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Autor
Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca
Coordenadores do projeto
Josimari Carvalho Zanon
Ilza Maria Palace
Prof Dr Edison Iglesias de Oliveira Vidal
Colaboradores do projeto
Renato Fontes Gomes
Bernhard Nicolau Walzberg - in memorian
Profa Dra Fernanda Bono Fukushima
Editoração
Josimari Carvalho Zanon
Ilza Maria Palace
Ana Silvia Sartori Barraviera Seabra Ferreira
Diagramação
Ana Silvia Sartori Barraviera Seabra Ferreira
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Título: Do sangue nasce a luz
Subtítulo: os caminhos de Nadir
Formato: Papel
Veiculação: Físico
ISBN: 978-65-990577-3-1
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Sou uma vencedora desde criança, porque sempre
confiei em Jesus e tive ele como meu guia, meu tudo.
Quero continuar sendo vencedora, procurando melhorar
a cada dia, pois nossa tendência é sempre melhorar,
para podermos construir um mundo mais feliz.
Dona Nadir
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Sumário
Ao desconcerto do mundo 12
Mãos dadas 25
Felicidade 36
O acendedor de lampiões 61
A vida é assim... 70
Retrato 79
Memória 88
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Prefácio
Costumamos pensar a História da humanidade em função de
personagens impactantes ou de eventos marcantes que afetaram a vida
de milhares de pessoas. Frequentemente nos esquecemos que a História
é uma teia complexa tecida por um sem-número de indivíduos anônimos
através de suas histórias cotidianas interagindo uns com os outros e com
o mundo maior. Esse segundo olhar traz consigo uma lição das mais
relevantes, a de que todo ser humano e de que cada história são
especiais e únicos. Essa perspectiva integra o cerne da arte de cuidar, a
qual exige que nos importemos uns com os outros. Para nos importarmos
verdadeiramente, precisamos reconhecer que o outro é especial. Sem
isso, o cuidado não é cuidado, é farsa.
É com grande alegria que vemos nascer essa série de sete livros do
Projeto Biografia, onde alunos do curso de Medicina e Biomedicina da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
entrevistaram idosos residentes na Vila Dignidade de Botucatu de forma
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a construir um relato de suas biografias.
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Capítulo I
Ao desconcerto do mundo
Os bons vi sempre passar
Em mar de contentamentos.
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S
exta-feira amanheceu. Era 2 de novembro, dia de finados, o popular
dia das almas , como costumamos dizer no interior de São Paulo. Em
situações normais esse já é um dia reflexivo, dado todo o panorama e
a simbologia que o envolve, mas para mim, especialmente, carregava
um peso muito maior.
Conforme tinha combinado com a professora Josi, naquele dia iria fazer
minha primeira visita para a Dona Nadir, de cuja biografia esse livro se trata.
Na realidade não era a primeira visita. Já tinha tentado conhecê-la duas vezes
antes. A primeira foi no dia 29 de setembro, dia da primeira visita de todos os
colegas, porém ela não estava, pois havia ido para Bauru, na casa de sua filha,
ajudar a cuidar de seu genro que havia se acidentado. A segunda foi no dia 20
de outubro, dia em que também não a encontrei. Nessa ocasião, fiquei depois
sabendo que ela fora para Brasília, no templo da Legião da Boa Vontade,
entidade que vocês ouvirão falar (e muito) nesse livro.
Vocês devem estar também ansiosos por saber o que é a Vila Dignidade,
acertei? A Vila Dignidade é um local aqui da cidade, que faz parte de um
programa do governo estadual. Nesse local, idosos que estavam em condição
de vulnerabilidade social e baixa renda, tem acesso gratuito a uma casa, sem a
necessidade de arcar com qualquer custo de luz ou água, cuidando apenas de
sua alimentação. É certamente um ambiente calmo e aprazível, que contrasta
com a vida sofrida e triste que muitos de seus moradores tiveram e têm, até
hoje.
