o silêncio só
podia ser sinal de algo muito ruim.
Após se recompor, clamou por Erick, que abriu a porta e a deixou
sair por um instante. Foi quando viu o corpo se remexendo no chão da
sala. Era o primo. Logo ele, que a tratara tão bem pouco antes do acon-
tecido. Mesmo a certa distância, ela notou as cordas de nylon envoltas
no pescoço do rapaz. Pouco tempo depois, o tio de Erick chegou em
casa, sem nada saber do que acontecera com o filho. Erick a empurrou
novamente para o banheiro. Antes que o namorado trancasse a porta,
Cinara ainda pediu pela vida do tio. De nada adiantou.
Resignada, sentou novamente no vaso sanitário. Passados apenas
segundos ou uma eternidade em sua mente, ouviu o estampido seco,
vindo de fora da casa. Deitada no chão, a empregada grunhiu ainda
mais. Talvez pensasse que poderia ser a próxima. Relatar tudo isso, mes-
mo sem falar, doía muito mais do que resgatar as memórias apenas em
sua mente. Cinara tremia dos pés até a ponta do lápis, ao tentar escrever
suas memórias, derramando-se em lágrimas.
Em certas divagações consigo mesma ou com alguma parceira,
ela sinalizava sutilmente compreender a motivação do crime. O tio
fora casado com a mãe biológica de Erick. À Cinara, ele revelou que
a mãe não recebera nenhuma assistência do ex-marido quando teve
câncer. A vingança bem sucedida chegou a ser motivo de orgulho para
a família de Erick. “Quando nós chegamos em São Paulo, vindos de
Fortaleza, a família dele o parabenizou pelos assassinatos”, confiden-
ciou, certa vez.
Por outro lado, em outros momentos, ela parecia se assustar com
a personalidade fria, com o crime premeditado. “Era um cara que pe-
gava um bichinho machucado na rua e trazia para casa. Parecia Jekyll
e Hyde 7. Isso me assustava ainda mais. Ele tratou o tio com extrema
delicadeza durante o dia e à noite ele deu um tiro na nuca dele. É uma
coisa assustadora”, desabafou em seu caderno de anotações.

7 A expressão “Jekyll e Hyde” é utilizada para se referir a transtornos de múlti-


plas personalidades ou a situações em que uma pessoa age de maneiras opostas em
contexto diferentes. Faz referência à novela gótica “O médico e o monstro”, do escocês
Robert Louis Stevenson.
82
A AMANTE DOS LIVROS

Cinara ainda compartilhou mais três anos de sua vida com Erick.
Os dias se passaram sem que ela soubesse ao certo em que momento o
monstro se revelaria novamente. A maior parte do tempo, no entanto,
ele se apresentava como o médico, inclusive para sua família. Para al-
guns, ela devia estar muito orgulhosa e grata por ter um homem tão
incrível ao seu lado. Contudo, o que Cinara conta é que não restou
qualquer vestígio de confiança nem de amor entre os dois. Eram apenas
cúmplices de um crime. Ela, refém de suas ameaças e do próprio medo.
De alguma forma, que Cinara alega desconhecer, Erick teve a
dica: logo o esconderijo deles cairia. A polícia chegara ao paradeiro
dos fugitivos. Apropriando-se das economias da namorada, ele desa-
pareceu de sua vida. “Agora, você está por conta própria”, foi a última
coisa que ouviu do ex-amor. Apesar de não ter coragem de entregá-
-lo à polícia ou, tão pouco, de abandoná-lo de vez, Cinara sentiu um
enorme alívio quando, enfim, eles se separaram. Aquela que tanto te-
mia o abandono conseguiu apreciar o alívio/êxtase/gozo da separação.
Desde então, nunca mais o viu.
Nesse tempo, Cinara circulou por várias cidades do interior pau-
listano. Envolveu-se com outros homens. Erick não chegou a afetar
completamente sua disposição para encontros amorosos. Continuou
sua busca inconsciente por um complemento. Passou ainda mais dois
anos, entre namoros e empregos. Fugazes como tudo em sua vida de
foragida. Foi finalmente capturada, cinco anos após os assassinatos. En-
quanto ninguém nada sabia de Erick, ele, mais do que ninguém, sabia
ser escorregadio.
Enviada à Fortaleza, em uma época que eu ainda não sonhava em
existir, Cinara passou um ano presa em minha antecessora. Pelo que sei,
o que eu tenho de nova, controladora e exemplar, a antiga Auri tinha de
desgastada, flexível e disforme. Aquela velha estrutura ainda vivia sob o
controle religioso. “Parecia um convento”, é o que dizem minhas hóspe-
des com mais vivência no cárcere. Não poderia ser diferente, já que fora
instalada em um antigo prédio de um dos conventos da Congregação do
Bom Pastor, localizado no bairro Jacarecanga, em Fortaleza. Muitas mu-
lheres vieram transferidas para as minhas dependências, quando minha
antecessora foi, enfim, desativada.
83
AURI, A ANFITRIÃ

Com um ano de cárcere, ainda na prisão antiga, Cinara foi solta.


Esperaria o julgamento em liberdade. Voltou para sua vida em São
Paulo. Voltou com ainda mais fome para sua busca por amor e com-
panhia. Em seus encontros, não escondia sua história nem o fato de
ter sido presidiária. A maioria dos caras chorava no primeiro encon-
tro, quando tomavam conhecimento de seu envolvimento na morte
dos parentes de Erick. Alguns não encaravam o fato como empecilho
para se envolver com ela. Por suas andanças amorosas, Cinara co-
nheceu Nelson, o segundo homem que a feriu fisicamente. “Segundo
e último”, prometeu certa vez a uma colega de idade mais avançada,
Dona Teresa.
Reparei que Erick nem sequer entrava para o rol dos espanca-
dores. Mas, afinal, preciso admitir que uma de suas qualidades foi
não ter comprometido a integridade física de Cinara. O que eu me
pergunto é se isso deveria ser realmente motivo de mérito. Diante de
tanta violência, o simples ato de não ferir o seu semelhante dá razão
para palmas, mesmo vindo de um assassino. Ainda assim, não consi-
go me sentir à vontade com essa distorção. Para mim, o óbvio nunca
será motivo de aplausos.
Mulheres vítimas de violência não faltam entre meus cômodos.
Muitas chegam a se culpar ou a justificar a violência que sofrem. Por
outro lado, também há aquelas que assumem o papel do violentador.
O que mais me intriga, no entanto, são aquelas que, depois de tanto
tempo sob o julgo da violência alheia, resolvem romper de vez o ciclo
cotidiano do espancamento. O caso de Dona Teresa representa uma
mudança tardia de posição na caçada do gato contra o rato. Um dia, o
rato virou gato. O marido de Dona Teresa encolheu até ser abocanha-
do, mastigado, engolido e digerido. Esgotada de ser violentada pelo
marido xucro, Teresa devolveu, instintivamente, as décadas de opres-
são. Ceifou-lhe a vida. Para ela, sua temporada trancafiada por trás de
meus muros representou um grito de liberdade. Depois da infância,
ela nunca se sentira tão livre.
Nem de longe, Cinara conseguia julgar aquela senhora, mesmo sa-
bendo que talvez nunca tivesse pulso para tanto. Com ela, desabafou sua
relação com Nelson. Enquanto Erick era o homem protetor e ícone da
84
A AMANTE DOS LIVROS

beleza, Nelson ganhava pontos pelos atos de delicadeza. Era o perfeito


cavalheiro. O cara que levava café da manhã na cama e ajudava a lavar a
louça. Afinal, que mulher não sonha com um homem que se disponha a
ariar uma panela? Cinara sonhava. Quando o comportamento violento
começou, ela continuou sonhando. Sonhava em voltar para a felicidade
do início do relacionamento.
– Ele era um cara culto, só que, quando fazia uso da bebida, tinha
um padrão de comportamento nojento. Como se se transformasse em
um troglodita.
– Lá vem você de novo com essa história de transformação. Essas
coisas de médico e monstro. Minha filha, nenhuma bebida ou poção
mágica que seja desperta algo além do que já existe dentro da gente.
Um dia, querendo ou não, você vai se dar conta disso – profetizou Dona
Teresa, com um olhar de quem já muito viu.
– Não se preocupe, Dona Teresa. Eu demorei, mas aprendi. O pro-
blema é que eu ficava naquela dúvida, será que não tem como fazer um
tratamento, para a gente voltar àquilo que éramos no começo?
– Todos querem voltar para um começo. Para reviver os momen-
tos que nos pareceram tão bons. Só que nunca o mundo foi perfeito. A
gente é que não quer enxergar isso, no começo.
– Uma vez, ele me puxou pelo cabelo até em casa, deu um murro
no meu olho e me pôs para dormir no chão na cozinha. Bêbado feito
um gambá. No dia seguinte, ele disse: “O que você está fazendo aqui? O
que é isso no teu olho?” Você me bateu. “Não. Bati não”. Ele se negou a
admitir. Até hoje não sei por que ele me bateu. – assumiu Cinara diante
do olhar sábio de Dona Teresa.
Pelas palavras de Cinara, Nelson era um tipo bem simpático e fan-
farrão. Adorado por parentes e amigos por causa do jeito “descontraído”,
era a atração de todas as festas a que ia. O que para uns significava boas
risadas, para Cinara, era sempre sinônimo de constrangimento. Facil-
mente virava alvo das piadas do namorado. A última vez que apanhou
de Nelson foi após revidar mais uma de suas provocações, na frente dos
amigos dele. Cinara questionara a sua tão preciosa masculinidade. Essa
desfeita não sairia barato para ela. Quando o casal entrou em casa, Nel-
son apenas fechou a porta e a derrubou com um golpe.
85
AURI, A ANFITRIÃ

Do chão, ela viu o gigante tirar uma cédula de 10 reais da carteira


e jogar em seu rosto. “Vai embora daqui, vagabunda”, foi o que ouviu.
Dessa vez, Cinara não ficou caída com sua dor no corpo e na alma. Ca-
tou sua dignidade do chão e foi embora, com os 10 reais bem seguros
em uma das mãos. Mudou-se de cidade, em seguida. Para a sua sur-
presa, descobriu que Nelson seguira seu paradeiro e passou a manter
um estranho hábito. Ficava o dia inteiro sentado em um bar diante de
seu novo trabalho. Mas Cinara não deu importância para aquilo. Tinha
percebido que ele nunca fora um grande amor. Nunca o tinha amado
realmente. Nem a ele nem a si.
O engraçado na história da Cinara é que ela sempre continua
acreditando no amor. Mesmo depois de Erick. Mesmo depois de pas-
sar um ano presa, longe de casa. Mesmo depois de Nelson e tantos
outros. Ela seguiu em frente. Seguiu em sua busca. Em uma de suas
longas conversas com Dona Teresa, outra colega da ala A, que está
sempre de orelha em pé na conversa alheia, resolveu dar “pitaco” na
vida amorosa de Cinara.
– Ai, eu preciso de alguém. Ai, eu preciso ser amada! – imitou a
mulher de um jeito debochado – Isso que tu tem é síndrome da rejeição,
mulher – diagnosticou – Se um cara “desse” em mim, pelo menos um
furo ele levava.
– Amiga, quem não precisa ser amado, hein? É bom ser amado,
você não acha não? Sabe o que é melhor ainda? Não se meter na vida
dos outros. É ótimo e ainda conserva os dentes. Mas, já que você entrou
na conversa, vou te falar uma coisinha. É possível viver bons relaciona-
mentos até o final da vida, sim. Eu não sei se é síndrome de rejeição ou
que seja. Só sei que eu acredito no amor e acredito, principalmente, na
paixão. Eu não tive bons relacionamentos com os outros porque nunca
tive um bom relacionamento comigo mesma. Mas, a partir do momento
que estou inteira, eu sei o que eu não vou admitir em um relacionamen-
to. Daí, a coisa fica mais fácil – discursou Cinara.
– E você aprendeu todo esse palavreado em um dos seus livros?
– Não. Quem colaborou para isso foram os psicopatas que eu en-
contrei no meu caminho. A decepção é a melhor terapia que você pode
ter na vida. Anota aí, para ver se você lembra disso, antes de sair furando
86
A AMANTE DOS LIVROS

os outros por aí – encerrou a conversa, enquanto Dona Teresa apenas


observava a discussão das duas mulheres ao seu lado.
Das histórias amorosas de Cinara, também soube, entre cartas e
conversas, que, pouco antes de vir para mim, ela criara uma nova fixa-
ção. Passou a se envolver com homens casados. O relacionamento mais
duradouro foi logo com um homem chamado Rafael, por sinal, o mes-
mo nome de seu pai. “Veja se eu não sou uma Electra”8, costumava brin-
car. A história que começou apenas como mais uma aventura acabou
criando laços muito fortes. “Ele foi o grande amor”, arriscava-se a dizer.
E ainda suspirava.
Ao todo, Cinara viveu mais de uma década em liberdade provisó-
ria. Sabia que um dia o veredito final chegaria. No entanto, após esperar
anos a fio pelo julgamento, ela quase não acreditou quando recebeu a
ligação do defensor público que cuidava de seu caso. O último recurso
fora negado pela Justiça. Logo, sua prisão definitiva seria decretada. A
notícia chegou como uma bomba no aniversário de 39 anos de Cinara.
Os planos de viver junto com seu novo amor, já que este deixara a mu-
lher, de encontrar um lar para os dois e de ter filhos foram interrompi-
dos pela sentença que ganhou de presente de aniversário. Ao invés de
bolo, teve a decepção como prato principal.
Já não era aquela garota que veio ao Ceará pela primeira vez. Nem
mesmo aquela mulher que teve o primeiro gosto do cárcere, anos atrás.
Era uma Cinara encouraçada. Não esperou a ordem de prisão chegar a
São Paulo. Cancelou a matrícula da faculdade, pediu as contas do em-
prego e devolveu a chave da casa nova. Fugir não era mais uma opção.
Através da amante dos livros, descobri que fugir é outra prisão. Uma
prisão ainda pior do que eu sou.
Cinara entrou em um ônibus e deu as costas àquela vida que che-
gou a sonhar em ter. Encarou de frente o destino inexorável de ser mi-
nha hóspede. Apresentou-se no fórum Clóvis Beviláqua ao chegar em
Fortaleza. Passou ainda três dias na delegacia de capturas, em compa-

8 Na mitologia grega, Electra é filha de Agamênon e Clitemnestra, reis de Mice-


nas. A princesa Electra convence o irmão, Orestes, a matar a própria mãe para vingar
o assassinato do pai, vítima de plano arquitetado pela rainha. Na psicanálise, o termo
Complexo de Electra é usado como a versão feminina do Complexo de Édipo, desig-
nando o desejo da filha pelo pai.
87
AURI, A ANFITRIÃ

nhia de ratos, até que finalmente foi encaminhada aos meus portões, os
braços que abri para recebê-la.

A chegada
Tinindo sob o sol a pino do meio dia, dentro da caçamba de um
caminhão, ela e mais cinco novas internas aguardavam o despache de
um grupo de trinta homens para o meu vizinho, Instituto Penal Pau-
lo Sarasate. Fica bem defronte à minha entrada, no alto de uma coli-
na. Uma edificação antiga e, por sinal, muito sombria pelos contos que
lhe rodeiam. O grupo fez a viagem de Fortaleza a Itaitinga, separados,
homens e mulheres, apenas por uma grade. Com Cinara e as demais
fêmeas dentro do transporte, os machos ficaram insidiosamente excita-
dos. Faziam convites e elogios nada sutis, que apenas demonstravam o
desespero masculino com os primeiros momentos de enclausuramento.
Na certa, passariam longos períodos afastados da figura feminina. E, ao
passo que aquele escárnio, para eles, era uma apelação, para elas mais
parecia uma jaula de macacos. Enojava e assustava logo de cara as nova-
tas que a mim seriam confiadas.
Descendo em minha portaria, as famosas paredes rosa dos corre-
dores ainda eram incolores, tal qual o espectro de Cinara, no dia em que
chegou. Espectro sim, não ela, porque a melancolia havia endurecido e
empalidecido o seu existir para aquela chegada, como eu jamais vira.
Quem compartilhasse da cena sequer reconheceria sua figura esbelta e
enérgica naquela criatura acuada e algemada. Duas agentes recepciona-
vam a “demanda” e cuidavam da documentação, enquanto outras duas
preparavam para “passá-las”.
Na revista, as normas institucionais obrigavam que as internas se
desfizessem de todos os pertences pessoais. Mesmo para quem já tinha
certa vivência de cárcere, pior que o espanto em deixar para trás os man-
timentos e produtos higiênicos trazidos era entregar a única lembran-
ça que teria dos familiares nos próximos anos. Apesar de saber que só
cumpriria 2/5 de sua pena, os 25 anos e quatro meses, aos quais fora
condenada, pesavam em suas costas. O álbum de fotografias que a pau-
lista protegeu debaixo de suas asas, durante a longa viagem, foi entregue
junto com o restante de sua identidade.
88
A AMANTE DOS LIVROS

Ao todo, 126 agentes penitenciárias se dividem na tarefa de vistoriar minhas hóspedes.


