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a anfitriã
Auri,
Caro leitor,
S
e eu fosse a dona desta casa, faria como uma de
a anfitriã
minhas protegidas em seus lares: convidaria a en-
trar e tomar um café. A conversa, certamente, pode
Aline Moura
ser longa. Contudo, não tenho autoridade para tal convite.
Isso está fora do meu alcance. Sou tão refém do sistema
que tudo rege quanto às mulheres que em mim vivem. Memórias do Instituto Penal Feminino
Eu, a própria prisão. E elas, minhas hóspedes. Prazer!
Chamo-me Auri. Gosto quando dizem que eu sou a an- Desembargadora Auri Moura Costa
fitriã. Estou aqui para convidá-lo a ler uma história. Na
verdade, um cruzamento ininterrupto de histórias. Elas
não são minhas, mas de minhas protegidas. Esqueça a
má fama construída por meus antepassados. Quero que
conheça meu labirinto através do que tenho a contar. Re-
Bárbara Almeida
sumida em minha impotência de abrigo, o que posso fazer
por essas mulheres é revelar as verdades usurpadas por
minhas paredes. Trago à órbita três crimes marcados pela
influência de terceiros. Namorados. Maridos. Amantes.
Venho oferecer as memórias revividas por Maribel, Jés-
sica, Cinara e Patrícia, mulheres que, ao desvendarem os
enigmas do passado, foram intensamente tocadas pelo
cárcere. Entre, mas não sente. Vamos passear pelas vi-
das das pessoas que dão sentido a minha existência.
De: Auri Aline Moura Bárbara Almeida
Auri,
a anfitriã
Auri,
a anfitriã
Memórias do Instituto Penal Feminino
Desembargadora Auri Moura Costa
Aline Moura
Bárbara Almeida
FICHA TÉCNICA
AGOSTO DE 2013
FORTALEZA , CEARÁ
Agradecimentos
Aline
Agradeço antes de tudo aos meus pais, Francisca e Benedito, pela
dedicação, cuidado e apoio; à minha irmã, Amanda; e ao meu sobrinho,
William. Dedico este livro também aos meus demais familiares, tanto
aos de Fortaleza quanto aos de Nova Iguaçu.
À Universidade Estadual do Ceará (UECE), que foi minha base,
e aos companheiros do curso de Letras. Aos amigos que me acom-
panharam desde o início dessa jornada que se chamou Universida-
de Federal do Ceará (UFC), Aline Lima, Fernando Wisse, Gabriela
Alencar, Ingrid Matela e Nina Ribeiro, e aos demais colegas da Tur-
ma 2009.2 do curso de Comunicação Social. Às amizades lindas que
construí pelos corredores da UFC e aos meus eternos conselheiros,
Ed Borges e Rochelle Guimarães.
À Tânia Alves, pela confiança de me enviar ao Miss Penitenciária
2012, onde encontrei a inspiração deste trabalho, e ao Plínio Bortolotti,
pelos ensinamentos e, principalmente, pelos puxões de orelha. Quero
mencionar os irmãos que ganhei em minha passagem pelo jornal O
Povo, Thaís Brito, Thiago Paiva, Danilo Castro, Lusiana Freire, Marcos
Robério, André Victor e Mauri Melo, e os diversos filhos que ganhei
através do projeto Novos Talentos.
À Bárbara Almeida, minha eterna parceira, pela segurança e pela
maturidade que me passou durante os meses de mergulho neste mundo
chamado Auri.
Bárbara
Agradeço, primeiramente, à minha família. Aos meus pais, Odilo e
Mazé, e também aos meus irmãos, Pedro e Vítor. Pelo amor e dedicação,
assim como pela visão de mundo que sempre alimentaram nossas rela-
ções. Devo a vocês o que esta obra significa em minha vida. Obrigada
por terem me acompanhado tão de perto.
Aos demais familiares, tios, tias e primos, minha gratidão pelo
apoio e entusiasmo. Dedico esta obra à Dona Mirtes, minha amada
avó, e também à Dona Mariquinha, um beija-flor que se alimenta de
doce amor em nossas memórias.
Agradeço ao Davi, meu namorado, pela confiança e estímulo. Ao
meu lado, sempre abriu portas para mundos curiosos e me instigou a
novas descobertas. Também quero mencionar os amigos que mergu-
lharam nessa viagem. São muitos, entre eles, Daniel Muskito, nosso fo-
tógrafo, Edson Feitosa, que fez filmagens, e também Ed Borges, nosso
talentoso designer gráfico.
À Aline Moura, companheira de outras andanças, agradeço pela
confiança nesta parceria e pelos ensinamentos que me concedeu com
sua amizade. Sua importância na minha vida agora é marca imortal.
As autoras
Agradecemos, de antemão, àquelas que nos receberam em suas
vidas. Às mulheres que se dispuseram a abrir suas feridas e suas pai-
xões, na esperança de semearem dias melhores a quem respira o mun-
do do cárcere. Mergulhar em suas realidades foi, simplesmente, fasci-
nante e revelador.
À Naiana, nossa orientadora, nossos sinceros abraços. Sabemos do
esforço para nos acompanhar nessa investigação, por isso, agradecemos
a paciência e a dedicação. Suas observações sempre nos salvaram da
escuridão e nos trouxeram à luz de felizes escolhas.
Aos queridos Ed Borges, responsável pelo belo e sensível projeto
gráfico deste livro, e Daniel Muskito, que com sua fotografia experimen-
tal nos proporcionou um novo olhar sobre a vida marginal. Não poderí-
amos ter escolhido pais melhores para a nossa filha, Auri.
À Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará, pela
atenção e disponibilidade, e à direção e demais funcionários do Ins-
tituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, por nos
receber de braços abertos.
Ao Plínio Bortolotti, à dona Mazé e aos demais amigos e familiares
que se dispuseram a ler nossos rascunhos e a ser nossos primeiros leitores.
[Auri]
Prólogo . . . . . . . . . . . 24
[Maribel e Jéssica]
As estrangeiras . . . . . . . . . 38
[Cinara]
A amante dos livros . . . . . . . 72
[Patrícia]
A mãe do crack . . . . . . . . 108
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AURI, A FILHA DE DUAS MÃES
para falar dela, nos moldes que eu gostaria. Quando começou o período
de matrícula, uma ideia latente passava a povoar meus pensamentos.
Não parava de pensar na riqueza de histórias que aquela penitenciária
do tema de Aline poderia retratar. Segurei a ansiedade por alguns dias,
até que não aguentei. Sentei com Aline e fiz a proposta. Queria saber se
ela aceitaria dividir sua pesquisa comigo. Como parte da proposta, ela
precisaria comprar não só a mim, mas também a penitenciária como
narrador em primeira pessoa. Para minha sorte, ela disse sim.
vistadas. Foram duas entrevistas com cada uma. Exceto por um delas,
a mais falante de todas. Com essa, foram três entrevistas de quase duas
horas. Cada uma de nossas entrevistadas tinham características peculia-
res. Com uma, tínhamos que ser insistentes para conseguir adentrar um
pouco em seu mundo. Era mais fechada. Outra, já bem falante e caris-
mática, parecia querer convencer em sua fala. Outra conseguia dominar
a entrevista com maestria, chegava a discursar, de tão bonitas que eram
suas respostas. Por último, tinha a entrevistada mais tranquila de todas.
Falava de boa sobre tudo, com um jeito engraçado, apesar da escuridão
que sua história envolvia. Além delas, também conhecemos, em conver-
sas rápidas, professoras, agentes, demais funcionários e outras internas.
Vários elementos da pesquisa de campo ficarão marcados em nossa
memória. A estrada que nos deu ainda mais sede. Sentíamo-nos aventu-
reiras. A adrenalina sempre percorria nossas veias nas viagens até Itaitin-
ga. A vista do complexo penitenciário, imponente de longe e de perto. A
casinha cor-de-rosa diante do estacionamento. A espera na recepção que
nos dava tempo para observar o cotidiano daquele local. O exame com o
detector de metal. A passagem pelo portão. O infinito corredor de pare-
des rosas que tínhamos a nossa frente. O barulho do trabalho. Tudo isso
ajudou a construir o universo da nossa narradora, a Auri.
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AURI, A ANFITRIÃ
Boa leitura!
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Prólogo
[Auri]
Eu, a hospedeira
de memórias
“Tem gente que vira bicho.
Gente que vira anjo. E até quem
subverte todos os sentidos.”
Auri
EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS
É
difícil falar de si mesma. Ainda mais quando nem sei ao certo o
que sou. Apenas camadas de concreto ou algo mais espiritual? A
única certeza que tenho é a de que minha existência só encon-
tra sentido nas criaturas completamente orgânicas que habitam meus
labirintos. Apenas quando aqueles seres, à época estranhos, passaram
a circular por meus cômodos, foi que realmente me dei conta da mi-
nha própria existência. A cada fêmea que adentrava meus limites, mais
eu parecia ganhar vida. O turbilhão de histórias que com elas vieram
passou a agir como um plasma mágico em minhas veias atrofiadas. O
pulsar dessas histórias ganhou velocidade a ponto de fazer meu coração
de cimento bater pela primeira vez. À medida que meu coração pulsa-
va, mais longe fazia chegar esse plasma até atingir meu cérebro. Com
ele, meus olhos e ouvidos se abriram para tudo que acontecia em meus
domínios. Eu, herdeira de um dos ofícios mais hediondos da humani-
dade, assumi a responsabilidade de acalentar essas almas berrantes com
a minha proteção.
Do alto e ao redor, vivo a cercá-las. Vim a lume porque dei à luz
junto com muitas delas. Sou uma extensão de suas maternidades. A par-
tir de então, capto tudo ao meu redor. Consumo as histórias como um
alimento. Sinto que o pulsar de vida em mim só aumentou nos meus 13
anos de existência. Ironicamente, a única coisa que esse pulsar não des-
pertou foi minha boca. O que quer que tenha me dado o dom de existir
pareceu ter se esquecido de me dar o dom de comunicar. Pelo menos até
agora. Sim, porque agora chegou a minha vez de falar o que vi, ouvi e até
mesmo senti. Compartilharei o que aprendi com as mulheres que pas-
saram a transitar por meus corredores, a habitar meus cômodos e a dar
vida a cada extremidade do meu corpo de concreto. São elas o sangue
que percorre minhas veias. Eu sou a anfitriã, e elas, minhas hóspedes.
Você, meu convidado neste dia de visita especial. Se apreciar, quem sabe
possa me visitar mais uma vez ou mesmo se tornar hóspede, mas se for
uma fêmea, é claro. Meu papel é de abrigo. Por isso, não posso rejeitar
cor de pele, classe social ou orientação sexual. Todas serão sempre, na
eternidade do meu existir, muito bem-vindas.
Fico localizada às margens de uma rodovia federal, especificamente
no km 27 da BR 116. O município é Itaitinga, localizado na Região Me-
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AURI, A ANFITRIÃ
Com esta ampliação, minha capacidade subiu de 134 vagas para 374. No
entanto, como sou generosa, o número de hóspedes sempre é superior
a 400, por pouco não batendo a casa dos 500. Minha população é bem
flutuante. Nunca tive ou terei um número fechado, porque acolho, além
das mulheres já condenadas, aquelas que estão sob minha custódia de
forma provisória, aguardando o julgamento dos homens. Se existir de-
veras esse lance de “destino”, toda mulher em conflito com a lei pode
estar certa de que, se as coisas derem errado, seu desaguar será em mim.
Certa vez, vi em um noticiário na televisão que menos de 10% das
pessoas presas no Ceará são mulheres. Talvez, isso explique coisas bi-
zarras que costumo ver na burocracia do sistema que rege o transcorrer
das coisas em meus domínios. Exemplo disso é a ficha de identificação
inicial das minhas hóspedes, que chega a perguntar se elas possuem bar-
ba e bigode. Por mais caracterizadas de macho que muitas sejam, sei que
são fêmeas, porque todas menstruam. No entanto, não se engane. Ser
mulher vai muito além do que sangrar todo mês.
