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Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca

DO SANGUE NASCE A LUZ


OS CAMINHOS DE NADIR
Uma biografia de Nadir de Godoy
DO SANGUE NASCE A LUZ
OS CAMINHOS DE NADIR

Uma biografia de Nadir de Godoy

Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca

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Autor
Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca

Coordenadores do projeto
Josimari Carvalho Zanon
Ilza Maria Palace
Prof Dr Edison Iglesias de Oliveira Vidal

Colaboradores do projeto
Renato Fontes Gomes
Bernhard Nicolau Walzberg - in memorian
Profa Dra Fernanda Bono Fukushima

Editoração
Josimari Carvalho Zanon
Ilza Maria Palace
Ana Silvia Sartori Barraviera Seabra Ferreira

Diagramação
Ana Silvia Sartori Barraviera Seabra Ferreira

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Título: Do sangue nasce a luz
Subtítulo: os caminhos de Nadir
Formato: Papel
Veiculação: Físico
ISBN: 978-65-990577-3-1

Este projeto recebeu apoio das seguintes instituições:

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Sou uma vencedora desde criança, porque sempre
confiei em Jesus e tive ele como meu guia, meu tudo.
Quero continuar sendo vencedora, procurando melhorar
a cada dia, pois nossa tendência é sempre melhorar,
para podermos construir um mundo mais feliz.

Dona Nadir

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Sumário

Ao desconcerto do mundo 12

Saio da vida para entrar na história 18

Mãos dadas 25

Felicidade 36

Que seja eterno enquanto dure 43

Mulher vestida de Sol 53

O acendedor de lampiões 61

A vida é assim... 70

Retrato 79

Memória 88

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Prefácio
Costumamos pensar a História da humanidade em função de
personagens impactantes ou de eventos marcantes que afetaram a vida
de milhares de pessoas. Frequentemente nos esquecemos que a História
é uma teia complexa tecida por um sem-número de indivíduos anônimos
através de suas histórias cotidianas interagindo uns com os outros e com
o mundo maior. Esse segundo olhar traz consigo uma lição das mais
relevantes, a de que todo ser humano e de que cada história são
especiais e únicos. Essa perspectiva integra o cerne da arte de cuidar, a
qual exige que nos importemos uns com os outros. Para nos importarmos
verdadeiramente, precisamos reconhecer que o outro é especial. Sem
isso, o cuidado não é cuidado, é farsa.

Gostamos de pensar as pessoas idosas como viajantes do tempo. São


indivíduos que nasceram em um outro mundo, onde as pessoas
pensavam, falavam, se vestiam e agiam segundo padrões e
circunstâncias diferentes dos atuais. Mas sua viagem no tempo não se
deu através de uma máquina do tempo ou de um feitiço, ela ocorreu
lentamente, dia após dia. São os idosos aqueles que podem nos trazer
relatos em primeira pessoa desse mundo e com isso nos ajudar a
enxergar os tempos atuais com novos olhos.

É com grande alegria que vemos nascer essa série de sete livros do
Projeto Biografia, onde alunos do curso de Medicina e Biomedicina da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
entrevistaram idosos residentes na Vila Dignidade de Botucatu de forma

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a construir um relato de suas biografias.

Cada livro é um presente. Para os idosos os livros são um presente onde


podem enxergar a si mesmos e sua própria história. Um espelho onde
poderão se enxergar como as pessoas únicas e especiais que são; onde
poderão reconhecer parte de seu legado. Para as famílias dos idosos e
seus entes queridos, os livros são lembranças concretas que
permanecerão mesmo quando eles não estiverem mais entre nós. Para a
sociedade, os livros representam uma oportunidade de preservar sua
História e de reconhecer o valor dos idosos.

Finalmente, gostaríamos de agradecer a todos aqueles que contribuíram


para que o presente projeto fosse possível, a começar pelos idosos que
aceitaram nosso convite para participar do mesmo e aos alunos que
abraçaram a ideia. Gostaríamos de agradecer a Comunidade de Cristãos
de Botucatu por todo apoio desde a concepção do projeto, ao Conselho
Municipal do Idoso de Botucatu que acolheu nossa proposta e contribuiu
para o financiamento da impressão dos livros juntamente com a
Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura da UNESP; à assistente
social Alessandra Maschetti do Centro de Referência Especializado de
Assistência Social de Botucatu e à Lúcia Helena Nascimento Ferreira da
Vila Dignidade, e à Prof. Ana Sílvia Sartori Seabra Ferreira do Núcleo de
Educação a Distância e Tecnologias da Informação em Saúde da
Faculdade de Medicina de Botucatu da UNESP .

Edison Iglesias de Oliveira Vidal


Ilza Maria Palace
Josimari Carvalho Zanon

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Capítulo I

Ao desconcerto do mundo
Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E para mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Luís Vaz de Camões

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S
exta-feira amanheceu. Era 2 de novembro, dia de finados, o popular
dia das almas , como costumamos dizer no interior de São Paulo. Em
situações normais esse já é um dia reflexivo, dado todo o panorama e
a simbologia que o envolve, mas para mim, especialmente, carregava
um peso muito maior.

Estava triste, decepcionado e bastante abalado emocionalmente comigo


mesmo, devido a situações que haviam ocorrido, mas que não valem a pena
serem expostas aqui. Como vocês verão, esse livro não é sobre mim, mas sobre
alguém muito especial que vocês terão o prazer imenso de conhecer. No
entanto, acostumem-se com essas digressões desde já. Embora seja fã de
Guimarães, o estilo ébrio machadiano me acompanha.

Conforme tinha combinado com a professora Josi, naquele dia iria fazer
minha primeira visita para a Dona Nadir, de cuja biografia esse livro se trata.
Na realidade não era a primeira visita. Já tinha tentado conhecê-la duas vezes
antes. A primeira foi no dia 29 de setembro, dia da primeira visita de todos os
colegas, porém ela não estava, pois havia ido para Bauru, na casa de sua filha,
ajudar a cuidar de seu genro que havia se acidentado. A segunda foi no dia 20
de outubro, dia em que também não a encontrei. Nessa ocasião, fiquei depois
sabendo que ela fora para Brasília, no templo da Legião da Boa Vontade,
entidade que vocês ouvirão falar (e muito) nesse livro.

Estava arrependido de ter ficado em Botucatu nesse final de semana.


Pensava que deveria ter voltado para Piraju, minha cidade natal, principalmente
devido à conjuntura daquele momento. Mas, já tinha assumido esse
compromisso, e na tarde de sexta-feira, vencendo toda minha tristeza e minha
angústia, fui até a Vila Dignidade para conhecer a Dona Nadir, junto com a
professora Josi. Estava ansioso.

Vocês devem estar também ansiosos por saber o que é a Vila Dignidade,
acertei? A Vila Dignidade é um local aqui da cidade, que faz parte de um
programa do governo estadual. Nesse local, idosos que estavam em condição
de vulnerabilidade social e baixa renda, tem acesso gratuito a uma casa, sem a
necessidade de arcar com qualquer custo de luz ou água, cuidando apenas de
sua alimentação. É certamente um ambiente calmo e aprazível, que contrasta
com a vida sofrida e triste que muitos de seus moradores tiveram e têm, até
hoje.
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Pelo que havia escutado sobre Dona Nadir, ela era uma mulher muito
falante, desinibida e bastante comunicativa, personalidade diferente da minha.
Na realidade, com as pessoas com quem tenho mais intimidade, ajo dessa
forma também, embora em proporção muito menor. Quem sabe não somos tão
diferentes assim. Às vezes, acho que conhecemos muito pouco sobre nós
mesmos. Mas enfim, vamos ao ponto em que a conheci.

Chegando lá, falamos com o porteiro, que foi logo chamá-la. Não tinha
criado nenhuma imagem ainda de como ela seria, até porque, ultimamente,
tenho estado extremamente atarefado e pensando em muitas outras coisas.
Logo ela veio nos receber. Era uma senhora de altura mediana, com cabelos um
pouco para cima do ombro de cor castanho-avermelhada. Tinha a pele clara,
mas intensamente marcada por sardas, em toda a face. No primeiro momento
que a vi, já pude perceber que se tratava de alguém especial. Certamente devia
ter tido uma vida muito intensa e sofrida (algo que se confirmou com a história
que vocês lerão), até pelo fato de atualmente estar naquele local, mas mesmo
assim demonstrava uma imensa alegria e felicidade por sua vida.

Ela prontamente nos recebeu e fomos à sua casa. Fisicamente, era igual a
dos outros moradores da Vila, com uma sala junto com cozinha, quarto,
banheiro e um espaço externo. Na sala, a mesa de jantar estava sendo
utilizada como estante, onde ela apoiava a televisão e o aparelho de vídeo.
Havia quatro cadeiras e um armário, onde guardava os mantimentos. Na
cozinha, tinha um fogão e a geladeira. Era muito organizada, e era possível
observar revistas, livros e outros materiais da Legião da Boa Vontade, a LBV
(irei me referir assim agora), por toda a casa. Seu quarto e a área externa ela
não mostrou e também não quis ser muito invasivo em pedir para conhecer, até
porque era nosso primeiro contato. Sentamos na sala e começamos nossa
conversa.

Que bom que vocês vieram para conversarmos! Todo o pessoal já estava
falando mesmo que vocês têm vindo aqui para escrever nossa biografia! , disse
Dona Nadir, com um sorriso no rosto.

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Ela explicou que não estava nos outros dias porque tinha ido viajar,
conforme expliquei anteriormente, mas se colocou a total disposição para tudo
que quiséssemos saber sobre ela. Podemos começar a história então? ,
perguntei, no que ela prontamente respondeu rindo: Claro! Só não se
incomode que eu falo muito!

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Capítulo II

Saio da vida para entrar na história


Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da
eternidade e saio da vida para entrar na História.

Getúlio Dornelles Vargas

20
E
ra manhã do dia 24 de agosto de 1954. Os jornais do país todo
anunciavam: Matou-se Vargas. O presidente cumpriu sua palavra:
Só morto sairei do Catete . Na madrugada daquele dia, uma
reunião decisiva ocorreu no palácio do governo. Após o atentado a Carlos
Lacerda, instalou-se grande pressão por parte das elites sobre o governo,
em associação com a manipulação feita por alguns setores da imprensa.
Junto com seus ministros e parte de sua família, Vargas decidiu sobre o
futuro de seu governo, e sobre um afastamento até que se acalmassem os
ânimos no país.

O que poucos esperavam era que, por volta das 8h30 daquele dia, o
presidente Vargas, o maior da história desse país (Lula quase chegou lá),
cometesse suicídio. Com um tiro no peito esquerdo, abaixo das iniciais de
seu nome no pijama listrado, deu seu último ato em vida. As ruas foram
tomadas por multidões que davam seu último adeus ao presidente. O
cortejo fúnebre moveu milhares pela orla de Copacabana até o Galeão, de
onde o esquife do caudilho partiu para São Borja.

Trinta minutos após a morte de Vargas, nascia, em Duartina, no


interior de São Paulo, Dona Nadir. Nesse período, moravam na fazenda
Esmeralda, grande propriedade de café, com mais de 1500 hectares, e que
ainda hoje existe. Seus avós paternos eram caseiros da fazenda, onde
trabalhavam seu pai e sua mãe.

Foi então, com toda essa esfera social e política, que no hospital da
cidade, nasceu Nadir. Minha mãe dizia que estava no hospital e estava
aquela correria, com todo mundo preocupado pela morte do Getúlio; as
crianças saindo mais cedo da escola. Ela até queria colocar meu nome em
homenagem a ele. Ainda bem que não colocou! , disse dando risada. Eu
gosto muito de ouvir sobre a sua história de vida .

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Seu Arquelino, pai de Dona Nadir, era um homem muito trabalhador.

Na fazenda Esmeralda, trabalhava na lavoura de café, auxiliando seus pais

e com a ajuda de Dona Maria, sua esposa e mãe de Nadir. Tinha um

comportamento muitas vezes agressivo e pouco compreensivo, sendo

agressivo com sua esposa, reiterando o papel de submissão da mulher

naquele período, e com seus filhos. Por uma razão muito pequena, já

agredia seus filhos, a que sua esposa nada podia fazer. Quando ele batia

nos meus irmãos, eu e minha mãe colocávamos o véu e ajoelhávamos no

quarto para rezar. Assim que saíamos, já estava tudo calmo , Nadir conta.

Meus irmãos inclusive zombavam de mim, chamando-me de crentinha ,

mas eu nem ligava . Apesar disso, seu Arquelino foi um grande exemplo e

esteio para ela. Antes de sua morte, já na velhice e no final da vida, deixou

de ser violento.