Algumas são minhas antigas parcerias na arte de vigiar. Outras chegaram recentemente.
89
AURI, A ANFITRIÃ

Percebi que Cinara fraquejara no momento de se desprender de


suas lembranças. E o esforço que fez para se manter firme até aquele
instante foi por água abaixo. A tremedeira começou pelas mãos e subiu
para o queixo, enrijecendo toda a expressão de espanto. Olhou pela úl-
tima vez os rostos das únicas pessoas que tinha na vida. O pai, a mãe e
a irmã. Temia esquecer, com o passar do tempo, aquelas feições. Temia
ela também ainda se transformar numa alma penada a vagar por meus
corredores, vista, sob aquele ângulo, como uma masmorra. Chorar era
reação mais natural de seus instintos. O que não era muito difícil, pois
Cinara é uma verdadeira manteiga derretida. Deixou, então, que mais
esta despedida acontecesse. Diante das normas, a paulista tinha a cons-
ciência de que era apenas uma novata. Por isso, não havia escolha. De
fato, naquela época, as coisas funcionavam assim. Tempos depois, feliz-
mente, as fotos deixaram de ser itens proibidos nas celas.
Cinara recebeu em pranto o fardamento, o sabonete, a toalha, o
lençol, surrado, mas lavado, e os chinelos. Com isso, a leitora compul-
siva, a mulher namoradeira e a filha querida se transformavam apenas
em um número estatístico do crime feminino, dentre as centenas hos-
pedadas em mim. Brasileira, paulista, branca, classe média e foragida.
Foragida, agora, não mais. Passou a ter endereço certo como não teve
nos últimos anos.
Foi passada, primeiro, para a triagem, a prova de fogo para todas
que em mim adentram. Esta cela miúda, com área de aproximadamente
três metros quadrados, recebeu as cinco mulheres. A essa altura, Cinara
já havia engolido o choro e se permitido buscar companhia nos olhos
das novas parceiras. A sujeira do lugar era o que mais a importunava.
Por isso, com o próprio sabonete e um pedaço da esponja do colchão,
limpou o espaço onde ficaria.
O grupo ocupou a cela por volta das duas horas da tarde e tinha
pouca água própria para beber até o dia seguinte. Mesmo economizando,
viram-se obrigadas a tomar água do tanque, água salobra, o que rendeu
uma infecção intestinal a Cinara. Sintomas como esse, por sinal, fazem
parte do processo de adaptação de boa parte dessas mulheres. São as ad-
versidades elementares de quem passa a viver em meu interior. Ao todo,
foram nove dias na triagem, até Cinara ser despachada para a ala E.
90
A AMANTE DOS LIVROS

Durante a transferência, ela teve sorte. Foi passada tão cedo para
a cela, às 6h da matina, que boa parte das reclusas hospedadas na maior
ala deste instituto penal estava, ainda, em sono profundo. Assim, Cinara
achava-se confortavelmente distante do motim quase ritualístico causa-
do pela chegada de novas caras. Amontoadas diante das grades, as inter-
nas adoram fazer uma algazarra sempre que recebem “carne fresca”. Há
uma enorme expectativa para saber de onde e por que as novatas estão
chegando, quando não são velhas conhecidas do mundo do crime ou da
periferia lá fora. Dessa, pelo menos, ela tinha escapado.
Localizada estrategicamente ao final do corredor central, a ala E é
a mais afastada e também a mais populosa, talvez, por isso, chamada de
“favela”. É a primeira casa de grande parte da minha população. Cinara
até hoje a considera, de longe, a mais “calorosa”. À sua pessoa, a vitali-
dade e hospitalidade das internas “da E” sempre fascinou. Ficou entu-
siasmada, por exemplo, com os códigos de convivência comunitária vi-
gentes ali, que não vigoravam nas demais alas. Contudo, passou apenas
uma semana naquelas dependências. Logo, conseguiu uma ocupação e
foi transferida para a ala A. Sequer permaneceu tempo suficiente para
presenciar ou mesmo protagonizar as corriqueiras intrigas.
Mesmo que não tivesse recebido as “boas vindas” daquela ala,
não seria possível para Cinara sonhar com o prêmio da invisibilidade.
E o assédio foi a primeira situação com a qual precisou se sair. Pois,
quando chegou distribuindo charme, balançando os cabelos curtíssi-
mos, atraiu todos os olhares. O que atraía, na verdade, era o cabelo,
que deixava sua bela nuca à mostra. Tanto no rosto, quanto no corpo,
Cinara arregava um semblante muito jovem para uma mulher na casa
dos quarenta. Por isso, ela ainda tem as expressões gestuais e posturais
muito vigorosas, que se manifestam com elegância na sua forma par-
ticularmente mansa de se comunicar. Antes de conquistar o respeito,
ganhou a admiração das internas. E não tardou também para conquis-
tar o coração de algumas lésbicas.
Pelo corte de cabelo convencionalmente masculino, atraiu sem
querer o olhar enviesado e competitivo de uma cabrão9. Além disso,

9 Alcunha para as internas homossexuais que costumam fazer um papel mais


másculo, enquanto apreciam parceiras com modos mais femininos.
91
AURI, A ANFITRIÃ

creio que a reserva em fazer contato, recíproca também por parte de


Cinara, fez a outra pensar que ela era uma concorrente. A real é que
a cabrão não foi com a sua cara, pois só podia se sentir ameaçada ou
enciumada com a nova beldade. Mas, com a tranquilidade de sempre,
Cinara contornou ambas as situações com facilidade.
Desde o primeiro dia, Cinara marcou a mim e às outras reclusas com
suas reflexões sobre o ambiente e a eficiência do método carcerário. No iní-
cio, não proferia um discurso muito formado a esse respeito, mas havia,
sem dúvida, uma consciência crítica e teórica que iam muito além de nos-
sos conhecimentos modestos. Sua bagagem intelectual lhe ajudava a formar
a própria visão, na medida em que vivenciava todos os lados de ser uma
presidiária. Essas experiências, por mais básicas que fossem, reverberavam
em suas ideias. Tanto que, poucos meses depois, presenciei uma conversa,
já muito articulada, que dedurava o quanto se dedicava a essa investigação.
Conversava com Marília, sua parceira de cela na ala A, que também vivia
um momento de crise e inconformismo com o sistema penal.
As duas refletiam, naquela noite, sobre o controle institucional
viver resoluto em estender seus tentáculos até sobre as memórias das
condenadas. Marília e Cinara tinham uma maneira parecida de perce-
ber as conduções do sistema. Ambas, muito questionadoras, gastavam
horas a fio trocando ideias sobre o assunto. Prestes a me deixar, Marília
estava tomada pela ansiedade de partir. Fazia uma vigília sobre todos
os mecanismos da ordem superior. Neste dia, reclamava com a amiga o
fato de as assistentes sociais terem limitado o tempo de uma ligação na-
quele dia. Para ela, aquilo deveria ser um direito, mas só era liberado em
casos de necessidade ou na qualidade de algum benefício. Marília não
conseguiu concluir o assunto urgente que tratava com a mãe, porque o
tempo rapidamente se encerrou e a ligação foi desligada. A única coisa
que faltava para que ela pusesse os pés fora de minhas propriedades era
que o juiz emitisse o alvará de soltura.
– É um absurdo! Bem na hora que ela foi contar o que a advogada
disse sobre o alvará, a ligação foi cortada. E aí? Se não me passam qual-
quer informação aqui dentro, como posso saber do meu processo? É a
minha vida que está trancafiada aqui. Mas, para eles, parece que a gente
é bicho – reclamou Marília com indignação.
92
A AMANTE DOS LIVROS

– O mesmo aconteceu comigo, na semana passada, Mari. É muito


triste. Para mim, que estou longe, então... Só em ouvir a voz do meu pai-
zinho já me fez bem. Mas foi igualmente rápido. Pelo menos consegui
me lembrar mais dele. Do seu jeito de falar, de raciocinar. Até do pi-
garro! Achei que ele está mais rouco, sabia? Deve ser a velhice – Cinara
encheu os olhos de lágrimas, sorrindo só de imaginar o pai.
A efusiva Marília conseguiu conter os ânimos ao ver a melancolia
da amiga. Logo, ela iria embora e Cinara, que já vivia com poucas e pe-
riódicas notícias da família, ficaria ainda mais solitária. Marília respirou
fundo e sentou-se do lado da amiga.
– Engraçado... Eu também me surpreendo quando me lembro des-
sas pequenas coisas. Chega uma hora que a gente vai se esquecendo da
vida lá fora. E até das pessoas. Eu já não sonho mais em liberdade tem
muito tempo. Nem com meus parentes, meu filho. Parece que a minha
memória também se condicionou a essa prisão.
Cinara retribuiu o carinho fitando-a nos olhos e as duas sorriram.
– É a forma mais prática de domesticar nosso espírito, minha cara
– interferiu, Cinara. – Eu li sobre isso, em Foucault. Já disse pra você ler
esse livro, mas só quer saber de tricô! Ele diz que, desde quando entra-
mos aqui, não são apenas os nossos objetos e documentos que nos são
usurpados. Mas também a nossa identidade. Você vai deitar no mesmo
colchão que centenas de pessoas já deitaram. “Mão para trás!”, “Cara,
crachá!”, “Na linha amarela!” é o que berram. Acontece que as normas
padronizam também nossas ideias. É como se você se desmaterializasse
e construíssem outro você por cima. Como se desfigurassem toda a tua
personalidade, o teu passado, entende?
– É verdade. Assim fica mais fácil para que eles nos mantenham
sob controle. Porque sabem que, com o tempo, até as nossas lembranças
mais remotas vão sendo esquecidas. Mas, por falar em documentos, é
verdade que tu conseguiu reaver tuas fotos?
– Como tu soube disso, menina? Nossa, as notícias voam por aqui.
Não me incomoda te contar, Mari, tu sabe. Mas me impressiona como
tem curiosa nesse lugar. E quer saber? Não faço nem questão de saber
quem foi. Mas, escuta, consegui. Pedi a Dona Luna para levar para a
aula, para fazer um trabalho. Quando vi o álbum, não resisti. Chorei fei-
93
AURI, A ANFITRIÃ

to uma criança, mulher. Taquei a mão e peguei umas cinco fotos de vol-
ta. São minhas mesmo, ora mais. Depois te mostro. Me senti tão velha!
– Tu não se acostuma com esse mulheril, né, Cinara? – Marília
empurrou a outra pelo ombro. – É assim mesmo. Não há nada mais
interessante aqui dentro do que dar conta da vida alheia. Tu sabe como
é o esquema. Mulher, pois eu quero conhecer esse povo, que eu só ouço
falar. Teu pai é garotão, ainda? Tá solteiro, pelo menos? Me ajuda aí, co-
lega. A situação aqui tá braba – e com essa graça, Marília tirou de tempo
a chateação da amiga, arrancando o sorriso do canto de sua boca.
– Tu não aguentaria meu pai, Mari. Ele é um boêmio. Gosta de
noite e de poesia. E de mulheres, até demais! Mas, hoje, já nem sei, né?
Acho que ele não tem mais idade para um furacão feito tu. Vira esses
olhos de naja para lá – encerrou o papo, despediu-se da conversa com a
amiga e voltou para a leitura que devorava sobre a mesa do pátio.
Depois deste dia, Marília conseguiu seu alvará em três semanas.
Voltou para casa da mãe, para criar seu filho. Contudo, daqui não se
distanciou, como tanto prometera, inclusive, a si mesma. Ela não se
permitiu abandonar o projeto que ajudou a erguer, a oficina de fuxico
da Tia Mazé. Então, logo em seguida, Marília voltou como egressa,
para ajudar Tia Mazé a tocar o projeto, desta vez, devidamente em-
pregada. Seu retorno, ainda que em outra condição, foi comemorado
por todos da casa. Agentes, reclusas, pela amiga Cinara e também pela
carinhosa tutora da oficina.

Entre estantes e livros


Com poucos dias de convivência na ala E, a mente de Cinara come-
çou a clamar pela imersão profunda que só a leitura possibilitaria à sua
consciência. O choque inicial do aprisionamento, agora, se traduzia em
uma fase de contato, de experimentação. Mas, embora sempre tratasse
todas as pessoas muito civilizadamente, a paulista guardava certa distân-
cia de amizades repentinas, como uma espécie de síndrome de proteção
adquirida. Por isso, os livros seriam sempre a companhia mais segura.
No intervalo após o almoço, pediu autorização para ir até à biblioteca co-
nhecer o acervo e resgatar algum título. A biografia do músico brasileiro
Cazuza foi o primeiro romance arrebatador que lemos juntas.
94
A AMANTE DOS LIVROS

Nesse mesmo dia, uma situação oblíqua estonteou Cinara por


alguns instantes. No vai e vem das atividades diárias, reencontrou
Danúsia, uma ex-parceira de cela no presídio antigo. Ela entrara na
biblioteca no mesmo instante em que Cinara escolhia um livro. No
cruzar de olhares, senti o estranhamento de Cinara. Quase 11 anos
após conquistar o direito de responder em liberdade, aquele encon-
tro lhe parecera surreal demais para ser verdade. Não bastassem os
quilômetros peregrinados pelo Sudeste do país, a se esquivar das in-
vestigações e dos próprios medos, o reencontro lhe soava ainda mais
embaraçoso. Estavam em tempo e espaço muito distintos daqueles
que compartilharam na última vez em que se viram. Agora, esses ele-
mentos tinham a autenticidade de um universo absoluto e, ao mesmo
tempo, obsoleto, em relação ao mundo real. A ficha demorou, mas
caiu. Era mesmo Danúsia.
Na velha prisão, Danúsia fora uma das protegidas de Cinara, que
a acolhera como uma parente. Pela conversa das velhas amigas, senti
que, naquela época, Cinara era bem mais aberta às amizades. Era tam-
bém mais jovem e ousada. Quando chegou a mim, os papéis das duas
se inverteram. Cinara virou a pupila de Danúsia nesta nova realidade.
E este era o momento de Danúsia retribuir a cumplicidade da parceira.
Conhecia melhor que ninguém as normas e os códigos inerentes aos
dois contextos. Na verdade, foi por influência de Danúsia que Cinara
se fechou a novas amizades entre nosso convívio. Segundo Danúsia, o
melhor a se fazer como minha hóspede era não se meter em confusão.
Em se tratando de mulheres, todo cuidado era pouco. Foi exatamente
o que Cinara fez.
Sabendo da inteligência da antiga parceira, Danúsia logo indicou
Cinara à direção, quando surgiu a convocação para trabalhar em um
programa de alfabetização. Cinara foi aceita e designada a auxiliar o en-
sino de mulheres que chegaram a mim sem saber ler ou escrever. Com
isso, ganhou seu passaporte para a ala das trabalhadoras. Para completar
a providência do reencontro, Danúsia ainda era a responsável por mi-
nha biblioteca, à época. E a cada visita para o empréstimo de um novo
livro, entre longas conversas, a discussão sobre as diferenças dos dois
presídios sempre voltava à pauta.
95
AURI, A ANFITRIÃ

Num tarde de monotonia, Cinara subiu até à biblioteca e, chegan-


do lá, encontrou Danúsia nada contente. Esta reclamou do furto de um
xampu que sua família trouxera e que estava guardado em sua cela. Não
passara por isso nem enquanto esteve na ala E. Não queria aceitar, agora
que estava na ala A. Em mim, as ladras oportunistas são conhecidas
como “ratos de cadeia”. Elas se aproveitam de uma rápida saída das mo-
radoras de outras celas, para passar a mão em algum pertence, que já
não são muitos. Geralmente, os furtos não recebem muita atenção das
agentes da disciplina, muito menos punição. Promete-se a providência,
mas poucas vezes ela se conclui. Por outro lado, o que funciona com
destreza são as sanções para quem se envolvem em confusão, mesmo
para aquela vítima do furto.
– O interessante é que o controle é maior aqui no presídio novo,
mas o desrespeito também. Não existe mais código de conduta. Não
existe mais código de honra. No presídio velho, isso não acontecia,
não tinha nem perigo. Lá a punição viria das próprias internas – re-
lembrou Cinara.
– Certeza! Até com as visitas, lembra? Se alguém fosse te incomo-
dar na hora da visita, quando ela acabasse, quem incomodou iria apa-
nhar. E não necessariamente de mim. Uma vez, aqui dentro, eu estava
com a minha mãe e uma mulher veio incomodar, sem ver nem para quê.
Tive que pedir pra ela sair, porra. Tira a privacidade do único momento
que você tem com a sua família... E a imoralidade que é, agora, durante
as visitas? Lá, quando tinha homem na visita, era uma coisa mais res-
peitosa. Aqui, fica o casal quase se engolindo na frente de todo mundo.
Até de criança e idosa.
– Minha filha, lá era tudo diferente. Se aquela prisão pudesse falar...
Nada saía de lá, não é verdade? Tudo a gente guardava. A administração
não ficava sabendo de nada. Sabia quando o estrago já estava feito. Você
não podia delatar. Mas tudo se resolvia lá dentro, de uma maneira não
muito “socialmente aceita”. Tínhamos um código muito rígido, é verda-
de. Mas, pelo menos, as coisas eram resolvidas.
Durante as conversas das antigas parceiras, soube que o “pedágio”
também era comum naquela velha carcaça que me antecedeu. Era um
dos poucos costumes que herdei da minha parente, embora de uma for-
96
A AMANTE DOS LIVROS

ma até mais democrática e distinta. Cinara pagou pedágio na prisão an-


tiga, para não passar fome. Fazia serviços domésticos para uma senhora
porca, como ela sempre gosta de ressaltar. Porca, sim, mas com uma boa
reserva de mantimentos. Em troca, a tal porca deixava a paulista comer
sua comida e não o azedume noturno servido às internas de lá. Fogões
eram permitidos, naquela época.
Cinara lavava louças e roupas, limpava a cela e carregava baldes de
água. Quando a velha porca se mandou de lá, Cinara assumiu o coman-
do da cela e aboliu o pedágio naquele pequeno espaço. Sua liderança
era diferente das demais. Deu lições de dança do ventre para as par-
ceiras e até as agentes comiam do mingau de aveia que ela cozinhava.
Já em mim, o pedágio se converteu na partilha de mantimentos entre
parceiras de celas. Entram na cota conjunta lanches, produtos de higie-
ne, cigarros. As tarefas também se distribuem, mas ninguém cozinha.
Somente aquelas que trabalham na cozinha, para reduzir suas penas.
Após muito confabular sobre as diferentes entre mim e minha an-
tecessora, Danúsia e Cinara chegaram à conclusão de que o clima é bem
mais amistoso pelas minhas paragens. Em minha antepassada, quan-
do a detenta sabia que ia partir, tinha que ficar calada. Caso alguém
soubesse da partida, as cabeças “armavam” para prejudicá-la. Algumas
chegavam a provocar brigas só para que a pessoa fosse enviada à tranca,
sem poder, assim, deixar o cárcere quando o alvará chegasse. Já minhas
hóspedes, em sua maioria, torcem com fervor pela saída umas das ou-
tras. Além disso, não importam onde estejam, elas sempre são liberadas
quando o alvará chega.
Foi o que aconteceu com Danúsia. Com o alvará autorizando sua
partida, ela se despediu de mim para sempre ou pelo menos até agora.
Como herança da parceira, Cinara assumiu o comando da biblioteca. O
que encontrou foi um espaço quase em desuso. Ficava triste só em ver
os livros todos encaixotados, com mais de três mil exemplares. Soube
o número total depois que catalogou os títulos. O carrinho usado para
levar os livros ao andar inferior comportava pouquíssimos exemplares.
Percebeu também que títulos novos não eram disponibilizados às lei-
toras. Viu-se com uma batata quente nas mãos. No entanto, o desafio a
animou ainda mais.
97
AURI, A ANFITRIÃ

Apresentou à administração projetos para melhorar a situação da


biblioteca, junto a um relatório sobre a situação do acervo, e pediu pro-
vidências. Diante da reação positiva da administração, ela arregaçou as
mangas. Pintou as paredes da biblioteca, desencaixotou os livros novos e
realizou rodas de leitura, entre minhas outras hóspedes. Com a conser-
vação e a ajuda de donativos, em um ano, o acervo dobrou.
Por conta do trabalho, Cinara passou a ter contato com as inter-
nas de todas as alas. Suas melhores leitoras, sem dúvida, pertenciam à
ala E. Talvez, por isso, tenha criado carinho especial por essa ala, em-
bora as pirangueiras fossem mal vistas pela instituição. O termômetro
de Cinara, no entanto, media-se pelo cuidado com os livros. Na ala E,
dificilmente, uma hóspede minha perdia ou deixava de devolver algum
exemplar. Quando a biblioteca não “descia”, elas eram as primeiras a
reclamar. A paulista passou a ser conhecida em todas as alas. Raro en-
contrar aquela que não respeitava a opção de Cinara pelo afastamento.