O sistema que tudo rege foi quem ainda não percebeu as especi-
ficidades de ser mulher. Por tudo que já vi, acho que essa entidade que
nos controla, a mim e a minhas hóspedes, engatinha lentamente para
compreender a minha lógica interna. Afinal, sou muito mais do que es-
tas paredes rosas e do que os concursos de beleza realizados em meus
territórios, como o “Miss Penitenciária” ou o “Auri Beleza”. Por outro
lado, estou muito bem cotada entre minhas primas de outros estados.
Já ouvi muitos elogios a meu respeito. O principal é o fato de ter sido
construída especialmente para o fim a que até hoje me proponho, o de
ser uma penitenciária. Não sou apenas um prédio adaptado para servir
de depósito de mulheres, como foi o caso daquela velha Auri que me
antecedeu. Disso, pelo menos, eu me orgulho.
Orgulho-me, principalmente, por tomar como missão devolver
minhas protegidas mais amadurecidas e cidadãs para a sociedade dos
homens. Independentemente da eficácia do método utilizado pelo sis-
tema que tudo rege, muitas se transformam, mudando as concepções
sobre si mesmas e sobre suas existências. Algumas, quando liberadas,
chegam a retornar para meus vãos numa missão diferente: a de traba-
lhar e, ao mesmo tempo, ajudar suas antigas parceiras, como egressas.
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AURI, A ANFITRIÃ
Porém, várias não são impactadas por algo que as faça crer que o mundo
exterior lhes receberia de forma diferente da hostilidade costumeira.
Sobre minha cartografia, tenho um muro com mais de cinco me-
tros de altura em minhas extremidades, lembrando uma antiga forta-
leza, além de 11 guaritas de segurança distribuídas por todo o meu pe-
rímetro. Contudo, apenas uma é usada com o objetivo óbvio de vigiar
meus domínios. Em meus limites, gosto de sentir os ventos que correm
trazendo a esperança das visitas, as notícias das cidades vizinhas e as
trabalhadoras cativas. Na minha entrada, quem chega logo dá de cara
com a sala da recepção, seguida de uma escada que leva ao piso su-
perior, onde ficam as cabeças que administram a rotina de tudo que
acontece por aqui. Logo após a escada, têm um detector de metal e um
grande portão de ferro.
Ultrapassando aquele limite crucial, dá-se com o meu corredor
central. Ele é plano e liso, seguindo reto muitos metros a diante, quan-
do faz uma curva à esquerda, formando o meu corpo um L. Com o
primeiro passo, já se pode sentir a umidade do ambiente carcerário e a
barulheira das atividades de rotina. Feito os braços de uma enorme cen-
topeia, todos os demais compartimentos vão se ligar ao corredor central
dali em diante. O primeiro pavilhão é destinado ao atendimento médico
e, do outro lado, às salas para defensores, psicólogos e assistentes sociais.
Ali também fica o parlatório, onde minhas hóspedes podem conversar
com advogados, pesquisadores e jornalistas.
Mais adiante, temos os espaços reservados ao trabalho e ao estudo:
lavanderia, padaria, escola, cozinha e também refeitório, destinado às
agentes e aos demais funcionários. Em seguida, temos uma fábrica de
roupas e o ateliê de costura. A partir daí, seguem-se as cinco alas divi-
didas em ziguezague, intercalando-se sem que as entradas fiquem uma
diante da outra. No final do corredor, virando à esquerda, fica a ala E.
Já na parte externa, temos a fábrica de material de limpeza, onde
algumas internas fabricam os produtos usados por todas. Além disso,
também temos o venustério e o ginásio poliesportivo, onde ocorrem
respectivamente as visitas íntimas e as comuns. Separada da minha
estrutura principal, uma casinha cor-de-rosa abriga a creche destina-
da especialmente às minhas hóspedes com filhos recém-nascidos. As
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EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS
grávidas são levadas para parir em outro local. Quando retornam, vão
direto para a creche com o filho ou filha, que pode ficar junto à mãe até
completar um ano de vida. Depois disso, pelo que sei, a criança ou fica
com algum parente, ou vai para a adoção.
No prédio principal, as paredes rosas do corredor central podem
causar uma impressão positiva a quem chega, mas, para quem já está
acostumada, elas não costumam significar nada mais do que uma cor
qualquer. No interior, uma linha amarela, pintada por cima do piso, cor-
ta o corredor por toda sua extensão. É sobre ela que minhas hóspedes
devem caminhar, com a cabeça baixa e as mãos atrás do corpo. Uma
coisa que logo devem aprender é andar na linha amarela, já que não
aprenderam a “andar na linha” antes de chegar até mim. Em determina-
dos ponto do corredor, a linha guia tem várias quebras de continuidade.
Segue na vertical bem no centro do piso, mas faz uma curva na hori-
zontal, voltando a seguir na vertical novamente mais próximo à parede.
Assim como minhas hóspedes, tudo em mim parece ser meio torto. A
quebra, porém, é para não se aproximarem da entrada das alas. Afinal,
qualquer facilidade pode significar um risco para quem controla.
Regras sobre por onde caminhar e como se portar são comuns.
Fazem parte da disciplina à qual toda mulher que a mim chega é sub-
metida. Cada uma delas tem um espaço físico determinado onde deve
habitar. Suas celas são seus lares a partir do momento que passam pe-
los meus portões. Cada ala funciona como uma pequena comunidade.
Não é permitida a comunicação entre uma ala e outra. “Lugares deter-
minados se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de
romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço
útil”, li certa vez em um dos livros na minha biblioteca. Não teria como
concordar mais.
O nome do livro é Vigiar e Punir, de um francês chamado Michel
Foucault. O título resume bem o intuito para o qual fui criada. Foucault
diz que sou uma arquitetura funcional e hierárquica. Meus cômodos
permitiriam a fixação da disciplina imposta pelo sistema. Essa se efeti-
varia, assim, no estabelecimento da censura, na obrigação de ocupações
determinadas e nos ciclos de repetições. O francês é muito feliz ao defi-
nir uma espécie de “esquema anátomo-cronológico do comportamento”.
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AURI, A ANFITRIÃ
Uma linha amarela, pintada sobre o piso do meu corredor central, sinaliza o local por
onde minhas hóspedes devem caminhar, com a cabeça baixa e as mãos para trás.
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EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS
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AURI, A ANFITRIÃ
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EU, A HOSPEDEIRA DE MEMÓRIAS
Acima, placa da lavanderia, que compõe o pavilhão de serviços. Abaixo, à esquerda, bor-
dado feito na oficina de costura e, à direita, interna caminhando no meu corredor central.
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Capítulo 1
[Maribel e Jéssica]
As estrangeiras
“Tudo o que eu queria, ele me
dava. Sempre. Ele falou que íamos
ficar em um hotel cinco estrelas.”
Maribel
P
ara quem está fora dos meus muros, penso eu, deve ser difícil
imaginar uma presidiária no papel de vítima. O óbvio mesmo
deve ser vê-las como culpadas, assim como foram julgadas pela
Justiça. Mas não é preciso estar encarcerada para saber como é difícil
carregar a coroa de culpada. Em geral, mesmo a vítima mais convicta se
culpa por algo, por ter sido ingênua, ambiciosa ou simplesmente apai-
xonada por algo, alguém ou alguma ideia.
Tenho para mim que, no fundo, as pessoas já conhecem ou des-
confiam da “grama em que pisam”. Vejo os humanos, tais quais os de-
mais seres vivos, seduzidos pelos próprios instintos, feito os gatos ne-
gros e famintos que circulam por essas áreas. Todos sentem o cheiro do
perigo, mas sucumbem a uma curiosidade felina, que fareja cegamente
a possibilidade de gozo mais adiante. E, por assim dizer, toda pessoa
está vulnerável a essa busca inconsciente pelo misterioso, ou até mesmo
por uma dose de adrenalina. Mas toda mulher que já habitou uma de
minhas celas, irremediavelmente, foi condenada à primeira vista, senão
pelo peso da lei, sentenciada pela sociedade e pelas próprias memórias.
O que não se sabe por aí afora é que, mesmo elas, autoras de crimes,
sobrevivem a um limbo. A tênue fronteira entre ser culpada ou vítima
em suas próprias consciências. Culpadas ou vítimas de seus próprios
atos que as levaram ao mesmo destino, que as trouxeram a mim. Para
algumas, maldito esqueleto de grades e concreto, que não passa de um
lugar de passagem. Para outras, no entanto, sou o lugar de seus últimos
dias. Um celeiro de angústia e de pagamento. O balcão do acerto de con-
tas. Apesar de tudo, me orgulha ser um lugar de encontro. Pois quem já
sobreviveu ao confinamento sabe que, em algum momento, foi preciso
encarar o caminho interior, rumo às profundezas da alma e, quem sabe,
a uma mudança de trajeto.
Esse percurso é mais doloroso para as minhas hóspedes que se jul-
gam vítimas de uma conspiração. Tudo e todos conspiraram para que
elas acabassem aqui, na sua versão particular do inferno na terra. Foi o
que logo percebi quando aquela jovem loira, de tristes olhos azuis, saiu
da viatura de capturas. Quando levantou a vista e, finalmente, trocamos
olhares, pude perceber o quanto eu lhe pareci assustadora. Suas feições
eram bem distintas das mulheres que costumo receber. Uma estrangei-
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AURI, A ANFITRIÃ
ra. Mais uma para agitar os ânimos das brasileiras. Para acirrar a antiga
rixa entre as nativas e as aventureiras de além-mar. Em seguida, notei
que não era apenas mais uma estrangeira. Eram duas. A outra era uma
jovem negra, com olhar desafiador. Olhar de quem, mesmo estando em
sua primeira experiência no cárcere, já contava com bagagem de mun-
do. Um mundo que sempre a marginalizou.
Tempos depois é que fui entender como elas vieram parar aqui.
Da época em que as duas estrangeiras reviviam suas aflições, contadas
para minhas outras hóspedes, pude juntar, em minha infinita teia de re-
talhos, recortes de quem fora pisoteado por uma forte crise econômica.
Os noticiários, transmitidos pelas televisões, contavam um pouco da
crise que assolou a Europa durante todo o ano de 2011 e progrediu para
2012. Era, portanto, o mesmo período em que as duas iniciaram sua
saga internacional. Endividado, o Velho Continente sofria horrores com
a falta de emprego, renda e de capital circulando. Enxotava de lá quem
nativo não fosse ou quem não estivesse para gastar. Eis aqui, portanto, a
história de duas fugitivas, estrangeiras do Velho Mundo.
Contarei, então, a história que sei do crime cometido pela jovem
negra dominicana Maribel e por sua “parceira”, a espanhola Jéssica –
gringas que deixaram a Espanha com apostas altas no Brasil. Duas ha-
bitantes de Madrid, capital da Espanha, um dos países mais agredidos
pela crise. Criaturas impetuosas cujos corações têm sede cosmopolita.
Forte impulso de vida que as ensinou a desafiar o que viesse pela frente,
movidas pelo entusiasmo e coragem de seus gênios tinhosos. Em co-
mum, o gosto pela cólera que sentem os teimosos: o efeito quase febril
do risco. Duas histórias entrelaçadas em que a compulsão pelo amor
sentenciou a consciência e a liberdade.
Desarranjos nupciais
Foi no frigir dos dias que pude conhecer a essência dessas garo-
tas. Pouco a pouco. Afinal, qualquer um que caísse preso em um país
estranho, se deparando com o malquerer aparente por ser estrangeiro,
teria razões suficientes para desconfiar até das sombras. Por isso, tam-
bém não faltaria motivos para se proteger a qualquer custo, vestindo
as mais diferentes carapuças. Foi um projeto insistente, muito diferente
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AS ESTRANGEIRAS
O adultério
Quando começou a dividir um apartamento com Maribel e Paco,
Jéssica passou a sofrer muito mais com as “escapulidas” do marido. O
sofrimento de “corna”, no entanto, não era só dela. Assim como Ramón
tinha em Paco um companheiro de aventuras, Jéssica tinha em Maribel
uma companheira de “chifres”. Independentemente das esposas, eles se-
riam parceiros quer fossem nas prolongadas noites entorpecidas com
maconha, cocaína e outras drogas ou nas traições com diversas mulhe-
res. As depravações não passavam de suspeitas, por vezes, mas chega-
ram a ser flagrantes, por outras.