Dona Maria, mãe de Nadir, pode ser definida como uma mulher de
força. Teve 12 filhos, sendo que nove foram por parto normal e três por

cesariana. De todos, 10 sobreviveram. Maior exemplo para Dona Nadir, ela

sempre mostrava sua força e fé. Devido às condições precárias de seu

começo de vida, vivendo em casa de sapé em Duartina, acabou pegando a

doença de Chagas. Na hora de comer ela até se escondia, porque como

tinha Chagas, ficava uma bola subindo e descendo na sua garganta .

Venceu as dificuldades econômicas, familiares e sociais, para conseguir

criar os dez filhos e um neto. Muito carinhosa, sempre fazia polenta de

manhã para as crianças, que eles comiam com leite de cabra. Os filhos

cresceram fortes e saudáveis. Para tudo, ela sempre dizia Deus é quem

sabe , independentemente da situação .

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Sempre buscou a coragem, alicerçada em sua fé, para enfrentar os
desafios de sua vida. A Congregação Cristã, igreja que frequentava, foi
fundamental para toda essa superação e, de certa forma, resiliência. Dona
Nadir também fez parte dessa Igreja até conhecer seu esposo, mas isso é
um assunto para capítulos seguintes. Minha mãe queria ter 3 filhos, ela
contava. Como eu fui a quarta, eu brincava com ela que não era para eu
ter nascido então , contava Nadir rindo.

Para mostrar como realmente não conseguimos entender a vida, essa


mulher inacreditável que foi Dona Maria teve três derrames. No último,
teve paralisia no lado esquerdo do corpo e, posteriormente, desenvolveu
Alzheimer. No seu final de vida, foi cuidada pela filha Vani, até sua partida.

De seus avós, as lembranças são marcantes. Sua avó paterna, era


quem a acompanhava, junto com sua mãe até a igreja. Mulher de força, foi
uma grande iniciadora de sua fé. Mesmo após Nadir parar de ir à
Congregação Cristã, era ela que levava sua avó até a igreja. Mulher forte
e vaidosa, trabalhou na roça por muito tempo. Ela gostava de fumar
cachimbo também. Ela dizia que era bom pra distrair . Foi com essa avó
que Nadir teve uma relação mais intensa.

Sua avó materna morreu quando ela ainda era pequena, tendo tido
pouco contato com ela. Tinha uma úlcera grave no estômago, que foi
descoberta já numa situação muito tardia da doença. Quando Nadir tinha
12 anos (peço desculpas pelo salto de tempo), após chegar da escola, sua
mãe pediu para que ela levasse arroz doce a sua avó, que estava internada
no hospital de Bauru, para que operasse da úlcera (logo vocês verão que
eles se mudaram de Duartina). Ao chegar lá, Nadir ficou assustada e
triste, devido à fragilidade em que sua avó estava. Eu desci a escadaria
do hospital correndo, e fui para casa avisar minha mãe, que estava
mexendo no colchão de palha. Quando meus pais chegaram no hospital,
ela partiu .

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Seu avô paterno foi uma figura marcante em sua vida. Todo dia tomava
uma taça de vinho, sem falta. Para ele, funcionava como remédio. Embora
tivesse problema renal, nunca fez uso de medicamentos. Utilizava remédios
caseiros, e, como não poderia deixar de ser, o vinho. Morreu de derrame,
já bastante idoso.

A família de Nadir foi, sem dúvida alguma, muito importante para ela.
Foi a partir de suas vivências na infância, da companhia dos pais e dos
avós, que sua personalidade guerreira, resistente e batalhadora foi sendo
construída. Eu sempre digo que meu pai, minha mãe, meus irmãos e
minhas irmãs são um presente de Deus. O que eu pude fazer por eles eu
fiz. Tenho a consciência tranquila.

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Capítulo III

Mãos dadas
Estou preso a vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças (...)

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas

Carlos Drummond de Andrade

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E
stimados leitores, certamente vocês viram a importância de seus
familiares para Dona Nadir. São seu exemplo, e apesar de todo o
sofrimento, seu grande sustentáculo. Todos temos o nosso
sustentáculo, aquelas pessoas, sejam da família ou não, sem as quais não
conseguimos viver. Eu, particularmente, posso salientar meus familiares e
quatro grandes amigos. Mas isso não vem ao caso. Perdoem-me pela
digressão.

Devido a toda essa importância, falarei dos 11 irmãos de Dona Nadir,


cujas vidas dariam um livro próprio. São parte dela, e como, tal, não
podem ficar de fora da história. Daqui a pouco retornamos à nossa
personagem principal.

O primeiro filho de Seu Arquelino e Dona Maria foi um homem.


Entretanto, quis o destino que nascesse morto. Seu pai ficou desesperado,
mas Dona Maria, forte na fé, salientava: Imagina, Deus vai dar outro! . E
deu mais 11. O nome permaneceu desconhecido até para Nadir.

Um ano e meio depois nasceu Rosalino, menino muito apegado à mãe,


de cuja história pouco também se conhece. O que sabemos é que, quando
já adulto, Rosalino permaneceu por um longo período internado em um
hospital psiquiátrico de Tupã, período no qual houve o falecimento de sua
mãe. Ao retornar para sua casa em Bauru, recebeu a triste notícia da
partida da mãe que tanto amava. Ficou extremamente abalado.

Devido ao grande impacto da notícia, ficou desorientado e passou a ter


problemas mentais, nunca mais voltando a ser quem era antes. Voltou para
o hospital, onde perdeu sua memória, e perdeu-se da memória de sua
família. Depois disso, Nadir nunca mais teve notícias dele. Eu e minha
irmã chegamos a procurá-lo, mas não sabemos se ele morreu ou o que
aconteceu. Fica mais difícil encontrá-lo também, pois ele perdeu a
memória

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A terceira filha foi Creusa, que teve uma vida repleta de sofrimentos.
Creusa apanhava muito de seu pai na infância e adolescência, e, até por
isso, também batia nos irmãos. Minha irmã mais velha batia em mim, mas
eu entendia que ela tinha problema, por causa do meu pai . Aos 17 anos
de idade, revoltada com a família, Creusa fugiu com seu namorado, com
quem veio a se casar logo depois. Com ele, teve dois filhos. A situação
ficava cada vez mais difícil, pois seu marido não gostava de trabalhar e não
tinha boa relação com a família, situações que os levaram a grandes
problemas sociais, afastando-os de todos. Para trazer ainda mais
sofrimento à vida de Creusa, o marido a maltratava e a traía com uma
mulher que era professora do primeiro filho do casal. Cansada de tudo
isso, separaram-se, e seu ex-marido foi viver com a outra mulher.

Logo que se separou, Creusa descobriu que estava grávida de uma


menina, porém seu ex-marido não reconheceu a paternidade,
abandonando-a para criar sozinha a filha e os outros filhos. Essa sina de
Creusa era algo muito comum no passado e que até hoje vemos. Mulheres
que não têm o apoio do pai de seus filhos e têm que criá-los sozinhas. São
guerreiras. Guerreiras que a sociedade ignora e pouco valoriza.

A mulher com a qual seu ex-marido foi viver tinha muitos amantes. Um
deles, descontente por ela estar com um novo homem, envenenou o
ex-marido de Creusa, que morreu de forma muito triste, sofrida e cruel.
Após esse choque, Creusa, que no imo d alma ainda o amava, entrou em
um profundo estado de depressão e passou a beber. Desiludida com os
destinos de sua própria vida, foi viver com um senhor mais velho, logo
após conhecê-lo, de quem pegou o vírus HIV.

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Em meio a toda essa imensidão de sofrimento, sua filha ficou grávida,
ainda jovem. Porém, para Creusa, em meio a ira e tristeza de sua vida,
nada mais importava, e expulsou sua filha de casa. Ela não era capaz de
suportar mais um problema, mais uma decepção. A jovem, sem ter para
onde ir, acabou tendo seu filho sozinha, na rua, e logo o deu para a
adoção. Não se teve mais notícia deles. Muito debilitada já pela AIDS,
Creusa era cuidada por suas irmãs. Nadir a levava ao cabeleireiro e
sempre esteve ao seu lado, até a sua morte, ainda jovem.

A quarta filha foi Nadir. Depois aprofundaremos em sua vida e


infância.

Vani foi a quinta filha. Rindo, Nadir conta: Essa deu trabalho! . Vani
era uma menina muito ciumenta e apegada a sua mãe. Tinha uma
personalidade difícil, pois quando fazia algo de errado, mentia e culpava os
irmãos, que acabavam apanhando dos pais em seu lugar. Era alguém que
levava a vida a sua maneira, sem se preocupar com os outros, com seus
compromissos ou obrigações. Não queria ter que trabalhar para viver, e foi
sempre sustentada por alguém.

Casou-se várias vezes e, devido a sua personalidade difícil, tinha


dificuldade em manter um relacionamento longo com alguém. Nadir conta
que ela teve nove filhos, de diferentes pais. Seu filho mais velho foi adotado
pelos seus pais (como disse anteriormente, eles criaram os 10 filhos e esse
neto), e, pela ausência de cuidados, seu quinto filho morreu com apenas
20 dias. Ela não cuidava direito dele e batia nesse filho, porque queria
sair de noite. Ele acabou morrendo .

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Depois do quinto filho, Vani teve mais quatro, sendo incapaz, no
entanto, de criá-los e de cuidar deles adequadamente. Seus pais,
devido à idade avançada e à condição de vida difícil, não tinham como
adotar mais filhos. Por causa de toda essa dificuldade, uma menina foi
dada para uma patroa de São Paulo, que cuidou dela, estudou-a e a
criou. Ela chora porque tem vontade de ver a menina que deu, que já
tem mais de trinta anos hoje em dia . Nadir conta que, além de tudo
isso, Vani roubava suas patroas e roubava os seus irmãos. Apesar
disso, Nadir sempre tentou ajudar a sua irmã, dando bons conselhos
e auxiliando-a. Eu digo pra ela que já chega, pra ela parar com isso
e seguir a vida, com seu marido, mas ela não me escuta. Até por isso,
acho que ela não se dá muito bem comigo agora .

O sexto filho da família foi Neusa. Morreu ainda pequena, com


cerca de 2 anos, devido a um problema no pulmão que tinha. Por ser
muito pequena na época, Nadir não tem recordações marcantes dela.

Adelino foi o sétimo filho. Nasceu fraco, e desde pequeno tinha


problema nos ossos, começando a andar tarde, com três anos de
idade. Teve uma vida sofrida, assim como observamos na triste sina
dessa família. Em uma situação muito trágica, perdeu a vista de um
olho. Era trabalhador rural em uma plantação de laranja, em uma
cidade próxima a Duartina, e, um dia, enquanto ia para a fazenda,
encontrou uma mulher, com quem se engraçou e recebeu um bilhete
para encontrá-la mais tarde. Chegando no local do encontro, Adelino
percebeu que havia caído em uma armadilha. Lá estava um homem,
que bateu nele, de modo muito cruel, fazendo com que perdesse um
de seus olhos. O porquê disso? Jamais saberemos. No entanto, ele
era uma pessoa muito boa e tranquila, e, por isso, nada contou a
seus pais, com medo de que seu pai, por vingança, matasse o rapaz
que o agrediu. Ele é uma pessoa honesta e religiosa, e sempre que
tem um problema, já dobra os joelhos para rezar .

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Casou-se com Nice, uma mulher que havia sido casada anteriormente
com um traficante, já tendo dois filhos dessa relação. Em sua relação com
Nice, tiveram dois filhos. O mais jovem morreu ainda pequeno, com seis
anos, depois de ter sido atropelado por um caminhão. Nadir lembra da
cena muito triste e emocionada: Ele pegou o filho nos braços e a mulher
ria. Ela não ligava pra nada . O filho mais velho teve o destino de muitos
outros dessa família. No início, era uma boa pessoa, mas acabou se
envolvendo com drogas e foi morto em Santa Catarina. Podemos culpá-lo
de alguma coisa? Não sei. O que se vê hoje em dia é cada vez mais a
desestruturação das redes familiares e das redes de carinho. Como esse
jovem poderia ter um futuro se não tinha com quem contar, quem o
apoiasse ou o ajudasse. Tudo isso ele encontrou nas drogas. E triste dizer
isso, mas vejo muito disso aqui em minha faculdade.

Nadir conta que Adelino tem vontade de se separar. Sua esposa o trai
e bate nele, mas, apesar de tudo, ele a considera uma mulher trabalhadora
e que não merece nada de mal. Eu falo pra ele denunciar ela, mas ele tem
muita dó e gosta dela. Quando eu converso com a minha cunhada, ela diz
pra eu não me meter na vida dela. É muito triste .