O voo das palavras


Os problemas de Cinara com o falatório do mulheril ultrapassa-
ram a banalidade dos diálogos, motivados por picuinhas, típicas do ócio
em que muitas vivem. Ela testemunhou complicações graves, iniciadas
por fofocas que transpuseram as barreiras de minhas propriedades. En-
tretanto, embora não compactuasse, ela sempre esteve muito próxima
dos pivôs da rede de informações própria do meu universo. Sabia de
muitas coisas aleatórias, às vezes por puro acaso. Ela evitava ficar à toa
por meus cômodos com seu carrinho de livros. Mesmo assim, acabava
sempre por tomar conhecimento. Esta rede de informações, ao contrá-
rio do que se pensa, é muito engenhosa.
O sistema de comunicação se interliga no boca a boca, assim como
em bilhetinhos de papel e outros recursos. Simples, é verdade, mas efi-
cientes. Exemplo são os códigos sonoros das garrafas. Quando batidas
nas grades das celas, simultaneamente, por todas as mulheres de uma
ala, as garrafas produzem um som poderoso. No começo, é apenas uma
mulher buscando ser ouvida. Aos poucos, no entanto, todas se unem ao
coro de garrafas em atrito com as grades. Este artifício, geralmente, é
usado em casos de emergências, como no caso dos partos inesperados.
98
A AMANTE DOS LIVROS

Por outro lado, não raro também ser usado como forma de protesto,
homenagem ou mesmo luto.
A rede de informações que em mim é tecida pode tomar propor-
ções exageradas, trazendo consequências externas ao nosso ciclo. Ci-
nara sempre se espantava ao saber do caso de uma hóspede minha que
ganhara a liberdade, mas perdera a vida já fora dos meus domínios. Às
vezes, os sussurros chegam aos ouvidos de visitas, que, certamente, os
reproduzem lá fora. Um tema que nunca passa despercebido são casos
amorosos entre as mulheres.
Em geral, coincidem os ciclos de convivência no mundo exterior.
Muitas já compartilhavam os mesmos espaços de morada, onde fami-
liares de algumas continuam a se encontrar vez ou outra. Quando uma
mulher casada lá fora se envolve com outra mulher em sua estada nas
minhas dependências, é bem possível que comentários sobre isso che-
guem ao parceiro ou parceira deixada lá fora. A traição acaba se tornan-
do motivo para uma vingança.
Por outro lado, o leva e traz acontece também vindo lá de fora para
dentro. Diziam que Jéssica, a espanhola namorada da Francilene, ao sair
da cadeia, não sustentou por muito tempo a promessa de manter o re-
lacionamento que fincou durante sua passagem como minha hóspede.
Logo que saiu, os sussurros me disseram que ela não aguentou morar
com a sogra e sucumbiu à tentadora liberdade. Porém, ao mesmo tempo
em que difunde informações, a rede também falha quando incorpora
malícias e rivalidades das bocas de quem propaga os boatos.
Assim, eu muito me surpreendi quando, em um rotineiro domingo
de visita, aquela loira espanhola apareceu novamente em meu território,
com um olhar já bem diferente daquele que ela me lançou pela primeira
vez. Os ombros ainda mais diferentes. Não carregavam mais o peso da
condenação de 13 anos e quatro meses de prisão que não chegou a pa-
gar, pois se livrara muito antes. Agora, Jéssica viera visitar Fran.
De Maribel é que não soube mais. Apesar de ansiar, às vezes, por
notícias das rebentas que partiram, é muito complicado acompanhar o
destino de todas. Algumas, simplesmente, somem. Outras, em pouco
tempo, voltam. O tempo é espiral e gravitacional neste pedaço de mun-
do. A coisa mais consensual, entre todas as histórias, é que elas sempre
99
AURI, A ANFITRIÃ

darão muitas voltas. Toda mulher que por mim um dia já foi tocada es-
tará sempre conectada a este universo, ainda que seja através de nossas
memórias. Não raras as vezes, vivíssima também nas fofocas.
Dentro da rede de comunicação, apenas o esquema dos bilhetes
de ala pra ala é declaradamente proibido, pois os diferentes grupos não
devem ter contatos entre si. Mas faz-se às escondidas. O cruzamento das
alas só é permitido durante eventos, aulas, encontros religiosos, confra-
ternizações e demais atividades do gênero coletivo, como campeonatos
de futsal e outras práticas. Só que os bilhetes surgem, justamente, como
uma forma de resistência ao extremo controle. Também por isso, nas
missas, muitas das presentes nem são tão “fiéis” assim. Às vezes, algu-
mas estão ali mais pelo tititi.
Fora as convivências, tem também o convencional grito. Velho,
porém insubstituível meio de comunicação à distância. São inúmeras
as possibilidades e alternativas ao controle do fluxo informativo pela
instituição. Mesmo assim, Cinara, sem dúvida, estava entre as mulhe-
res que detinham o maior trânsito de informações entre todas. Numa
perspectiva macro, talvez até mais do que muitas agentes. Isso porque
a paulista possui o privilégio de caminhar e interagir pelo mundo dos
homens. Um privilégio exclusivo de Cinara, que faz parte do seu coti-
diano carcerário.

A caminho da Universidade
Entre os prazeres e as frustrações que sentia ao levar à frente algum
projeto de ressocialização, Cinara se viu diante de uma que a levaria,
enfim, para o aprofundamento do senso crítico que vinha sendo afiado
durante sua experiência como minha hóspede. No final de 2011, por
estímulo das professoras da minha escola, ela resolveu se submeter a
um exame seletivo para a Universidade. O Exame Nacional do Ensino
Médio, Enem, como costumam abreviar, passou a ser aplicado entre mi-
nhas hóspedes. No entanto, nenhuma conseguira pontuação suficiente
para concorrer a uma vaga no ensino superior.
Caso Cinara fosse bem sucedida, poderia ingressar, mesmo es-
tando em regime fechado, em alguma instituição de ensino superior.
Para isso, no entanto, ela precisaria de uma permissão judicial. O be-
100
A AMANTE DOS LIVROS

nefício nunca tinha sido concedido até então. Talvez, por isso, ela te-
nha se submetido ao Enem apenas na intenção de testar o seu nível
de conhecimento. Como já haviam se passado vinte anos desde que
terminara o, na época, Segundo Grau, Cinara reservou quinze dias
para se preparar para a prova.
Em dois dias seguidos, Cinara sentiu as costas doerem por passar
horas debruçadas sobre o caderno de provas. Chegava a suar. O Enem
fora aplicado em uma das salas da escolinha. Sua cara de preocupação
ao responder ao exame me fez pensar que sua pontuação não seria boa.
Ao todo, foram 180 questões e uma redação. Os dias que sucederam à
prova foram de certo desapontamento, mas também de uma determi-
nação que cada vez mais crescia dentro dela. Voltaria a estudar. Se não
fosse no próximo ano, seria no outro.
Foi com surpresa que Cinara recebeu a notícia de sua pontuação
por Morgana, a diretora da instituição que rege a vida em meus domí-
nios. Apesar do grande número de questões que acertou, o que mais
impressionou foi seu desempenho na redação. Recebeu nota 900, de um
máximo de 1000. Foi com as perspectivas renovadas que se dirigiu à
sala da diretora para tentar uma vaga na Universidade Federal do Ceará,
através do Sistema de Seleção Unificada, o chamado Sisu. A inscrição só
pode ser feita através de um computador, conectado à internet, tecnolo-
gia a que somente a direção tem acesso.
– Já sabe que curso quer tentar, Cinara? – perguntou Morgana.
– Filosofia, o mesmo curso que eu comecei a fazer em São Paulo,
antes do último recurso ser negado.
– Tudo bem. Pois vou entrar no Sisu com as tuas informações e ver
as opções de cursos e horários – falou a diretora, apertando os olhos ao
encarar a luminosidade da tela do computador.
– Queria muito agradecer pela força que a senhora está me dando,
Dona Morgana. Se não fosse o seu apoio, viu – suspirou Cinara, já ner-
vosa com o processo de inscrição.
– Se acalma, que isso ainda é o começo. E tudo que você conseguir
será por mérito próprio. O bom comportamento pesará muito na deci-
são do juiz que irá avaliar a sua permissão de frequentar a universidade,
caso consiga uma vaga, claro. Cinara, te conheci ainda na prisão antiga e
101
AURI, A ANFITRIÃ

sou testemunha do quanto você amadureceu nos últimos anos. Quando


você retornou, logo notei o quanto estava focada no que realmente im-
porta. Nada te desviou da tua busca por uma vida diferente. Em meus 18
anos de cárcere, poucas vezes vi alguém tão determinada quanto você.
Cinara não conseguiu conter as lágrimas ao ouvir as palavras de
Morgana, que continuou compenetrada em sua tarefa. Nessa hora, a di-
retora revelou à vestibulanda que o curso de Filosofia só era ofertado no
horário noturno.
– Minha filha, não tem nem perigo disso dar certo. É melhor ten-
tar outro curso – afirmou Morgana, tirando os olhos do computador e
vendo, pela primeira vez, as lágrimas de Cinara. – Mas você queria esse
curso tanto assim que está até chorando? Por que não tenta o curso de
licenciatura em História, que é diurno?
– Sabe, Dona Morgana. Quando eu era criança, eu sonhava em
ser professora. Até tinha uma lousa em casa. Passava horas no quintal
brincando de ensinar – revelou sorrindo, apesar das lágrimas que termi-
navam de cair por seu rosto.
Cinara precisou esperar alguns dias para saber o resultado da
primeira chamada do Sisu. Caso não conseguisse de primeira, ainda
poderia tentar nas chamadas posteriores. No entanto, não foi preciso.
Com a boa pontuação, seu nome surgiu na lista de candidatos apro-
vados. A notícia se propagou pelos meus corredores mais rápido que
qualquer outra fofoca de interesse das minhas hóspedes. Todas fica-
ram admiradas e curiosas para saber como seria isso de uma delas
frequentar a Universidade. Muitas delas viam a Universidade como
algo tão distante de suas realidades enquanto estavam lá fora, imagine
estando reclusas por dentro de meus muros. Cresceram com a certeza
de que jamais teriam acesso ao ensino superior, de que essas coisas não
existiam para gente como elas.
Ao contrário das colegas que não paravam de especular sobre o
assunto, Cinara não caiu em si logo que soube da aprovação. Foi aos
poucos. Quando digeriu a conquista, comemorou com as parceiras, as
agentes, os funcionários e, principalmente, com Morgana. Ligou para
família e contou a novidade. Os parentes ficaram de mandar os docu-
mentos que precisaria apresentar no ato da matrícula. Morgana e Cinara
102
A AMANTE DOS LIVROS

arregaçaram as mangas para que nada desse errado no dia marcado para
a matrícula dos aprovados. Mesmo assim, com muita correria, Cinara
conseguiu fazer a matrícula apenas nos últimos minutos. Apesar de es-
coltada, ela não foi de algemas. Entrou na fila com os demais candidatos
usando apenas a farda com meu nome estampado.
Faltava ainda receber a permissão judicial para frequentar as au-
las. De forma inédita no Estado do Ceará, a Juíza da 2ª Vara de Exe-
cuções Criminais, Dra. Luciana Teixeira de Sousa, concedeu a autori-
zação mediante o uso de um dispositivo de rastreamento. O fato teve
muito repercussão no mundo lá fora. Eu tive a impressão que estava
chovendo jornalistas em meus domínios de tanto que eles apareciam
em minha recepção. As semanas que antecederam ao início das aulas
foram marcadas por muita ansiedade. Estava diante de novo ciclo em
sua vida, completamente desconhecido. Passaria a ser uma peregrina
entre dois mundos.
Nos dez primeiros dias de aula, uma agente acompanhou Cinara
para mapear o trajeto permitido pelo sistema de monitoramento. A par-
tir daí, minha ilustre hóspede passou a usar uma tornozeleira conectada
a este sistema. Até mesmo quando voltava de sua aventura diária pelo
mundo exterior, continuava a portar o dispositivo. O aparelho se tornou
seu companheiro fiel. De manhã bem cedo, eu via Dona Laura, uma das
agentes mais antigas, saindo à paisana em companhia de Cinara, ambas
com cadernos nas mãos. Desciam a estradinha, passavam pela guarita
e prostravam-se na rodovia à espera do ônibus. Apenas quando o sol
estava tinindo bem alto no céu, eu as via voltando, com cara de quem
enfrentou uma longa jornada.
Após o período de adaptação, Cinara foi lançada ao mundo, so-
zinha, apenas contando com o consolo de sua tornozeleira. Nunca a vi
tão angustiada quanto nos primeiros dias da jornada solitária. Parecia
temer aquele gosto de liberdade que experimentava. Por outro lado,
as voltas para mim, sua morada, também eram sofridas. Ela chora-
va. Tinha de lidar com sentimentos paradoxais diariamente. Ganhou
roupas para usar em suas idas à UFC. Mas somente ela mesma tinha
autorização para isso. Minhas outras hóspedes só podem usar a farda
determinada pela instituição.
103
AURI, A ANFITRIÃ

Em sua peregrinação, passaram-se meses e meses. Quando chegava


o período das férias estudantis, além de arredia, Cinara ficava tristonha
e com ares depressivos. Suas parceiras de cela rezavam para que a rotina
de estudos recomeçasse. Além do mais, não faltavam estímulos das mais
assanhadas para que ela aproveitasse e arranjasse um namorado lá por
fora. No entanto, Cinara bem sabia que isso seria contra as regras. Não
estava disposta a arriscar o que tinha conseguido até agora. De vez em
quando, ainda contava vantagem falando de alguns flertes que recebia
no transporte coletivo ou na faculdade. Depois, timidamente, dizia que
se contentava em massagear seu ego apenas com a contemplação de se
sentir desejada. No duro, acho que tentava convencer a si mesma.

As portas do mundo
O medo da solidão sempre povoou seus pesadelos mais terríveis.
Algumas noites, ela acordava de uma vez, assustada com as imagens
que giravam em sua mente enquanto dormia. Pingava em bicas. No
dia seguinte, explicava as amigas mais chegadas como havia sido mais
esse sonho. Frequentemente, relatava pesadelos no quais sempre aca-
bava sozinha ou até mesmo largada na sarjeta, como uma mendiga.
“Eu não tive filhos. Minha família é pequena, está se acabando. E a
tendência é ficar sozinha mesmo. É um medo que eu tenho”, rabiscou
em um dos cadernos de estudos, de tão impressionada. Talvez, isso
explique o certo alívio que às vezes demonstrava ao voltar para meus
braços em cada dia, mesmo com desgosto de regressar ao aprisiona-
mento. Era como uma carência emocional que ela não sabia como pre-
encher. Em mim, apesar dos pesares, ela encontrava segurança. Afinal,
minhas hóspedes não precisam se preocupar em tomar decisões nem
com questões financeiras.
Por outro lado, ainda se sentia fatiada pela metade. Ao mesmo
tempo em que tinha total consciência do privilégio que desfrutava em
liberdade, desejado por muitas de suas parceiras, no exterior, percebia
as sanções morais apregoadas pela sociedade dos homens, para quem
tivesse passagem pela cadeia. Cinara já sabia que o poder estava mui-
to associado à ideia de reputação, naquela estrutura social. Além do
mais, as leis se encarregariam de manchar a sua por muito tempo. Foi
104
A AMANTE DOS LIVROS

assim que resolveu brigar com a zona de conforto onde tinha se enfiado.
Como aprenderia a lidar com o livre arbítrio e a se defender diante dos
preconceitos do mundo? Era o que sempre questionava. E, questionan-
do, encontrou posicionamentos. Por conta própria, com a cara a tapa,
alguma hora precisaria bater à porta da sociedade. Mas, ate lá, Cinara
estaria se preparando para surpreender.
Após três semestres batendo pernas diariamente, a paulista ga-
nhou o benefício de progressão de pena. Semanas antes, nem suspeitava
que saísse tão cedo, quando dizia às colegas que não sabia nada do anda-
mento de seu processo. “Essas coisas a gente não pode alimentar muita
expectativa que é para não sofrer”, reiterou. E tocou suas atividades nor-
malmente, dedicando-se às últimas avaliações na Universidade. No final
de junho de 2013, recebeu a notícia mais sublime de sua longa estada.
A defensora pública informou que seu recurso fora aprovado. Cinara
conquistou a remissão de sua pena com muito esforço, disciplina e obs-
tinação. Acreditava no reconhecimento do mérito, acima das alcunhas.
E, assim, passou do regime fechado para o semiaberto.
Na segunda-feira seguinte, partiu bem cedo, com uma mala nas
mãos, e só retornou no fim de semana. Na véspera, havia entregado os
dispositivos de monitoramento às agentes plantonistas, endereçados
à Morgana. Depois voltou para a cela assoviando. Quando me deu as
costas e rumou para a estrada, sem sequer olhar para trás, me fez viver
uma longa semana de ansiedade. Desde então, ainda tento me adaptar
a Cinara como uma hóspede de apenas dois dias na semana. Por outro
lado, ela tornou-se cada vez mais um elo com o mundo exterior. Quan-
do aos meus portões Cinara adentra, já fico atenta às próximas histórias
que deverá contar.
E para as curiosas que perguntam sobre seu futuro, a única certeza
sobre a qual fala abertamente é a de continuar morando no Ceará. Per-
manecerá no estado até terminar a faculdade e até cumprir a pena que,
em suas contas, só será quitada quando ela superar seus 50 anos. Sempre
sustentou o argumento de que, apesar de ter sido uma amante incondi-
cional no passado, não suportaria esperar que príncipes encantados sur-
gissem magicamente, para completar o vazio de todos esses anos. Havia
decidido projetar sua vida por si só e, assim, vinha seguindo.
105
AURI, A ANFITRIÃ

Mas, como fazer isto, sabendo que nem mesmo o controle prisio-
nal conseguiu domar seu coração sensitivo? Ela precisaria ter esfacelado
sua natureza romântica para poder realizar tal feito. Impossível, contu-
do, romper com a verdadeira essência. Depois de tanta solidão, estaria
correto privar-se outra vez? Há pouco tempo cheguei à conclusão de
minha investigação sobre a mudança em seu comportamento. Decerto,
não se tratava apenas do regozijo da liberdade. Havia algo a mais.
Flagrei Cinara escrevendo em seu caderno de anotações. No texto,
dizia que vinha alimentando uma paixonite quase adolescente lá fora,
mas que, até então, tomou todo o cuidado para não infringir as regras.
Fiquei às voltas, achando seu sorriso bobo e enigmático. Agora, não
haveria mais problemas, pensei. Continuei lendo e me surpreendi. Na
verdade, fiquei chocada. Na carta, Cinara, pela primeira, havia escrito
sobre mim. Citou-me, inclusive, como seu “mundão” e como a ponte
para a redescoberta do amor. Aquilo me paralisou. Nunca imaginei que
ela pudesse saber que estou aqui. Assim como eu, Cinara dizia que co-
meçava a viver o amor como uma extensão de si. Se minhas hóspedes
são o pulsar de meu coração de cimento, também fazia sentido que ela
pudesse estender o seu pulsar para outro coração. No fim, descobri que
somos todos moradas uns dos outros. No fim das contas, meu fascínio é
saber que, talvez, também haja esperança para mim.
“Quando abri as portas do meu mundo, esse mundão que me ob-
servava [eu, Auri] mandou embaixadores para conhecerem meu plane-
tinha devastado pelas guerras, mas com paisagens e riquezas surpreen-
dentes. Pois é, esses movimentos de conhecer e reconhecer são alavancas
que ressuscitam o ato de viver em mim, dentro e fora de mim...”.