De fato, a amizade e a vida libertina dos maridos tornaram-se
uma paranoia constante na vida das esposas. A princípio, Jéssica apenas
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AS ESTRANGEIRAS
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AS ESTRANGEIRAS
53
AURI, A ANFITRIÃ
Inóspito viver
O silêncio consumiu suas últimas esperanças de acordar daquele
pesadelo. Retidas por dois dias na delegacia de capturas, as jovens es-
trangeiras ainda aguardaram uma solução repentina para aquele episó-
dio. Como as reviravoltas melodramáticas das telenovelas que minhas
hóspedes costumavam acompanhar na televisão. No entanto, esta his-
tória em nada lembra um folhetim. Foram presas em flagrante, com in-
dícios suficientes de autoria. A confirmação de que estavam longe do
papel de mocinha injustiçada da teledramaturgia veio quando avistaram
pela primeira vez os meus altos muros. Quando foram entregues a mim.
Em mim, o tempo demora a passar. E as novatas, por mais que re-
sistam, logo farão parte desse ciclo. Enquanto lá fora o mundo segue seu
ritmo frenético, em mim, reina a rotina fria de uma prisão. Umedecida
ela por tímidas doses de esperança e pelo suor do trabalho diário das
prisioneiras. Pois, a despeito do ócio que envenena o cárcere, o sistema
dispõe do labor e da disciplina, como forma de estímulo à redução de
pena. Uma tentativa de “ressocialização”, que também projeta os esfor-
ços em exercer mais controle sobre a rotina das internas. Afinal, o traba-
lho mantém corpos e mentes ocupados, longe de revelia qualquer.
Já eu, no posto que vivencio, nada posso fazer por essas mulheres.
Não passo de uma observadora dotada de sensível instinto materno.
Fatídicas “faculdades acolhedoras”, como se vivesse até uma materni-
dade imaginária. Nos dramas que compartilho, sou onipresente, é ver-
dade, mas sem o menor poder de ação. Para a minha salvação, nestas
entranhas, gira um mundo paralelo, com códigos e crenças autênticos.
56
AS ESTRANGEIRAS
Se, à luz do dia, minha alma passa despercebida para muitas delas, é
para mim que revelam seus anseios em preces noturnas, choros aba-
fados e até na ansiedade das visitas. No dia a dia, porém, cada uma
segue assumindo a carapuça que lhe convém para sobreviver. Afinal,
o que determina a vida de uma presidiária são suas companhias de
cárcere. E não há como fugir disso. A única possibilidade, para elas e
para mim, é adaptar-se.
Mulheres como Maribel e Jéssica, recebo quase todos os meses. A
grande maioria da população carcerária entrou aqui por envolvimento
com o tráfico de drogas, influenciada pelos namorados, maridos ou
por uma simples questão de sobrevivência. Tem delas que chamam
esse instinto de “necessidade financeira”. Modéstia à parte, não sou
como qualquer presídio brasileiro. A televisão já veio diversas vezes
para mostrar isso, desde os tempos da inauguração. Entretanto, apesar
das condições amenas das minhas celas, por muito que já vi e pre-
senciei, não acredito que será o cárcere a resolver ou ordenar as vidas
das mulheres que em mim adentram. Por tantas que tempos depois
retornam.
Sem dominar nem mesmo o básico do português, as garotas logo
sentiram o peso da dura convivência com as outras presidiárias. As
duas foram levadas à ala D. A segunda mais populosa, depois da ala
E. As presas desse corredor não trabalham. Brigas são comuns, pois
há um clima de “facção” entre as mulheres que ali habitam. Por essa
razão, algumas celas ficam fechadas e o acesso ao pátio é restrito. Nas
minhas duas maiores alas, a D e a E, é onde mais se encontram celula-
res, drogas e outros problemas. Mas também é mais onde se encontra
o companheirismo.
As estrangeiras, geralmente, enfrentam mais adversidades para se
adaptar, em comparação com as brasileiras. Destinadas a uma cela com
mais seis detentas, nos primeiros dias, Maribel e Jéssica viram-se obri-
gadas a dormir no chão. Sentiram a hostilidade das colegas. Os perten-
ces que permaneceram com elas foram, aos poucos, surrupiados. Elas
eram as “gringas”. Não conseguiam nem mesmo tentar se “misturar” às
demais. Havia a barreira linguística, claro. Mas mesmo sem conhecê-las,
as outras não perdoavam. As estrangeiras já gozavam de muitas regalias.
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AURI, A ANFITRIÃ
Entrada da ala E, que possui 30 celas, com capacidade para quatro internas. No centro
da ala, tenho um pátio comum, onde minhas hóspedes podem interagir durante o dia.
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AS ESTRANGEIRAS
Maribel foi pelo caminho inverso de Jéssica, que optou pelo iso-
lamento. Conseguiu, enfim, se enturmar. Entrou de vez para o jogo
hierárquico da prisão. Através de Carla, ganhou fluência não só no
português, mas também na linguagem particular entre aquelas acos-
tumadas com a marginalização. Fluência e influência em alto grau
para uma presidiária estrangeira. “Fiz uma pirangagem”, arriscou no
linguajar, dia desses. Pior que a tal “pirangagem” foi o que a levou à
tranca pela primeira vez.
Para piorar, a essa altura, ela não contava mais com o companhei-
rismo de Carla. Esta fora solta após seis meses de convivência com a
dominicana. Mas até aí, Maribel já conquistara a amizade de outras
parceiras. Por acobertar certas irregularidades dentro da prisão, ga-
nhou até fama de laranja. Uma bateria de celular, certa vez, fora en-
contrada em sua cela. Drogas, celulares e outros apetrechos do gênero
até entram pelos portões, passando despercebido pela revista, mas rá-
pido se pega quando utilizados. Maribel e as parceiras foram manda-
das para a tranca.
Lugar hostil para qualquer ser humano, a tranca era um ambiente
para animais como um chiqueiro. Não é por menos que foi apelidado de
“cu da cobra” pelas mulheres que em mim habitam. Tanto faz que sejam
duas ou vinte as infratoras, hão de se revezar entre o chão e a única pe-
dra, todas no mesmo cubículo fétido. Maribel sentira pela primeira vez
a dureza de não ver a luz do sol. Apenas um resquício de luz conseguia
chegar aos seus olhos, através do portão da cela. Só mesmo na hora mais
clara do dia, a dominicana visualizava as formas do cubículo que dividia
com mais quatro colegas. Era imundo.
Foram longos 14 dias de escuridão, desconforto e sujeira. Banho
não se tomava ali, pois não havia banheiro ou vaso sanitário. Apenas um
buraco a um canto, destinado às necessidades básicas. Do buraco vinha
o odor de dejetos humanos. Não só os delas, os dejetos de todo o pre-
sídio passava por baixo da tranca, disputando com ratos e baratas que
moravam ali. O odor atormentava as rebeldes. No entanto, o que mais
atormentava eram os gritos. Os gritos e choros não cessavam, seja dia
ou noite. A tranca ficava na mesma “ala das loucas”, a ala B, destinada às
internas com problemas mentais.
62
AS ESTRANGEIRAS
va com outra mulher, que já esperava outro filho dele. Jéssica sofreu.
“Estou com raiva de tudo. Não quero homem, não quero nada”, dizia
frequentemente.
Por outro lado, Fran deu-lhe o chão que muitas vezes faltava. Deu-
-lhe o consolo e a segurança que Maribel arrancara. Fran logo se apai-
xonou por Jéssica, mas soube se chegar. Pouco a pouco, demonstrou
seu interesse sob forma de carinho, cuidado e companhia. Para quem
vivia resignada ao peso do fracasso, Fran conseguiu arrancar sorrisos da
espanhola. Conseguiu conquistar sua confiança.
Com uma revolta que só crescia pelo antigo companheiro, Jéssi-
ca nutriu uma aversão por homens. Afinal, um deles foi o responsável
por tudo de ruim que acontecera em sua vida. Chegou à conclusão de
que o mais sensato mesmo era ter alguém que lhe fizesse bem, mesmo
que essa pessoa não despertasse aquele tipo de amor em seu coração.
“Prefiro estar com alguém que me faça bem e que eu não ame, do que
ficar com alguém que eu ame e me faça mal”, concluiu certa vez, ao ser
questionada sobre sua relação com a parceira de cela.
Entre o amor e a paz, ela optou pela paz. Paz pela qual há muito
ansiava seu espírito. Foi assim que Jéssica cedeu. “Ela é minha mulher.
Pronto. Falei. Ela é muito boa, boa demais. Tranquila, a minha Fran”,
assumindo de vez a relação. Fran caiu no xadrez por roubo e pegou pena
de oito anos e oito meses. Já estava presa há mais de dois. Aos poucos,
começaram a se reconhecer como um casal, dentro e fora do cárcere.
Faziam planos para o futuro. “Casamento, né?”, propôs Jéssica.
O cárcere não é só uma passagem para quem está dentro. Bra-
sil, Porto Velho, Guayaramerin, Fortaleza e eu, inclusive, somos todos
mundos completamente estranhos. Com linguagens e costumes pró-
prios, até culturais. Completamente desconhecidos à Jéssica, que não
tinha a quem recorrer, antes de Fran. Afagava-lhe o coração receber as
cartas da família. Sua mãe escrevia contando as novidades do filho, dos
irmãos e do país. A Espanha permanecia em crise. O patriarca trabalha-
va de vendedor numa loja de calçados, mas não recebia há meses.
Em momentos como esses, ela lamentava estar perdendo a chance
de acompanhar o crescimento do filho, Heitor. Mas o que ela não tinha
noção era que também estava se distanciando de si mesma. O corpo
66
AS ESTRANGEIRAS
70
AS ESTRANGEIRAS
Agentes penitenciárias controlam a entrada e saída das alas. Uma equipe de agentes, pos-
tada diante da cada uma das cinco alas, monitora a movimentação das internas no pátio.
O parlatório possui quatro cabines, sendo reservado para conversas entre minhas hóspe-
des e advogados, pesquisadores e jornalistas, que ficam separados por uma grade de ferro.
71
Capítulo 2
[Cinara]
A amante
dos livros
“É como se eu tivesse morrido. Pra
mim, seria um favor se ele me ma-
tasse. Sabe o que é isso? É o horror
de ter visto uma pessoa morrer”.
Cinara
A AMANTE DOS LIVROS
D
a cela, ela ouviu os gritos. Levantou os olhos do inseparável
livro pela primeira vez, depois de muitos minutos. Sempre fi-
quei impressionada ao vê-la se desprender deste mundo atra-
vés das páginas de um dos inúmeros livros guardados em minha bi-
blioteca. Com o exemplar a tiracolo, ela saiu da cela e se dirigiu à área
comum da ala A, o pátio. Era sábado. Não tinha trabalho nem estudo.
As grades que davam para o corredor central já estavam tomadas por
suas colegas de ala. Mesmo assim, tentou chegar mais perto para ver
o que acontecia.
Logo soube que o tumulto fora gerado durante a passagem de duas
presas para o castigo. O que ela mais tarde entenderia é que a dupla for-
mava um casal e receberia, cada uma, um castigo diferente. Enquanto
uma seria levada para a ala C, a outra passaria uma boa temporada na
tranca. Não era preciso passar muito tempo como minha hóspede para
entender que, em mim, relacionamentos amorosos são o principal de-
sencadeador de brigas. Pelas histórias que escuto dessas mulheres, pos-
so supor que não é só no cárcere que relacionamentos podem bagunçar
a vida de alguém.