Depois veio Durvalino, o oitavo. O menino nasceu forte e era bem


cuidado por sua mãe, mas aos 8 meses de idade teve paralisia infantil. Em
uma perna, ficou paralisado da cintura para baixo, sem sentir nada. Até os
10 anos, apenas se arrastava no chão, não conseguindo andar. Eu era
raquítica, mas levava ele nas costas para o médico em Bauru. Eles tinham
até dó . Como percebemos, a paralisia infantil teve um impacto imenso na
vida de Durvalino. Doença importante , que até Franklin Roosevelt teve, a
poliomielite trouxe sofrimento a muitas famílias no passado. Graças à
vacinação em massa, hoje está praticamente erradicada. No entanto,
sempre há o risco de retorno. Achávamos que o sarampo já tinha acabado,
mas hoje novo surto se instala. Não é fácil o ser humano. Mas voltemos
para a história.

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Durvalino fez 11 cirurgias na perna, e hoje já anda melhor. Casou-se e
teve dois filhos. Teve um casamento turbulento, sendo que sua esposa,
sem juízo , nas palavras de Nadir, o abandonou três vezes. Hoje vivem
bem. Mesmo com seu problema na perna, trabalhou por muito tempo como
cobrador de ônibus, e tenta, atualmente, se aposentar por invalidez.

O nono filho, Elias, morreu cedo, aos 38 anos. Sobre sua infância e
vida, Nadir não se lembra muito, mas algo certamente é muito marcante.
Elias foi, um dia, separar uma briga, quando ainda era jovem, mas em meio
a toda aquela confusão, recebeu uma facada nas costas. Foi necessária
ser feita uma transfusão de sangue e, naquele período, onde não se faziam
exames em todas as bolsas de sangue, acabou se contaminando com o
vírus HIV. A doença muito o debilitou e sua morte foi precoce, em um
quadro de caquexia e muita dor.

Marta, a décima filha, teve o início de sua vida já muito complicado.


Durante seu parto, sua mãe teve uma hemorragia importante, e a criança
quase morreu. É uma mulher bastante religiosa, que sempre ajuda as
pessoas que precisam. No entanto, segundo Nadir, os irmãos ela não ajuda
muito. Eu vou conversando com ela sobre isso, e ela diz que vai mudar .
Casou-se e teve duas filhas, porém o marido a traiu três vezes. Apesar
disso, ainda estão juntos.

Uma de suas filhas teve um câncer grave no joelho, mas tratou, passou
por uma cirurgia e se curou. A filha de Marta ficou grávida ainda jovem e
teve um câncer no útero, sendo que seria necessário realizar o aborto da
criança, ou ela correria risco de vida. Nadir não se abalou com essa
situação. Minha irmã dizia que preferia que ela tirasse a criança, porque
não gostava do genro, mas eu sabia que não era certo . E todos oraram
muito, oraram para que fosse possível salvar a criança. E, incrivelmente, a
criança não precisou ser abortada e viveu. Minha sobrinha agradecia
pelas minhas orações e por ter alguém forte assim ao seu lado . Mas se
nós tivemos o direito de vir ao mundo e cumprir nossa missão, porque
impedir o de outro .

33
Irene foi a décima primeira filha. Uma mulher guerreira e sofrida .
Irene teve um quadro de hepatite C e além disso, câncer de intestino.
Todos oraram e ela conseguiu se recuperar. Em seu casamento, teve dois
filhos. A história parece que repete. O filho mais velho foi para o caminho
das drogas, não tendo esperanças, e casou-se com uma prostituta. Desse
relacionamento teve um filho, mas que ficou aos cuidados de Irene. Ambos
os pais não queriam a criança, e Irene acabou acolhendo a criança. O filho
mais novo foi preso, mas não sabemos ao certo o motivo. Para piorar, seu
marido a largou para viver com uma mulher mais jovem e alcoólatra, sem
pensar nos filhos e na família. Vida triste a de Irene.

O décimo segundo filho do casal, irmão de Nadir, morreu ainda


criança, porém quando já era um pouco maior. As lembranças sobre ele
são muito escassas.

Tem uns trancos e barrancos na família, mas a gente tem que ser
forte e ajudar, para eles não desmoronarem .

Como vocês veem, as palavras desse terceiro capítulo sangram.


Sangram por mostrar uma família em que aparentemente nada dá certo,
onde cada irmão tem um histórico de traição, crimes, drogas, sofrimentos
e doenças. E apesar de tudo isso, Nadir foi forte. Ajudou-os
independentemente de tudo que haviam feito, sem julgar ou olhar os
motivos. Ajudou-os apenas por amor. Certamente, a cada momento, vemos
que somos privilegiados, por inúmeros motivos. Nossos problemas não
chegam nem perto dos que acabamos de ler. Tudo isso moldou o modo
como Nadir passou a ver a vida, e, como acho que ela iria dizer, sua
missão aqui neste mundo.

34
Desculpem-me pelo tom um tanto quanto descritivo. Acho que era
necessário, até pelo fato de não serem eles os personagens principais da
história. As histórias não tiveram o colorido próprio, mas tiveram a síntese
furta-cor. A síntese de cada pessoa na visão de Nadir. Isso é muito
importante. Somos únicos, mas cada pessoa nos enxerga de uma forma.
Nadir viu o sofrimento na vida de seus irmãos, mas também pôde ver a
beleza. A beleza em sempre estar disposta para ajudar, para servir.

A partir de agora vocês verão que a vida de Nadir é uma poesia. Uma
poesia nem sempre é bonita. Pode ser triste, reflexiva, melancólica e
macabra, sem ter a beleza, o romance, a pureza e a paixão que
acostumamos ver na arte. Mas independentemente do conteúdo, uma
poesia tem alma, tem essência, tem propósito. Essa é a vida de Dona
Nadir.

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36
Capítulo IV

Felicidade
Existe, sim: mas nós não a alcançamos

Porque está sempre apenas onde a pomos

E nunca a pomos onde nós estamos

Vicente de Carvalho

38
O
que é a felicidade? Como o poema no início do texto diz, e difícil
a encontrarmos. Não porque ela não exista, mas definitivamente
por nós mesmos. Pensamos muito, conjecturamos ações e
quase sempre não agimos para buscá-la. Nos acomodamos com a situação
em que estamos e pouco fazemos para mudá-la. Mas de que forma isso se
relaciona com a vida de Dona Nadir?

Se olharmos sua vida sob a cultura da sociedade moderna, iremos


dizer que ela não é feliz. Tem, na sua história familiar, como mostrei, um
colosso de problemas. Drogas, mortes, prisões e sofrimento. Além disso, a
situação econômica sempre foi difícil. Mas Dona Nadir é diferente. Desde
sua infância, como veremos, já sofredora, aprendeu a lidar com tudo isso,
e moldou-se a fim de superar as dificuldades, e como diz Vicente de
Carvalho, tentar ver a felicidade no momento em que vivemos, muitas vezes
independentemente da situação.

Nasceu em Duartina, de parto normal, a pequena Nadir, como


mostramos em capítulos anteriores. E logo antes de um ano de vida, já
sofreu.

Naquele período, era muito comum uma doença na infância: o mal de


Simioto. Nas regiões mais humildes do país, muitas crianças, ainda
pequenas, ficavam fracas, desnutridas, com pouco crescimento, e, na
expressão popular: em pele e osso . Trata-se do mal de Simioto. O nome é
originário da palavra símio, que significa macaco, em alusão ao modo como
as crianças ficam. Uma doença sem descrição na literatura médica, mas
muito frequente na cultura popular, podendo estar associada à alergia ao
leite de vaca ou à incapacidade de digeri-lo.

39
E Nadir, com menos de um ano de idade, sofreu desse mal. Minha
mãe contava que eu estava em couro e osso, e ficava roendo pão duro o
dia inteiro. Todo mundo dizia que ela não iria conseguir me criar . Como
era de costume na época, ela foi levada a uma benzedeira. Não se tratava
de algo puramente físico, eles pensavam, mas sim que alguém tinha
desejado mal e feito alguma coisa contra a pequena criança. Uma vizinha
falava que não era só o Simioto não, mas que alguém tinha desejado o mal
para mim . E a mãe de Nadir, desejando evitar esse mal maior, quis se
mudar de Duartina. E foi então que a família chegou em Bauru.

Em Bauru, ela conseguiu se recuperar do Simioto. Sua mãe fazia canja


e crista de galo (ovos mexidos com farinha), e a menina foi ganhando peso
e se fortalecendo. Conseguiu crescer e se desenvolver. É aí, então, que
Nadir começa ter sua vida vivida, sua vida lembrada e sua vida significada.
É a história que saberemos. É a sua busca por felicidade, ainda que difícil.

A infância, da maneira que conhecemos, não é uma realidade para


todos e que existiu em todos os períodos. Atualmente, preconiza-se que,
para o adequado desenvolvimento cognitivo, as crianças devem brincar,
interagir com outras crianças e se divertir. Certamente, em períodos
anteriores, as crianças também brincavam. Brincavam de bola, boneca,
carrinhos, enfim. Porém, conforme se crescia um pouco mais, já era
necessário que se ajudasse nas tarefas domésticas e no trabalho junto aos
pais. O estudo era para poucos. Poucos que tinham uma condição
econômica mais abastada ou aqueles que, mesmo vivendo em situação
difícil, queriam que seus filhos estudassem para ter uma vida melhor.

40
Nadir, advinda de uma família sempre humilde, com condições
financeiras difíceis, e pouca estrutura social, pouco brincou e pouco
estudou em sua infância. Desde pequena, começou a ajudar sua mãe a
cuidar de seus irmãos mais novos, afinal eram dez crianças na casa. A
brincadeira não tinha muito espaço, embora houvesse poucos momentos de
diversão e lazer em Bauru. Sempre muito ligada a avó paterna,
acompanhava-a até a igreja, junto com sua mãe (quando vieram para
Bauru, não vieram apenas seus pais, mas seus avós paternos, maternos e
tios). O trabalho na roça, junto de seu pai, também existiu desde cedo.
Quando tinha uma idade um pouco maior, já acompanhava, desde cedo,
Seu Arquelino, ajudando-o no cultivo e na plantação.

Como estudar inserida nessa realidade, a realidade de grande parte do


Brasil? Uma realidade que se observa até os dias de hoje. Por vivermos no
estado mais desenvolvido do país, em uma era marcada pelo
desenvolvimento científico e tecnológico, acabamos não observando essa
situação. Mas é algo que ainda permanece, e que, certamente, não se
deseja ser mudado por muitos. O desejo é que a vida de gado continue. O
povo é marcado, mas é feliz. Mas retomemos a história de nossa
protagonista. Nadir começou a estudar, terminando apenas o primário,
algo já muito importante devido a toda sua situação.

Aos nove anos de idade, junto ao estudo, Nadir começou a trabalhar


como empregada doméstica, algo praticamente impensável na atualidade. E
trabalhava não para si, mas para sua família. Eu nunca cheguei a ver a
cor do dinheiro que eu recebia. Assim que eu ganhava, eu logo dava para
meu pai. Mas eu não me importava, porque o importante era ajudá-los .
Trabalhou em muitas casas, com patroas que sempre foram muito boas
com ela. Davam-lhe comida para trazer para casa, ajudavam com roupa, e
com o que mais precisasse. Eu trazia bolo para casa, mas minha mãe
nunca comia. Ela deixava para os filhos, e se sobrasse ela comia um
pedacinho . Nadir sempre gostou de trabalhar em casas que tinham
crianças; tinha uma relação muito boa com elas. Duas almas puras. Uma
menina de uma casa que eu trabalhei até me ajudava, pra eu acabar logo e
a gente poder brincar de casinha .

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A comida nunca foi muito farta em sua casa. Sua mãe criava galinhas,
e a carne de frango era o principal que existia nas refeições. A carne de
boi eles comiam apenas uma vez por mês, quando seu pai recebia o
salário. No final do ano era muito gostoso, meus avós matavam os porcos,
fritavam a carne e colocavam na gordura para conservar, porque não
tínhamos geladeira . A vida não era fácil. Televisão mesmo eu só fui
conhecer com 12 anos. O pessoal até brincava com meu pai que ele teve
bastantes filhos por causa disso , conta Nadir rindo.

Ela trabalhou até os 20 anos de idade como empregada doméstica.


Naquele período, as domésticas tinham que fazer tudo na casa, muitas
vezes sem nenhuma folga ou descanso. Mas, como Nadir mesmo salienta,
foi um período de grande aprendizado. Um aprendizado de vida.

Aos 18 anos começou a namorar Jair, com quem veio a se casar.