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Pelo que havia escutado sobre Dona Nadir, ela era uma mulher muito
falante, desinibida e bastante comunicativa, personalidade diferente da minha.
Na realidade, com as pessoas com quem tenho mais intimidade, ajo dessa
forma também, embora em proporção muito menor. Quem sabe não somos tão
diferentes assim. Às vezes, acho que conhecemos muito pouco sobre nós
mesmos. Mas enfim, vamos ao ponto em que a conheci.
Chegando lá, falamos com o porteiro, que foi logo chamá-la. Não tinha
criado nenhuma imagem ainda de como ela seria, até porque, ultimamente,
tenho estado extremamente atarefado e pensando em muitas outras coisas.
Logo ela veio nos receber. Era uma senhora de altura mediana, com cabelos um
pouco para cima do ombro de cor castanho-avermelhada. Tinha a pele clara,
mas intensamente marcada por sardas, em toda a face. No primeiro momento
que a vi, já pude perceber que se tratava de alguém especial. Certamente devia
ter tido uma vida muito intensa e sofrida (algo que se confirmou com a história
que vocês lerão), até pelo fato de atualmente estar naquele local, mas mesmo
assim demonstrava uma imensa alegria e felicidade por sua vida.
Ela prontamente nos recebeu e fomos à sua casa. Fisicamente, era igual a
dos outros moradores da Vila, com uma sala junto com cozinha, quarto,
banheiro e um espaço externo. Na sala, a mesa de jantar estava sendo
utilizada como estante, onde ela apoiava a televisão e o aparelho de vídeo.
Havia quatro cadeiras e um armário, onde guardava os mantimentos. Na
cozinha, tinha um fogão e a geladeira. Era muito organizada, e era possível
observar revistas, livros e outros materiais da Legião da Boa Vontade, a LBV
(irei me referir assim agora), por toda a casa. Seu quarto e a área externa ela
não mostrou e também não quis ser muito invasivo em pedir para conhecer, até
porque era nosso primeiro contato. Sentamos na sala e começamos nossa
conversa.
Que bom que vocês vieram para conversarmos! Todo o pessoal já estava
falando mesmo que vocês têm vindo aqui para escrever nossa biografia! , disse
Dona Nadir, com um sorriso no rosto.
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Ela explicou que não estava nos outros dias porque tinha ido viajar,
conforme expliquei anteriormente, mas se colocou a total disposição para tudo
que quiséssemos saber sobre ela. Podemos começar a história então? ,
perguntei, no que ela prontamente respondeu rindo: Claro! Só não se
incomode que eu falo muito!
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Capítulo II
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E
ra manhã do dia 24 de agosto de 1954. Os jornais do país todo
anunciavam: Matou-se Vargas. O presidente cumpriu sua palavra:
Só morto sairei do Catete . Na madrugada daquele dia, uma
reunião decisiva ocorreu no palácio do governo. Após o atentado a Carlos
Lacerda, instalou-se grande pressão por parte das elites sobre o governo,
em associação com a manipulação feita por alguns setores da imprensa.
Junto com seus ministros e parte de sua família, Vargas decidiu sobre o
futuro de seu governo, e sobre um afastamento até que se acalmassem os
ânimos no país.
O que poucos esperavam era que, por volta das 8h30 daquele dia, o
presidente Vargas, o maior da história desse país (Lula quase chegou lá),
cometesse suicídio. Com um tiro no peito esquerdo, abaixo das iniciais de
seu nome no pijama listrado, deu seu último ato em vida. As ruas foram
tomadas por multidões que davam seu último adeus ao presidente. O
cortejo fúnebre moveu milhares pela orla de Copacabana até o Galeão, de
onde o esquife do caudilho partiu para São Borja.