Durante a passagem, muitas presas indignadas gritavam com as
agentes que tentavam, com dificuldade, separar as duas amantes. Uma
delas era mais resignada. Deixou-se levar até a entrada da ala C. A outra
era uma das pitbulls. Raivosa, chegava a bufar. Não se conformava com
a decisão. No entanto, por mais valentona que fosse, ela não era imune
ao sistema. Até poderia funcionar uma hierarquia entre as fiéis mora-
doras da minha fria carcaça de concreto. Mas, ao final das contas, todas
deveriam se submeter à autoridade da instituição, diante da qual sou
apenas uma estrutura impotente.
A instituição não é material como eu. É algo quase espiritual. Vai
muito além do corpo de funcionários que em mim batalham todos os
dias para fazer valer seus ordenados. A instituição é algo enraizado,
histórico, ligado a um governo que rege o mundo dos homens lá fora,
assim como rege o mundo paralelo por trás destas propriedades. Eu
aprendi todos esses conceitos, tão abstratos, com aquela amante dos
livros. Com aquela mulher que, mais do que todas que já passaram
por aqui, indigna-se com os tais mecanismos de controle do Estado.
75
AURI, A ANFITRIÃ
76
A AMANTE DOS LIVROS
A menina lobisomem
Cinara raramente ligava a televisão. Preferia mesmo a companhia
dos livros. Certa vez, presenciei o que me pareceu um fluxo de memó-
rias tomando seu corpo, como uma “entidade”, parecida com as cenas de
rituais evangélicos que passam na televisão. Sozinha em sua cela, mer-
gulhada em uma leitura, de repente, ela emergiu como que encantada,
atraída, por um som mágico. Um som que parecia surgir das profunde-
zas de suas memórias. Talvez ela tenha pensado que estava sonhando.
Não estava. Mas parecia. O som que a despertara vinha de uma das cai-
xas de som instaladas em minhas paredes, transmitindo a nossa rádio
interna, chamada de Rádio Livre. De novo, a ironia. Como se possuída
por um espírito traquino, seu corpo começou a se agitar freneticamente.
Seu quadril remexia-se para um lado e para o outro. Suas mãos pare-
ciam balançar uma saia imaginária, enquanto a cabeça acompanhava
o ritmo. Ela dançava muito bem. Era como se Cinara deixasse que “um
lobisomem” se apossasse de seu corpo.
77
AURI, A ANFITRIÃ
“Vira, vira, vira homem, vira, vira, vira lobisomem”5, dizia a can-
ção. E ela virou. Parecia possuir uma alegria tão despretensiosa, quase
infantil. Quando o som terminou, retornou do frenesi e deixou-se
ficar sentada no chão. O sorriso selado na boca, enquanto olhava fi-
xamente para a parede da cela, sem nada ver. Apesar de nada falar,
eu senti que a música a fizera lembrar coisas do passado. Lembrara
a infância feliz com os pais, ainda casados, e a dança quando o pai
colocava o seu disco preferido. Lamentou baixinho não ter vivido
aquela época eternamente. Mais que isso. Suas feições imprimiam em
seu rosto os lamentos de todas as decepções que tiraram a inocência
daquela criança que só queria virar lobisomem. Que, de tanto querer,
acabou virando.
– É difícil falar de memórias porque a gente nunca sabe se é uma
memória nossa ou uma memória construída na gente. – refletiu certa
vez ao ser questionada por uma colega sobre a separação dos pais –
Não lembro da minha mãe presente. Era muito pequena. Eu não lem-
bro dela brincando comigo. Ela não conversa sobre esse período. São
os tabus familiares.
A menina Cinara não nasceu nas minhas proximidades. Tão
pouco veio de além-mar como as estrangeiras, Maribel e Jéssica. Nas-
ceu e cresceu no ABC Paulista6. Foi lá que viveu seus primeiros cinco
anos de felicidade. Também foi lá, durante a infância, que teve de lidar
com a separação e com o abandono. Ainda tão nova, sofreu decepções
que marcaram toda sua trajetória. A separação dos pais a distanciou
de ambos. O pai, que tanto adorava, não morava mais com ela. A mãe,
mesmo fisicamente próxima, cavou uma distância afetiva da menina.
Na vida da mãe, só havia espaço para a tristeza. Assim, Cinara se viu
sozinha pela primeira vez.
78
A AMANTE DOS LIVROS
Cinara ainda compartilhou mais três anos de sua vida com Erick.
Os dias se passaram sem que ela soubesse ao certo em que momento o
monstro se revelaria novamente. A maior parte do tempo, no entanto,
ele se apresentava como o médico, inclusive para sua família. Para al-
guns, ela devia estar muito orgulhosa e grata por ter um homem tão
incrível ao seu lado. Contudo, o que Cinara conta é que não restou
qualquer vestígio de confiança nem de amor entre os dois. Eram apenas
cúmplices de um crime. Ela, refém de suas ameaças e do próprio medo.
De alguma forma, que Cinara alega desconhecer, Erick teve a
dica: logo o esconderijo deles cairia. A polícia chegara ao paradeiro
dos fugitivos. Apropriando-se das economias da namorada, ele desa-
pareceu de sua vida. “Agora, você está por conta própria”, foi a última
coisa que ouviu do ex-amor. Apesar de não ter coragem de entregá-
-lo à polícia ou, tão pouco, de abandoná-lo de vez, Cinara sentiu um
enorme alívio quando, enfim, eles se separaram. Aquela que tanto te-
mia o abandono conseguiu apreciar o alívio/êxtase/gozo da separação.
Desde então, nunca mais o viu.
Nesse tempo, Cinara circulou por várias cidades do interior pau-
listano. Envolveu-se com outros homens. Erick não chegou a afetar
completamente sua disposição para encontros amorosos. Continuou
sua busca inconsciente por um complemento. Passou ainda mais dois
anos, entre namoros e empregos. Fugazes como tudo em sua vida de
foragida. Foi finalmente capturada, cinco anos após os assassinatos. En-
quanto ninguém nada sabia de Erick, ele, mais do que ninguém, sabia
ser escorregadio.
Enviada à Fortaleza, em uma época que eu ainda não sonhava em
existir, Cinara passou um ano presa em minha antecessora. Pelo que sei,
o que eu tenho de nova, controladora e exemplar, a antiga Auri tinha de
desgastada, flexível e disforme. Aquela velha estrutura ainda vivia sob o
controle religioso. “Parecia um convento”, é o que dizem minhas hóspe-
des com mais vivência no cárcere. Não poderia ser diferente, já que fora
instalada em um antigo prédio de um dos conventos da Congregação do
Bom Pastor, localizado no bairro Jacarecanga, em Fortaleza. Muitas mu-
lheres vieram transferidas para as minhas dependências, quando minha
antecessora foi, enfim, desativada.
83
AURI, A ANFITRIÃ
nhia de ratos, até que finalmente foi encaminhada aos meus portões, os
braços que abri para recebê-la.
A chegada
Tinindo sob o sol a pino do meio dia, dentro da caçamba de um
caminhão, ela e mais cinco novas internas aguardavam o despache de
um grupo de trinta homens para o meu vizinho, Instituto Penal Pau-
lo Sarasate. Fica bem defronte à minha entrada, no alto de uma coli-
na. Uma edificação antiga e, por sinal, muito sombria pelos contos que
lhe rodeiam. O grupo fez a viagem de Fortaleza a Itaitinga, separados,
homens e mulheres, apenas por uma grade. Com Cinara e as demais
fêmeas dentro do transporte, os machos ficaram insidiosamente excita-
dos. Faziam convites e elogios nada sutis, que apenas demonstravam o
desespero masculino com os primeiros momentos de enclausuramento.
Na certa, passariam longos períodos afastados da figura feminina. E, ao
passo que aquele escárnio, para eles, era uma apelação, para elas mais
parecia uma jaula de macacos. Enojava e assustava logo de cara as nova-
tas que a mim seriam confiadas.
Descendo em minha portaria, as famosas paredes rosa dos corre-
dores ainda eram incolores, tal qual o espectro de Cinara, no dia em que
chegou. Espectro sim, não ela, porque a melancolia havia endurecido e
empalidecido o seu existir para aquela chegada, como eu jamais vira.
Quem compartilhasse da cena sequer reconheceria sua figura esbelta e
enérgica naquela criatura acuada e algemada. Duas agentes recepciona-
vam a “demanda” e cuidavam da documentação, enquanto outras duas
preparavam para “passá-las”.
Na revista, as normas institucionais obrigavam que as internas se
desfizessem de todos os pertences pessoais. Mesmo para quem já tinha
certa vivência de cárcere, pior que o espanto em deixar para trás os man-
timentos e produtos higiênicos trazidos era entregar a única lembran-
ça que teria dos familiares nos próximos anos. Apesar de saber que só
cumpriria 2/5 de sua pena, os 25 anos e quatro meses, aos quais fora
condenada, pesavam em suas costas. O álbum de fotografias que a pau-
lista protegeu debaixo de suas asas, durante a longa viagem, foi entregue
junto com o restante de sua identidade.
88
A AMANTE DOS LIVROS
Durante a transferência, ela teve sorte. Foi passada tão cedo para
a cela, às 6h da matina, que boa parte das reclusas hospedadas na maior
ala deste instituto penal estava, ainda, em sono profundo. Assim, Cinara
achava-se confortavelmente distante do motim quase ritualístico causa-
do pela chegada de novas caras. Amontoadas diante das grades, as inter-
nas adoram fazer uma algazarra sempre que recebem “carne fresca”. Há
uma enorme expectativa para saber de onde e por que as novatas estão
chegando, quando não são velhas conhecidas do mundo do crime ou da
periferia lá fora. Dessa, pelo menos, ela tinha escapado.
Localizada estrategicamente ao final do corredor central, a ala E é
a mais afastada e também a mais populosa, talvez, por isso, chamada de
“favela”. É a primeira casa de grande parte da minha população. Cinara
até hoje a considera, de longe, a mais “calorosa”. À sua pessoa, a vitali-
dade e hospitalidade das internas “da E” sempre fascinou. Ficou entu-
siasmada, por exemplo, com os códigos de convivência comunitária vi-
gentes ali, que não vigoravam nas demais alas. Contudo, passou apenas
uma semana naquelas dependências. Logo, conseguiu uma ocupação e
foi transferida para a ala A. Sequer permaneceu tempo suficiente para
presenciar ou mesmo protagonizar as corriqueiras intrigas.
Mesmo que não tivesse recebido as “boas vindas” daquela ala,
não seria possível para Cinara sonhar com o prêmio da invisibilidade.
E o assédio foi a primeira situação com a qual precisou se sair. Pois,
quando chegou distribuindo charme, balançando os cabelos curtíssi-
mos, atraiu todos os olhares. O que atraía, na verdade, era o cabelo,
que deixava sua bela nuca à mostra. Tanto no rosto, quanto no corpo,
Cinara arregava um semblante muito jovem para uma mulher na casa
dos quarenta. Por isso, ela ainda tem as expressões gestuais e posturais
muito vigorosas, que se manifestam com elegância na sua forma par-
ticularmente mansa de se comunicar. Antes de conquistar o respeito,
ganhou a admiração das internas. E não tardou também para conquis-
tar o coração de algumas lésbicas.
Pelo corte de cabelo convencionalmente masculino, atraiu sem
querer o olhar enviesado e competitivo de uma cabrão9. Além disso,
to uma criança, mulher. Taquei a mão e peguei umas cinco fotos de vol-
ta. São minhas mesmo, ora mais. Depois te mostro. Me senti tão velha!
– Tu não se acostuma com esse mulheril, né, Cinara? – Marília
empurrou a outra pelo ombro. – É assim mesmo. Não há nada mais
interessante aqui dentro do que dar conta da vida alheia. Tu sabe como
é o esquema. Mulher, pois eu quero conhecer esse povo, que eu só ouço
falar. Teu pai é garotão, ainda? Tá solteiro, pelo menos? Me ajuda aí, co-
lega. A situação aqui tá braba – e com essa graça, Marília tirou de tempo
a chateação da amiga, arrancando o sorriso do canto de sua boca.
– Tu não aguentaria meu pai, Mari. Ele é um boêmio. Gosta de
noite e de poesia. E de mulheres, até demais! Mas, hoje, já nem sei, né?