Casou-se então, com 20 anos de idade, e como o marido tinha uma boa
profissão, acabou não mais precisando trabalhar. Começou a cuidar de sua
família que veio a construir, e a dedicar seu tempo nos trabalhos
voluntários da LBV. Junto da vida ao lado de seu marido, inicia-se a vida de
dedicação total à LBV. Há o nascimento da Nadir que vim a conhecer nesse
ano.

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43
Capítulo V

Que seja eterno enquanto dure


De tudo ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure,

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de que ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Morais

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O
amor pode começar das mais diversas formas, querendo-se ou
não. Pode ser algo ao acaso, sem se imaginar e sem se
controlar; algo criado, a partir de um desejo ou ilusão; ou ainda
algo natural, único e intenso, que ocorre a partir de uma sintonia marcante
entre duas pessoas, e que pode evoluir de uma grande amizade. No caso
de Dona Nadir e Jair, foi uma situação a parte e, de certa forma, até
mesmo interessante.

Em Bauru, as famílias de Nadir e Jair eram vizinhas e, aos poucos, os


dois jovens foram se aproximando, porém ainda sem nenhuma intenção de
relacionamento. Eram apenas amigos, não muito próximos e com pouca
intimidade. Mas não entendemos nada sobre a vida, não é mesmo? E
aconteceu que Vani, irmã de Nadir, apaixonou-se por um irmão de Jair.
Ela me pediu pra eu começar a sair com o Jair, para que ela pudesse
também sair com o irmão dele . E foi assim.

Aos poucos, com esse começo diferente, os dois foram se


aproximando, apaixonando-se e começaram a namorar, quando ela tinha
18 anos. Namoraram dois anos. Foi um namoro difícil. A gente brigava
muito. Tinha vezes que eu ficava 15 dias sem vê-lo . Apesar das brigas e
dos desentendimentos, continuaram a namorar. Minha irmã me chamava
pra ir lá vê-lo e esquecer as brigas, mas é porque ela queria ver o
namorado também . Superando a tudo, foi pedida em casamento. E, em
1974, casaram-se. Ela tinha 20 anos. Foi um dia de muita festa, sendo
uma festa simples, apenas para os familiares. De padrinhos, havia apenas
os parentes e amigos de seu lado. Do lado de Jair, nenhum de seus irmãos
foi ao casamento. Além disso, fui eu que preparei as comidas do meu
casamento . É desse dia a única foto que Nadir tem de seus pais.

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Dessa união, nasceram três filhos, de quem falaremos agora. Daqui a
pouco saberemos um pouco mais como foi a vida de Nadir junto de seu
esposo.

A primeira filha foi Adriana, nascida 1975. O primeiro filho é o marco


de uma nova era, de um novo período; é o marco de uma família. Surgem
as responsabilidades do educar, muito mais que o ensinar, e,
principalmente, do amar. É a partir desse meio familiar que cada criança
se desenvolve, e adquire todos os valores que irá levar para vida.
Certamente não se trata de algo determinista, mas a influência é muito
intensa.

Diante de toda a história de vida de Nadir, Adriana cresceu. Teve,


ainda pequena, problema grave nos rins. Ela vivia mais no hospital que em
casa para falar a verdade. Eu ficava muito preocupada . Frequentou a
escola, teve suas amizades, seus relacionamentos e cresceu. Aos 9 anos
de idade começou a trabalhar no escritório da LBV, para passar o tempo,
no período em que viveram na Paraíba (nos próximos capítulos vocês
saberão sobre essa parte da vida de Nadir), trabalhando nisso por 14
anos. Nesse período, ela aprendeu a ser uma pessoa muito bondosa e
caridosa com as pessoas .

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De volta a Botucatu, Adriana foi seguir sua vida. Trabalhou por anos
na perfumaria Sumirê e depois na perfumaria Charme. Dedicada, era
campeã de vendas. Ela trabalhava muito, todos os clientes gostavam dela.
Ela foi inclusive campeã de vendas! Superando suas dificuldades, começou
a estudar e se especializar. Nadir sempre a incentivava, vendo no estudo e
no aprendizado uma forma de melhorar de vida. Adriana terminou seu
curso de Enfermagem, e atualmente trabalha no nosso hospital, no
Hospital das Clínicas da FMB. Eu achei até engraçado ela virar
enfermeira, porque antes ela tinha pavor de sangue. Não podia nem ver,
que já passava mal .

Apesar de tudo, Adriana é um pouco revoltada com dona Nadir. Ela


diz que eu sou fanática pela LBV, mas todo mundo diz para eu não me
estressar por isso. Eu acho que ela ainda não entendeu sobre a LBV e qual
é o seu papel . Quando ela liga para sua filha, Adriana reclama muito, e diz
que a mãe precisa se virar, e parar de depender dos outros. Nadir acaba
mudando de assunto e tentando abstrair tudo isso. É realmente o melhor a
se fazer. Sempre dedicada ao seu trabalho, todos dizem que ela é uma
pessoa amorosa com os pacientes, cuidando de todos com muito carinho.
Só comigo é que ela é assim, essa pessoa geniosa. Acho que é por ela ser
de escorpião .

Adriana amigou com um rapaz, chamado Leandro, com quem ficou


junto por 15 anos. Ele trabalhava na Embraer, montando peças de aviões.
Desse relacionamento, teve três filhos. Como que sendo uma sina da
família, Adriana também sofreu com seu companheiro. Ele a traiu com
outra mulher, e, logo em seguida, como vingança, ela começou um
relacionamento com outro homem, chamado Robson. Acabou seu
apaixonando e estão juntos desde então.

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O primeiro companheiro era uma boa pessoa, nunca fez nada contra
Nadir ou Adriana. Inicialmente, trabalhava como agente penitenciário, após
ter passado em concurso, porém era ameaçado pelos detentos pois não
queria traficar drogas. A escolha feita foi deixar o emprego. Adriana o
ajudou e ele conseguiu o emprego na Embraer. O segundo companheiro
foi, na visão de Nadir, alguém muito importante para Adriana. Eu digo que
ele foi um anjo na vida dela . Coincidentemente, ele também trabalha na
Embraer, no escritório. Como a vida apronta peças com as pessoas.
Apesar dessa situação de relacionamento, os dois são muito amigos .

O primeiro filho de Adriana e primeiro neto de Nadir foi Renato, que


tem hoje 19 anos. Ele é meu amigão, é muito carinhoso. Ele está fazendo
tiro de guerra . O segundo filho foi Leonardo, de 8 anos. Recentemente ele
foi atropelado, foi um susto muito grande para todos nós. Graças à Deus
ele teve apenas arranhões . E a filha caçula foi Ana Laura, de 7 anos. Ela
fazia balé, e Nadir conta, com muito orgulho, que inclusive já se
apresentou no Teatro Municipal. Hoje em dia ela não quer mais fazer balé,
porque diz que tem que fazer só o que a professora manda. Ela é geniosa
igual a mãe .

Nadir tem prazer em brincar com os netos, estar junto deles e fazê-los
felizes. Eu sempre gostei muito de brincar com crianças e de dar atenção
para pessoas idosas . Certamente Nadir apresenta o dom do cuidar.

A filha mais nova de Nadir é Odete, nascida em 1978. Ela mora em


Bauru. Crescendo nessa família batalhadora, sofredora e vencedora, desde
os nove anos de idade também começou a trabalhar na LBV. Ela era
telefonista, e ficava em contato direto com as pessoas. Trabalhou na LBV
durante 25 anos e, depois desse período, e depois de seus cinco filhos,
precisou parar. Não tinha mais tempo de viajar a trabalho e precisava
cuidar de seus filhos. Ela fez concurso para a Prefeitura de Bauru e
passou. Atualmente, trabalha no Pronto-Socorro municipal. Os médicos e
os pacientes gostam muito dela, é uma pessoa muito humana. Ela inclusive
leva revistas para os pacientes .

49
Odete trabalha dando plantão à noite, dia sim, dia não. É um trabalho
muito intenso e muito pesado. Mas ela é, sendo dúvida alguma, alguém
muito forte. Embora esteja sempre na correria do cuidado com os filhos e
com a família, nunca desanima. É uma mulher forte espiritualmente. A
vida é luta mesmo, a gente não pode desanimar .

O problema é que Nadir não se dá muito bem com seu genro, esposo
de Odete, com quem sempre bateu de frente. Odete queria estudar e subir
na vida, era o seu sonho. Ela tinha muita vontade em ser assistente
social, para poder ajudar os outros como sempre via na LBV. Entretanto,
conheceu seu esposo João Galdino e acabou logo se casando. Nadir foi
contra esse casamento, pois queria que sua filha corresse atrás de seus
sonhos. Jair, no entanto, aprovou o casamento. Eu falo para o Jair que,
como ele consentiu com o casamento, ele que ajude sua filha agora . Eu
sempre vou tentando conversar com meu genro, e aos poucos ele está
mudando .

Recentemente, João sofreu um acidente grave de moto. Ele trabalhava


em uma transportadora e, um dia, quando estava voltando do trabalho a
noite, sofreu um grave acidente enquanto estava parado no acostamento.
Dois dias após o acidente seria seu aniversário. Até hoje não descobriram
quem bateu nele, não tinha câmera no local . Ficou 11 dias entubado na
UTI, entre a vida e a morte. Não se sabia se ele iria se recuperar. Apesar
de suas rixas com o genro, Nadir orou muito. Eu pedia muito: Jesus, dá
um presente de aniversário para ele, a vida de volta, para ajudar minha
esposa com os filhos . Como um milagre, ele está melhorando bastante.
Do acidente, restou como sequela a perda da visão em um olho. Situações
extremas de vida acabam mudando as pessoas, e foi o que aconteceu com
ele. Antes do acidente ele era muito estúpido, e batia na minha filha.
Agora ele melhorou, viu que violência só gera violência .

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Como disse, Odete tem cinco filhos. A mais velha é Amanda, de 18
anos. Foi a segunda neta de Nadir. Ela quer ser assistente social, pois,
quando iniciou seu primeiro emprego, nos Correios, recebeu grande ajuda
de uma assistente social. Ficou tocada com todo o carinho e atenção para
com ela. Será que ela sabe que o sonho de sua mãe também era esse? O
segundo filho foi João Marcelo, de 16 anos. É um grande amigo meu . Os
outros filhos são a Julia Letícia, de 12 anos, que quer ser fisioterapeuta, o
Lucas Miguel, de 8 anos, e o Matheus Gabriel, de 1 ano e 9 meses, o neto
mais novo de Nadir. Esse meu netinho é muito esperto, ele começou a
andar com 10 meses. Sempre que eu vou para Bauru, brinco muito com
ele .

Nadir tem uma boa relação com seus netos, são todos muito amigos.
Ela liga para eles quase todo dia, com muita saudade. Eles me chamam
de vovozona, como uma forma de carinho, mas eu digo que essa é a do
filme , Nadir conta rindo. Depois eles me chamam de vovozinha para
tentar me agradar .

Entre o nascimento das duas filhas, teve um aborto, em 1977, mas


que não foi provocado. Um dia eu sofri uma queda e tive uma batida forte
e, com a batida, acabei perdendo o filho. Foi um momento muito triste .

Nadir teve ainda um último filho, Marcelo, nascido em 1979. Para


grande sofrimento dela, Marcelo nasceu prematuro, com 8 meses, e tinha
um problema no pulmão. Viveu apenas dois dias no hospital e depois
partiu. Os médicos disseram que, se ele vivesse, teria muitos problemas e
não iria conseguir se desenvolver adequadamente. O filho João Marcelo,
de Odete, recebeu esse nome em homenagem a ele. Não sabemos os
desígnios de Deus, mas não adianta ficarmos chorando. Estamos todos de
passagem e um dia nossa hora também irá chegar .

51
Depois que veio do Nordeste, Nadir descobriu que tinha um tumor
benigno no útero, depois de ter tido um grande sangramento. Os médicos
acharam melhor tirar meu útero e meu ovário .

Foi assim então que se constitui a família de Nadir. Parece que tendo
como base toda sua história, foi também marcada por muito sofrimento e
tristeza, mas sempre andando lado a lado com a esperança. Como Nadir
suportou tudo isso com seus filhos, com seus irmãos e com o seu marido?
Certamente foi devido à LBV. Chegou a hora de conhecermos um pouco
mais sobre essa instituição pela qual Nadir deu e dá sua vida. Sua história
tem, como parte essencial, a LBV.

52
53
Capítulo VI

Mulher vestida de Sol


Abriu-se o Templo de Deus que está no céu e apareceu no Templo a Arca
da Aliança. Então apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida
de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze
estrelas.