Foi então, com toda essa esfera social e política, que no hospital da
cidade, nasceu Nadir. Minha mãe dizia que estava no hospital e estava
aquela correria, com todo mundo preocupado pela morte do Getúlio; as
crianças saindo mais cedo da escola. Ela até queria colocar meu nome em
homenagem a ele. Ainda bem que não colocou! , disse dando risada. Eu
gosto muito de ouvir sobre a sua história de vida .
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Seu Arquelino, pai de Dona Nadir, era um homem muito trabalhador.
naquele período, e com seus filhos. Por uma razão muito pequena, já
agredia seus filhos, a que sua esposa nada podia fazer. Quando ele batia
quarto para rezar. Assim que saíamos, já estava tudo calmo , Nadir conta.
mas eu nem ligava . Apesar disso, seu Arquelino foi um grande exemplo e
esteio para ela. Antes de sua morte, já na velhice e no final da vida, deixou
de ser violento.
Dona Maria, mãe de Nadir, pode ser definida como uma mulher de
força. Teve 12 filhos, sendo que nove foram por parto normal e três por
manhã para as crianças, que eles comiam com leite de cabra. Os filhos
cresceram fortes e saudáveis. Para tudo, ela sempre dizia Deus é quem
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Sempre buscou a coragem, alicerçada em sua fé, para enfrentar os
desafios de sua vida. A Congregação Cristã, igreja que frequentava, foi
fundamental para toda essa superação e, de certa forma, resiliência. Dona
Nadir também fez parte dessa Igreja até conhecer seu esposo, mas isso é
um assunto para capítulos seguintes. Minha mãe queria ter 3 filhos, ela
contava. Como eu fui a quarta, eu brincava com ela que não era para eu
ter nascido então , contava Nadir rindo.
Sua avó materna morreu quando ela ainda era pequena, tendo tido
pouco contato com ela. Tinha uma úlcera grave no estômago, que foi
descoberta já numa situação muito tardia da doença. Quando Nadir tinha
12 anos (peço desculpas pelo salto de tempo), após chegar da escola, sua
mãe pediu para que ela levasse arroz doce a sua avó, que estava internada
no hospital de Bauru, para que operasse da úlcera (logo vocês verão que
eles se mudaram de Duartina). Ao chegar lá, Nadir ficou assustada e
triste, devido à fragilidade em que sua avó estava. Eu desci a escadaria
do hospital correndo, e fui para casa avisar minha mãe, que estava
mexendo no colchão de palha. Quando meus pais chegaram no hospital,
ela partiu .
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Seu avô paterno foi uma figura marcante em sua vida. Todo dia tomava
uma taça de vinho, sem falta. Para ele, funcionava como remédio. Embora
tivesse problema renal, nunca fez uso de medicamentos. Utilizava remédios
caseiros, e, como não poderia deixar de ser, o vinho. Morreu de derrame,
já bastante idoso.
A família de Nadir foi, sem dúvida alguma, muito importante para ela.
Foi a partir de suas vivências na infância, da companhia dos pais e dos
avós, que sua personalidade guerreira, resistente e batalhadora foi sendo
construída. Eu sempre digo que meu pai, minha mãe, meus irmãos e
minhas irmãs são um presente de Deus. O que eu pude fazer por eles eu
fiz. Tenho a consciência tranquila.
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Capítulo III
Mãos dadas
Estou preso a vida e olho meus companheiros.
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E
stimados leitores, certamente vocês viram a importância de seus
familiares para Dona Nadir. São seu exemplo, e apesar de todo o
sofrimento, seu grande sustentáculo. Todos temos o nosso
sustentáculo, aquelas pessoas, sejam da família ou não, sem as quais não
conseguimos viver. Eu, particularmente, posso salientar meus familiares e
quatro grandes amigos. Mas isso não vem ao caso. Perdoem-me pela
digressão.
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A terceira filha foi Creusa, que teve uma vida repleta de sofrimentos.