Acho que ele não tem mais idade para um furacão feito tu. Vira esses
olhos de naja para lá – encerrou o papo, despediu-se da conversa com a
amiga e voltou para a leitura que devorava sobre a mesa do pátio.
Depois deste dia, Marília conseguiu seu alvará em três semanas.
Voltou para casa da mãe, para criar seu filho. Contudo, daqui não se
distanciou, como tanto prometera, inclusive, a si mesma. Ela não se
permitiu abandonar o projeto que ajudou a erguer, a oficina de fuxico
da Tia Mazé. Então, logo em seguida, Marília voltou como egressa,
para ajudar Tia Mazé a tocar o projeto, desta vez, devidamente em-
pregada. Seu retorno, ainda que em outra condição, foi comemorado
por todos da casa. Agentes, reclusas, pela amiga Cinara e também pela
carinhosa tutora da oficina.
Por outro lado, não raro também ser usado como forma de protesto,
homenagem ou mesmo luto.
A rede de informações que em mim é tecida pode tomar propor-
ções exageradas, trazendo consequências externas ao nosso ciclo. Ci-
nara sempre se espantava ao saber do caso de uma hóspede minha que
ganhara a liberdade, mas perdera a vida já fora dos meus domínios. Às
vezes, os sussurros chegam aos ouvidos de visitas, que, certamente, os
reproduzem lá fora. Um tema que nunca passa despercebido são casos
amorosos entre as mulheres.
Em geral, coincidem os ciclos de convivência no mundo exterior.
Muitas já compartilhavam os mesmos espaços de morada, onde fami-
liares de algumas continuam a se encontrar vez ou outra. Quando uma
mulher casada lá fora se envolve com outra mulher em sua estada nas
minhas dependências, é bem possível que comentários sobre isso che-
guem ao parceiro ou parceira deixada lá fora. A traição acaba se tornan-
do motivo para uma vingança.
Por outro lado, o leva e traz acontece também vindo lá de fora para
dentro. Diziam que Jéssica, a espanhola namorada da Francilene, ao sair
da cadeia, não sustentou por muito tempo a promessa de manter o re-
lacionamento que fincou durante sua passagem como minha hóspede.
Logo que saiu, os sussurros me disseram que ela não aguentou morar
com a sogra e sucumbiu à tentadora liberdade. Porém, ao mesmo tempo
em que difunde informações, a rede também falha quando incorpora
malícias e rivalidades das bocas de quem propaga os boatos.
Assim, eu muito me surpreendi quando, em um rotineiro domingo
de visita, aquela loira espanhola apareceu novamente em meu território,
com um olhar já bem diferente daquele que ela me lançou pela primeira
vez. Os ombros ainda mais diferentes. Não carregavam mais o peso da
condenação de 13 anos e quatro meses de prisão que não chegou a pa-
gar, pois se livrara muito antes. Agora, Jéssica viera visitar Fran.
De Maribel é que não soube mais. Apesar de ansiar, às vezes, por
notícias das rebentas que partiram, é muito complicado acompanhar o
destino de todas. Algumas, simplesmente, somem. Outras, em pouco
tempo, voltam. O tempo é espiral e gravitacional neste pedaço de mun-
do. A coisa mais consensual, entre todas as histórias, é que elas sempre
99
AURI, A ANFITRIÃ
darão muitas voltas. Toda mulher que por mim um dia já foi tocada es-
tará sempre conectada a este universo, ainda que seja através de nossas
memórias. Não raras as vezes, vivíssima também nas fofocas.
Dentro da rede de comunicação, apenas o esquema dos bilhetes
de ala pra ala é declaradamente proibido, pois os diferentes grupos não
devem ter contatos entre si. Mas faz-se às escondidas. O cruzamento das
alas só é permitido durante eventos, aulas, encontros religiosos, confra-
ternizações e demais atividades do gênero coletivo, como campeonatos
de futsal e outras práticas. Só que os bilhetes surgem, justamente, como
uma forma de resistência ao extremo controle. Também por isso, nas
missas, muitas das presentes nem são tão “fiéis” assim. Às vezes, algu-
mas estão ali mais pelo tititi.
Fora as convivências, tem também o convencional grito. Velho,
porém insubstituível meio de comunicação à distância. São inúmeras
as possibilidades e alternativas ao controle do fluxo informativo pela
instituição. Mesmo assim, Cinara, sem dúvida, estava entre as mulhe-
res que detinham o maior trânsito de informações entre todas. Numa
perspectiva macro, talvez até mais do que muitas agentes. Isso porque
a paulista possui o privilégio de caminhar e interagir pelo mundo dos
homens. Um privilégio exclusivo de Cinara, que faz parte do seu coti-
diano carcerário.
A caminho da Universidade
Entre os prazeres e as frustrações que sentia ao levar à frente algum
projeto de ressocialização, Cinara se viu diante de uma que a levaria,
enfim, para o aprofundamento do senso crítico que vinha sendo afiado
durante sua experiência como minha hóspede. No final de 2011, por
estímulo das professoras da minha escola, ela resolveu se submeter a
um exame seletivo para a Universidade. O Exame Nacional do Ensino
Médio, Enem, como costumam abreviar, passou a ser aplicado entre mi-
nhas hóspedes. No entanto, nenhuma conseguira pontuação suficiente
para concorrer a uma vaga no ensino superior.
Caso Cinara fosse bem sucedida, poderia ingressar, mesmo es-
tando em regime fechado, em alguma instituição de ensino superior.
Para isso, no entanto, ela precisaria de uma permissão judicial. O be-
100
A AMANTE DOS LIVROS
nefício nunca tinha sido concedido até então. Talvez, por isso, ela te-
nha se submetido ao Enem apenas na intenção de testar o seu nível
de conhecimento. Como já haviam se passado vinte anos desde que
terminara o, na época, Segundo Grau, Cinara reservou quinze dias
para se preparar para a prova.
Em dois dias seguidos, Cinara sentiu as costas doerem por passar
horas debruçadas sobre o caderno de provas. Chegava a suar. O Enem
fora aplicado em uma das salas da escolinha. Sua cara de preocupação
ao responder ao exame me fez pensar que sua pontuação não seria boa.
Ao todo, foram 180 questões e uma redação. Os dias que sucederam à
prova foram de certo desapontamento, mas também de uma determi-
nação que cada vez mais crescia dentro dela. Voltaria a estudar. Se não
fosse no próximo ano, seria no outro.
Foi com surpresa que Cinara recebeu a notícia de sua pontuação
por Morgana, a diretora da instituição que rege a vida em meus domí-
nios. Apesar do grande número de questões que acertou, o que mais
impressionou foi seu desempenho na redação. Recebeu nota 900, de um
máximo de 1000. Foi com as perspectivas renovadas que se dirigiu à
sala da diretora para tentar uma vaga na Universidade Federal do Ceará,
através do Sistema de Seleção Unificada, o chamado Sisu. A inscrição só
pode ser feita através de um computador, conectado à internet, tecnolo-
gia a que somente a direção tem acesso.
– Já sabe que curso quer tentar, Cinara? – perguntou Morgana.
– Filosofia, o mesmo curso que eu comecei a fazer em São Paulo,
antes do último recurso ser negado.
– Tudo bem. Pois vou entrar no Sisu com as tuas informações e ver
as opções de cursos e horários – falou a diretora, apertando os olhos ao
encarar a luminosidade da tela do computador.
– Queria muito agradecer pela força que a senhora está me dando,
Dona Morgana. Se não fosse o seu apoio, viu – suspirou Cinara, já ner-
vosa com o processo de inscrição.
– Se acalma, que isso ainda é o começo. E tudo que você conseguir
será por mérito próprio. O bom comportamento pesará muito na deci-
são do juiz que irá avaliar a sua permissão de frequentar a universidade,
caso consiga uma vaga, claro. Cinara, te conheci ainda na prisão antiga e
101
AURI, A ANFITRIÃ
arregaçaram as mangas para que nada desse errado no dia marcado para
a matrícula dos aprovados. Mesmo assim, com muita correria, Cinara
conseguiu fazer a matrícula apenas nos últimos minutos. Apesar de es-
coltada, ela não foi de algemas. Entrou na fila com os demais candidatos
usando apenas a farda com meu nome estampado.
Faltava ainda receber a permissão judicial para frequentar as au-
las. De forma inédita no Estado do Ceará, a Juíza da 2ª Vara de Exe-
cuções Criminais, Dra. Luciana Teixeira de Sousa, concedeu a autori-
zação mediante o uso de um dispositivo de rastreamento. O fato teve
muito repercussão no mundo lá fora. Eu tive a impressão que estava
chovendo jornalistas em meus domínios de tanto que eles apareciam
em minha recepção. As semanas que antecederam ao início das aulas
foram marcadas por muita ansiedade. Estava diante de novo ciclo em
sua vida, completamente desconhecido. Passaria a ser uma peregrina
entre dois mundos.
Nos dez primeiros dias de aula, uma agente acompanhou Cinara
para mapear o trajeto permitido pelo sistema de monitoramento. A par-
tir daí, minha ilustre hóspede passou a usar uma tornozeleira conectada
a este sistema. Até mesmo quando voltava de sua aventura diária pelo
mundo exterior, continuava a portar o dispositivo. O aparelho se tornou
seu companheiro fiel. De manhã bem cedo, eu via Dona Laura, uma das
agentes mais antigas, saindo à paisana em companhia de Cinara, ambas
com cadernos nas mãos. Desciam a estradinha, passavam pela guarita
e prostravam-se na rodovia à espera do ônibus. Apenas quando o sol
estava tinindo bem alto no céu, eu as via voltando, com cara de quem
enfrentou uma longa jornada.
Após o período de adaptação, Cinara foi lançada ao mundo, so-
zinha, apenas contando com o consolo de sua tornozeleira. Nunca a vi
tão angustiada quanto nos primeiros dias da jornada solitária. Parecia
temer aquele gosto de liberdade que experimentava. Por outro lado,
as voltas para mim, sua morada, também eram sofridas. Ela chora-
va. Tinha de lidar com sentimentos paradoxais diariamente. Ganhou
roupas para usar em suas idas à UFC. Mas somente ela mesma tinha
autorização para isso. Minhas outras hóspedes só podem usar a farda
determinada pela instituição.
103
AURI, A ANFITRIÃ
As portas do mundo
O medo da solidão sempre povoou seus pesadelos mais terríveis.
Algumas noites, ela acordava de uma vez, assustada com as imagens
que giravam em sua mente enquanto dormia. Pingava em bicas. No
dia seguinte, explicava as amigas mais chegadas como havia sido mais
esse sonho. Frequentemente, relatava pesadelos no quais sempre aca-
bava sozinha ou até mesmo largada na sarjeta, como uma mendiga.
“Eu não tive filhos. Minha família é pequena, está se acabando. E a
tendência é ficar sozinha mesmo. É um medo que eu tenho”, rabiscou
em um dos cadernos de estudos, de tão impressionada. Talvez, isso
explique o certo alívio que às vezes demonstrava ao voltar para meus
braços em cada dia, mesmo com desgosto de regressar ao aprisiona-
mento. Era como uma carência emocional que ela não sabia como pre-
encher. Em mim, apesar dos pesares, ela encontrava segurança. Afinal,
minhas hóspedes não precisam se preocupar em tomar decisões nem
com questões financeiras.
Por outro lado, ainda se sentia fatiada pela metade. Ao mesmo
tempo em que tinha total consciência do privilégio que desfrutava em
liberdade, desejado por muitas de suas parceiras, no exterior, percebia
as sanções morais apregoadas pela sociedade dos homens, para quem
tivesse passagem pela cadeia. Cinara já sabia que o poder estava mui-
to associado à ideia de reputação, naquela estrutura social. Além do
mais, as leis se encarregariam de manchar a sua por muito tempo. Foi
104
A AMANTE DOS LIVROS
assim que resolveu brigar com a zona de conforto onde tinha se enfiado.