106
A AMANTE DOS LIVROS

Acima, hóspede trabalha na oficina de costura da Tia Mazé, que produz bordados, crochês
e fuxico. Abaixo, telefone público de uso restrito, destinado apenas a casos de emergência.
107
Capítulo 3
[Patrícia]
A mãe
do crack
“Têm males que vêm pro bem. Deus não
me colocou aqui. Deus me permitiu vir
pra cá para ver a realidade da vida”.
Patrícia
A MÃE DO CRACK

D
ependurado na parede da guarita, o relógio contava meia noite.
Seu Expedito, um dos guardas noturnos, caminhava em zigue-
zague para não cochilar. Já que a troca de turno ainda demora-
ria várias horas, os passos apressados lhe ajudariam a esquentar o corpo,
naquela noite fria. Em vão, talvez, porque aquele dia, por si só, havia
sido completamente cinza, invocando uma noite nebulosa e friorenta.
A alta madrugada, cá nas margens do convívio em sociedade, cos-
tuma ser um período de misticismo em nossas rotinas. Não por causa
das histórias de aparições mal-assombradas ou mesmo por causa das
lendas de internas suicidas, como querem crer muitas de minhas hós-
pedes. Mas, para mim, se há algum misticismo, ele é interior às cons-
ciências das criaturas que aqui sobrevivem, por meio de necessidades
criadas por elas, sejam espirituais, sexuais ou emocionais. Por isso, diria
que, principalmente durante a madrugada, é a hora em que “o cão aten-
ta”, no linguajar das internas. Paira no ar o instinto travesso e insone de
algumas garotas em busca de saciedade.
Nas alas mais frontais, o ronco e o diálogo das televisões esque-
cidas ligadas ressoavam em alto e bom som. Enquanto isso, nas alas
posteriores, algumas internas ainda estavam acordadas e ativas. Um
presídio feminino como eu não passa mais que algumas horas em si-
lêncio permanente. Em geral, acontece no limar da noite para o dia.
Mas, até lá, o recolhimento noturno, se não for rapidamente domi-
nado pelo cansaço físico, provoca alvoroço nas garotas despertas. As
mais de doze horas de confinamento acabam seduzindo-as tanto ao
sagrado, quanto ao profano. Pois, mesmo que a maioria durma pro-
fundamente, as “loucas” choram mais que crianças desmamadas. E as
religiosas rogam a Deus, no mesmo instante em que as namoradas se
enroscam nos prazeres da carne.
Da cela onze da ala E, contudo, não se ouvia nenhum barulho
estridente. E este silêncio que deveria ser um estado natural, para um
grupinho daquela cela, era muito suspeito. Entre as seis internas que
ali viviam, três já haviam passado longas temporadas de submissão ao
vício em crack, a droga mais perseguida pela instituição. E aquele vácuo,
por mais ingênuo que parecesse, era mais indicativo que um sinal de
fumaça. Afinal, a meia-noite já era a porta de entrada da madrugada.
111
AURI, A ANFITRIÃ

O período mais apropriado para que aquelas mulheres, às ocultas, se


deleitassem com o que acreditavam ser o alimento da alma.
Patrícia era uma das três almas famintas. Uma jovem de apenas 25
anos de idade cuja aparência lhe premiava pelos menos 30 anos, mesmo
agora que estava mais saudável e bem cuidada. Quando chegou, não.
Mais parecia uma idosa; raquítica e acabada, trajando apenas uma car-
caça. Nos tropeços da vida dessa garota, muitos fatores contribuíram
para o seu fatídico destino. Árduo percurso que lhe tirou das ruas antes
que o pior acontecesse, antes que morresse escravizada pelo vício. Com
ou sem culpa pelo crime que foi julgada, e até mesmo pelo estado dege-
nerativo do seu organismo, para os meus braços ela foi entregue ainda
com vida. E sobreviveu.
– E aí, Pati, vai querer uma “pancada”? – perguntou Branca, ao ver
a outra contemplar o vazio do pátio da ala.
– Sei não, Branca. Desde a hora que a Pequena disse que “tinha”,
tô toda me tremendo de nervosismo. Se eu disser que não quero, tô
mentindo. Mas já tem muitos meses que eu não sei o que é isso. Eu
tenho é medo...
– Mulher, tu quem sabe da tua vida – devolveu Branca, para não
delongar a conversa.
– Pois é, melhor ficar quieta no meu canto – disse Patrícia, mudan-
do completamente o tom do discurso. – Eu fiz um voto com o Senhor
e não vou quebrar por causa disso aí, não. Ainda por cima, eu acho que
tô buchuda. Se eu botar essa droga de novo pra dentro de mim, posso
botar tudo a perder. Meu marido e, agora, mais esse filho. Não dá mais
pra mim, não. Com a graça de Deus, eu não preciso mais disso.
As colegas acharam esquisita a conversa, mas deram de ombros,
mal conseguiam conter a ansiedade. Patrícia levantou-se do colchão de
Branca e sentou-se no chão da cela próximo à grade, mirando o exterior.
Para não triturar as pontas dos dedos com os dentes, depois de roer to-
das as unhas, cuidou de buscar um cigarro. Com sofreguidão, ascendeu
e degustou a fumaça com o apetite de quem saboreia uma sobremesa.
O cigarro pulava entre os dedos, com a tremedeira das mãos. Resistia a
olhar para onde estavam as outras habitantes de cela. Parecia que queria
ficar bem longe, enquanto elas preparavam a “paulada” da vez. Patrícia
112
A MÃE DO CRACK

sabia que outra oportunidade não se repetiria tão cedo. As manobras


para penetrar a droga na cadeia são muito arriscadas. E ainda muito
mais perigoso é utilizá-las. Talvez devesse até agradecer por isso.
Para sua sorte, o cigarro tinha outro sistema. A direção permitia
a entrada por uma lógica legal, afinal, o cigarro é uma droga lícita.
Mas, fora isso, havia certo “compadecimento” da atual gestão com a
ansiedade vivida pelas detentas no estresse carcerário. “Algumas delas
precisam”, é o que dizem a quem questiona. E, de fato, o cigarro aju-
dou bastante a “ex-noia”. Desde criança, Patrícia fumava cigarro e tam-
bém gostava de maconha. Aqui, entretanto, teve que deixar de lado o
baseado. Nada mais “flagrantoso” que o cheiro da erva queimando e
alcançando o olfato das agentes. O castigo era grande, doloroso e du-
radouro – Patrícia já ouvira falar.
Em geral, o código interno estabelece que o cigarro faz parte da
cota da cela, quando existem fumantes nela. Assim, o uso é coletivo.
Assim como as minhas outras hóspedes, Patrícia só poderia receber
apenas três “carteiras” de cigarro por semana. Enquanto outras grávidas
largavam o cigarro, ela sequer pensava nessa possibilidade de tão habi-
tuada que estava à importância que o “careta”, como chamam o cigar-
ro de nicotina, tomara em sua vida. Em suas quatro gestações, Patrícia
chegou a consumir coisas muito piores durante os nove meses. Mas, as
consequências são inevitáveis, ela sabia. Uma mãe não consegue escon-
der a si mesma os prejuízos causados aos filhos.
Branca e Pequena estavam acocoradas em volta do buraco onde
haveria de ter um vaso sanitário, no banheiro da cela. Elas não eram tão
amigas de Patrícia dentro do cárcere. Suas verdadeiras parceiras, que
haviam lhe recebido, já haviam saído. Essas eram novatas, mas já sa-
biam que ela tinha passagem pelo crack. Pequena era a mais mafiosa da
cela. Ainda mantinha ligação com a sua “quebrada”, pois a namorada era
a própria dona da “bocada”. Quando visitava Pequena, sempre tentava
trazer um “agrado” a mais, além dos cigarros. Algumas vezes, dava cer-
to. Noutras, ela se livrava da droga antes da revista, para não se arriscar.
Pequena terminou de fumar seu cigarro, sem dispensar as cinzas
e com muito cuidado para não derrubá-las. Acocorada como estava,
começou a preparar a droga para o consumo. Havia apenas duas pe-
113
AURI, A ANFITRIÃ

dras, uma para cada. Talvez por isso, apenas consultaram Patrícia sobre
sua vontade. Não era propriamente um convite. De antemão, era bom
que as outras habitantes da cela concordassem ou tivessem ciência do
que elas iriam fazer. Num cachimbo improvisado, feito da colagem de
pedaços de diversos objetos, Pequena distribuiu as cinzas do cigarro na
ponta do cachimbo. Elas iriam segurar o líquido do crack derretido após
a combustão. Pôs meia pedra em cima das cinzas, fitou a parceira nos
olhos e riscou o fósforo.
Sabe, acho curioso observar o transe das “craqueiras”. Por alguns
segundos, parece que elas viajam para outro lugar. Também me surpre-
endem os aprofundados conhecimentos práticos delas. Parecem alqui-
mistas, transformando qualquer coisa em instrumentos para o preparo
ou consumo ideal do crack. Já vi latas e cachimbos improvisados nas
mais criativas formas. Além disso, as viciadas sempre compartilham
métodos novos, mais econômicos e funcionais. O mercado das drogas
ilícitas é incrível. Está sempre se renovando, mesmo dentro de meus
territórios prisionais.
Quando reconheceu o ritual, Patrícia deitou-se em sua pedra,
para rezar e pedir forças. Cruzou as mãos sobre o peito e sentiu a
aceleração do seu coração. Cada vez que as “noias” queimavam as
pedras de crack, o cheiro subia na cela, impregnada de uma fumaça
acinzentada. A dupla fumava as pedras pela metade, para durar mais.
Enchiam o pulmão a cada nova tragada. Branca teve uma espécie de
vertigem e ficou desacordada alguns segundos. As parceiras da cela
reagiram naturalmente. Deixaram-na voltar a si sozinha. Diferente da
melancolia e mau humor dos últimos dias, as “noias” estavam acesas e
excitadas sob efeito da droga.
Patrícia respirava pesadamente. Às vezes, prendia o ar para não
sentir o cheiro. Levou as mãos até a cabeça. Pressionava-se para con-
seguir superar os outros sentidos do seu corpo, berrando por aquela
composição química. Apenas quando começou a rezar em voz alta,
conseguiu se acalmar, paulatinamente. Rezava sem seguir orações,
mas com pedidos diretos às santidades. Desceu as mãos para o ventre
e sorriu. Continuou a rezar com os olhos fechados, até que sussur-
rou o nome de seu único filho homem, “Vinícius”. Rezou por ele por
114
A MÃE DO CRACK

bastante tempo. Depois rezou pelo irmão que havia falecido, Daniel.
E, rogando, adormeceu, sem se levantar mais nenhuma vez naquela
noite fria.

Irmão de sangue
Patrícia já havia contado a história do irmão à Greyce Kelly, uma
das contemporâneas à sua entrada no xadrez. Ela revelou que Daniel
tinha uma presença muito forte em suas memórias de infância. Era o
filho mais velho, de uma família de seis irmãos. O garoto era revoltado
com o pai, assim como os outros. A prole crescera sob a rigidez e bru-
talidade do pai, que atingia, inclusive, a própria mãe. O patriarca bebia
compulsivamente e maltratava a mulher e os filhos. Patrícia dizia que
eles tinham uma vida difícil, “diferente das outras que já tinha visto”,
no bairro periférico Acaracuzinho, pertencente ao Distrito Industrial de
Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza. Vida dura não só pela
pobreza, mas pela falta de opção aos filhos.
Ao falar da figura materna, Patrícia sempre remete à magreza de
sua mãe, em função da depressão que desenvolveu com a morte do pri-
meiro filho. A filha não foi muito longe em seu desespero pelo crack,
tornando-se imagem e semelhança da mãe. Só que a garota ainda aban-
donara seus quatro filhos aos cuidados de outros. Regina, sua mãe, nunca
abandonou nenhum dos seus filhos e ainda cuidou dos netos desampa-
rados. O finado Daniel apanhou muito na infância, chegou a ser acor-
rentado e açoitado pelo próprio pai. Aliado à revelia, o garoto crescia
e queria ter sua independência, além de algum vintém para ter o que
comprar. Passou a ficar mais tempo na rua do que em casa, em rejeição
ao pai. Foi quando começou a cheirar cola, a fumar maconha e a tomar
comprimidos tarja preta, como rivotril e as famosas “aranhas”.
Um dia, já rapazote, Daniel chegou em casa com uma mochila rou-
bada e mostrou aos irmãos como ela estava cheia de dinheiro. Ele tinha
cerca de 17 anos e, nessa idade, já fazia pequenos furtos e roubos, mas
nunca havia arrecadado tanto. Tomou a quantia de assalto na Ceasa10, o 4

que acabou lhe custando muito mais caro depois. Na semana seguinte,

10 Sigla de Centrais de Abastecimento do Estado do Ceará S/A.


115
AURI, A ANFITRIÃ

o irmão foi deixar Patrícia no colégio, que tinha 13 anos, à época, e par-
tiu para a estação de trem. Lá mesmo foi assassinado a tiros. Da escola,
Patrícia chegou a ouvir os estampidos sem desconfiar, a princípio, que
se tratava da morte do irmão. Foi avisada pela diretora pouco depois.
Após esse fato, tudo desandou em sua casa. O pai não deixava de
lado a cisma de castigar os filhos. Patrícia disse que, além de carrasco, ele
era um homem ambicioso. Enquanto a esposa administrava um boteco
na estação, chegando depois a trabalhar em uma fábrica de castanhas,
o patriarca não gostava de pegar no pesado. Quando Zeca, o segundo
irmão mais velho, começou a trabalhar, ironicamente no mesmo lugar
que o finado Daniel assaltara, o pai extorquia-lhe todo o salário. “Tudo
que o Zeca ganhava meu pai tomava. E devolvia dois reais para o meu
irmão. Isso não é valor que se dê para um rapazinho que quer ter suas
coisas, não”. A mesma coisa se repetiu com a irmã, Camila.
Com Patrícia, isso não chegou a acontecer, porque, em sua única
experiência de trabalho, ainda na adolescência, foi morar na casa de
uma advogada para ser empregada doméstica. A advogada vivia com
o filho já adulto, em um apartamento na Aldeota, área nobre de For-
taleza. Os dois trabalhavam e passavam o dia inteiro fora de casa. Lá, o
dinheiro que Patrícia ganhava era todo seu. Ela até gostava do emprego.
Porém, só suportou passar dois meses ilhada naquela realidade que não
lhe pertencia. Ainda era uma menina e quis voltar para sua casa.
Quando criança, gostava mesmo era de ficar na rua. Jogava bola
com os meninos, soltava pipa, brincava de bila, pião. No colégio, envai-
decia-se por ser arruaceira, do tipo de adolescente que se orgulha em
desobedecer às ordens e fugir aos padrões comportamentais. Foi expul-
sa de dois colégios, estagnando na quinta série do Ensino Fundamental.
Pelos menos, aprendera a ler. A adolescência, na verdade, foi o despertar
para sua autonomia, dentro e fora de casa. Pelo que vejo na maioria das
mulheres encarceradas, a quebra de uma ordem pré-estabelecida às suas
existências – desfavorável apenas para quem vive margeando a dignida-
de social – é o que acabada motivando-as a se envolverem com o crime.
A maioria das internas vem das periferias. Antes de pisarem aqui,
já estavam engessadas numa condição social de opressão e estigma no
mundo exterior. Essa parcela, desmembrada dos valores econômicos
116
A MÃE DO CRACK

e sociais que regem a soberania no mundo real, desenvolve uma re-


sistência igualmente proporcional ao elitismo das classes. Se os ricos
não querem os pobres por perto, os pobres demonstram igual des-
prezo pela lei imposta por eles. E, por isso, desenvolvem estratégias
próprias para garantir seus privilégios, sem deslizar para as mãos dos
abastados. Cada uma de minhas protegidas que se considera bandida
defende com unhas e dentes as bandeiras de suas respectivas facções,
fazendo penetrar suas ideologias por entre meus domínios. E o crime
na vida de muitas chega a ser ufanista.
O sistema penal, pelo que se reproduz em nossa realidade, é mar-
cado pelo abismo da seletividade de classes. Existem algumas detentas
que são mais folgadas financeiramente, é claro, mas elas são a minoria.
As periféricas deste presídio, além de desassistidas pelos serviços e di-
reitos que deviam ser garantidos pelo Estado, patinam diante do desejo
de consumo, de poder financeiro e de reputação social. São os valores
que regem esse sistema lá de fora, no mundo “livre”. Mas, se as perspec-
tivas de prosperidade estão distantes, favorecendo quem já é favorecido,
o jeito é fazer valer a própria lei. Por isso, a maior parcela dos crimes está
diretamente ligada ao poder de consumo, tais como o furto, o roubo e o
tráfico de drogas. A apropriação ilegal de bens responde a uma cultura
de exacerbação das moedas, e não das pessoas. E, nessa hora, até agrade-
ço que esses valores não sejam soberanos em nossas relações.
Fico imaginando o futuro dos filhos das mulheres que estão sob a
minha custódia, criando-se praticamente sozinhos. Em geral, as mães
contam com a solidariedade de parentes para educar sua prole. Pesso-
as que, muitas vezes, trabalham e passam o dia longe delas. Vejo nes-
sas crianças adultos precoces, pois precisaram crescer antes do tempo
para se protegerem e sobreviverem. A realidade dos abismos sociais,
no mínimo, é enigmática para eles, tanto quanto é para mim. Nos dias
de visita, contam para suas mães sobre outras crianças que repararam
nas ruas, cheias de roupas novas e aparelhos celulares. Depois, com o
tempo, entendem que os muros que separam suas realidades daquelas
crianças são iguais aos muros que lhes separam de suas mães.
Às suas maneiras, essas crianças vão abrindo seus caminhos.
Algumas até conseguem ir bem longe, superando as adversidades a
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AURI, A ANFITRIÃ

muito custo. Outras encontram a porta do crime arregaçada. A re-


ferência de quem vive nas favelas é de uma vida curta, banhada em
apatia e opressão. Sem ter o espanto da morte, mas, pelo contrário,
da sua banalização. Em algumas “quebradas”, a polícia, as milícias e
as próprias facções submetem qualquer vida a um fio. Quem quer que
seja precisa fazer uma escolha cedo, ainda que não esteja pronto para
isso. Se escolhe o trabalho comum, é provável que ganhe o respeito da
comunidade. Mesmo assim terá de saber conviver com o outro lado. E
quem escolhe o caminho do crime pode até ter tesão em ser bandido,
mas, muitas vezes, precisa ajudar no orçamento de casa. São muitos
os ensinamentos que eu só poderia aprender ouvindo as memórias
contadas por minhas hóspedes.
Todavia, a jovem Patrícia, embora presa em flagrante por tráfico de
drogas, foi atraída para um caminho ainda mais sinuoso e traiçoeiro que
o crime. Solitário, acima de tudo. A prisão na condição de traficante foi
uma travessura do destino, se ele existir. Mas, na sua história de semivi-
da como usuária de crack, o cárcere veio trazer o fôlego do renascimen-
to e um desvio de trajeto.