Creusa apanhava muito de seu pai na infância e adolescência, e, até por
isso, também batia nos irmãos. Minha irmã mais velha batia em mim, mas
eu entendia que ela tinha problema, por causa do meu pai . Aos 17 anos
de idade, revoltada com a família, Creusa fugiu com seu namorado, com
quem veio a se casar logo depois. Com ele, teve dois filhos. A situação
ficava cada vez mais difícil, pois seu marido não gostava de trabalhar e não
tinha boa relação com a família, situações que os levaram a grandes
problemas sociais, afastando-os de todos. Para trazer ainda mais
sofrimento à vida de Creusa, o marido a maltratava e a traía com uma
mulher que era professora do primeiro filho do casal. Cansada de tudo
isso, separaram-se, e seu ex-marido foi viver com a outra mulher.
A mulher com a qual seu ex-marido foi viver tinha muitos amantes. Um
deles, descontente por ela estar com um novo homem, envenenou o
ex-marido de Creusa, que morreu de forma muito triste, sofrida e cruel.
Após esse choque, Creusa, que no imo d alma ainda o amava, entrou em
um profundo estado de depressão e passou a beber. Desiludida com os
destinos de sua própria vida, foi viver com um senhor mais velho, logo
após conhecê-lo, de quem pegou o vírus HIV.
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Em meio a toda essa imensidão de sofrimento, sua filha ficou grávida,
ainda jovem. Porém, para Creusa, em meio a ira e tristeza de sua vida,
nada mais importava, e expulsou sua filha de casa. Ela não era capaz de
suportar mais um problema, mais uma decepção. A jovem, sem ter para
onde ir, acabou tendo seu filho sozinha, na rua, e logo o deu para a
adoção. Não se teve mais notícia deles. Muito debilitada já pela AIDS,
Creusa era cuidada por suas irmãs. Nadir a levava ao cabeleireiro e
sempre esteve ao seu lado, até a sua morte, ainda jovem.
Vani foi a quinta filha. Rindo, Nadir conta: Essa deu trabalho! . Vani
era uma menina muito ciumenta e apegada a sua mãe. Tinha uma
personalidade difícil, pois quando fazia algo de errado, mentia e culpava os
irmãos, que acabavam apanhando dos pais em seu lugar. Era alguém que
levava a vida a sua maneira, sem se preocupar com os outros, com seus
compromissos ou obrigações. Não queria ter que trabalhar para viver, e foi
sempre sustentada por alguém.
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Depois do quinto filho, Vani teve mais quatro, sendo incapaz, no
entanto, de criá-los e de cuidar deles adequadamente. Seus pais,
devido à idade avançada e à condição de vida difícil, não tinham como
adotar mais filhos. Por causa de toda essa dificuldade, uma menina foi
dada para uma patroa de São Paulo, que cuidou dela, estudou-a e a
criou. Ela chora porque tem vontade de ver a menina que deu, que já
tem mais de trinta anos hoje em dia . Nadir conta que, além de tudo
isso, Vani roubava suas patroas e roubava os seus irmãos. Apesar
disso, Nadir sempre tentou ajudar a sua irmã, dando bons conselhos
e auxiliando-a. Eu digo pra ela que já chega, pra ela parar com isso
e seguir a vida, com seu marido, mas ela não me escuta. Até por isso,
acho que ela não se dá muito bem comigo agora .
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Casou-se com Nice, uma mulher que havia sido casada anteriormente
com um traficante, já tendo dois filhos dessa relação. Em sua relação com
Nice, tiveram dois filhos. O mais jovem morreu ainda pequeno, com seis
anos, depois de ter sido atropelado por um caminhão. Nadir lembra da
cena muito triste e emocionada: Ele pegou o filho nos braços e a mulher
ria. Ela não ligava pra nada . O filho mais velho teve o destino de muitos
outros dessa família. No início, era uma boa pessoa, mas acabou se
envolvendo com drogas e foi morto em Santa Catarina. Podemos culpá-lo
de alguma coisa? Não sei. O que se vê hoje em dia é cada vez mais a
desestruturação das redes familiares e das redes de carinho. Como esse
jovem poderia ter um futuro se não tinha com quem contar, quem o
apoiasse ou o ajudasse. Tudo isso ele encontrou nas drogas. E triste dizer
isso, mas vejo muito disso aqui em minha faculdade.