Então apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão, cor de fogo. Tinha
sete cabeças e dez chifres e, sobre as cabeças, sete coroas. Com a cauda,
varria a terça parte das estrelas do céu, atirando-as sobre a terra. O
Dragão parou diante da Mulher, que estava para dar à luz, pronto para
devorar o seu Filho, logo que nascesse. E ela deu à luz um filho homem,
que veio para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o Filho foi
levado para junto de Deus e do seu trono. A Mulher fugiu para o deserto,
onde Deus lhe tinha preparado um lugar.

Ouvi então uma voz forte no céu, proclamando: Agora realizou-se a


salvação, a força e a realeza do nosso Deus, e o poder do seu Cristo .

Livro do Apocalipse de São João

55
A
o falar sobre a LBV, certamente haverá a mistura entre a
história dessa instituição e as experiências vividas por Nadir.
Nada tem sua história se não tiver quem a viveu.

Antes de conhecer dona Nadir, tinha ouvido falar muito pouco sobre a
LBV. Para falar a verdade, a única coisa que conhecia era o canal de
televisão. Na minha época de ensino médio, quando ficava as tardes
deitado no sofá de minha sala (esvaindo-se a vida) e ia mudando os canais
da televisão, as vezes passava pelo canal da Legião da Boa Vontade.
Nunca tive curiosidade em assistir ou me aprofundar sobre o assunto.
Como vocês perceberam, iremos conhecer juntos um pouco mais sobre a
LBV.

A LBV foi fundada em 1º de janeiro de 1950 pelo poeta, escritor,


radialista e jornalista Alziro Zarur. O início ocorreu, na realidade, dois
anos antes, momento em que Zarur recebeu a inspiração divina para
fundá-la. Foi, no Rio de Janeiro, em uma sessão espírita. Nessa sessão, a
médium disse que São Francisco de Assis estava ao lado de Zarur o tempo
todo, dizendo a ele que era hora de começar. A partir desse momento,
passou a dedicar-se integralmente a essa missão. No ano seguinte,
começou com o programa de rádio Hora da Boa Vontade , levando as
mensagens do Apocalipse de São João, destinado principalmente às
populações que passavam por dificuldades.

Aos poucos a LBV foi se consolidando, iniciando obras sociais


principalmente para o cuidado de crianças e de idosos, e congregando
seguidores em todo o país. Pregando principalmente o ecumenismo, tentou
congregar indivíduos de todas as crenças. Além do âmbito filosófico e
social, houve a fundação também da Religião de Deus, do Cristo e do
Espírito Santo , a vertente religiosa da LBV. Em 1980, após a morte de
Zarur, Paiva Netto, seu grande seguidor, foi quem assumiu o comando da
LBV.

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Com essa história sucinta da LBV, vemos que ela nasce em um
momento muito importante do Brasil. No momento em que se inicia
fortemente a produção industrial e ocorre o aumento da população urbana
e, desse modo, agrava-se, também a desigualdade social. A LBV vem como
um socorro a uma população sofrida e isolada socioeconomicamente. Com
as palavras fortes de Zarur, o número de seguidores só aumentou.

Nesse ambiente, ao conhecer a Legião da Boa Vontade, por intermédio


de Jair, Nadir encontrou o sentido de sua vida. O sentido do cuidar, do
acolher os necessitados, do doar e do servir. Nadir conseguiu pegar todo
aquele sofrimento de sua família, com as dificuldades com os irmãos, com
as dificuldades econômicas, e sublimar a fim do amor ao próximo. O
caminho antes vermelho, por muito sofrimento e dificuldades, recebe uma
luz. Será que a LBV transformou Nadir, ou Nadir encontrou na LBV aquilo
que sempre foi? Acho que as duas opções são válidas.

Nadir conta da LBV com muito carinho e respeito. É certamente algo


essencial a ela. Já foi 29 vezes para o Templo da Legião da Boa Vontade,
que fica em Brasília. Mesmo toda a distância não a impede de ir, seja de
ônibus, ou de van. Sua motivação é muito maior.

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O templo tem o formato de uma pirâmide, havendo no topo um cristal
de 21 kg. Esse cristal tem uma história interessante. Ele foi encontrado em
Minas Gerais por um casal muito humilde, que teve uma revelação que
aquilo seria algo para ajudar a humanidade. Nesse mesmo período, Paiva
Netto, sabendo disso, imaginou que o cristal poderia ter um sentido
espiritual, e foi atrás desse humilde casal. Muitas pessoas tentaram
comprá-lo, mas eles não venderam. Sabiam de seu significado e de sua
missão. Quando Paiva Netto chegou, entregaram o cristal prontamente. O
templo era um sonho de Zarur, e seus restos mortais se encontram no
subsolo. A construção do templo demorou 3 anos, sendo que toda a
comunidade auxiliou para transformar aquele sonho em realidade.

A LBV é uma instituição de caridade, que mantém creches e lares para


idosos em todo o Brasil. Eles cuidam dos velhinhos como se fossem da
família. É algo muito bonito . Nadir sempre reforça que, embora haja um
ramo religioso da LBV, na instituição propriamente dita não se fala de
religiões. Lá não se fala Igreja, mas em espaço ecumênico. Estuda-se
muito o Apocalipse de São João, sendo que a palavra apocalipse significa
revelação . Quando o Alziro Zarur começou a pregar, achavam que ele
era louco. Se o pessoal estivesse escutado ele, talvez a gente estivesse
agora em uma situação melhor .

Quando eu vou lá não dá vontade de vir embora, parece que é um


outro mundo . Lá há uma sala egípcia, com poltronas, em que se pode ir
para meditar e refletir. Além disso, a uma fonte, com água energizada, por
meio da qual muitas pessoas já receberam inúmeras graças. Há também,
no templo, um espiral de duas cores. Nele, inicia-se o trajeto andando pelo
espiral escuro, sempre agradecendo, até o ponto imediatamente abaixo do
cristal. Em seguida, segue-se andando pela espiral clara. A gente sai de lá
energizado, muito bem. Saio de lá muito mais leve .

58
Outra estrutura do templo é o parlamento, onde se tem dois auditórios,
em que se discutem trabalhos sobre o lado espiritual da vida. Não adianta
só cuidar do corpo, e não do espírito, e vice-versa. Um sempre precisa do
outro . Nadir foi voluntária na LBV por 20 anos, e de 1988 a 1998,
trabalhou com carteira assinada. Vocês verão que ela inclusive foi até a
Paraíba como voluntária.

Em Botucatu, a LBV funcionou cerca de 58 anos em um prédio a frente


da rodoviária, porém, devido às condições financeiras, precisou parar com
seu atendimento. Nadir vive a LBV todos os dias de sua vida. Além da parte
social, é da Religião de Deus há 44 anos. Eu sempre busco me ligar a
Deus, e seguir seus ensinamentos de amar uns aos outros .

Nadir acorda de manhã e vai ler os livros da LBV. Eu começo o dia e


já vou refletindo sobre os ensinamentos. São lições muito importantes . À
noite, escuta o rádio, que transmite debates dos jovens, discutindo e
conversando sobre espiritualidade. Nesses 44 anos de LBV, aprendi muita
coisa, aprendi a suportar a dor e ter a humildade corajosa, entendendo
que estamos sempre aprendendo uns com os outros .

Após tudo isso, uma interessante analogia veio a minha mente. Uma
analogia que já começou a ser expressa em alguns parágrafos anteriores,
mas não se concluiu. Foi na Demétria, a dois domingos atrás, que tentei
entender um pouco mais da vida de Nadir. Em meio àquele ambiente de
tranquilidade, de calmaria e de reflexão, pude perceber quão única Nadir é
e quão importante é sua história. Na capa desse livro observamos, na
região inferior, um caminho tortuoso vermelho. Um caminho que ora é um
pouco mais alargado, ora é um pouco mais estreito, igual a vida, que
dança entre um apertar e um afrouxar. Essa é a vida de Nadir antes da
LBV. Uma vida de muito sofrimento, muitas dificuldades, porém que
prosseguiu. Junto dela, sempre havia a esperança, um caminho verde e
luminoso que dava forças para seguir em frente.

59
A LBV chega como uma grande luz. Uma luz que a tudo abraça e a
tudo transforma, trazendo o reconforto. Surge então um caminho
arroxeado. O roxo como uma cor forte, trazendo imponência e força, mas
ao mesmo tempo trazendo o mistério de um contínuo sofrimento, de uma
contínua dificuldade. No entanto, a esperança está sempre ao lado.

Essa é Nadir. Um ser único e especial...

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61
Capítulo VII

O acendedor de lampiões
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: ̶

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!

Jorge de Lima

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E
m nenhum momento desse livro vimos, até agora, alguma
situação em que tudo tenha se transcorrido com calma e
naturalidade. Muito pelo contrário. O que observamos é, na
realidade, uma história de superações, havendo sempre essa intensa
mistura entre alegria e tristeza. E assim foram os 37 anos de casados
junto de Jair.

Após a bonita e diferente história de amor dos dois, casaram em


outubro de 1974. Sempre foram muito amigos, um cuidando e ajudando o
outro. Logo em janeiro, Nadir já ficou grávida. Começava aí então sua
família junto de Jair.

Nadir conheceu a LBV a partir de Jair. Iam juntos nos encontros em


Bauru, e começaram a participar das obras sociais. Divertiam-se juntos,
iam a festas com amigos, e tinham uma relação muito boa. Jair trabalhava
em Bauru como torneiro mecânico, tendo um bom salário à época. Como
ela ganhava bem, ele disse que eu não precisava trabalhar, e que poderia
ficar cuidado dos filhos. Naquela época era difícil a gente ir contra o
marido .

O comportamento de Jair começou a mudar com a morte do filho mais


novo, Marcelo, em 1979. Ele queria muito ter um filho homem, e, com o
nascimento de Marcelo, viu esse sonho virar realidade, embora já tivesse
suas duas filhas. A morte do menino foi um trauma intenso. E, como Nadir
já tinha passado por três cesáreas, o risco de outra cirurgia seria muito
grande, situação que fez com que, após o último parto, fosse feita
laqueadura.

Jair ficou revoltado, pois viu a chance de ter seu filho homem se
anular, já que Nadir não mais podia engravidar. A partir disso, ele
começou a ficar diferente comigo, começou a ficar estúpido .

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Nesse cenário de instabilidade familiar e dificuldades, surgiu para a
família de Nadir um convite muito inesperado: trabalhar como voluntários
da LBV na Paraíba. Não pensaram duas vezes e foram todos para o
Nordeste: o casal e as filhas Adriana e o Odete. Seria uma possibilidade
também de se esfriarem os ânimos e tudo voltar ao normal.

Na Paraíba, ficaram quatro anos, de 1984 até 1988. Ao chegarem,


foram muito bem recebidos por todos. Naquela época, no lugar em que a
gente foi, o pessoal era muito sofrido. Como a gente chegava de fora, eles
já pensavam que éramos importantes . Moraram em João Pessoa, mas a
maior parte do período eles viveram em Campina Grande, onde havia o
centro da LBV. Embora sejam sofridos por causa da seca, são todos muito
alegres. O pessoal é forte .

Fomos para o Nordeste a trabalho, para ajudar a LBV. Fomos e


voltamos com a roupa do corpo. Eles ficavam em um alojamento, onde
havia quartos para o casal e para as filhas. Era um espaço organizado,
tendo um refeitório muito grande que, além de ser o espaço de
alimentação, era o espaço de encontro de todos. Agora lá está tudo
diferente, a LBV mudou muito. Eles têm agora uma escola e uma creche
muito bem organizadas .

Eu fazia de tudo lá, mesmo não tendo estudo, não tendo nada . Nadir
fazia limpeza, cuidava das crianças e dos idosos, e ia visitar as famílias, de
porta em porta, junto com os médicos voluntários. A assistente social
sempre me dava parabéns pelo meu trabalho, porque mesmo sem estudo
eu conseguia ajudar em tudo . Nadir ia na feira, no CEASA, para trazer
comida para as crianças. Trazia sacos na cabeça até o ônibus, e depois
separava as verduras, os legumes e as frutas, sempre com muito carinho e
organização. As crianças faziam quatro refeições, e era preciso que todo
mundo ajudasse para que desse certo.
65
No entanto, no período em que estiveram no Nordeste, muita coisa
aconteceu em Bauru. Inicialmente, a mãe de Jair partiu, em 1986. Não
puderam nem vir ao enterro. Ela era uma mulher muita sofrida, que tinha
um quadro muito grave de diabetes, tendo sido preciso amputar parte dos
dedos e uma das pernas. Ela era uma mulher muito boa, me dava muitos
conselhos .