Amor à primeira pedra


A primeira droga ilícita que Patrícia experimentou foi a maconha,
aos 15 anos. Ela e Julia, sua parceira de aventuras, aprenderam a tragar
a fumaça da maconha comendo bananas. Ao mesmo tempo em que fu-
mavam, abocanhavam as bananas para que conseguissem conduzir a
fumaça até os pulmões. Patrícia gostava do efeito, mas a curiosidade
lhe instigava a querer provar entorpecentes mais fortes. Vieram os com-
primidos, o “loló” e a cocaína. Até então, ela não se considerava uma
dependente química de nenhuma dessas drogas.
Já o crack lhe foi apresentado por seu primeiro marido. Aos 16
anos, Patrícia e Júlia conheceram André, em uma casa de show nas
proximidades de onde elas moravam, chamada Kubanacan. Naquela
noite, as jovens se sentaram na mesa dele, que pagou tudo que elas
consumiram. Além de bonito e divertido, logo identificaram que An-
dré ganhava bem. Dois dias depois, Patrícia já estava de mudança para
a casa do rapaz, apenas cinco anos mais velho que ela. Foi para o seu
118
A MÃE DO CRACK

apartamento na intenção de passar um fim de semana e de lá não quis


mais voltar. A garota era muito “opiniosa” e a mãe, que trabalhava o
dia inteiro, mal conseguia ter notícias da filha, quanto mais impedi-la
de tomar qualquer decisão.
Morando sobre o mesmo teto, Patrícia via André fumar crack todas
as noites, dentro de casa, após o expediente de trabalho. Nos primeiros
meses, ela não demonstrava interesse em experimentar. Saciava-se com
seus baseados. Até que, numa certa noite, observando André se desligar
deste plano a cada “paulada” no cachimbo, sentiu vontade e curiosidade
suficientes para querer provar. O marido negou, mas ela insistiu. Queria
fumar um pedaço de crack em um mesclado com maconha, apenas para
ter ideia da sensação. Quando se deu conta, os dois já haviam passado a
noite inteira fumando “a bicha”.
Depois desse dia, Patrícia nunca mais foi a mesma. Nas primeiras
vezes que fez uso da droga, disse que o efeito desencadeava-se a par-
tir de uma tontura. Era o portal para penetrar numa realidade diferen-
te, como se fosse uma espécie de transe espiritual; profundo e muito
efêmero. Voltar a si depois daquela imersão, que durava apenas cinco
minutos, significava unicamente que precisava de mais uma dose: pre-
cisava retornar e explorar mais daquele desconexo tão prazeroso. Além
do mais, o êxtase não estava só no efeito, mas também no ritual de uso,
desde o preparo até a degustação de cada reação de seus sentidos. Com
o tempo, as sessões tornavam-se um hábito, e ela já passava dias inteiros
fumando verdadeiras muralhas de crack.
A viagem, que parecia apenas um processo da sua consciência,
aos poucos começava a denotar sintomas patológicos. Os indícios de
degradação em seu corpo demonstravam que ela estava cada vez mais
interligada àquela composição química. A droga, primeiro, causou-lhe
um tique nervoso na boca, fazendo-a friccionar os dentes sem parar. O
composto a deixava tão estimulada e eufórica que não sabia definir se
o êxtase que sentia era pelo efeito da droga consumida há pouco tempo
ou se era “fissura” por mais.
Patrícia contava que, algumas vezes, quando fumava, sentia que a
“lombra” a levava a uma paranoia: a sensação de que tudo conspirava
para prejudicá-la. Além do mais, não sentia fome e podia passar muitas
119
AURI, A ANFITRIÃ

horas sem comer qualquer alimento. Por isso, chegou a passar dias com
migalhas na barriga. Os globos oculares da garota saltavam da caixa
craniana, numa expressão de espanto, idêntica à figura de um zumbi.
E o veneno parecia que sugava também suas carnes, pois a magreza era
quase como um quadro de inanição.
Mesmo nessa situação, Patrícia engravidou da primeira filha,
Paula, sem ter tido tempo de se preparar para ser mãe. O crack foi
o seu principal companheiro durante toda a gestação. A jovem mãe
continuava sem trabalhar, enquanto o marido passava o dia fora. Mes-
mo assim, os dois viviam apegados ao vício, sustentado por André. A
fissura vivida pelo casal não permitia que tivessem uma relação equi-
librada, pois estavam em constantes brigas e agressões, causadas pelas
paranoias. Por isso, apelidam os usuários de crack de “noias”. Eles fi-
cam muito irritados e sujeitos a qualquer descontrole emocional por
causa da droga.
Por vários meses, Patrícia deixou de dar notícias até para sua
mãe. Veio, então, a segunda gravidez de mais uma menina, Anita. Nes-
ta gestação, todavia, Patrícia abusou de tudo, inclusive do crack e até
do marido. Um dia, logo que pariu a bebê, soube que André havia lhe
traído. Na briga que tiveram em decorrência disso, Patrícia contou a
Greyce Kelly que levou uma surra “parecida com a morte”. A mãe foi
buscá-la de volta pra casa e levou a filha ainda menor de idade para
denunciá-lo no Conselho Tutelar.
Mas, Patrícia ainda acreditava que amava André. O pior de tudo
era que, na casa da mãe, não mais poderia fumar o crack livremente,
nem teria quem custeasse sua boa vida. Com dois meses, voltou a mo-
rar com André, deixando a filha mais velha aos cuidados da mãe. Ao
todo, Patrícia e André passaram cinco anos nessa “arrumação”, como
ela mesma define o relacionamento. As brigas transformaram a vida
deles em um estado permanente de perturbação. Até a polícia já havia
sido chamada para separá-los. Patrícia roubava dinheiro do marido
para comprar droga. Embora André nunca deixasse faltar comida em
casa, eles chegaram a vender os móveis e vários bens para bancar o
vício. A situação chegou ao limite da degradação dos dois, até que ela
decidiu voltar para a casa da mãe e deixar tudo para trás.
120
A MÃE DO CRACK

Ser de novo adolescente


Retornar ao ceio da família era o caminho mais seguro. O pai es-
tava mais calmo e dois dos irmãos mais velhos já tinham seguido suas
vidas fora dali. Restavam os dois mais novos, um casal, que sequer che-
garam a conhecer a outra face do pai. Não obstante disso, o velho con-
tinuava muito fechado. Mas Patrícia demonstrava ter criado compaixão
por ele. André era quem não se conformava com o abandono, mas ela
nada podia fazer. A relação era simplesmente insustentável. Depois da
separação, ficou decidido que a filha mais nova ficaria com a avó pater-
na por alguns tempos.
De volta às raízes, Patrícia foi retomando os laços de infância e
construindo novas amizades no Acaracuzinho. Com resiliência, eman-
cipava-se do confinamento provocado pelo vício do crack, para respirar
e contemplar o mundo à sua volta. Começou a sair e a se divertir com
uma turma de amigos. Vivia uma nova fase, quando conheceu o homem
que, no futuro, viria a dar sentido à sua vida. Um cara bem mais velho
que ela e completamente distinto de André. Jaderson era um amante
à moda antiga, uma espécie de cavalheiro medieval se comparado aos
cortejadores dos dias atuais. Foi o segundo marido de Patrícia e a única
pessoa que acreditou na superação de seu vício.
Coincidentemente, Jaderson e Patrícia também se conheceram
numa festa. Ela sempre contava essa história às suas parceiras, que o
viam nos dias de visita, com um sorriso nos lábios. Na noite do primei-
ro encontro, desde quando chegaram à boate Zueira, os dois bebiam e
flertavam a uma dada distância. Já meio trôpega, Patrícia diz que lhe
ofereceu uma cerveja, com um aceno. Jaderson estava em cima de um
paredão de som, dançando, mas desceu e aceitou a oferta. Nessa época,
ele tinha aproximadamente quarenta anos e ela um pouco mais que a
metade disso. A idade, porém, não era obstáculo, pois Patrícia sentia-se
atraída justamente por sua aparência.
A jovem dizia que, além de se vestir bem, ele usava roupas de mar-
ca e tinha um corpo atlético para a sua idade. Os dois se enamoraram
desde o primeiro contato. Criaram uma conexão capaz de suportar ven-
davais, especialmente da parte de Jaderson Ele era completamente louco

121
AURI, A ANFITRIÃ

por Patrícia. E, assim como foi com André, Patrícia saiu de casa para
morar com o amante em poucos dias, no bairro Mondubim.
O casal decidiu morar em outro bairro, também periférico e in-
dustrial, chamado Santo Sátiro. Jaderson, por ter o dobro da idade da
garota, demonstrava ser um sujeito experiente e isso passava segurança
a Patrícia. Ele já vivera suas fases de danação, mas, mesmo no passado,
nunca havia se envolvido com drogas tão pesadas quanto o crack. Não
fumava nem cigarros, apenas bebia. Com a dedicação de Jaderson, o ca-
sal parecia construir uma vida estável. Patrícia engravidou novamente,
do terceiro filho, e desta vez era um menino, que se chamaria Vinícius.
Enquanto esperava o bebê, Patrícia se aproximou de uma mulher
na vizinhança, que traficava e também era usuária de cocaína. Apesar de
se chamar Helena, a traficante era conhecida mesmo pelo apelido, Lo-
rão. Nos finais de semana, Lorão convidava o casal para sua casa junto
de outros, para festinhas particulares. Patrícia passou a acompanhá-la e,
sempre que podia, dava uma “tecada” escondida do marido. Com pouco
tempo de amizade, já estava vendendo maconha, pó e crack na rua de
Lorão. Numa tarde dessas, contava a Vanderley – sua parceira de cela,
também presa por tráfico – o quanto foi habilidosa como comerciante.
Dizia que rápido levantava dinheiro com a droga em sua mão.
Realmente, Patrícia estava bem com as vendas quando, certa vez,
flagrou outro “avião”, Alisson, fumando algumas de suas pedras de cra-
ck. A cena foi impactante e muito tentadora. E toda a estabilidade que
já vinha desmoronando desde quando voltou a usar cocaína, naquele
momento, entrou em total decadência. Patrícia deixou de vender e ago-
ra só consumia. Quando Jaderson quis agir, já era tarde demais. Ela não
queria sair das ruas e de dentro do tráfico, a fonte mais abundante e
direta de sua preciosidade.
Quando Vinícius nasceu, Patrícia já estava há meses de volta ao
vício, e a criança herdou algumas sequelas. Desde recém-nascido, o me-
nino tinha um tom de pele amarelado, mantendo essa cor esquisita até
hoje. Por tudo que presenciou e participou, desde a barriga da mãe, era
uma criança nervosa e irritada. Mesmo sendo o filho com o qual ela
sempre fora mais apegada, Patrícia não tinha mais domínio de si para
cuidar dele. Voltou a ter um estado cadavérico e a perambular nas ruas

122
A MÃE DO CRACK

em busca de droga. Jaderson, além de cuidar da criança, tentava cuidar


da esposa, trazendo-a, a muito custo, para dentro de casa. Chegou a gas-
tar mais de trezentos reais, numa noite, financiando seu vício, para que
Patrícia não saísse. A criança sofria muito. Aprendeu a falar bem cedo,
para implorar à mãe que parasse de fumar.
Ouvi e vi poucas vezes homens tão resistentes e obstinados como
Jaderson em resgatar sua mulher. Não apenas em tirar Patrícia da de-
pendência, mas em continuar lutando por isso e amando-a incondi-
cionalmente, mesmo depois de presa. As moradoras de minhas celas
costumam se confrontar com o abandono dos parceiros amorosos,
desde os primeiros momentos de prisão. A começar pelo cadastro,
um detalhado requerimento para provar união estável, que já espanta
muitas visitas. Os demais obstáculos e regras acabam por afastar de
vez aqueles desinteressados.
Muitos maridos e namorados não devem nem imaginar a espera
de suas companheiras por suas visitas. Jaderson, do contrário, era uma
visita assídua, mesmo no período crítico da abstinência de Patrícia. Ele
entendia aquela circunstância como provisória, como se a esposa tivesse
adquirido uma doença e precisasse de cuidado e de tratamento. Mesmo
que ela já tivesse aprontado de tudo com ele, Jaderson acreditava que
Patrícia não estava em si. E independentemente de todos os transtornos
já enfrentados, ele seguia obstinado a salvá-la daquela vida e a trazê-la
para casa, para continuarem construindo a família que sonhava.
Uma vez, convenceu Patrícia a se internar numa clínica de reabi-
litação administrada por freiras. A adicta não suportou o tratamento
e fugiu com apenas uma semana. Voltou para as ruas. E assim ficava
por dias, reunida com outros usuários na estação de trem e em outros
espaços públicos, até o marido resgatá-la. Jaderson fazia vigílias e pe-
regrinava farejando pistas da esposa, dia e noite. Ele é dono de uma
mercearia e, por isso, podia deixar alguém em seu lugar para correr
atrás dela. Patrícia voltava para casa, mas logo mais estaria “ciganan-
do” pelo mundo, em sua busca incessante. Engravidou novamente,
pela quarta vez, de mais uma filha mulher, Sabrina. A gestação não
foi muito diferente da vida que já vinha levando. Patrícia mal se dava
conta do nascimento da menina.
123
AURI, A ANFITRIÃ

A decadência
Fazia oito dias que Patrícia dormia e acordava na rua, com a única
finalidade de levantar dinheiro para comprar crack. Revelou que, nessa
época, conseguia a proeza de fumar uma dezena de pedras em apenas
um dia. Não sei como seu cérebro e corpo aguentaram tamanha pressão.
Cada qual custava o preço máximo de cinco reais. Patrícia precisava se
coçar para arrecadar a verba. Muitas vezes, metia a mão em alguma coi-
sa valiosa, para tentar fazer escambo em droga na “bocada”. Da mesma
forma fazem algumas ratazanas desta detenção que vos fala, as quais
vivem à espreita de qualquer vacilo das outras internas para atacarem
e surrupiarem seus bens. Além de “aguentar” os bens de parentes ou
da própria casa, Patrícia pedia esmolas às pessoas nas ruas ou, então,
vendia o próprio corpo em troca de dinheiro suficiente para fumar, pelo
menos, duas pedras de crack.
Para além da ânsia em custear o próprio vício, Patrícia sabia que
não estava em condições de cobrar muito por um programa. Não toma-
va banho, não comia e estava num estado degenerativo. Seus fregueses
já eram figuras cativas, que ela conhecera nas proximidades da estação
e nas avenidas mais caracterizadas pela prostituição. Jaderson soube de
seus programas. Ficava furioso, em alguns momentos, e, em outros, sen-
tia repugnância da mulher. Imagino que os baixos preços dos progra-
mas das viciadas são grandes atrativos para os instintos masculinos. Por
outro lado, tenho uma inquietação moral, quanto à índole desses caras.
Questiono-me, afinal: que criaturas são eles para ignorar a situação dé-
bil dessas mulheres e se aproveitar de suas fragilidades para satisfazerem
somente necessidades sexuais? Refletir sobre o sexo masculino sempre
foi uma incógnita pra mim. Tão difícil quanto compreender que poder
há nas mãos deles para abusarem tanto das mulheres.
– Como é que tu conseguia se vender assim pra um estranho, Pa-
trícia? Pensava o quê na hora do vamos ver? – questionou Vanderley,
intrigada com o estágio de decadência de parceria.
– Muitas vezes, eu começava a chorar. Eu queria sair dali, mas
não conseguia. A gente sente, de todo jeito, e dói muito. Eu, simples-
mente, não tinha controle. O crack é uma droga muito maligna, Vandi.
Só sabe quem já passou.
124
A MÃE DO CRACK

Com mais de uma semana enterrada no crack, Patrícia só se ali-


mentava uma vez por dia. Os viciados podem ter comportamentos
agressivos, mas, em geral, se ajudam na hora do aperto. E, assim, Patrí-
cia contava com a colaboração dos craqueiros para se manter viva. Ela
não tinha coragem de voltar para casa, pois, na última estada, roubara
o celular do marido e a bicicleta de uma amiga para financiar o vício.
Interessante que os sentimentos de orgulho e de culpa sempre se con-
fundem quando influenciam a permanência de minhas hóspedes em
suas atividades criminosas. Ao entrar no cárcere, contudo, cada um de-
les consegue ser muito bem discernido por todas elas. A culpa é pela
consciência dos erros. E o orgulho, na verdade, é a força que impede a
consciência de consertá-los a tempo.
Apesar do exílio de Patrícia no crack, naquela oitava noite de ex-
travagâncias nas ruas, Jaderson surgira na estação onde ela estava para
apelar por seu regresso, com o filho nos braços. O bebê berrava, pedin-
do o colo da mãe e sua companhia no retorno para casa. O sofrimento
da criança maltratava o coração da mãe, muito mais que todas as humi-
lhações por que já havia passado. Furiosa, a jovem se levantou e ame-
açou o marido de morte, mandando-o zarpar dali com o menino, ou
então chamaria seus amigos para tirá-lo à força. Saiu às pressas e deixou
Jaderson falando sozinho.
Patrícia deu um jeito de despistar o marido e se dirigiu ao bar da
estação. Lá, sentou com um de seus principais fregueses para tomar
uma cerveja. Chamava-se Dodô, um coroa engenheiro. A “noia” ofere-
ceu seus serviços e, de antemão, pediu que, hoje, ele pagasse adianta-
do. Precisava providenciar as próximas “pauladas”, muito mais agora,
depois de ter presenciado aquela cena com o marido e o filho. Preci-
sava de crack para esquecer mais esta vez. O homem entregou-lhe dez
reais, conforme o combinado. Ela pediu que ele esperasse um instante,
enquanto voltava, e ele consentiu.
– Depois que ele me deu o dinheiro, eu só queria saber da “noia”.
Fui na “bocada” mais próxima desenrolar as “bichas”. Só que eu não
tinha como prever o que me esperava – falava para Vanderley do dia
em que foi presa.