Como aprenderia a lidar com o livre arbítrio e a se defender diante dos
preconceitos do mundo? Era o que sempre questionava. E, questionan-
do, encontrou posicionamentos. Por conta própria, com a cara a tapa,
alguma hora precisaria bater à porta da sociedade. Mas, ate lá, Cinara
estaria se preparando para surpreender.
Após três semestres batendo pernas diariamente, a paulista ga-
nhou o benefício de progressão de pena. Semanas antes, nem suspeitava
que saísse tão cedo, quando dizia às colegas que não sabia nada do anda-
mento de seu processo. “Essas coisas a gente não pode alimentar muita
expectativa que é para não sofrer”, reiterou. E tocou suas atividades nor-
malmente, dedicando-se às últimas avaliações na Universidade. No final
de junho de 2013, recebeu a notícia mais sublime de sua longa estada.
A defensora pública informou que seu recurso fora aprovado. Cinara
conquistou a remissão de sua pena com muito esforço, disciplina e obs-
tinação. Acreditava no reconhecimento do mérito, acima das alcunhas.
E, assim, passou do regime fechado para o semiaberto.
Na segunda-feira seguinte, partiu bem cedo, com uma mala nas
mãos, e só retornou no fim de semana. Na véspera, havia entregado os
dispositivos de monitoramento às agentes plantonistas, endereçados
à Morgana. Depois voltou para a cela assoviando. Quando me deu as
costas e rumou para a estrada, sem sequer olhar para trás, me fez viver
uma longa semana de ansiedade. Desde então, ainda tento me adaptar
a Cinara como uma hóspede de apenas dois dias na semana. Por outro
lado, ela tornou-se cada vez mais um elo com o mundo exterior. Quan-
do aos meus portões Cinara adentra, já fico atenta às próximas histórias
que deverá contar.
E para as curiosas que perguntam sobre seu futuro, a única certeza
sobre a qual fala abertamente é a de continuar morando no Ceará. Per-
manecerá no estado até terminar a faculdade e até cumprir a pena que,
em suas contas, só será quitada quando ela superar seus 50 anos. Sempre
sustentou o argumento de que, apesar de ter sido uma amante incondi-
cional no passado, não suportaria esperar que príncipes encantados sur-
gissem magicamente, para completar o vazio de todos esses anos. Havia
decidido projetar sua vida por si só e, assim, vinha seguindo.
105
AURI, A ANFITRIÃ
Mas, como fazer isto, sabendo que nem mesmo o controle prisio-
nal conseguiu domar seu coração sensitivo? Ela precisaria ter esfacelado
sua natureza romântica para poder realizar tal feito. Impossível, contu-
do, romper com a verdadeira essência. Depois de tanta solidão, estaria
correto privar-se outra vez? Há pouco tempo cheguei à conclusão de
minha investigação sobre a mudança em seu comportamento. Decerto,
não se tratava apenas do regozijo da liberdade. Havia algo a mais.
Flagrei Cinara escrevendo em seu caderno de anotações. No texto,
dizia que vinha alimentando uma paixonite quase adolescente lá fora,
mas que, até então, tomou todo o cuidado para não infringir as regras.
Fiquei às voltas, achando seu sorriso bobo e enigmático. Agora, não
haveria mais problemas, pensei. Continuei lendo e me surpreendi. Na
verdade, fiquei chocada. Na carta, Cinara, pela primeira, havia escrito
sobre mim. Citou-me, inclusive, como seu “mundão” e como a ponte
para a redescoberta do amor. Aquilo me paralisou. Nunca imaginei que
ela pudesse saber que estou aqui. Assim como eu, Cinara dizia que co-
meçava a viver o amor como uma extensão de si. Se minhas hóspedes
são o pulsar de meu coração de cimento, também fazia sentido que ela
pudesse estender o seu pulsar para outro coração. No fim, descobri que
somos todos moradas uns dos outros. No fim das contas, meu fascínio é
saber que, talvez, também haja esperança para mim.
“Quando abri as portas do meu mundo, esse mundão que me ob-
servava [eu, Auri] mandou embaixadores para conhecerem meu plane-
tinha devastado pelas guerras, mas com paisagens e riquezas surpreen-
dentes. Pois é, esses movimentos de conhecer e reconhecer são alavancas
que ressuscitam o ato de viver em mim, dentro e fora de mim...”.
106
A AMANTE DOS LIVROS
Acima, hóspede trabalha na oficina de costura da Tia Mazé, que produz bordados, crochês
e fuxico. Abaixo, telefone público de uso restrito, destinado apenas a casos de emergência.
107
Capítulo 3
[Patrícia]
A mãe
do crack
“Têm males que vêm pro bem. Deus não
me colocou aqui. Deus me permitiu vir
pra cá para ver a realidade da vida”.
Patrícia
A MÃE DO CRACK
D
ependurado na parede da guarita, o relógio contava meia noite.
Seu Expedito, um dos guardas noturnos, caminhava em zigue-
zague para não cochilar. Já que a troca de turno ainda demora-
ria várias horas, os passos apressados lhe ajudariam a esquentar o corpo,
naquela noite fria. Em vão, talvez, porque aquele dia, por si só, havia
sido completamente cinza, invocando uma noite nebulosa e friorenta.
A alta madrugada, cá nas margens do convívio em sociedade, cos-
tuma ser um período de misticismo em nossas rotinas. Não por causa
das histórias de aparições mal-assombradas ou mesmo por causa das
lendas de internas suicidas, como querem crer muitas de minhas hós-
pedes. Mas, para mim, se há algum misticismo, ele é interior às cons-
ciências das criaturas que aqui sobrevivem, por meio de necessidades
criadas por elas, sejam espirituais, sexuais ou emocionais. Por isso, diria
que, principalmente durante a madrugada, é a hora em que “o cão aten-
ta”, no linguajar das internas. Paira no ar o instinto travesso e insone de
algumas garotas em busca de saciedade.
Nas alas mais frontais, o ronco e o diálogo das televisões esque-
cidas ligadas ressoavam em alto e bom som. Enquanto isso, nas alas
posteriores, algumas internas ainda estavam acordadas e ativas. Um
presídio feminino como eu não passa mais que algumas horas em si-
lêncio permanente. Em geral, acontece no limar da noite para o dia.
Mas, até lá, o recolhimento noturno, se não for rapidamente domi-
nado pelo cansaço físico, provoca alvoroço nas garotas despertas. As
mais de doze horas de confinamento acabam seduzindo-as tanto ao
sagrado, quanto ao profano. Pois, mesmo que a maioria durma pro-
fundamente, as “loucas” choram mais que crianças desmamadas. E as
religiosas rogam a Deus, no mesmo instante em que as namoradas se
enroscam nos prazeres da carne.
Da cela onze da ala E, contudo, não se ouvia nenhum barulho
estridente. E este silêncio que deveria ser um estado natural, para um
grupinho daquela cela, era muito suspeito. Entre as seis internas que
ali viviam, três já haviam passado longas temporadas de submissão ao
vício em crack, a droga mais perseguida pela instituição. E aquele vácuo,
por mais ingênuo que parecesse, era mais indicativo que um sinal de
fumaça. Afinal, a meia-noite já era a porta de entrada da madrugada.
111
AURI, A ANFITRIÃ
dras, uma para cada. Talvez por isso, apenas consultaram Patrícia sobre
sua vontade. Não era propriamente um convite. De antemão, era bom
que as outras habitantes da cela concordassem ou tivessem ciência do
que elas iriam fazer. Num cachimbo improvisado, feito da colagem de
pedaços de diversos objetos, Pequena distribuiu as cinzas do cigarro na
ponta do cachimbo. Elas iriam segurar o líquido do crack derretido após
a combustão. Pôs meia pedra em cima das cinzas, fitou a parceira nos
olhos e riscou o fósforo.
Sabe, acho curioso observar o transe das “craqueiras”. Por alguns
segundos, parece que elas viajam para outro lugar. Também me surpre-
endem os aprofundados conhecimentos práticos delas. Parecem alqui-
mistas, transformando qualquer coisa em instrumentos para o preparo
ou consumo ideal do crack. Já vi latas e cachimbos improvisados nas
mais criativas formas. Além disso, as viciadas sempre compartilham
métodos novos, mais econômicos e funcionais. O mercado das drogas
ilícitas é incrível. Está sempre se renovando, mesmo dentro de meus
territórios prisionais.
Quando reconheceu o ritual, Patrícia deitou-se em sua pedra,
para rezar e pedir forças. Cruzou as mãos sobre o peito e sentiu a
aceleração do seu coração. Cada vez que as “noias” queimavam as
pedras de crack, o cheiro subia na cela, impregnada de uma fumaça
acinzentada. A dupla fumava as pedras pela metade, para durar mais.
Enchiam o pulmão a cada nova tragada. Branca teve uma espécie de
vertigem e ficou desacordada alguns segundos. As parceiras da cela
reagiram naturalmente. Deixaram-na voltar a si sozinha. Diferente da
melancolia e mau humor dos últimos dias, as “noias” estavam acesas e
excitadas sob efeito da droga.
Patrícia respirava pesadamente. Às vezes, prendia o ar para não
sentir o cheiro. Levou as mãos até a cabeça. Pressionava-se para con-
seguir superar os outros sentidos do seu corpo, berrando por aquela
composição química. Apenas quando começou a rezar em voz alta,
conseguiu se acalmar, paulatinamente. Rezava sem seguir orações,
mas com pedidos diretos às santidades. Desceu as mãos para o ventre
e sorriu. Continuou a rezar com os olhos fechados, até que sussur-
rou o nome de seu único filho homem, “Vinícius”. Rezou por ele por
114
A MÃE DO CRACK
bastante tempo. Depois rezou pelo irmão que havia falecido, Daniel.
E, rogando, adormeceu, sem se levantar mais nenhuma vez naquela
noite fria.
Irmão de sangue
Patrícia já havia contado a história do irmão à Greyce Kelly, uma
das contemporâneas à sua entrada no xadrez. Ela revelou que Daniel
tinha uma presença muito forte em suas memórias de infância. Era o
filho mais velho, de uma família de seis irmãos. O garoto era revoltado
com o pai, assim como os outros. A prole crescera sob a rigidez e bru-
talidade do pai, que atingia, inclusive, a própria mãe. O patriarca bebia
compulsivamente e maltratava a mulher e os filhos. Patrícia dizia que
eles tinham uma vida difícil, “diferente das outras que já tinha visto”,
no bairro periférico Acaracuzinho, pertencente ao Distrito Industrial de
Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza. Vida dura não só pela
pobreza, mas pela falta de opção aos filhos.
Ao falar da figura materna, Patrícia sempre remete à magreza de
sua mãe, em função da depressão que desenvolveu com a morte do pri-
meiro filho. A filha não foi muito longe em seu desespero pelo crack,
tornando-se imagem e semelhança da mãe. Só que a garota ainda aban-
donara seus quatro filhos aos cuidados de outros. Regina, sua mãe, nunca
abandonou nenhum dos seus filhos e ainda cuidou dos netos desampa-
rados. O finado Daniel apanhou muito na infância, chegou a ser acor-
rentado e açoitado pelo próprio pai. Aliado à revelia, o garoto crescia
e queria ter sua independência, além de algum vintém para ter o que
comprar. Passou a ficar mais tempo na rua do que em casa, em rejeição
ao pai. Foi quando começou a cheirar cola, a fumar maconha e a tomar
comprimidos tarja preta, como rivotril e as famosas “aranhas”.
Um dia, já rapazote, Daniel chegou em casa com uma mochila rou-
bada e mostrou aos irmãos como ela estava cheia de dinheiro. Ele tinha
cerca de 17 anos e, nessa idade, já fazia pequenos furtos e roubos, mas
nunca havia arrecadado tanto. Tomou a quantia de assalto na Ceasa10, o 4
que acabou lhe custando muito mais caro depois. Na semana seguinte,
o irmão foi deixar Patrícia no colégio, que tinha 13 anos, à época, e par-
tiu para a estação de trem. Lá mesmo foi assassinado a tiros. Da escola,
Patrícia chegou a ouvir os estampidos sem desconfiar, a princípio, que
se tratava da morte do irmão. Foi avisada pela diretora pouco depois.