Além disso, Nadir teve outra importante perda: a partida de seu pai.
Como estavam muito longe e o deslocamento era muito difícil, também não
conseguiram ir ao enterro para prestar a última homenagem. Como sua
mãe tinha ficado sozinha e Nadir estava muito longe, ela pediu para que
eles voltassem. Nadir escreveu uma carta para Paiva Netto, pedindo
autorização para que eles voltassem. Quatro anos após essa experiência,
retornaram a Bauru.

Quando vieram embora, as crianças que Nadir cuidava choravam,


porque não queriam que ela saísse de lá. Nadir sempre foi muito querida
por todos com quem ela conviveu. A viagem de volta, assim como a de ida,
foi feita de ônibus, pois não tinham dinheiro para avião. Nossa condição
era muito difícil quando fomos para lá . Ficaram três dias na viagem de
ônibus, indo da Paraíba até São Paulo, e de São Paulo até Bauru.

O Nordeste foi uma escola para mim e para minhas filhas. Eu falo que
esses quatro anos lá foram uma escola de sobrevivência para mim. Aprendi
muita coisa! .

Entretanto, no Nordeste, a relação entre Nadir e Jair não melhorou.


Tudo começou a desandar e a ficar cada vez pior. Jair, muito influenciável,
começou a andar com uns homens ruins e mudou muito. Lá no Nordeste,
a fama é que os homens têm duas, três mulheres. Eles traem as esposas
sem nenhuma culpa . Jair começou a destratar e maltratar Nadir cada vez
mais, e, quando vieram embora, as coisas foram piorando.

66
Jair se aposentou e começou a andar com pessoas ruins, sem se
importar com Nadir. Ele começou a se afastar da Igreja, a ficar descrente.
Nadir sofria em silêncio, cada vez mais.

Certo período foi para Campinas, na casa de sua filha Adriana. Nessa
época ela estava morando lá pois ainda trabalhava no escritório da LBV, e
tudo estava muito corrido. Seu marido não parava em nenhum emprego e
ela não estava conseguindo cuidar dos filhos. Nadir foi então para cuidar
de seus três netos. Sempre o desejo de ajudar e servir falou mais alto na
vida de Nadir.

Em Campinas, teve uma queda enquanto cuidava de seus netos e


sofreu uma fratura exposta. Foi preciso fazer cirurgia e colocar pinos.
Como se já não bastasse, os pinos tiveram rejeição e Nadir teve um quadro
de osteomielite, principalmente devido ao diabetes. Ficou um buraco
enorme atravessado na minha perna . Os médicos falavam que essa
doença não tinha cura, mas em 2008 recebi um milagre. Fui curada no
templo da LBV, quando passei pela fonte . Nadir usava andador, mas tinha
muita dificuldade para andar não conseguindo caminhar nem meio
quarteirão, por exemplo. Mas voltou de lá andando normal, como se não
tivesse tido nada. Os médicos falam que a doença estacionou, mas eu digo
que não. Quando Deus faz, ele faz tudo completo .

Eu digo que eu fui para Campinas para cuidar dos meus netos, mas
foram eles que acabaram cuidando de mim. Todos tiveram muito carinho
comigo .

Nesse período em que Nadir quebrou a perna, Jair começou a


maltratá-la ainda mais. Ele agredia Nadir e, como ela estava com o pé
inchado, ela não conseguia correr. A dor e o sofrimento de Nadir eram
imensos. Ele colocava uma faca na minha mão e me ameaçava . Nadir
entrou em depressão. Eu pensei como que podia alguém que me levou
para o bom caminho agora estar fazendo isso. Eu não acreditava em tudo
aquilo .
67
Em 2011, após 37 anos de casados, Nadir pediu a separação. Não
conseguia suportar mais a dor física de ser agredida e traída, e a dor
espiritual e social que sentia. Vimos como foi difícil até que Nadir tomasse
essa decisão. Mesmo passando por tanto sofrimento, ela tentou ao
máximo manter a relação com seu marido na esperança de que ele
voltasse a ser aquele que ela conheceu. E isso ocorre com muitas outras
mulheres, que sofrem caladas e são incapazes de se defender.

Apesar (e por causa) de tudo que passaram juntos, hoje são mais
amigos um do outro do que eram antigamente. O pessoal de Bauru até
fala que não imagina que a gente está separado, porque foi muito de
repente . Embora a amizade esteja presente, Nadir evita falar muito com
Jair. Quando o vê, cumprimenta-o e conversam, mas para por aí. Às
vezes minhas filhas falam que ele está com problemas, e passando por
dificuldades, mas eu apenas oro . Depois da separação, Jair começou a
gastar com mulheres e não pensar mais nas filhas. Eu pegava no pé dele,
para ele ajudar as filhas e para me dar a pensão .

Jair continua ainda muito próxima das filhas. Ele é um amigão delas,
principalmente da Adriana. Eu acho até que as vezes a gente não se bate
porque ela ficou brava de termos nos separado . Ele se aproveita disso
para colocar as filhas contra Nadir. Mas eu vou conversando com Deus e
vou orando para ele melhorar .

Uma dúvida de todos deve ter sido como Nadir veio parar em
Botucatu. O motivo foi sua separação. Jair ficava fazendo pirraça,
pegando no pé dela, e continuava a maltratar Nadir. Ele é uma pessoa
muito machista, não tem jeito . O jeito foi ir para Botucatu. Era necessário
começar um novo capítulo de sua vida.

68
Recentemente, Jair arrumou outra mulher. É uma enfermeira
aposentada, que também se divorciou do marido. Ele fala para minhas
filhas que está arrependido de ter judiado de mim. Diz que trocou seis por
meia dúzia . O ser humano é certamente inacreditável. O importante é que
Nadir é sempre forte e segura daquilo que faz. Ele que siga o caminho
dele, que eu sigo o meu .

Nadir seguiu. Construiu um pedaço de sua história em Botucatu.


Como antes, é uma mistura de alegrias e tristezas, de sofrimento e de
esperança. Acho que Nadir até já se acostumou com isso. Não que goste,
mas ela já conseguiu vencer tantos obstáculos em sua vida. Os que vêm
agora, são só novos desafios. E os Bons Ares trouxeram muitos a ela.

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70
Capítulo VIII

A vida é assim...
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer
da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a
ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais
alegre ainda no meio da tristeza!

João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

72
vida de Nadir mudou de repente. Era casada, morava em Bauru

A e tinha sua família. Era feliz? No início certamente sim, mas o


sofrimento com o marido foi ficando cada vez maior que talvez
fosse difícil encontrar a felicidade. Mas não podemos esquecer
que Nadir é uma vencedora. Consegue superar todas as adversidades.

Mas de qualquer forma, mudou-se para Botucatu em 2011. Apesar de


ter sua filha Adriana aqui, não foi morar com ela. O motivo não sabemos.
Quem a recebeu foi uma grande amiga, chamada Zenaide, que ela
conheceu por meio da LBV. Por tudo que entendemos, podemos perceber
que a LBV é quase uma família. Um ajuda sempre o outro, naquilo que
precisar, independentemente da condição.

Zenaide era enfermeira e trabalhava no Hospital Psiquiátrico. Elas


eram muito amigas, e prontamente recebeu Nadir em sua casa. Elas
conversavam muito, gostavam de contar causos . Como ambas já tinham
criado os filhos e estavam muito sozinhas, uma acabava sendo a
companhia da outra. A casa era no bairro Cecap, próximo ao centro de
Botucatu. Nadir morou com Zenaide durante dois anos.

Nadir começou então a trabalhar como cuidadora de idosos. Ainda não


era aposentada e o ex-marido ainda não estava pagando a pensão.
Trabalhou, inicialmente, olhando um casal de idosos, durante a noite. A
idosa era acamada, estava muito debilitada e tinha feito traqueostomia. Ela
necessitava de cuidados contínuos devido a esse problema no pulmão, o
que não foi nada difícil para Nadir, que já tinha a experiência do cuidado
nos quatro anos que esteve na Paraíba. O problema era que o marido
dessa senhora, também um idoso, porém em melhores condições de saúde,
era fumante, e fumava ao lado de sua esposa doente. A idosa reclamava,
mas ele continuava com seu hábito. Com seu imenso coração, um coração
bondoso, Nadir não aguentava ver aquela situação. Mas, da mesma forma,
não tinha como contrariar o idoso. Ela achou melhor sair do emprego. Eu
preferi sair para não arrumar confusão. Lá, fiquei trabalhando durante seis
meses .

73
Depois disso, Nadir começou a cuidar da mãe do professor Antonio
Rugolo, a dona Cecília Rugolo. Dona Cecília estava em um estágio terminal,
devido à metástase de um câncer, passando por isso durante um ano. Eu
era muito próxima a ela, e sempre que era preciso ficava com ela no
hospital . Na última internação de dona Cecília, Nadir a acompanhou
durante oito dias no Hospital das Clínicas. No momento em que ela partiu,
eu estava segurando sua mão. Eu orei muito para ela, porque via que ela
estava sofrendo muito .

Nadir tentou arrumar outros idosos para cuidar, porém estava cada
vez mais difícil conseguir emprego. Trabalhou durante cinco anos como
cuidadora, até quando ficou doente. Nadir teve uma pneumonia muito
forte, que a deixou com problemas pulmonares, e, desde então, ela não
pôde mais trabalhar com a mesma intensidade de antes.

Como ainda não tinha se aposentado, restou correr atrás do que lhe
era devido. O marido nunca tinha pagado pensão, e Nadir procurou uma
advogada. Entraram na justiça e Jair foi obrigado a pagar a pensão a ela.
Nadir não tinha mais como trabalhar, esse dinheiro seria sua única
esperança para conseguir seguir sua vida. Passou então a receber 300
reais por mês do ex-marido.

Nadir continuou morando junto com Zenaide; não havia outra opção. O
bom é que as duas eram muito amigas, eram voluntárias da LBV e todo
domingo iam fazer vista para os doentes no nosso hospital. Embora ela
quisesse ter sua casa, e poder seguir sua vida, tudo estava indo muito
bem. Até o momento em que sua vida correu perigo na casa de Zenaide.

74
Zenaide era uma pessoa muito sofredora, pois tinha uma saúde muito
debilitada e passava por graves problemas com sua família. Devido a um
aborto provocado, Zenaide teve uma lesão grave nos rins e no intestino,
precisando passar por cirurgia. Ela ficou um mês intubada, e, a partir de
então, começou a fazer hemodiálise e utilizar bolsa de colostomia. Passou
por essa situação durante 40 anos. Ela dava conselhos para as mulheres
não fazerem aquilo que ela fez .

Assim como Nadir, teve inúmeros problemas com seu esposo. Ele era
mulherengo, maltratava-a e a traía, e a abandonou com quatro filhos para
ela criar sozinha. Diante de tudo isso, restava a ela apenas apagar seu
sofrimento acendendo um cigarro. Fumou durante 35 anos. Quando Nadir
começou a morar com ela, pedia muito para que ela parasse de fumar, até
que um dia conseguiu. Quando eu morava lá, a gente conversava e se
distraia, e isso a ajudou a parar de fumar .

Mas o grande problema de Zenaide estava em dois de seus filhos. Um


dos filhos bebia intensamente, e o outro entrou para o mundo das drogas.
Ela morria de desgosto. Apesar de eles serem assim, nunca me fizeram
nenhum mal, respeitando-me muito . Até o dia em que Zenaide quase foi
morta.

Nadir dormia no quarto de Zenaide, ao lado dela. Um dia, o filho mais


novo chegou em casa drogado. Entrou no quarto de sua mãe com uma
faca, pronto para matá-la. Eu comecei a orar e, quando terminei minha
oração, ele caiu. Foi um momento muito assustador . Assim que ele caiu,
todos começaram a chorar. Depois desse dia, Nadir passou a dormir em
um colchão na sala. Zenaide achou melhor, pois não sabia se o filho iria ter
outro surto, e achava que, como Nadir não tinha nada a ver com isso, não
era justo ela passar por aquilo novamente.

75
A situação não melhorou. A casa era de tijolos, mas muito antiga, não
havendo reparos e, no chão, os tacos estavam todos completamente
estragados. Para piorar, os filhos trabalhavam com ferramentas pesadas e
tinha muitas coisas guardadas. Pelo acúmulo de material por toda a casa,
o ambiente era muito sujo, atraindo muitos ratos. Lá tinha muitos ratos e
eu morria de medo porque a noite, quando eu deitava, os ratos ficavam
passando em cima do meu pé. Era horrível! . Nadir dormia, na sala, em um
colchão velho e estragado que Zenaide havia arrumado. Eu arrumei um
colchão novo e bom para mim, mas o filho que mexia com drogas acabou
levando embora, provavelmente para trocar por drogas .