125
AURI, A ANFITRIÃ

Patrícia e Vandeley tinham o hábito de conversar antes de dor-


mir. Na maioria das vezes, gostavam de compartilhar suas aventuras do
mundo exterior.
– E o que foi que rolou? A casa caiu? – perguntou Vanderley.
– Só deu tempo eu fazer o pedido: duas pedras. Na mesma hora
que ele entrou pra pegar as “noias”, apareceu uma viatura do lado de
fora da casa. Três polícia renderam o lugar e mandaram quem estivesse
dentro da casa se apresentar. O traficante correu para o quintal da casa,
pulou a cerca e se picou. Quando eu o vi correndo, pensei logo nos tiros.
Levantei as mãos e saí de trás da porta.
– Tu falou que foi fazer o que lá, doida?
– Eu disse que ia ficar com o cara. Ia bem dizer que tava compran-
do droga, era? Aí eles fizeram a busca, já estavam indo embora quando
encontraram a parada toda do traficante. Tava atrás de um tijolo da pa-
rede. Um saco com 35 pedras de crack.
Na falta do dono da “bocada”, Patrícia era única pessoa presente
no flagrante. Disse que os policiais ainda a levaram para a casa dos pais,
antes da delegacia. Lá, eles foram recepcionados pelas irmãs dela, que
imploraram por sua soltura, defendendo que ela não podia ser uma tra-
ficante. Como os pais não estavam em casa, os policiais levaram Patrícia
algemada até o bar onde eles se encontravam. A mãe caiu em pranto tal
quais as irmãs, mas o pai se manteve sério e não deu uma palavra com
os policiais, nem com a filha.
Na delegacia onde foi registrado o flagrante, Patrícia disse que a
própria escrivã desdenhava dos policiais por trazerem “aquela criatura”
como traficante. O que todos diziam é que ela não tinha condições de
traficar, pois o vício logo a levaria à falência. Patrícia apresentou sua
versão às autoridades. Primeiro, disse aos policiais que estava se prosti-
tuindo em troca de droga, mas depois confessou a compra. Mesmo as-
sim, sua alegação foi considerava inverossímil no dia do julgamento. O
juiz interpretou que os traficantes daquela boca de fumo estavam usan-
do viciados para despistarem a ação da polícia, ou seja, Patrícia estaria
mancomunada com o tráfico.
Por isso, puxou um ano e nove meses em regime fechado. Mas en-
trou por meus portões com a cabeça erguida, ainda que mal conseguisse
126
A MÃE DO CRACK

sustentar o frágil corpo. Patrícia também não reportava qualquer sem-


blante no rosto. Nem de medo, nem de surpresa, muito menos de dor.
Creio que, depois de tudo que aquela garota passara, nem a morte seria
motivo de espanto. A única coisa que poderia lhe causar algum temor
era não saber se sobreviveria a outro aprisionamento que não o vício,
mas, desta vez, sem o crack.

O caminho sem a pedra


Deitada em um colchão surrado no chão da minúscula cela da tria-
gem, percebi seu corpo liquescer em suores. A impaciência era evidente
a cada simples gesto seu. Por mais que estivesse encolhida no mínimo
território que o colchão lhe destinava, quem a observasse, por um mi-
nuto que fosse, não deixaria de perceber o olhar perdido e inquieto e
os membros que tremiam silenciosamente. Aquela garota magra que
a mim chegou quase não comeu nos oito dias que passou na triagem.
Nada parecia atrair seu olhar fora das órbitas. Como ela, chegam várias.
Todas dominadas pela tal “fissura”.
Aquele organismo jogado no meu chão sofria com a falta da pedra
de crack. Logo diagnostiquei os sintomas. Parecia perceber que ficaria
sem o seu gosto por um longo e doloroso tempo. Eu me questionava
como aquele corpo tão magro conseguia produzir tanto suor, ainda
mais mal ingerindo água ou alimentos. Aquela garota que chegou com-
pletamente possuída pela pedra, pouco a pouco, foi se desintoxicando.
Por sinal, a desintoxicação foi a seco. Nada iria acalantar essa transição.
Por ora, nem mesmo um cigarro viria ao seu auxílio. Às vezes, chorava.
Quando falava, era para reclamar de dores no corpo. Pior quando a dor
de cabeça batia.
Apesar de muitas já terem lidado com as vítimas da pedra, algumas
mulheres na cela da triagem se assustavam quando Patrícia parecia ver
ou ouvir coisas que elas não conseguiam. Certa vez, ela pareceu ouvir
um choro de criança. Pedia para que o som cessasse. As mais medrosas
temiam alguma assombração. Pra mim, se realmente havia algum fan-
tasma, deveria estar na cabeça transtornada de Patrícia. Transtornada
pela abstinência. Ou pela culpa.

127
AURI, A ANFITRIÃ

Quando estão no 7° mês de gestação, as grávidas são transferidas para a ala A, por esta
ser mais calma e próxima do setor de atendimento médico.
128
A MÃE DO CRACK

Quando finalmente o grupo recém-chegado desceu para a ala E,


Patrícia conheceu suas novas parceiras. A figura apática e sem vida
que chegou à cela foi recebida de forma calorosa. Com apenas a roupa
do corpo, Patrícia recebeu peças íntimas novas, ainda com a etiqueta,
além de produtos de higiene, sabão e comida. Nem de longe aquelas
mulheres trataram Patrícia com hostilidade. Foi um tratamento bem
diferente do que Maribel e Jéssica receberam, por exemplo. Patrícia
era uma nativa. Uma nativa tão marginalizada quanto às demais par-
ceiras de cela.
Diferente das estrangeiras, Patrícia conheceu a hospitalidade da
“favela”, a ala das pirangueiras. A minha ala mais afastada é também
a ala mais agitada, tanto para as brincadeiras quanto para as confu-
sões. Enquanto a ala E é a periferia de minhas entranhas, geográfica
e socialmente, dentro do cosmo que me tornei, a ala A é vista como
a “Aldeota”, a ala economicamente mais avançada, das mulheres tra-
balhadoras e com perspectivas altas de ressocialização com o mundo
exterior. Sim, com o mundo exterior. Em mim, era melhor mesmo que
elas não se socializassem muito.
Greyce Kelly. Um nome com ares de celebridade. A cearense com
nome de estrela americana foi a primeira a acalmar alguns medos de
Patrícia, quando esta superou os primeiros dias de abstinência e pode
deixar se apossar da angústia de estar em uma prisão. A parceira logo
explicou que Patrícia não seria obrigada a fazer “sabão” com nenhuma
mulher. Apenas caso se agradasse de alguém. Mas ela não estava no cli-
ma para se “agradar” de ninguém. Nem dela mesma. Nem do marido
que ficou lá fora, angustiado por tê-la longe.
Raramente vejo homens adentrarem meus muros com a carapuça
de visita. Homens, quando aqui aparecem, são os uniformizados. Poli-
ciais, pedreiros, eletricistas, bombeiros. Surgem apenas quando algum
serviço precisa ser realizado. No entanto, preciso admitir que eles, às ve-
zes, aparecem. Maridos, pais ou filhos. Nem de longe se comparam com
o contingente feminino na fila para a visita, mas eles existem. Existem
ainda aqueles que nunca desistem. Ao marido de Patrícia, com certeza,
não falta perseverança.

129
AURI, A ANFITRIÃ

Com uma semana na ala E, Patrícia foi encaminhada ao ginásio


poliesportivo, onde as visitas ficam à espera de minhas hóspedes. Com a
inquietação aliviada pelo cigarro, ela não me pareceu nada emocionada
ao encontrar com o companheiro, ao contrário deste, que ficara com os
olhos marejados só de vê-la chegar.
– Ah, macho, se for para encher meu saco, pode ir pegando o beco.
Não tô com paciência pras tuas besteiras – disse Patrícia, ao perceber
que ele chorava.
– Eu faço tudo por ti e tu me recebe assim. Era para tu me receber
pelo menos com um abraço.
– Tu é muito otário mesmo. Se for começar com as reclamações, te
deixo aqui, falando sozinho. Eu nunca fui de baixar a cabeça. Não vai ser
agora que vou baixar minha cabeça pra você. Já não me basta estar aqui
sofrendo sem ver nem a cor da pedra.
– Como você pode ser assim tão fria comigo. Tem mais coração não?
– Não tem nada aqui. Não tenho coração, nem nada – disse Patrí-
cia, passando a mão por seu tórax magro. – Não sinto nada.
– Vê ao menos o que eu te trouxe – continuou Jaderson, depois de
um silêncio constrangedor. – Olha, trouxe umas merendas pra ti. Bola-
cha, manteiga, leite.
– Não trouxe cigarro? Como você acha que vou aguentar ficar aqui
dentro sem ao menos um cigarro? Não trouxe nem mesmo fumo? O que
eu fumei até agora foi caridade das minhas parceiras. Ao menos elas me
ajudam.
– E eu faço o quê? Só o que faço é te ajudar. Próxima semana, eu
trago os cigarros. Prometo. Não vai perguntar pelo teu filho? Ele tem
perguntado por ti. Tem chorado muito. Sente tua falta. O bichinho quer
te ver. Vou trazer ele na próxima visita.
– Faz isso, sim – levantou a vista para falar do filho, com os olhos
bem acesos. – E não esquece dos cigarros.
– Patrícia, quero te falar uma coisa – disse Jaderson, suspirando.
– Ai, lá vem com mais besteiras. Fala logo. Tá enrolando por quê?
– A Helena morreu... De overdose. Foi encontrada morta pouco
depois de tu ser presa. Ela já tava morta há três dias quando os vizinhos
resolveram chamar a polícia. O cheiro estava incomodando.
130
A MÃE DO CRACK

Patrícia encerrou a conversa bruscamente e virou para ir embora,


deixando o marido com cara de quem esperava ao menos um abraço de
despedida. Seu tratamento frio foi diretamente desproporcional ao tra-
tamento emocionado do marido. Mas as últimas palavras de Jaderson a
tiraram do seu estado de indiferença. O estorvo era evidente no cami-
nho de volta à ala. Andou rapidamente pela linha amarela. Em pouco
tempo, já se tornara um caminho conhecido e inconsciente. A cesta de
mantimentos não parecia lhe atrair nenhum pouco, enquanto balança-
va em seus braços. Dividiu tudo com suas parceiras. Suplicou por mais
cigarros em troca. Sentia-a salivar ao receber um pacote das mãos de
Greyce Kelly. “Economiza”, aconselhou a parceira.
No pátio, ela tirou um cigarro com as mãos já trêmulas. Depois
guardou o pacote sob o cós da calcinha, olhando ressabiada ao redor.
Não queria, penso eu, dividir seu tesouro com mais ninguém. Depois
que fumou um dos cigarros, ela voltou à cela e ficou prostrada na cama o
restante do dia. Não chorou naquele dia, mas foi o que basicamente con-
seguiu fazer nos dias que se seguiram. As parceiras tentavam animá-la.
Por experiência própria ou alheia, todas acabam sabendo o quão difícil
é ficar sem a pedra, ainda mais sem nenhum tratamento específico.
Seus sonhos tornaram-se ainda mais inquietos. Eu a via se remexer
e transpirar sobre sua pedra de dormir. Sussurrava. Às vezes, gritava,
como uma das loucas da ala B. Durante o dia, suas parceiras tentavam
tirá-la da depressão que se apossou dela. O corpo magro não queria co-
mer. Apenas se desfazer em lágrimas e suores. As reclamações de dores
no corpo se tornaram corriqueiras. O domingo seguinte foi marcado
de mais indiferença, mesmo com a presença do filho mais novo. A face
aliviada ao receber os cigarros do marido denunciava o único interesse
que a motivava durante as visitas.
O cigarro se tornou uma válvula de escape para o nervosismo exa-
cerbado de Patrícia. A vida daquele ser humano parecia ter sido sugada.
Os temores eram o único sinal mais evidente de que ali ainda residia um
pouco de luz. Vanderley, a pitbull, acabou sendo a mais persistente, con-
seguindo tirá-la da cela e levá-la ao pátio, ali onde as minhas hóspedes
gostam de jogar dominó. Seu nome oficial era Valéria, mas ninguém a
chamava assim. Em meus domínios, desde que chegou, é chamada pelo
131
AURI, A ANFITRIÃ

nome que adotou. Algumas agentes costumam até respeitar o codino-


me. Soa estranho quando alguém a chama de Valéria.
Vanderley distribuiu as peças do jogo como quem distribui cartas
de um baralho. Não perdia nenhuma oportunidade de reclamar da re-
gra que proíbe baralho nas minhas dependências. Se gabar de sua des-
treza em qualquer jogo com cartas, então, fazia direto. Patrícia pegou
suas peças sem muito interesse e não conseguiu se concentrar no jogo.
Sempre alguém precisava avisá-la quando era sua vez de depositar al-
guma peça na linha tortuosa que o dominó formava sobre a mesa de
cimento. Resolveu acender um cigarro para melhorar a concentração.
– Já te falei para maneirar no “careta”. Daqui a pouco as carteiras
acabam e a situação vai ficar pior – ponderou Greyce Kelly.
– Deixa de reclamar, Greyce. O cigarro ajuda o nervoso dela – fa-
lou Vanderley.
– Meu nome é Greyce Kelly. Não só Greyce. Não só Kelly. Greyce
Kelly. Entendeu, Valéria? – provocou.
– Muito bichona tu, não é, Greyce Kelly? Aproveita que o cachor-
rão aqui tá de bom humor. Tenho é pena dessa tua cara de pau.
– Tudo bem, Vanderley. Greyce Kelly tem razão. Preciso me aguen-
tar com esse maço aqui até a próxima visita.
– É tua vez, Patrícia. Joga aí... – disse Greyce Kelly, também dando
uma tragada em seu cigarro. – Eu gosto tanto dessa porcariazinha. Gos-
to desde que era piveta. Comecei com uns 12 anos.
– Eu comecei com 11 anos. De vez em quando, minha mãe passava
e dizia: “Menina, pega um cigarro pra mim”. Eu ia acender no fogão e
já tirava aquele traguinho. Depois, com a maior cara de pau, entregava
para a minha mãe. Ela dizia: “Deixa eu cheirar tua boca, menina” – lem-
brou Patrícia, rindo-se da traquinagem infantil. – “Tá doida, é, mãe? Se
faz de doida, é? Deus me livre de fumar isso aí”. Eu dizia para me safar
de pêia, sendo que eu já estava era sentindo falta do cigarro. Quando ia
pro colégio, já levava o cigarro e um palitinho de fósforo. A caixinha eu
procurava no meio da rua.
– Eita, que agora desatou a falar e não para mais – brincou Vander-
ley. – Daqui a pouco tá falando dos machos que deixou lá fora.

132
A MÃE DO CRACK

Com essa tirada de Vanderley, Patrícia deu sua primeira garga-


lhada dentro de meus muros. Sentiu que estava mais próxima ainda de
suas novas parceiras e não tardou para contar suas aventuras amorosas,
assim como Vanderley previu. Contou dos dois maridos e dos quatro
filhos, além da pedra, que tanto marcou sua vida. Contou de sua relação
com Jaderson e do quanto ele aguentou a barra de ser casado com uma
viciada em crack. Das noites que saía à sua procura pelas ruas da cidade
com o filho a tiracolo sem saber o que iria encontrar pela frente. Do
quanto ela o destratava por influência da pedra. Do quanto, mesmo ali,
ela não conseguia ter paciência com aquele amor incondicional.
Se era amor incondicional ou algo mais doentio, como costuma-
vam sugerir algumas parceiras de Patrícia, eu não saberia dizer. O que
posso afirmar é que aquele homem não desistiu. Continuou a visitar a
mulher toda semana. Às vezes, com o filho. Às vezes, só. Patrícia, aos
poucos, pareceu abrir a guarda. Com alguns meses, via-se uma transfor-
mação nela. Parecia mais amorosa. Começou a ansiar por ver o marido.
A ansiar seu toque, seus beijos. A ideia de frequentar o venustério foi
aceita de muito bom grado por ela. A zumbi que aqui chegou pareceu
acordar para desejos cada vez mais vivos.
E foi naquele espaço destinado aos encontros sexuais entre minhas
hóspedes e seus companheiros ou companheiras que Patrícia se sen-
tiu de novo uma mulher. Pareceu esquecer, por alguns instantes, aquela
inquietação que era sua companhia inseparável. Voltou a ter o gozo de
estar viva. Seus gemidos e suspiros não eram mais de angústia. Eram de
uma coisa bem mais sublime. Voltou cantarolando uma música. O riso
saía solto, enquanto os versos de uma canção de amor saíam baixinho
através dos lábios cansados: “O tempo passa / E a gente vê as coisas de
um jeito diferente / É impossível que a magia seja mesmo eternamente /
Quero te amar pra sempre / Ser de novo adolescente”11. 5

Dias depois, Greyce Kelly trouxe uma novidade para as parceiras


de cela. Havia uma cartomante na ala E. Com o convite, também veio o
aviso. A história só poderia ficar entre elas. Não poderia vazar para as

11 Trecho retirado da canção “Moldura”, composta em 1998 por Nilo Pinta, Bya-
fra e Aloysio Reis, que ganhou popularidade através da banda de forró Desejo de Meni-
na.
133
AURI, A ANFITRIÃ

outras alas, muito menos para as agentes. Se isso chegasse aos ouvidos
da administração, era castigo na certa. Algumas práticas religiosas são
permitidas pela instituição, incentivadas até. Outras práticas, que ex-
ploram o misticismo através de jogos, são extremamente proibidas. A
cartomancia é uma delas. Pois, para a direção, além de gerar comércio,
alimenta uma expectativa ilusória, que pode levar as internas ao desen-
gano. A “cliente” que se sentir prejudicada pode vir se queixar para a
cartomante, criando um conflito indesejado para a instituição. Contu-
do, mesmo sob o controle cristão, os jogos, as apostas e outras crenças
exóticas sempre dão um jeito de burlar as regras. Chegam a ser escor-
regadio. Persistem e continuam a se misturar com os costumes aceitos
pela instituição que em mim reina.
Mesmo dizendo não acreditar nessas coisas, Patrícia deixou-se
convencer por Greyce Kelly e acompanhou a parceira em uma consulta.
Esta queria saber como a namorada estava se comportando lá fora. Já
Patrícia aproveitou para matar a curiosidade. A consulta fora agenda-
da com antecedência para não gerar nenhuma movimentação suspeita.
Greyce Kelly guiou Patrícia até a cela da tal cartomante. Patrícia ainda
não sabia qual daquelas mulheres dizia ter poderes sensitivos. Só sou-
be quando entrou na cela em questão, após Greyce Kelly trocar olhares
com duas mulheres postadas do lado de fora, à espreita. Eram 3h da
tarde, faltando duas horas para as celas serem trancadas.
A tal cartomante não possuía ares de cigana, como Patrícia che-
gou a questionar às suas parceiras. Era mais uma pirangueira como as
outras, usando a mesma farda surrada. Nada de maquiagem nos olhos
nem lenço na cabeça. Seu jeito de falar não lembrava o magnetismo da
cigana que eu vira em uma novela, junto a algumas hóspedes. Mas, pelo
menos, ela tinha as cartas de tarô. E suas mãos cortavam com destreza o
baralho. Destreza que causaria inveja a Vanderley. Horas antes, Patrícia
havia questionado Greyce Kelly como o baralho havia entrado na ala.
Ninguém soube ou quis responder.
Greyce Kelly foi a primeira a ouvir o que as cartas tinham para
dizer sobre seu futuro. Assinou com um rabisco uma folha de caderno
e entregou uma carteira de cigarro à cartomante. Esse seria o seu paga-
mento. Ouviu que sua namorada ainda a amava, mas estava confusa por
134
A MÃE DO CRACK

causa da distância. À cliente, a cartomante recomendou cuidado para


não acabar perdendo sua amada. Em seguida, foi a vez de Patrícia pagar
pelo serviço e assinar a tal folha de presença.
– Eu vejo dois homens na tua vida – começou a cartomante. – Dois
homens que gostam de ti.
– É, está me interessando. Continua – pediu Patrícia.
– Um deles dá a vida dele por ti. Já o outro torrava todo o dinheiro
contigo.
– Pergunta sobre o teu marido, Patrícia – interferiu Greyce Kelly,
cutucando-a.
– Não se preocupe. Ele não te trai – revelou a carta que Patrícia
escolheu entre as demais. – Ele é louco por ti.
A cada palavra da cartomante, Patrícia parecia mais admirada com
o que ouviu. Também soube que sua liberdade estava mais perto do que
ela imaginava. Além disso, ficou certa de que existia uma pessoa no
mundo que nunca a abandonaria. Já em sua cela, Patrícia se questionou
em voz alta se teria valido a pena gastar seu precioso cigarro com pala-
vras tão vagas. Vanderley, o “homem” da cela, foi logo recriminando as
duas parceiras por se deixarem levar nessa “conversa de mulherzinha”.
– Jogou verde bonito, essa daí. Do jeito que o povo é fofoqueiro
aqui. Certeza que ela deve saber da vida de todo mundo. Vocês foram lá
de besta – disse Vanderley, ao saber do teor da consulta. – Outra coisa.
Que porra de lista é essa que vocês assinaram?
Nenhuma das duas soube responder ao certo o porquê da tal lista.
No dia seguinte, no entanto, souberam. Não da motivação, mas da con-
sequência da lista. O esquema tinha sido descoberto. O desespero bateu
em várias das minhas hóspedes quando a lista foi encontrada junto ao
tarô na cela da cartomante. A ideia de voltar à tranca veio com um gosto
amargo a muitas delas. Patrícia não conhecia o “cu de cobra”. Chegava
a passar mal só pelo que ouviu das parceiras. O tempo que passara na
triagem já tinha sido desagradável. Não queria nem imaginar como se-
ria ficar em um lugar ainda pior.
O castigo das clientes acabou sendo bem mais leve do que te-
miam. Foram levadas para passar uma noite nas celas vazias da ala C.
Enquanto isso, a cartomante ficou um mês inteiro sofrendo na tranca.
135
AURI, A ANFITRIÃ