Após esse fato, tudo desandou em sua casa. O pai não deixava de
lado a cisma de castigar os filhos. Patrícia disse que, além de carrasco, ele
era um homem ambicioso. Enquanto a esposa administrava um boteco
na estação, chegando depois a trabalhar em uma fábrica de castanhas,
o patriarca não gostava de pegar no pesado. Quando Zeca, o segundo
irmão mais velho, começou a trabalhar, ironicamente no mesmo lugar
que o finado Daniel assaltara, o pai extorquia-lhe todo o salário. “Tudo
que o Zeca ganhava meu pai tomava. E devolvia dois reais para o meu
irmão. Isso não é valor que se dê para um rapazinho que quer ter suas
coisas, não”. A mesma coisa se repetiu com a irmã, Camila.
Com Patrícia, isso não chegou a acontecer, porque, em sua única
experiência de trabalho, ainda na adolescência, foi morar na casa de
uma advogada para ser empregada doméstica. A advogada vivia com
o filho já adulto, em um apartamento na Aldeota, área nobre de For-
taleza. Os dois trabalhavam e passavam o dia inteiro fora de casa. Lá, o
dinheiro que Patrícia ganhava era todo seu. Ela até gostava do emprego.
Porém, só suportou passar dois meses ilhada naquela realidade que não
lhe pertencia. Ainda era uma menina e quis voltar para sua casa.
Quando criança, gostava mesmo era de ficar na rua. Jogava bola
com os meninos, soltava pipa, brincava de bila, pião. No colégio, envai-
decia-se por ser arruaceira, do tipo de adolescente que se orgulha em
desobedecer às ordens e fugir aos padrões comportamentais. Foi expul-
sa de dois colégios, estagnando na quinta série do Ensino Fundamental.
Pelos menos, aprendera a ler. A adolescência, na verdade, foi o despertar
para sua autonomia, dentro e fora de casa. Pelo que vejo na maioria das
mulheres encarceradas, a quebra de uma ordem pré-estabelecida às suas
existências – desfavorável apenas para quem vive margeando a dignida-
de social – é o que acabada motivando-as a se envolverem com o crime.
A maioria das internas vem das periferias. Antes de pisarem aqui,
já estavam engessadas numa condição social de opressão e estigma no
mundo exterior. Essa parcela, desmembrada dos valores econômicos
116
A MÃE DO CRACK
horas sem comer qualquer alimento. Por isso, chegou a passar dias com
migalhas na barriga. Os globos oculares da garota saltavam da caixa
craniana, numa expressão de espanto, idêntica à figura de um zumbi.
E o veneno parecia que sugava também suas carnes, pois a magreza era
quase como um quadro de inanição.
Mesmo nessa situação, Patrícia engravidou da primeira filha,
Paula, sem ter tido tempo de se preparar para ser mãe. O crack foi
o seu principal companheiro durante toda a gestação. A jovem mãe
continuava sem trabalhar, enquanto o marido passava o dia fora. Mes-
mo assim, os dois viviam apegados ao vício, sustentado por André. A
fissura vivida pelo casal não permitia que tivessem uma relação equi-
librada, pois estavam em constantes brigas e agressões, causadas pelas
paranoias. Por isso, apelidam os usuários de crack de “noias”. Eles fi-
cam muito irritados e sujeitos a qualquer descontrole emocional por
causa da droga.
Por vários meses, Patrícia deixou de dar notícias até para sua
mãe. Veio, então, a segunda gravidez de mais uma menina, Anita. Nes-
ta gestação, todavia, Patrícia abusou de tudo, inclusive do crack e até
do marido. Um dia, logo que pariu a bebê, soube que André havia lhe
traído. Na briga que tiveram em decorrência disso, Patrícia contou a
Greyce Kelly que levou uma surra “parecida com a morte”. A mãe foi
buscá-la de volta pra casa e levou a filha ainda menor de idade para
denunciá-lo no Conselho Tutelar.
Mas, Patrícia ainda acreditava que amava André. O pior de tudo
era que, na casa da mãe, não mais poderia fumar o crack livremente,
nem teria quem custeasse sua boa vida. Com dois meses, voltou a mo-
rar com André, deixando a filha mais velha aos cuidados da mãe. Ao
todo, Patrícia e André passaram cinco anos nessa “arrumação”, como
ela mesma define o relacionamento. As brigas transformaram a vida
deles em um estado permanente de perturbação. Até a polícia já havia
sido chamada para separá-los. Patrícia roubava dinheiro do marido
para comprar droga. Embora André nunca deixasse faltar comida em
casa, eles chegaram a vender os móveis e vários bens para bancar o
vício. A situação chegou ao limite da degradação dos dois, até que ela
decidiu voltar para a casa da mãe e deixar tudo para trás.
120
A MÃE DO CRACK
121
AURI, A ANFITRIÃ
por Patrícia. E, assim como foi com André, Patrícia saiu de casa para
morar com o amante em poucos dias, no bairro Mondubim.
O casal decidiu morar em outro bairro, também periférico e in-
dustrial, chamado Santo Sátiro. Jaderson, por ter o dobro da idade da
garota, demonstrava ser um sujeito experiente e isso passava segurança
a Patrícia. Ele já vivera suas fases de danação, mas, mesmo no passado,
nunca havia se envolvido com drogas tão pesadas quanto o crack. Não
fumava nem cigarros, apenas bebia. Com a dedicação de Jaderson, o ca-
sal parecia construir uma vida estável. Patrícia engravidou novamente,
do terceiro filho, e desta vez era um menino, que se chamaria Vinícius.
Enquanto esperava o bebê, Patrícia se aproximou de uma mulher
na vizinhança, que traficava e também era usuária de cocaína. Apesar de
se chamar Helena, a traficante era conhecida mesmo pelo apelido, Lo-
rão. Nos finais de semana, Lorão convidava o casal para sua casa junto
de outros, para festinhas particulares. Patrícia passou a acompanhá-la e,
sempre que podia, dava uma “tecada” escondida do marido. Com pouco
tempo de amizade, já estava vendendo maconha, pó e crack na rua de
Lorão. Numa tarde dessas, contava a Vanderley – sua parceira de cela,
também presa por tráfico – o quanto foi habilidosa como comerciante.
Dizia que rápido levantava dinheiro com a droga em sua mão.
Realmente, Patrícia estava bem com as vendas quando, certa vez,
flagrou outro “avião”, Alisson, fumando algumas de suas pedras de cra-
ck. A cena foi impactante e muito tentadora. E toda a estabilidade que
já vinha desmoronando desde quando voltou a usar cocaína, naquele
momento, entrou em total decadência. Patrícia deixou de vender e ago-
ra só consumia. Quando Jaderson quis agir, já era tarde demais. Ela não
queria sair das ruas e de dentro do tráfico, a fonte mais abundante e
direta de sua preciosidade.
Quando Vinícius nasceu, Patrícia já estava há meses de volta ao
vício, e a criança herdou algumas sequelas. Desde recém-nascido, o me-
nino tinha um tom de pele amarelado, mantendo essa cor esquisita até
hoje. Por tudo que presenciou e participou, desde a barriga da mãe, era
uma criança nervosa e irritada. Mesmo sendo o filho com o qual ela
sempre fora mais apegada, Patrícia não tinha mais domínio de si para
cuidar dele. Voltou a ter um estado cadavérico e a perambular nas ruas
122
A MÃE DO CRACK
A decadência
Fazia oito dias que Patrícia dormia e acordava na rua, com a única
finalidade de levantar dinheiro para comprar crack. Revelou que, nessa
época, conseguia a proeza de fumar uma dezena de pedras em apenas
um dia. Não sei como seu cérebro e corpo aguentaram tamanha pressão.
Cada qual custava o preço máximo de cinco reais. Patrícia precisava se
coçar para arrecadar a verba. Muitas vezes, metia a mão em alguma coi-
sa valiosa, para tentar fazer escambo em droga na “bocada”. Da mesma
forma fazem algumas ratazanas desta detenção que vos fala, as quais
vivem à espreita de qualquer vacilo das outras internas para atacarem
e surrupiarem seus bens. Além de “aguentar” os bens de parentes ou
da própria casa, Patrícia pedia esmolas às pessoas nas ruas ou, então,
vendia o próprio corpo em troca de dinheiro suficiente para fumar, pelo
menos, duas pedras de crack.
Para além da ânsia em custear o próprio vício, Patrícia sabia que
não estava em condições de cobrar muito por um programa. Não toma-
va banho, não comia e estava num estado degenerativo. Seus fregueses
já eram figuras cativas, que ela conhecera nas proximidades da estação
e nas avenidas mais caracterizadas pela prostituição. Jaderson soube de
seus programas. Ficava furioso, em alguns momentos, e, em outros, sen-
tia repugnância da mulher. Imagino que os baixos preços dos progra-
mas das viciadas são grandes atrativos para os instintos masculinos. Por
outro lado, tenho uma inquietação moral, quanto à índole desses caras.
Questiono-me, afinal: que criaturas são eles para ignorar a situação dé-
bil dessas mulheres e se aproveitar de suas fragilidades para satisfazerem
somente necessidades sexuais? Refletir sobre o sexo masculino sempre
foi uma incógnita pra mim. Tão difícil quanto compreender que poder
há nas mãos deles para abusarem tanto das mulheres.
– Como é que tu conseguia se vender assim pra um estranho, Pa-
trícia? Pensava o quê na hora do vamos ver? – questionou Vanderley,
intrigada com o estágio de decadência de parceria.
– Muitas vezes, eu começava a chorar. Eu queria sair dali, mas
não conseguia. A gente sente, de todo jeito, e dói muito. Eu, simples-
mente, não tinha controle. O crack é uma droga muito maligna, Vandi.
Só sabe quem já passou.
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A MÃE DO CRACK
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AURI, A ANFITRIÃ
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AURI, A ANFITRIÃ
Quando estão no 7° mês de gestação, as grávidas são transferidas para a ala A, por esta
ser mais calma e próxima do setor de atendimento médico.
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A MÃE DO CRACK
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AURI, A ANFITRIÃ
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A MÃE DO CRACK
11 Trecho retirado da canção “Moldura”, composta em 1998 por Nilo Pinta, Bya-
fra e Aloysio Reis, que ganhou popularidade através da banda de forró Desejo de Meni-
na.
133
AURI, A ANFITRIÃ
outras alas, muito menos para as agentes. Se isso chegasse aos ouvidos
da administração, era castigo na certa. Algumas práticas religiosas são
permitidas pela instituição, incentivadas até. Outras práticas, que ex-
ploram o misticismo através de jogos, são extremamente proibidas. A
cartomancia é uma delas. Pois, para a direção, além de gerar comércio,
alimenta uma expectativa ilusória, que pode levar as internas ao desen-
gano. A “cliente” que se sentir prejudicada pode vir se queixar para a
cartomante, criando um conflito indesejado para a instituição. Contu-
do, mesmo sob o controle cristão, os jogos, as apostas e outras crenças
exóticas sempre dão um jeito de burlar as regras. Chegam a ser escor-
regadio. Persistem e continuam a se misturar com os costumes aceitos
pela instituição que em mim reina.
Mesmo dizendo não acreditar nessas coisas, Patrícia deixou-se
convencer por Greyce Kelly e acompanhou a parceira em uma consulta.
Esta queria saber como a namorada estava se comportando lá fora. Já
Patrícia aproveitou para matar a curiosidade. A consulta fora agenda-
da com antecedência para não gerar nenhuma movimentação suspeita.
Greyce Kelly guiou Patrícia até a cela da tal cartomante. Patrícia ainda
não sabia qual daquelas mulheres dizia ter poderes sensitivos. Só sou-
be quando entrou na cela em questão, após Greyce Kelly trocar olhares
com duas mulheres postadas do lado de fora, à espreita. Eram 3h da
tarde, faltando duas horas para as celas serem trancadas.