A vida de Nadir não era fácil. Não tinha trabalho, morava em uma
situação sub-humana, e em um meio em que a situação social era
problemática. Morava em um bairro marcado pelo tráfico e pela
prostituição. Foi uma pessoa muito forte. Conseguiu suportar tudo isso
novamente. Nadir parece tirar força de onde menos esperamos.

Zenaide passava por tudo isso também. Tinha os filhos no tráfico, o


que era seu grande desgosto, mas mesmo assim tentava ao máximo
ajudá-los. Era tudo muito complicado. Um dia, traficantes vieram a casa de
Zenaide cobrá-la em relação às dívidas do tráfico do filho. Ela foi corajosa
e o enfrentou. Ela mostrou a bolsa de colostomia e disse, em meio a
prantos e raiva: É daqui que vocês estão tirando esse dinheiro! . Além
disso, como disse, naquele bairro havia muita prostituição. As mulheres
vinham até a casa de Zenaide para se esconder da polícia, e ela oferecia
banho e comida, cuidava delas. Zenaide não via quem era a pessoa, o
importante para ela era fazer o bem. Durante os 48 anos em que morou lá,
nunca teve problemas, embora todo o perigo que o bairro apresentava.

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Depois de dois anos já estando em Botucatu, decidiu sair da casa de
sua amiga. Arrumou uma casa no bairro Cambuí, no fundo da casa de um
senhor. Era pequena, com dois cômodos e um banheiro, mas pelo menos
ela teria maior privacidade, maior segurança e maior organização. No
entanto, pouco tempo após Nadir se mudar, o senhor se amigou com uma
mulher, que iria trazer sua filha para morar na casa dos fundos. Nadir
não mais poderia ficar lá. Foi muito ruim, porque ele pediu para eu sair
para a filha da mulher morar lá. No final, ela acabou não morando e a
casa está até hoje vazia . Era necessário voltar para a casa de Zenaide.

Zenaide foi ficando cada vez mais doente e em condição de saúde


mais grave. O que mais a abalava era o fato de um de seus netos, que ela
criou como se fosse seu filho, também entrou para as drogas. Ela fez
muito por esses netos, e depois, vê-los presos e nas drogas era algo que
trazia uma dor enorme! . Esse neto teve um casal de filhos com uma
prostituta, que foram abandonados pelos pais. Diante de tudo isso,
Zenaide não resistiu e partiu.

Antes de partir, ela pediu para que eu desse apoio aos filhos dela.
Todos são filhos de Deus, apesar de tudo . Ainda hoje, ela tem contato
com os filhos de Zenaide e sempre tenta conversar com eles, tentando
ajudá-los. Para Nadir, nunca faltaram com o respeito ou tentaram fazer
algo de errado.

Em 2016, saiu definitivamente da casa da amiga. O problema é que


não tinha para onde ir. Não podia ir para a casa de sua filha, e não tinha
nenhum outro local para se abrigar. Estava desesperada. Um dia,
enquanto caminhava triste e abatida pelas ruas da cidade, sem ter
conseguido nenhum emprego e sem ter conseguido um lugar melhor para
morar, olhou para o céu e pediu que Deus a ajudasse. Eu pedi: Jesus,
ajude-me com uma luz sobre o que eu devo fazer! Não aguento mais tudo
isso! Em seguida, veio em sua mente o pensamento de ir pedir ajuda na
Prefeitura, e foi o que fez. Foi à Prefeitura, e contou toda sua situação
atual. Prontamente a encaminharam para a Assistência Social, que
acolheu Nadir e a ajudou.

77
Nadir disse que ela precisava de um lugar para morar, pois não tinha
condições de viver onde estava. O pessoal da Assistência Social viu que ela
não tinha terreno, não tinha imóveis e nem qualquer dinheiro guardado.
Como uma luz na vida de Nadir, disseram sobre a possibilidade de ir para a
Vila Dignidade. Embora Nadir nem soubesse do que se tratava aquilo,
prontamente aceitou. Qualquer coisa era melhor que a situação na qual ela
estava. Três dias depois, mudou-se para sua nova casa.

Aproximamo-nos agora do final desse livro. Passamos por toda a vida


de Nadir, desde seu nascimento, sua relação com seus pais, seus irmãos,
seu casamento e sua relação com o marido, seus filhos, suas experiências
na LBV, e sua vida em Botucatu. Vimos que Nadir nunca teve nenhum tipo
de facilidades na vida. A cada dia, parece que um novo obstáculo surgia
em sua vida. Era mais uma pedra a ser transposta, uma barreira a ser
vencida. E tudo Nadir superou. Superou sua doença na infância, as
dificuldades socioeconômicas e familiares, a relação conjugal tensa e todos
seus problemas. Criou-se alguém inabalável. Uma vencedora. Uma
brasileira típica. Alguém que, além de tudo, transborda bondade. Foi capaz
de sublimar todo seu sofrimento em amor ao próximo.

E sua vida na Vila Dignidade, como foi? É isso que veremos no


penúltimo capítulo.

78
79
Capítulo IX

Retrato
(...)Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade

81
Vila Dignidade foi um presente para Nadir. Sua vida acabou se

A transformando de uma forma que ela certamente não


imaginava. Tinha agora sua casa, com seu quarto próprio, sua
cama, sua cozinha, tudo que era necessário para ser viver
dignamente. Tudo isso sem pagar nada, nem conta de água ou luz. O único
gasto seria para sua própria alimentação. A Vila Dignidade trouxe inclusive
um novo companheiro para Nadir. Sua vida realmente se renovou.

Nadir tem um carinho muito grande pela Vila Dignidade. Eu não tenho
do que reclamar. Agora eu durmo tranquila, sem nenhuma preocupação .
Ela recebe uma cesta básica da Prefeitura um mês sim, outro não. É isso
que a ajuda com sua alimentação, pois como ainda não é aposentada, e
recebe apenas os 300 reais de Jair, a situação econômica é sempre
delicada. No entanto, esse ano Nadir já deu entrada em sua
aposentadoria. Durante 10 anos a LBV pagou seu registro no INSS e, após
esse período, cada filha paga o registro um mês até que chegue ao tempo
necessário.

A Vila Dignidade não se trata de uma instituição de longa


permanência. Para morar lá um dos requisitos é inclusive que a pessoa
tenha capacidade de se cuidar sozinha, não necessitando de atenção
especial. Desse modo, são todos livres para sair e voltar quando quiserem.
Apenas durante a noite é que há uma maior restrição, pois não é permitida
a entrada de visitantes ou entregas após as 20 horas. Sendo sempre muito
agitada, é difícil Nadir ficar por lá muito tempo. Tive inclusive dificuldade
em encontrá-la, algumas vezes, para que começasse a escrever o livro,
como vocês viram!

Mas devido à fratura exposta que teve em sua perna, Nadir realmente
não pode ficar muito tempo parada, pois seu pé começa a formigar. Por
isso eu saio bastante para andar pela cidade e fazer tudo que eu preciso,
para ativar a circulação. A assistente social até reclama que eu saio muito
daqui! , Nadir conta rindo.

82
Nadir sempre acorda cedo, e já toma seu cafezinho para despertar. É
meu pretinho básico. Preciso tomar para acordar e ter um dia bom . Ela
sempre participa das atividades da Vila Dignidade e das atividades em
grupos de idosos da cidade. Eu saio com a dona Celuta e a dona Antonia,
que moram aqui, e sempre vamos fazer alguma atividade . No início Nadir
tinha uma boa relação com todos. Porém, devido a algumas situações
ocorridas (aguardem, vocês já saberão), sua relação com alguns outros
moradores foi se desgastando.

A Vila Dignidade trouxe outra importante mudança na vida de Nadir.


Após ter tido uma relação tão problemática e desgastante com Jair, ela
não imaginava encontrar um novo companheiro. Mas seu Vitoraci surgiu
em sua vida.

Quando Nadir mudou para lá, seu Vitoraci já era morador da Vila há
algum tempo. Entretanto, ele era muito isolado e não tinha boa relação
com os demais. Vitoraci tem um problema na audição e não consegue falar
direito. É muito difícil entender o que ele fala. Eu aos poucos fui me
acostumando e aprendendo . Ele ficou desse jeito pois, durante a
juventude, sofreu um acidente, sendo atropelado por uma moto. Desde
então, nunca mais foi o mesmo. Nadir o levou ao médico para ver sobre
sua audição, para tentar ajudá-lo. Ele está atualmente na fila para
conseguir o aparelho de audição.

Vitoraci sempre chorou muito, porque não gostava de estar lá. Os


demais moradores não gostavam dele, e ele dizia que queria voltar para o
mato , a trabalhar como antes. Ele já fez de tudo, mas trabalhava
principalmente cortando árvores . No início, ele era muito revoltado com
todos. Teve uma vida difícil na infância, no Rio Grande do Sul, pois seu pai
bebia muito e sua mãe batia nele. Sempre que se lembrava de sua família
chorava. Há 40 anos saiu de lá, e sentia muita falta de sua terra. Na LBV
a gente aprende a lidar com os pobres, com as pessoas necessitadas e
com os sofredores. Acho que por isso acabei me apegando a ele .
83
Aos poucos, graças a Nadir, Vitoraci foi mudando. Ele já estava
falando melhor e tendo uma boa relação com alguns moradores. O
companheirismo entre os dois foi algo essencial. O que importava muito
mais era a companhia um do outro, o apoio e toda ajuda. Certamente é
isso a base das relações humanas. Pelo apoio de cada um, foram se
desenvolvendo e melhorando. Ele já me pediu em casamento, mas eu não
quis. O que importa é o nosso companheirismo .

Nadir ensinou-o a cozinhar, a fazer a comida com cuidado e se cuidar


melhor. Ele começou a limpar a casa e ter mais higiene. Ele fala para mim
que o pessoal tinha muito nojo dele. Ele fica triste de brigar ou se
estressar perto de mim, porque eu sou a única que não tem nojo dele e
que o olha sem preconceitos . De manhã, é ele quem faz o café para Nadir.
O café dele é bom, é moderado no açúcar , Nadir conta dando risada. Na
minha penúltima visita a ela, seu Vitoraci estava conosco. Naquela semana,
ele tinha ficado muito nervoso e irritado, tendo brigado na fila do banco. Às
vezes, ele se estressava de repente e tentava agredir as pessoas. E foi o
que aconteceu. Achou que uma mulher, na fila do banco, estava falando
sobre ele. Ele começou a gritar e a tentar brigar, mas Nadir o acalmou.
Naquela manhã de sábado, ofereceram-me um café. Experimentei. Ela me
disse que ver alguém sendo simpático com ele, não tendo nojo de sua
comida, o tranquilizava. Realmente ele ficou muito mais calmo.

Vitoraci já é aposentado, mas logo que Nadir entrou na Vila Dignidade,


cortaram sua aposentadoria por invalidez, pois o viram carpindo um
terreno. Revoltada com isso, ela o levou na perícia novamente e acabaram
reestabelecendo seu benefício. Eles até me chamaram no momento da
perícia pois não entendiam o que ele falava . Viram que ele não tinha
condições de trabalhar, pois tinha esse problema mental e seu déficit de
comunicação.

84
Nadir tem por ele um carinho imenso. Eu falo para ele que ele tem um
jeito de caboclo. Até a boca é como se tivesse fumado cachimbo . E por
esse carinho tão grande, é que ficou muito chateada com o que aconteceu
no início desse ano.

Ultimamente, na visão de Nadir, a Vila Dignidade tem mudado muito.


Alguns idosos, novos moradores do local, transformaram aquele ambiente
acolhedor e pacífico de outrora, em um ninho de fofocas . Essas pessoas
falam mal de todos e sempre maltratavam Vitoraci. Todo dia a noite,
passavam e batiam em sua porta, assustando-o e irritando-o. Sempre viram
ele e Nadir de uma forma diferente. Faziam comentários maldosos para
atingi-los e tentavam mandar nela. Eu digo que quem manda em mim é
Deus e, depois dele, somente meu pai. Agora só obedeço a Deus . Nas
palavras de Nadir, que achei interessante transcrever, ela se referiu a eles
de uma forma peculiar: São uns velhos cornos, que não assumem que
foram traídos. Não conseguiram cuidar de suas mulheres e agora querem
mandar na gente! . É uma frase impactante. Mostra uma Nadir revoltada, e
um pouco diferente daquele seu espírito inicial sempre muito tolerante.
Mas não é nada de se espantar. O ser humano, por mais bondoso que seja,
tem um limite. Ninguém aguenta ser humilhado constantemente.