Mais do que infringir as leis disciplinares, a pobre alma foi contra a


ideologia da instituição. Além disso, garota esperta como sempre foi,
tentou ganhar dinheiro fácil enganando as colegas de ala. Não estava
muito longe de se enquadrar no 17112 . As apostas que lançava sobre o
6

futuro das colegas poderiam ser completamente erradas, mesmo pare-


cendo óbvias. Não faltaria aquela cliente que buscaria uma compensa-
ção. Disso para conflitos era um passo. A instituição preferia mesmo
era cortar o mau pela raiz.
Em meus domínios, grupos cristãos são sempre bem recebidos
pela administração, tendo apoio e espaço para realizar atividades de
doutrinação com minhas hóspedes. O calendário da semana está com-
pleto. Cada dia, uma igreja diferente. Patrícia foi uma das que passou a
frequentar cultos religiosos após passar por meus muros. Antes, nunca
tinha frequentado uma igreja, muito menos integrado algum grupo de
oração. Foi estimulada a participar, principalmente, por causa de seu
vício. Disseram que conseguiria a cura. E ela acreditou.
Patrícia cada vez mais ficava agradecida por estar sob minha pro-
teção. A angústia por estar longe da pedra foi substituída por um alívio.
Sua vinda soava como um presente. Seu pacto religioso a fez renegar
ainda mais a vida que levava antes de chegar até mim. Eu sentia seu
medo ao pensar no que faria quando saísse pelos meus portões com
todo o peso da liberdade. Acabava se esquivando de assuntos sobre o
pagamento da sua pena. Entre a vontade de recomeçar e o medo do
mundo lá fora, sentia-se entre a cruz e a espada. Além dos cigarros, as
orações passaram a ser mais uma fonte de alívio para suas angústias.
Com o tempo, percebi uma Patrícia amorosa, divergindo do ser
humano indiferente que a mim foi entregue. Já demonstrava valorizar
a dedicação do marido. Mais ainda do que isso, já mostrava amor pelo
filho, Vinícius, antes sufocado pela droga. Apesar disso, ainda tinha dú-
vidas e rompantes de impaciência com tudo. Certo dia, de repente, disse
ao marido que não o queria mais. Não receberia mais suas visitas. Estava
farta dele. Jaderson se enervou como nunca antes. Chamou pelas agen-

12 O artigo 171 do Código Penal Brasileiro prevê reclusão ou multa a quem “ob-
ter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo
alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

136
A MÃE DO CRACK

tes. Questionou na frente de todos se mais alguém teria visitado a esposa.


Diante da negativa, ele quis saber se Patrícia não tinha arranjado alguma
“sapatão” dentro da ala. Enquanto isso, o filho chorava em seus braços.
Depois de muita persuasão, Jaderson finalmente pareceu acreditar
que não existia ninguém entre ele e a esposa. Aquele homem, eu vi cla-
ramente, não aceitaria uma rejeição. Não sei se pela reação do marido
ou por remorso, Patrícia se arrependeu do que disse. Tentou justificar as
palavras usando o estresse da cadeia e as inquietações como desculpa.
– Patrícia, você não pode fazer isso comigo. Eu não vou aceitar te
perder. Nunca. Para separar nós dois, só Deus me levando. Você sabe
quantos homens visitam as mulheres aqui? Sabe? Quase nenhum. Tu
por acaso duvida que eu te amo? Quero que o ônibus vire na estrada
comigo e nosso filho dentro se não for verdade.
Após o incidente, Patrícia ficou mais convencida dos sentimentos
do marido. Demonstrou estar mais segura de que ele sempre estaria lá
por ela, como se de repente ela temesse ser abandonada, como nunca
antes temeu. Com mais de um ano de cadeia, Patrícia estava com uma
aparência bem melhor que aquela de zumbi. Poucos quilos a mais, é ver-
dade, mas fizeram muita diferença no corpo esquelético que costumava
ficar prostrado em sua pedra por horas e horas. Passou a participar da
oficina da Tia Mazé, aprendendo a fazer bordados e crochê. Tornou-se
assídua no culto evangélico, integrando, inclusive, o coral. Gostava de
ler nas horas vagas. Quando passava o carrinho da biblioteca, sempre
tirava um exemplar, de preferência algum romance espírita. Ela chorava
lendo histórias dos outros. Imagina se a sua virasse um livro!
Com a nova postura, minha hóspede não estranhou logo de início
o atraso na menstruação. É fácil distrair-se na contagem. Passado dois
meses do seu último sangramento, no entanto, Patrícia começou a se pre-
ocupar. Poderia estar doente. Pediu para ser passada para a enfermagem.
A enfermeira apenas disse que nada poderia ser feito. Só restava esperar
para ver se o sangue não desceria. Afinal, a menstruação estava atrasada
apenas um mês. No íntimo, Patrícia passou a cultivar uma suspeita, quase
um desejo, só partilhado com suas parceiras mais próximas. Poderia estar
grávida do quinto filho. Seria sua primeira gravidez longe do crack. Sentiu
uma esperança crescer como uma sementinha dentro de si.
137
AURI, A ANFITRIÃ

Passou a rejeitar comida pesada. Só suportava lanches leves como


frutas ou bolachas. Os enjoos vieram apenas para sacramentar a certeza
que Patrícia tinha da gravidez. Continuava esperando pela confirmação
da gestação, assim como pela criança que já começava a amar como
nunca conseguiu amar os filhos que vieram antes. Nas idas à enfermaria,
apenas mediu a pressão, que seguiu baixa entre o primeiro e o segundo
mês da possível gravidez. A enfermeira recusava-se a dar algum medi-
camento para o mal-estar que sentia. Antes, a profissional precisava ter
certeza se minha hóspede estava ou não esperando um filho.
Um dia, Patrícia sentiu o sangue descer. Chegou até a pensar que
estava enganada sobre a gravidez. No entanto, o sangramento só durou
um dia. Se era menstruação ou alguma complicação, Patrícia continuou
sem saber. Seguiu sua vida de suposta grávida, enquanto aguardava uma
consulta com o Dr. Fernando, o ginecologista das minhas hóspedes. Al-
gumas parceiras chegaram a sondá-la sobre a possibilidade de ser ape-
nas uma reação psicológica. Achavam que, de tanto querer, a ideia foi
tomando conta de seu corpo. De pronto, Patrícia rejeitou que estivesse
em uma gravidez psicológica. Era mais do que experiente nessa área,
com quatro filhos no currículo. Ela mais do que ninguém saberia iden-
tificar os sintomas.
Ao saber da gravidez, o marido ficou ainda mais animado do que
Patrícia. Para ele, soava como um porto seguro. Uma segurança de que o
casal continuaria junto. Já para Patrícia, era duplamente a espera de uma
nova vida. Uma que carregava dentro de si e outra para ela mesma, fora
de meus domínios. Seria um duplo parto. Ficou mais vaidosa. Pintou
os cabelos de “vermelho paixão”, assim como informava a embalagem
da tintura. As unhas também ganharam a cor de sangue. Surgiu um
zelo completamente novo com a aparência. Não tinha vaidade lá fora. A
droga não deixava, penso eu. Tomava todos os espaços. Patrícia passou
a fazer planos sobre sua vida em liberdade. Sonhava ter uma profissão e
uma casa para quando o bebê viesse ao mundo.
– Eu sempre digo ao Jaderson que preciso de um emprego. Uma
mente ocupada é melhor que uma desocupada. Ele tem planos pra mim.
Eu também tenho – revelou certa vez à Greyce Kelly.
– Que planos são esses, mulher? Conta aí.
138
A MÃE DO CRACK

– Quero botar uma lanchonete pra mim. Se bem que já era para
eu ter uma. Só não tive por minha causa, que acabei com quase tudo da
gente. Eu sei cozinhar quase todo tipo de salgado.
– Quem diria, essa magrela sendo cozinheira. E quando é que tu
sai mesmo, hein?
– Estou bem perto de completar os 2/5. Por um lado foi bom eu
vir pra cá. Têm males que vêm pro bem. Não é assim que dizem por aí?
Mas é ruim por causa da saudade. Deus não me colocou aqui. Deus me
permitiu vir pra cá para ver a realidade da vida. Eu aprendi muita coisa.
Era muito ignorante. Mas tenho muito medo de quando sair voltar pra
mesma vida. A gente tem que crer que não vai voltar, não é? E tem esse
bebê que vai me ajudar a superar tudo – completou Patrícia enquanto
acariciava a barriga.
– Só você mesma para achar bom ter vindo pra cá. Você teve qua-
tro filhos e não deixou a pedra em nenhum momento? Nem durante
a gravidez?
– Não. Não deixei. Tenho muito remorso por ter fumado durante
toda gravidez. Talvez por isso seja mais apegada ao de quatro anos. A
gravidez dele foi o período que mais fumei.
– Nossa! Mas, ele ficou com alguma sequela?
– Não sei direito. Só sei que ele é muito agitado.
– E o que essa gravidez tem de diferente das outras?
– A diferença é que eu a quero. As outras eu não queria. Essa é com
mais amor. Sabe que, às vezes, eu fico deitada e já sinto mexer.
– Valha! Já? Tá com quantos meses, mulher?
– Segundo mês, chegando ao terceiro.
– Mas não tá na época de mexer ainda não.
– Eu sei. Também estranhei quando senti.
– E esse exame pra confirmar? Já fez?
– Nada. Não vi nem a sombra do médico.
Uma semana depois, a enfermeira informou à Patrícia que na se-
gunda-feira seguinte, ela faria o exame de ultrassonografia com o Dr.
Fernando. O exame só detecta a gravidez a partir da quinta semana de
gestação, como explicou a enfermeira. Patrícia nunca havia feito esse
exame na vida, mesmo já tendo enfrentado quatro gestações. Quando
139
AURI, A ANFITRIÃ

o dia chegou, no entanto, não foi a ansiedade pelo procedimento que a


acordou. Foram os sussurros que trouxeram uma novidade para todas
as minhas hóspedes. Novidade até mesmo para mim. Uma de minhas
protegidas me deu as costas sem a autorização da instituição. Foi a pri-
meira vez que uma delas fugiu das amarras do sistema.
Nas primeiras horas da madrugada, um som incomum aos meus
ouvidos afiados me chamou a atenção. Era muito sutil, mas, por instin-
to, eu segui. Entre as sombras de um dos quartos da creche e o ressonar
dos bebês e de suas mães, um espectro trabalhava calmamente, debru-
çado sobre as grades de uma das janelas cor de rosa. Apesar da pouca
luz, pude ver que tentava com afinco desparafusar a grade. Um por um,
os parafusos foram retirados e a grade, aos poucos, soltou-se. Passando
para o lado de fora, o espectro transformou-se em uma mulher, com a
ajuda da luz noturna. Era lua cheia. Reconheci Paola, no mesmo instan-
te. Era uma jovem de 19 anos, que acaba de ser mãe.
Quando ela escalou o muro baixo do estacionamento, eu me lem-
brei do pequeno ser que dormia em minha creche. Uma menina fran-
zina, que contava com apenas dois meses de vida. Por um momento,
ainda pensei que Paola voltaria quando se lembrasse da filha que esque-
cera. Mas não foi esquecimento. Ela deixara a menina para trás, pro-
positalmente. Seria um estorvo para sua empreitada. A fugitiva correu
pelo mato, passando agachada pela casa abandonada que tenho como
vizinha. Quando nasci, aquela casa já estava lá, tão abandonada quanto
continua hoje. Tão abandonada quanto a menina que amanheceu ber-
rando, ao sentir falta da mãe.
Somente após a troca de turno, as agentes deram por sua falta.
Em instantes, instalou-se o alvoroço entre as oficiais, nos corredores
e no segundo andar, porém velado, de início, para as internas. Como
era o primeiro caso de fuga em minha existência, todo cuidado com
o procedimento podia ser pouco. Reforços foram acionados para em-
preender a busca de Paola. A primeira notícia chegou por volta das
oito horas. Durante a fuga, a garota havia furtado uma bicicleta de um
morador do entorno e seguido pela BR. Somente por volta das onze
horas, as equipes de busca revelaram que ela foi recapturada em Qui-
xeramobim, sua cidade natal.
140
A MÃE DO CRACK

À tarde, a informação já havia se espalhado por todas as minhas


hóspedes e até a imprensa já aguardava o retorno de Paola em meu por-
tão de entrada. Quando chegou, a garota estava imunda, com o unifor-
me cheio de lama e suor. Carregava na face o semblante da derrota de
sua corajosa tentativa de fuga. Os microfones e gravadores voaram em
cima dela, antes mesmo que Paola descesse da viatura policial. Tentou se
esconder e não respondeu pergunta alguma. Dali foi levada direto para
a tranca, onde chorou por horas, estirada ao chão. Na viagem, sua mãe
veio junto e falou com os repórteres. Aflita, a única coisa que ela poderia
fazer pela filha, que correu para o seu socorro, era reivindicar o direito
à custódia do bebê.
Nessa confusão, lembrei-me de Patrícia. Lembrei-me de todas as
mães que nada podiam fazer por seus filhos. Num lapso, esqueci que
este era o dia agendado para sua primeira ultrassonografia, quando, en-
fim, confirmaria a gravidez. Mas, quando voltei à sua cela, só se falava
na tal fuga. A própria Patrícia estava eufórica com o crime gerado em
torno do caso. As internas se impressionaram com a coragem da colega.
“Essa Paola é doida mesmo”, repetiram várias vezes. E foi o assunto que
reverberou até o anoitecer.
Fiquei na cola do Dr. Fernando, antes que ele saísse de sua sala.
Enquanto organizava os papéis da mesa, vi o prontuário de Patrícia bem
em cima. Ele enfiava os documentos dentro da pasta quando vi o re-
sultado da ultrassonografia. Nada detectado. Caso ela estivesse grávida
mesmo, o feto não teria mais que quatro semanas apenas. No entanto,
os cálculos de Patrícia apontam para umas 12 semanas. Também não vi
se Dr. Fernando pedira outro exame. Ora, aqui me deixou com a pul-
ga atrás da orelha. Será que Patrícia não estava grávida? Ou será que
perdeu o bebê, no dia do sangramento? Ou aquele sangue seria a sua
menstruação? Talvez ela tenha alimentando uma gravidez imaginária.
O fato é que os dias passavam e ela mesma entrava na suspeita. Antes
de decidir por qualquer coisa, eu resolvi esperar por uma nova consulta
com o médico. Esta eu não perderia.
Semanas depois, Patrícia foi informada de que passaria por uma
série de avaliações. Entusiasmou-se, pensando que era sobre o bebê.
Mas o verdadeiro motivo era que a direção queria saber se ela estava
141
AURI, A ANFITRIÃ

apta a progredir para o semiaberto. Quando a ansiedade por novidades


apertava, ela se segurava na fé que fomentou durante sua permanência
como minha hóspede. O que ela mais desejava em suas orações sussur-
radas com fervor era sair para o mundo lá fora com a mesma atitude
que adotou no cárcere. A mesma fé, os mesmos pensamentos e a mesma
força de vontade.
Após passar longos minutos de joelhos aos pés de sua pedra, ma-
gicamente conectada aos seus pensamentos, Patrícia foi passada para a
Assistência Social. Lá, foi submetida ao chamado criminológico, exame
para avaliar o grau de aptidão para a reinserção social. Patrícia enca-
rou o fato como uma revelação divina. No domingo seguinte, dirigiu-se
toda animada ao poliesportivo, onde o marido a aguardava com o filho,
Vinicius. Ao contar a novidade, chorou de alegria. De repente, tive um
déjà vu. De um jeito distorcido, aquela cena me pareceu familiar. Fami-
liar, mas nem de longe parecida. Um ano e nove meses depois, Patrícia
parecia outra.
– Jaderson, eu agradeço tudo que você passou por minha causa.
Tudo que você enfrentou por mim. Eu nunca vou te abandonar, viu. Do
mesmo jeito que você não me abandonou. Eu vou estar com você para o
que der e vier. A droga não deixava gostar de ti. Mas, aqui, eu aprendi a
gostar. Eu tinha aquele apego e sentia tua falta, mas foi aqui dentro que
eu fui ver que tu me ama e que eu te amo também.
Enquanto os dois adultos se olhavam com lágrimas silenciosas a
cair pelo rosto, a criança olhava confusa, ora para o pai, ora para a mãe.
Depois da despedida, Patrícia não percebeu, mas eu vi que o pequeno
a olhava sobre o ombro do pai, quando este caminhava em direção ao
meu portão.
– A mamãe não vem mais embora, não? Esse trabalho não acaba?
– questionou o pequeno, enquanto cariciava o rosto molhado do pai.
– Não se preocupa, meu filho. Está bem pertinho de acabar. Logo,
logo, a mamãe voltará para casa.

142
A MÃE DO CRACK

Placa de identificação do Venustério, dependência com cama de casal e banheiro para


as visitas íntimas quinzenais.