A tal cartomante não possuía ares de cigana, como Patrícia che-
gou a questionar às suas parceiras. Era mais uma pirangueira como as
outras, usando a mesma farda surrada. Nada de maquiagem nos olhos
nem lenço na cabeça. Seu jeito de falar não lembrava o magnetismo da
cigana que eu vira em uma novela, junto a algumas hóspedes. Mas, pelo
menos, ela tinha as cartas de tarô. E suas mãos cortavam com destreza o
baralho. Destreza que causaria inveja a Vanderley. Horas antes, Patrícia
havia questionado Greyce Kelly como o baralho havia entrado na ala.
Ninguém soube ou quis responder.
Greyce Kelly foi a primeira a ouvir o que as cartas tinham para
dizer sobre seu futuro. Assinou com um rabisco uma folha de caderno
e entregou uma carteira de cigarro à cartomante. Esse seria o seu paga-
mento. Ouviu que sua namorada ainda a amava, mas estava confusa por
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A MÃE DO CRACK
12 O artigo 171 do Código Penal Brasileiro prevê reclusão ou multa a quem “ob-
ter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo
alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
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A MÃE DO CRACK
– Quero botar uma lanchonete pra mim. Se bem que já era para
eu ter uma. Só não tive por minha causa, que acabei com quase tudo da
gente. Eu sei cozinhar quase todo tipo de salgado.
– Quem diria, essa magrela sendo cozinheira. E quando é que tu
sai mesmo, hein?
– Estou bem perto de completar os 2/5. Por um lado foi bom eu
vir pra cá. Têm males que vêm pro bem. Não é assim que dizem por aí?
Mas é ruim por causa da saudade. Deus não me colocou aqui. Deus me
permitiu vir pra cá para ver a realidade da vida. Eu aprendi muita coisa.
Era muito ignorante. Mas tenho muito medo de quando sair voltar pra
mesma vida. A gente tem que crer que não vai voltar, não é? E tem esse
bebê que vai me ajudar a superar tudo – completou Patrícia enquanto
acariciava a barriga.
– Só você mesma para achar bom ter vindo pra cá. Você teve qua-
tro filhos e não deixou a pedra em nenhum momento? Nem durante
a gravidez?
– Não. Não deixei. Tenho muito remorso por ter fumado durante
toda gravidez. Talvez por isso seja mais apegada ao de quatro anos. A
gravidez dele foi o período que mais fumei.
– Nossa! Mas, ele ficou com alguma sequela?
– Não sei direito. Só sei que ele é muito agitado.
– E o que essa gravidez tem de diferente das outras?
– A diferença é que eu a quero. As outras eu não queria. Essa é com
mais amor. Sabe que, às vezes, eu fico deitada e já sinto mexer.
– Valha! Já? Tá com quantos meses, mulher?
– Segundo mês, chegando ao terceiro.
– Mas não tá na época de mexer ainda não.
– Eu sei. Também estranhei quando senti.
– E esse exame pra confirmar? Já fez?
– Nada. Não vi nem a sombra do médico.
Uma semana depois, a enfermeira informou à Patrícia que na se-
gunda-feira seguinte, ela faria o exame de ultrassonografia com o Dr.
Fernando. O exame só detecta a gravidez a partir da quinta semana de
gestação, como explicou a enfermeira. Patrícia nunca havia feito esse
exame na vida, mesmo já tendo enfrentado quatro gestações. Quando
139
AURI, A ANFITRIÃ
142
A MÃE DO CRACK
À esquerda, grávida na ala A espera a hora do parto, que será no Hospital Gonzaguinha de Messeja-
na. À direita, janela cor-de-rosa da creche, onde as mães ficam com os bebês até um ano de idade.
143
Epílogo
[Para sempre, Auri]
A prisão perpétua
“Felizes os mortais que gozam da
autonomia de ir e vir. Que já viaja-
ram em tempos e campos distantes.
Que saborearam vários mundos.”
Auri
A PRISÃO PERPÉTUA
N
as espirais dos dias descompassados, já se vão quase treze anos
acompanhando os ciclos revividos por minhas protegidas. Eu,
que nasci com a incumbência mantenedora de fazê-las compre-
ender a importância do respeito à lei dos homens, passei a refletir mais
sobre essas leis. Primeiro, porque pouco conheço os homens que traba-
lham no ofício de fazer as leis serem seguidas. Os advogados que cru-
zam meus perímetros fazem passagens mais fugazes do que as despedi-
das das próprias rebentas. E, segundo, porque, como elas são o elixir da
minha existência, inevitável seria o nosso enlace quase visceral.
Maribel, Jéssica, Cinara e Patrícia são mulheres completamente
distintas que, talvez, jamais se encontrassem em outro lugar no mun-
do que não fosse em mim. Que não fosse em meu ventre. Sim, porque
elas se tornaram embriões. Nasceram e nascerão novamente a partir
do que viveram nas minhas entranhas. Pode ser que o cárcere tenha
dado uma reviravolta em suas concepções de mundo, é verdade. Mas
muitas outras, retornando à superfície da sociedade, podem nova-
mente não escolher o caminho dos “justos”, como dizem os párocos
que nos visitam.
Pelas heranças das vidas passadas de minhas hóspedes; pelas con-
dições degenerativas da maioria; pela falta de amparo de tantas mães e
filhos na situação carcerária e pela reincidência da penalização dessas
mulheres sufocadas em suas realidades exteriores a mim, fico às vol-
tas a me perguntar: por que o sistema delega, primeiro, punir, antes de
reparar? A punição, transferida sob forma de poder ao Estado, muito
me inquieta. Por que uma instituição imaterial como eu intermedia o
destino das pessoas que transgridem as leis dos homens?
Entre nós, temos um ditado para toda vez que alguma interna se
achar na razão de ajuizar o crime cometido por outra. “Ninguém aqui
é santa”, diz-se. E, com isto, não se transfere a terceiros a culpa, nem a
responsabilização inerente somente às infratoras. Pois, no fundo, cada
qual sabe o que fez. Contudo, na lei dos homens não funciona da mesma
maneira que em nossos códigos. Por mais que minhas hóspedes tenham
violado as normas ou infringido a propriedade alheia, não é com as víti-
mas que elas deverão se reparar, mas com Estado. E sua dívida será com
toda a sociedade. Pois, apenas por viverem nessa sociedade, elas são
147
AURI, A ANFITRIÃ
150
A PRISÃO PERPÉTUA
Como os brinquedos do meu parquinho que se deterioram com o tempo, vejo de modo
cada vez mais claro o fracasso do sistema penal em sua função de ressocializar.
151
AURI, A ANFITRIÃ
Como já disse antes, a finalidade para a qual fui criada não se li-
mita à aglomeração de mulheres contraventoras. Não sou um campo de
concentração nazista, como mostram os livros de minha biblioteca, com
o intuito de exterminar algumas etnias humanas. O fulgor da minha
existência, a serventia para a qual fui erguida, não é a do extermínio. O
discurso do sistema prega que eu sirvo para restaurar as transgressoras
das leis dos homens, para que elas voltem ao seu convívio sem sair nova-
mente da linha amarela. Ora, se o que se pretende é ressocializar, como
fazer isto afastando a pessoa dessa mesma sociedade à qual se pretende
reintegrá-la? E mais. Se o mal cometido por quem infringe as normas é
algo que se deseja ver afastado, por que deveria ser reproduzido através
da pena? Por que combater o mal com a reafirmação dele mesmo?
Por todos os males cometidos por minhas hóspedes, elas rece-
bem como retribuição a privação de sua liberdade, através do controle
de suas identidades, de suas consciências e de seus corpos. Cheguei a
presenciar, algumas vezes, a culminância terrível da dor aplicada indi-
retamente a essas mulheres, por meio do enclausuramento. Este, por
sua vez, pode ser humanamente insustentável e perturbador para várias
pessoas. E a solução encontrada para ceifar o sofrimento veio delas mes-
mas, usando pela última vez o livre arbítrio, através do suicídio.
Foram-se quatro almas, completamente estarrecidas e devastadas
pelo sofrimento. Com os lençóis que acobertaram várias de minhas in-
ternas, elas se enforcaram dentro de suas celas. Emanciparam seus espí-
ritos para algum lugar longe daqui. Pois não conseguiram suportar tudo
isso e, talvez, jamais conseguiriam superar o estigma de suas condena-
ções, a ponto de encarar o mundo exterior. Porque a ideia que até nós
incorporamos da pena é a de que “todos devem receber as consequên-
cias dos seus atos”. E o que os criminosos merecem por desrespeitar a lei
dos homens, em essência, é a dor.
Por outro lado, em termos de regeneração das mulheres contra-
ventoras, sou uma privilegiada em comparação a muitas como eu. Em
meus domínios, educa-se, assim como se oferta trabalho para a remis-
são de pena. Algumas internas de exímio comportamento, inclusive,
conquistaram o benefício de ingressar ao ensino superior, mesmo em
regime fechado. Além de Cinara, minha peregrina do mundo exterior,
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A PRISÃO PERPÉTUA
diversificar os meios para atingir seus fins, mas os subalternos não? Sim,
concluí. O caso de Jacira só fortalece o pensamento de que as leis só ser-
vem para desfavorecer os plebeus e favorecer os príncipes.
Pelo que se manifesta entre meus vão, existe quase uma generali-
dade da incidência de penas sobre os indivíduos mais vulneráveis, po-
bres, marginalizados e destituídos de poder na sociedade dos homens.
Minhas protegidas não têm ninguém por elas. Muitas vezes, porque
não têm dinheiro ou reputação. Estão à mercê do Estado, inclusive,
para sua própria defesa.
Por outro lado, canso de ver nos noticiários a impunidade para
abastados e poderosos. Dinheiro e influência acabam sendo a moeda
mais valiosa. Assim, basta olhar para minhas protegidas e constatar o
quanto a ação punitiva do Estado não alcança, e nem poderia alcançar,
todos os violadores das leis penais. Portanto, creio que a lei dos homens
se traduz como um poder destinado apenas a manter as estruturas de
dominação e soberania social já existentes.
Assim como quando era permitida a circulação de moedas em
meus cômodos, vejo que a injustiça se prolifera caso o sistema das leis
esteja vinculado ao sistema dos valores. A maioria das aprisionadas em
meus cômodos são justamente aquelas que não fazem parte do ciclo
externo de trabalho, reputação e consumo. Estão margeando os privilé-
gios dos abastados e não podem interferir em sua ordem ou, então, são
facilmente entregues a mim.
Reconheço que o sistema à qual pertenço pode até ser baseado no
argumento de prevenir ações negativas, mas acaba por reproduzir a po-
breza. Penso que insistir no instrumento de leis tão segregativas é um
fiasco. É o que retarda a busca de meios mais eficazes para reduzir as
tais ações negativas. No entanto, parece que sou vista como um mal ne-
cessário por muitos. “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão,
e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E. entretanto, não ‘vemos’ o
que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir
mão”, ilustrou brilhantemente Foucault.
Infelizmente, a lei só intervém na vida dos periféricos tardia-
mente e tão unicamente para efetivar uma excludente punição. En-
tre minhas reclusas, contudo, as coisas caminham para um horizonte
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A PRISÃO PERPÉTUA
Auri,
Agosto de 2013
Itaitinga, Ceará
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AURI, A ANFITRIÃ
Vários felinos têm a mim como morada. Ao contrário de minhas hóspedes, chegam por
vontade própria, atraídos pelo cheiro de comida e pela esperança de abrigo.
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A PRISÃO PERPÉTUA
A casa abandonada, vizinha a mim, serve de abrigo para um ex-hóspede do IPPS, segundo a
lenda. Quando fui inaugurada, tanto a casa quanto o misterioso morador já estavam por aqui.
O meu vizinho Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) fica localizado no alto de uma colina.
Inaugurado em 1970, é o maior presídio do Ceará, hospedando, exclusivamente, machos.
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Referências Bibliográficas
ATHAYDE, Celso; BILL, MV. Falcão: Mulheres e o tráfico. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2007.
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