E, um dia, Vitoraci teve um surto. Naquela semana, não havia tomado


seu antidepressivo (ele tomava sertralina), pois não tinha o remédio no
posto de saúde. Era sempre a assistente social que conseguia o remédio
para ele, e ela estava de licença prêmio . Pelo fato dos idosos o irritarem e
por ele estar nervoso, teve um surto. Pegou uma barra de ferro e começou
a quebrar tudo em sua casa. Saiu para fora da casa e começou a bater o
ferro no chão e gritar. Todo mundo ficou assustado e alvoroçado. Eu falei
com ele e, aos poucos, ele foi ficando mais calmo e deu o ferro para mim .
Depois disso, Nadir foi para o Hospital com ele, e ficaram lá três dias. Ele
foi tratado e, desde então, foi morar no Asilo Padre Euclides.

85
Eles disseram que Vitoraci nunca mais poderia morar aqui, porque

era incapaz de cuidar de si próprio. Fiquei muito triste e abalada . A Vila

Dignidade mudou. Os porteiros ficam adulando essas pessoas

zombeteiras, que só tratam mal aos outros. Como pode isso? Vitoraci,

que é uma pessoa boa, não pode morar aqui, mas essas pessoas podem? .

Nadir diz que hoje em dia, os idosos estão piores que os novos.

Certamente há pessoas e pessoas. Tudo aquilo por que passamos molda

nossa visão de mundo e a forma que enxergamos as pessoas. Isso justifica

atitudes ruins? Certamente não.

Por causa de tudo isso, Nadir tem evitado ficar muito na Vila

Dignidade. Eu tento sair de dia, com minhas amigas, e fazer minhas

coisas para evitar ficar perto desse pessoal . Mesmo estando no Asilo,

Vitoraci ainda vê Nadir e os dois sempre saem juntos. Apesar de tudo,

gosto muito dele ainda. Somos companheiros de vida . Eu gosto muito da

casinha aqui, mas o que me incomoda é o pessoal. Queria muito ter uma

casa melhor, poder ter minhas coisas e poder ter meus animais de

estimação, porque aqui não se pode ter .

Recentemente, tive meu último contato com Nadir. Nesse ano, não

tinha mais conversado com ela. Nossa última conversa tinha sido ao final

de 2018, e, desde então, comecei a escrever esse livro. Durante 2019,

acabei assumindo outros compromissos, e me desliguei um pouco da

escrita. Mas, para finalizá-lo, era necessário ter uma última conversa com

Nadir. Foi um momento marcante.

86
Disse para Nadir: Dona Nadir, para finalizar esse livro, gostaria de
saber como a senhora está hoje? . Fiquei muito feliz com a resposta: Hoje
posso dizer que sou uma pessoa muito feliz, apesar de tudo que passei.
Consegui me aposentar agora, dia 6 de agosto. Foi praticamente um
presente de aniversário para mim de 65 anos, pois faço aniversário dia 24
de agosto! Hoje tenho meu dinheiro e já consigo ter uma vida melhor. O
que me deixe triste é essas pessoas ruins que moram aqui, e acabam nos
maltratando. Isso aborrece muito. Eu oro muito a Deus para ter condições
de um dia ter minha casa! Estou sempre saindo, almoçando junto com
minhas amigas e tentando me distrair. Recentemente quebrei minha mão,
mas agora já estou muito bem de saúde!. Sempre vou no espaço Nova
Aurora, para conversar com os idosos e passar o tempo. Posso realmente
dizer que sou feliz!

Perguntei por último: Dona Nadir, como a senhora se define em uma


única frase? Ela me disse: Sou uma vencedora desde criança, porque
sempre confiei em Jesus e tive ele come meu guia, meu tudo. Quero
continuar sendo vencedora, procurando melhorar a cada dia, pois nossa
tendência é sempre melhorar, para podermos construir um mundo mais
feliz!

87
88
Capítulo X

Memória
Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão

Carlos Drummond de Andrade

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m ano depois de ter começado, termino nessa manhã de

U domingo este livro. Foi um trajeto longo e árduo. No ano


passado, quando começamos os livros, acho que todos estavam
muito animados. Tínhamos tido as aulas preparatórias e estávamos
ansiosos para começar a conhecer e escrever sobre o nosso idoso. Mas
2018 terminou e os livros ainda estavam muito longe de estarem prontos.

Pensei que iria terminar o livro nas férias de janeiro. Como vocês
podem imaginar, não foi o que aconteceu. Acho que, quando voltei para
Botucatu, para o início das aulas, tinha escrito apenas três capítulos do
livro, sendo que meu planejamento inicial era ter essas dez partes. Iria
tentar ir escrevendo um pouco por dia para, em um mês ou dois, terminar
o livro, e, se precisasse, ir até a casa de Nadir para pegar informações
que estivessem faltando.

No entanto, fui aos poucos me desligando do projeto. Embora esse ano


começamos uma nova parte do projeto Biografia , com novos ligantes, o
nosso grupo do ano passado não estava mais se reunindo, e foi tudo
ficando cada vez mais distante. Sabia que precisava terminar o livro, mas
não tinha motivação para fazer aquilo naquele momento. Fui assumindo
outros compromissos, desenvolvendo meus projetos de pesquisa, o que
mais gosto de fazer aqui na faculdade além das aulas. Acho que a
pesquisa abre nossa mente, traz uma nova forma de não só ver o mundo,
mas enxergá-lo. E isso é essencial. Devemos ser alunos dessa nossa
faculdade, ser filhos fiéis a essa mãe, e não apenas estudantes daqui que
estão só de passagem. Mas essa minha teoria sobre o momento atual de
nossa faculdade fica para outro momento de minhas divagações. Mas é
bem interessante.

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Coloquei as férias do meio do ano como o período em que terminaria o
livro. Foi uma nova ilusão. Fiquei as duas primeiras semanas em São Paulo,
fazendo um estágio e, na última semana de férias, só consegui escrever
um capítulo. Estava difícil ter vontade para escrever. O projeto estava
muito distante do Antonio de agora. Mas sabia que tinha que terminar.

O professor Edison sempre nos alertou para não fazermos coisas


demais na faculdade, e sim para fazer poucas coisas, mas de forma
integral, dedicada e interessada. Devia ter escutado mais meu professor.
Acabei entrando na organização do Congresso daqui e me estressava cada
vez mais, pois tinha que resolver problemas que outros não fizeram, não
estava tendo tempo para me dedicar aos estudos da forma que sempre me
dediquei e o meu desempenho nas disciplinas já não era mais o mesmo.
Veio o mês de setembro, que parece ter sido gigante. Foi uma mistura de
provas, de problemas para resolver, de preocupações e do Congresso. Era
também o prazo máximo para o término do livro. Os problemas passaram,
chegou outubro e estava tudo mais tranquilo em minha mente. Poderia
agora novamente me dedicar aos meus estudos e minhas pesquisa. Mas
faltava o livro. Como iria terminar de escrevê-lo? Faltava a mim um
religamento ao projeto. E foi isso que ocorreu há quinze dias em uma
agradável manhã de domingo.

Fomos até a Demétria, um bairro afastado aqui de Botucatu, que


parece ser um outro universo. Lá tudo é mais leve, mais calmo e mais
tranquilo. O objetivo era, nesse dia, confeccionarmos a capa do livro. Foi,
sem dúvida alguma, um dia inesquecível. Em primeiro lugar, sentimos todo
o carinho do professor Edison, da professora Fernanda, sua esposa, que
também nos ajudou com o projeto, e da professora Josi. Foi reconfortante
saber da preocupação deles conosco e de sua atenção. Além disso, as
atividades de construir a capa do livro foram incríveis. Cada etapa tinha
um sentido, um sinal, a fim de entendermos o idoso, capturar sua essência,
e chegarmos até a construção da capa. Foi importante também pois
retomamos a união do grupo que não se via há muito tempo. Religamo-nos
aos idosos e ao projeto. Estava pronto para terminar o livro.

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O objetivo desse último capítulo não é apenas ser metalinguístico e
falar sobre a construção do livro. Seria algo muito chato. Mas achei
necessário retomar tudo para poder chegar naquilo que de mais bonito
houve nesse projeto: o conhecimento de uma vida humana e toda a
mudança gerada a partir disso.

Para mim, o projeto nunca foi apenas escrever sobre a vida do idoso,
de forma descritiva, apresentando os fatos. Não tenho formação para isso,
como os grandes biografistas. O objetivo era, em minha visão, mostrar um
pouco da vida desse idoso, a partir de minha perspectiva, entendendo
como a vida molda o ser humano naquilo que ele é hoje. Mas, além disso, o
objetivo era mostrar como esse processo de conversa e escrita me
transformou. O que vivenciei e aprendi disso tudo.

O Antonio que começou a escrever esse livro é o mesmo que hoje


termina? Claramente não. Heráclito já dizia que um homem nunca
consegue entrar no mesmo rio. Primeiro, porque ele já não é mais o
mesmo, e, segundo, a água também não. Mas, indo além desse pequeno
ditame filosófico, que já é um clichê, acho que realmente todo esse
processo me transformou. Quando comecei a escrever o livro, no dia 2 de
novembro de 2018, estava em um momento muito difícil. O primeiro
capítulo foi escrito sob muita angústia. Iria inclusive apagá-lo, mas resolvi
deixar, pois os sentimentos fazem parte da vida. No entanto, tudo isso
mudou.

Por meio da história de vida de Nadir, tive acesso a situações que


nunca imaginei conhecer. Tive um intenso choque de realidade. Nadir já
nasceu com uma situação socioeconômica muito difícil, e, ao longo de sua
vida, nunca conseguiu mudar de situação. Isso é algo muito impactante,
mas sem dúvida alguma não foi o maior. Vi que Nadir passou por um
sofrimento imenso em sua vida. Apanhava de seu pai, tinha problemas com
os irmãos, era maltratada pelo marido e até hoje ainda sofre. Na história
de sua família e de seus amigos o que mais se vê são mortes,
assassinatos, uso de drogas, prostituição, infidelidades e violência.
Trata-se de algo que jamais vivenciei. Não percebemos o quanto somos
privilegiados enquanto estamos restritos à nossa realidade.
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Mas o mais impactante foi ver como Nadir se construiu perante tudo
isso. Ela poderia ter sido fraca e se deixar levar pela realidade que está ao
seu redor. Vejo muito isso com as pessoas da faculdade atualmente. Mas
não. Nadir superou a tudo isso de forma inacreditável. Transformou a
violência, em bondade, as traições, em amor, as mortes, em misericórdia,
sempre pensando no bem do outro. Não importa o que acontecesse, o bem
do próximo sempre foi a prioridade na vida de Nadir. Como explicar isso?
Realmente não sei. Certamente Nadir é um espírito de luz, uma alma
evoluída. A LBV foi responsável por isso? Acho que teve seu papel, mas
toda a bondade e o amor sempre já estiveram em seu âmago. Conhecer
Nadir foi um privilégio.

Como isso vai impactar minha vida para o futuro? Acho que aos
poucos irei me transformando ainda mais com todo esse aprendizado. Na
Medicina, é muito fácil nos tornarmos arrogantes e desumanos. À medida
que vamos aprendendo, adquirindo mais e mais conhecimento, parece que
nos distanciamos do ser humano. Ao invés de sempre estar ao lado do
paciente, nos inclinando até ela para juntos nos levantarmos, cada vez
mais colocamo-nos em um pedestal. Isso pode ser visto já na própria
graduação, pelas atitudes de cada um. Deixamos de valorizar nossos
mestres, achando que conseguimos aprender sem eles (um dos maiores
erros, em minha opinião) e o individualismo só aumenta. A formação deixa
de ser humana e passa a ser puramente técnica. Com as mínimas
dificuldades, já reclamamos e ficamos mal por muito tempo. Certamente
cada pessoa é única e julgamentos não podem ser feitos.

Mas Nadir trouxe para mim algo inexplicável. Mostrou que as


dificuldades realmente existem, e não sou poucas. Pelo contrário, são
muitas e são duradouras. Mas infelizmente temos que passar por isso, de
uma forma ou outra. E o melhor a fazer é sempre seguir Vicente de
Carvalho e colocar a felicidade no agora, por mais difícil que pareça. Não
se pode ter o comodismo, mas sim a atitude de seguir em frente, de evoluir
e de sublimar todo o sofrimento.

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Espero que, na minha vida acadêmica e profissional futura, consiga
ter essa visão. A visão de sempre ser humano, sempre acolher o outro,
sem julgamento ou imagens pré-concebidas e me doar sempre ao máximo,
sendo todo em tudo o que fazes , como Fernando Pessoa diz. Nadir me
transformou e espero poder aplicar tudo de bom que aprendi na Medicina
e em minha vida pessoal. Jamais esquecerei dessa vencedora do
sofrimento, que fez com que do sangue nascesse a luz.

Botucatu, 06 de outubro de 2019.

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Nadir de Godoy e Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca
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