À esquerda, grávida na ala A espera a hora do parto, que será no Hospital Gonzaguinha de Messeja-
na. À direita, janela cor-de-rosa da creche, onde as mães ficam com os bebês até um ano de idade.
143
Epílogo
[Para sempre, Auri]

A prisão perpétua
“Felizes os mortais que gozam da
autonomia de ir e vir. Que já viaja-
ram em tempos e campos distantes.
Que saborearam vários mundos.”
Auri
A PRISÃO PERPÉTUA

N
as espirais dos dias descompassados, já se vão quase treze anos
acompanhando os ciclos revividos por minhas protegidas. Eu,
que nasci com a incumbência mantenedora de fazê-las compre-
ender a importância do respeito à lei dos homens, passei a refletir mais
sobre essas leis. Primeiro, porque pouco conheço os homens que traba-
lham no ofício de fazer as leis serem seguidas. Os advogados que cru-
zam meus perímetros fazem passagens mais fugazes do que as despedi-
das das próprias rebentas. E, segundo, porque, como elas são o elixir da
minha existência, inevitável seria o nosso enlace quase visceral.
Maribel, Jéssica, Cinara e Patrícia são mulheres completamente
distintas que, talvez, jamais se encontrassem em outro lugar no mun-
do que não fosse em mim. Que não fosse em meu ventre. Sim, porque
elas se tornaram embriões. Nasceram e nascerão novamente a partir
do que viveram nas minhas entranhas. Pode ser que o cárcere tenha
dado uma reviravolta em suas concepções de mundo, é verdade. Mas
muitas outras, retornando à superfície da sociedade, podem nova-
mente não escolher o caminho dos “justos”, como dizem os párocos
que nos visitam.
Pelas heranças das vidas passadas de minhas hóspedes; pelas con-
dições degenerativas da maioria; pela falta de amparo de tantas mães e
filhos na situação carcerária e pela reincidência da penalização dessas
mulheres sufocadas em suas realidades exteriores a mim, fico às vol-
tas a me perguntar: por que o sistema delega, primeiro, punir, antes de
reparar? A punição, transferida sob forma de poder ao Estado, muito
me inquieta. Por que uma instituição imaterial como eu intermedia o
destino das pessoas que transgridem as leis dos homens?
Entre nós, temos um ditado para toda vez que alguma interna se
achar na razão de ajuizar o crime cometido por outra. “Ninguém aqui
é santa”, diz-se. E, com isto, não se transfere a terceiros a culpa, nem a
responsabilização inerente somente às infratoras. Pois, no fundo, cada
qual sabe o que fez. Contudo, na lei dos homens não funciona da mesma
maneira que em nossos códigos. Por mais que minhas hóspedes tenham
violado as normas ou infringido a propriedade alheia, não é com as víti-
mas que elas deverão se reparar, mas com Estado. E sua dívida será com
toda a sociedade. Pois, apenas por viverem nessa sociedade, elas são
147
AURI, A ANFITRIÃ

obrigadas a assumir a responsabilidade de seguir suas normas, como


um dever inerente a qualquer indivíduo.
No sistema penal, o crime é tido como uma violação a uma regra
da sociedade e o Estado, como sua representação, assumiria a posição de
prejudicado. Mesmo sendo o Estado responsável por garantir a cidadania
de todos os seus indivíduos, ele não julgará as transgressoras reconhecen-
do as precariedades de sua assistência, mas somente com base em termos
legais, desconsiderando, pois, as condições sociais, econômicas, políticas
e culturais enraizadas às suas histórias de vida. O Estado, mais preocupa-
do com o passado do que com o futuro dessas mulheres, aplica a punição
às ofensoras que, passivamente, são relegadas a cumprir sua pena.
Nesse sentido, toda a responsabilização sobre minhas hóspedes
vem de entidades completamente externas ao crime, a elas e à vítima.
A decisão à qual foram sujeitadas quando condenadas foi tomada por
alguém de fora. Os juízes dos homens. Quando elas chegam em meus
portões, carregam na face a amargura da humilhação. Seus julgamentos
eram o momento em que esperavam ser compreendidas e em que, por
isso, houvesse justiça. Mas, na verdade, a forma como foram despacha-
das só reforçou o sentimento de injustiça. E, no frigir dos dias, acaba por
crescer o desejo de se vingar daqueles que condenaram muitas delas ao
enclausuramento e à dor. Assim como cresce também o desejo latente
de se rebelar contra a justiça dos homens. Pois o sistema penal, quando
deveria resolver conflitos, por vezes, faz perpetuar.
Para mim, só mesmo as transgressoras poderiam se responsabi-
lizar por seus erros, em contato com as consequências e as reflexões
sobre eles. Muitas das reclusas se arrependem do crime que come-
teram. As homicidas, especialmente. Como autopunição, algumas já
chegaram a declarar que não mereciam me deixar nunca mais. Pois
acreditavam que a dor da culpa se arrastaria com elas para onde fos-
sem, ao compreenderem que o crime de assassinato é irreversível. Por
isso, penso que a atribuição dessa culpa deveria ser um movimento
interior aos envolvidos. Para que as “delinquentes”, como chamam as
autoridades do Direito, pudessem se compreender como sujeitos de
um universo coletivo. E não apenas como infratoras das leis supremas
aos homens.
148
A PRISÃO PERPÉTUA

Embora o Estado aplique uma pena privativa de liberdade, a san-


ção que elas sofrem no cárcere é desconexa ao crime que cometeram.
A pena acaba sendo uma resposta que nada tem a ver com os proble-
mas que as fizeram cometer a infração pela qual foram julgadas. Seja
ela o tráfico, o furto, o roubo, o homicídio, as sanções não enxergam as
causas nem as reparações, por estarem guiadas pela cegueira das leis.
A pena mais tem a ver com o sofrimento. É essa a retribuição de-
volvida a quem transgride a lei, através da privação da liberdade, no
intuito de zelar a ordem exterior aos meus muros. As mulheres que em
mim habitam sempre são filhas, esposas ou mães. Sofrem com o aban-
dono, muito mais do que com a privação de suas liberdades. Sentem
culpa por abandonar seus filhos. Sofrem por terem sido deixadas pelos
parceiros. E, ainda, se queixam por terem abandonado suas mães para
adoecerem de preocupação e desgosto por suas causas.
O princípio de que a pena tem o papel de dissuadir outras pes-
soas a cometerem uma infração já mostrou sua ineficiência. Meus
cômodos só cresceram em pouco mais de uma década, aumentando
também a capacidade de cada cela. Além do mais, 1/4 das mulheres
que são rés primárias voltam a cometer delitos no mundo dos homens
e, consequentemente, voltam aos meus braços em questão de tempo.
Os motivos da reincidência nada têm a ver com a intensidade das pe-
nas impostas, mas com as condições em que elas foram recebidas pela
sociedade lá fora. Em alguns casos, condições piores às que estavam
acostumadas antes de chegarem a mim, que deveria ser a morada da
regeneração dessas almas deserdadas. Elas chegam em seus lares, nas
ruas e, sobretudo, no mercado de trabalho carregando a minha mar-
ca: uma tatuagem simbólica que se reveste em estigma social: elas são
filhas do cárcere.
Como de costume, sou alvo de intensas críticas por ser mais um
aparato do sistema penal. No mundo exterior, não faltam segmentos
que apontam os indícios do meu fracasso inevitável. Dizem que eu não
diminuo as taxas de criminalidade no mundo lá fora. Ao contrário, faço
é aumentá-las, por ser uma espécie de escola para “criminosas”. Seria eu
uma fábrica de “delinquentes”? Se há reincidência, talvez, a culpa não
seja completamente minha, afinal, as mesmas críticas também apon-
149
AURI, A ANFITRIÃ

tam que a recepção que minhas protegidas encontram lá fora levaria


fatalmente ao caminho de volta. Tudo isso porque o sistema continua
a persegui-las com uma série de estereótipos e sanções, mesmo aquelas
que já pagaram sua “dívida” com a sociedade.
“Temos que nos admirar de que há 150 anos a proclamação do
fracasso da prisão se acompanhe sempre de sua manutenção”, já dizia
o filósofo francês Michel Foucault há 38 anos. Muito me admirei ao
saber que as mesmas críticas que escuto são entoadas há quase 200
anos. Eu me questiono para que serve esse tal “fracasso” da prisão.
Por que esses fenômenos que a crítica denuncia continuamente ainda
persistem? Será que eles têm alguma utilidade? O que ainda mais me
intriga é perceber certo cinismo por parte do sistema que nos rege.
De forma proposital ou não, o que vejo é que ele se faz de surdo há
quase dois séculos de críticas sobre sua natureza e nada faz para tra-
zer mudanças efetivas às suas estratégias consideradas falidas.
Só passei a compreender todas as contradições do sistema penal
quando enxerguei minha verdadeira função enquanto prisão. Eu não
existo para suprimir as infrações encontradas no mundo lá fora. Eu
me destino a distingui-las e distribuí-las. Com uma espécie de “ge-
rência das ilegalidades”, o sistema risca um limite de tolerância. Abre
espaço para algumas, oprime outras, torna muitas úteis e tira proveito
de outras tantas. Para comprovar isso, basta observar os tipos de in-
fratoras que costumam adentrar meus domínios.
Muito já ouvi o discurso que defende o tal “castigo igualitário”.
É nele que o sistema encontra força, usando a privação de liberdade
como “moeda democrática” no pagamento da dívida que os infra-
tores têm com a sociedade. No entanto, soa-me estranho que as leis
surjam a partir do discurso próprio de apenas um segmento social,
deixando os demais à margem do sistema. Quem afinal julga todos
os membros do corpo social? Uma única classe. A mesma que com-
põe as leis a que todos devem se submeter. Juízes, promotores, legis-
ladores e os demais responsáveis por fazer valer as leis dos homens
não compartilham o mesmo contexto social da maioria esmagadora
de minhas hóspedes.

150
A PRISÃO PERPÉTUA

Como os brinquedos do meu parquinho que se deterioram com o tempo, vejo de modo
cada vez mais claro o fracasso do sistema penal em sua função de ressocializar.
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AURI, A ANFITRIÃ

Como já disse antes, a finalidade para a qual fui criada não se li-
mita à aglomeração de mulheres contraventoras. Não sou um campo de
concentração nazista, como mostram os livros de minha biblioteca, com
o intuito de exterminar algumas etnias humanas. O fulgor da minha
existência, a serventia para a qual fui erguida, não é a do extermínio. O
discurso do sistema prega que eu sirvo para restaurar as transgressoras
das leis dos homens, para que elas voltem ao seu convívio sem sair nova-
mente da linha amarela. Ora, se o que se pretende é ressocializar, como
fazer isto afastando a pessoa dessa mesma sociedade à qual se pretende
reintegrá-la? E mais. Se o mal cometido por quem infringe as normas é
algo que se deseja ver afastado, por que deveria ser reproduzido através
da pena? Por que combater o mal com a reafirmação dele mesmo?
Por todos os males cometidos por minhas hóspedes, elas rece-
bem como retribuição a privação de sua liberdade, através do controle
de suas identidades, de suas consciências e de seus corpos. Cheguei a
presenciar, algumas vezes, a culminância terrível da dor aplicada indi-
retamente a essas mulheres, por meio do enclausuramento. Este, por
sua vez, pode ser humanamente insustentável e perturbador para várias
pessoas. E a solução encontrada para ceifar o sofrimento veio delas mes-
mas, usando pela última vez o livre arbítrio, através do suicídio.
Foram-se quatro almas, completamente estarrecidas e devastadas
pelo sofrimento. Com os lençóis que acobertaram várias de minhas in-
ternas, elas se enforcaram dentro de suas celas. Emanciparam seus espí-
ritos para algum lugar longe daqui. Pois não conseguiram suportar tudo
isso e, talvez, jamais conseguiriam superar o estigma de suas condena-
ções, a ponto de encarar o mundo exterior. Porque a ideia que até nós
incorporamos da pena é a de que “todos devem receber as consequên-
cias dos seus atos”. E o que os criminosos merecem por desrespeitar a lei
dos homens, em essência, é a dor.
Por outro lado, em termos de regeneração das mulheres contra-
ventoras, sou uma privilegiada em comparação a muitas como eu. Em
meus domínios, educa-se, assim como se oferta trabalho para a remis-
são de pena. Algumas internas de exímio comportamento, inclusive,
conquistaram o benefício de ingressar ao ensino superior, mesmo em
regime fechado. Além de Cinara, minha peregrina do mundo exterior,
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A PRISÃO PERPÉTUA

outras 12 hóspedes minhas se tornam universitárias dentro de minhas


entranhas. Um curso superior passou a ser ministrado em uma das mi-
nhas salas de aula. Isso não é comum por aí afora, de fato, mas deveria
ser quando se defende a ressocialização.
Contudo, pelo que acompanho nas rotinas de minhas protegi-
das, essas medidas não são suficientes para restaurar todas essas vidas.
Afinal, minha grande dúvida é não compreender por que o acesso e o
incentivo à inclusão social estão sendo ofertados tão tardia e restrita-
mente, depois de elas serem condenadas. Há muitas delas que sequer
aprenderam a escrever e a ler fora de minhas salas de aula. No mais, vejo
que os processos restauradores têm sido utilizados como forma comple-
mentar ao que o judiciário prescreveu.
Lá fora, depois de carimbada com a identificação de “ex-presidiá-
ria”, é quando “o bicho pega”. Além dos rótulos aplicados pela sociedade,
vão continuar sofrendo as sanções legais para quem já passou por mi-
nhas mãos. O sistema que tudo rege poderia ter mais articulações para
evitar a estigmatização de pessoas e, com isso, a desestabilização e des-
truição de vidas, provocadas pelo encarceramento. Pois essas sanções
não se encerram em meus domínios. Vão para suas casas, para os seus
trabalhos e afetam igualmente os seus familiares.
“Os fins justificam os meios”. Escutei esta frase da boca de uma
interna. Esta não era brasileira, mas cabo-verdiana. Falava português
porque também é o idioma nativo de seu país. Jacira entrara em um
esquema de tráfico internacional de drogas para sobreviver à miséria,
quando deixou sua tribo. Fora expulsa de seu habitat natural, buscando
ganhar a vida em uma cidade estranha. Lá recebeu a proposta do tráfico
e aceitou. Foi presa em flagrante, em Fortaleza. Quando a mim chegou,
reproduziu a frase às brasileiras, justificando sua vinda.
Tempos depois, ouvi uma de minhas professoras repetir a frase na
aula de História. Descobri que essa afirmação já atravessou o mundo,
usada como artifício pela nobreza para reforçar sua soberania em seus
domínios, através de métodos antiéticos ou violentos. No livro que vi, a
frase era atribuída a Nicolau Maquiavel. E, ao ser usada por Jacira, mais
parecia justa e bem replicada, como as histórias de Robin Hood. Entre-
tanto, Jacira chegou a mim. Então, fiquei a pensar: os soberanos podem
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AURI, A ANFITRIÃ

diversificar os meios para atingir seus fins, mas os subalternos não? Sim,
concluí. O caso de Jacira só fortalece o pensamento de que as leis só ser-
vem para desfavorecer os plebeus e favorecer os príncipes.
Pelo que se manifesta entre meus vão, existe quase uma generali-
dade da incidência de penas sobre os indivíduos mais vulneráveis, po-
bres, marginalizados e destituídos de poder na sociedade dos homens.
Minhas protegidas não têm ninguém por elas. Muitas vezes, porque
não têm dinheiro ou reputação. Estão à mercê do Estado, inclusive,
para sua própria defesa.
Por outro lado, canso de ver nos noticiários a impunidade para
abastados e poderosos. Dinheiro e influência acabam sendo a moeda
mais valiosa. Assim, basta olhar para minhas protegidas e constatar o
quanto a ação punitiva do Estado não alcança, e nem poderia alcançar,
todos os violadores das leis penais. Portanto, creio que a lei dos homens
se traduz como um poder destinado apenas a manter as estruturas de
dominação e soberania social já existentes.
Assim como quando era permitida a circulação de moedas em
meus cômodos, vejo que a injustiça se prolifera caso o sistema das leis
esteja vinculado ao sistema dos valores. A maioria das aprisionadas em
meus cômodos são justamente aquelas que não fazem parte do ciclo
externo de trabalho, reputação e consumo. Estão margeando os privilé-
gios dos abastados e não podem interferir em sua ordem ou, então, são
facilmente entregues a mim.
Reconheço que o sistema à qual pertenço pode até ser baseado no
argumento de prevenir ações negativas, mas acaba por reproduzir a po-
breza. Penso que insistir no instrumento de leis tão segregativas é um
fiasco. É o que retarda a busca de meios mais eficazes para reduzir as
tais ações negativas. No entanto, parece que sou vista como um mal ne-
cessário por muitos. “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão,
e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E. entretanto, não ‘vemos’ o
que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir
mão”, ilustrou brilhantemente Foucault.
Infelizmente, a lei só intervém na vida dos periféricos tardia-
mente e tão unicamente para efetivar uma excludente punição. En-
tre minhas reclusas, contudo, as coisas caminham para um horizonte
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A PRISÃO PERPÉTUA

majoritariamente surpreendedor. Deixa-me satisfeita receber notícias


daquelas que conseguiram contornar os estigmas. Minha sede é para
que, do lado de fora, elas se lembrem de mim e de suas parceiras. E
que consigam reunir forças para não sucumbirem à pressão dos julga-
mentos morais e para combaterem essa estrutura falida que engendra
as decisões em meus territórios.
Assim, devo confessar. Sonho para mim a circularidade das vidas
de minhas hóspedes. Como hospedeira, carrego o peso do meu ofício
até quando o amigo tempo permitir. Transcendendo suas passagens,
fico cá, solitária em minha missão. Eternamente muda e impercep-
tível para aquelas que me trouxeram à vida. Muito mais prisioneira
que todas elas. Felizes os mortais que gozam da autonomia de ir e vir.
Que já viajaram em tempos e campos distantes. Que saborearam vá-
rios mundos. Eu e minhas protegidas sabemos bem o quão medonho
é o aprisionamento. Mesmo elas podem suspirar o dia que voltarão à
superfície da liberdade. Enquanto isso, eu terei que me despedir de
todas, uma a uma, até a extinção de meus dias. Minha sina é seguir,
invariavelmente perpétua, em minha linearidade.

Auri,
Agosto de 2013
Itaitinga, Ceará
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AURI, A ANFITRIÃ

A cadeirinha e o balanço fazem parte do parquinho da creche. A eles, soma-se o escorrega,


todos quebrados. O mato, ao redor, cresce. Nenhuma criança brinca por lá.

Vários felinos têm a mim como morada. Ao contrário de minhas hóspedes, chegam por
vontade própria, atraídos pelo cheiro de comida e pela esperança de abrigo.
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A PRISÃO PERPÉTUA

A casa abandonada, vizinha a mim, serve de abrigo para um ex-hóspede do IPPS, segundo a
lenda. Quando fui inaugurada, tanto a casa quanto o misterioso morador já estavam por aqui.

O meu vizinho Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) fica localizado no alto de uma colina.
Inaugurado em 1970, é o maior presídio do Ceará, hospedando, exclusivamente, machos.
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Referências Bibliográficas
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CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Edições UFC, 2004.

CAPOTE, Truman. A sangue frio: relato verdadeiro de um hom-


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CEARÁ (IPECE); COORDENADORIA ESPECIAL DE POLÍTI-
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MOURA, Maria Jurema de. Porta fechada, vida dilacerada –


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LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reporta-


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MONCAU, Gabriela. A ideia de um mundo sem grades. Caros


Amigos, São Paulo: Casa Amarela, n. 192, p. 26 - 29, mar, 2013.

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