Nadir conta que Adelino tem vontade de se separar. Sua esposa o trai
e bate nele, mas, apesar de tudo, ele a considera uma mulher trabalhadora
e que não merece nada de mal. Eu falo pra ele denunciar ela, mas ele tem
muita dó e gosta dela. Quando eu converso com a minha cunhada, ela diz
pra eu não me meter na vida dela. É muito triste .
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Durvalino fez 11 cirurgias na perna, e hoje já anda melhor. Casou-se e
teve dois filhos. Teve um casamento turbulento, sendo que sua esposa,
sem juízo , nas palavras de Nadir, o abandonou três vezes. Hoje vivem
bem. Mesmo com seu problema na perna, trabalhou por muito tempo como
cobrador de ônibus, e tenta, atualmente, se aposentar por invalidez.
O nono filho, Elias, morreu cedo, aos 38 anos. Sobre sua infância e
vida, Nadir não se lembra muito, mas algo certamente é muito marcante.
Elias foi, um dia, separar uma briga, quando ainda era jovem, mas em meio
a toda aquela confusão, recebeu uma facada nas costas. Foi necessária
ser feita uma transfusão de sangue e, naquele período, onde não se faziam
exames em todas as bolsas de sangue, acabou se contaminando com o
vírus HIV. A doença muito o debilitou e sua morte foi precoce, em um
quadro de caquexia e muita dor.
Uma de suas filhas teve um câncer grave no joelho, mas tratou, passou
por uma cirurgia e se curou. A filha de Marta ficou grávida ainda jovem e
teve um câncer no útero, sendo que seria necessário realizar o aborto da
criança, ou ela correria risco de vida. Nadir não se abalou com essa
situação. Minha irmã dizia que preferia que ela tirasse a criança, porque
não gostava do genro, mas eu sabia que não era certo . E todos oraram
muito, oraram para que fosse possível salvar a criança. E, incrivelmente, a
criança não precisou ser abortada e viveu. Minha sobrinha agradecia
pelas minhas orações e por ter alguém forte assim ao seu lado . Mas se
nós tivemos o direito de vir ao mundo e cumprir nossa missão, porque
impedir o de outro .
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Irene foi a décima primeira filha. Uma mulher guerreira e sofrida .
Irene teve um quadro de hepatite C e além disso, câncer de intestino.
Todos oraram e ela conseguiu se recuperar. Em seu casamento, teve dois
filhos. A história parece que repete. O filho mais velho foi para o caminho
das drogas, não tendo esperanças, e casou-se com uma prostituta. Desse
relacionamento teve um filho, mas que ficou aos cuidados de Irene. Ambos
os pais não queriam a criança, e Irene acabou acolhendo a criança. O filho
mais novo foi preso, mas não sabemos ao certo o motivo. Para piorar, seu
marido a largou para viver com uma mulher mais jovem e alcoólatra, sem
pensar nos filhos e na família. Vida triste a de Irene.
Tem uns trancos e barrancos na família, mas a gente tem que ser
forte e ajudar, para eles não desmoronarem .
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Desculpem-me pelo tom um tanto quanto descritivo. Acho que era
necessário, até pelo fato de não serem eles os personagens principais da
história. As histórias não tiveram o colorido próprio, mas tiveram a síntese
furta-cor. A síntese de cada pessoa na visão de Nadir. Isso é muito
importante. Somos únicos, mas cada pessoa nos enxerga de uma forma.
Nadir viu o sofrimento na vida de seus irmãos, mas também pôde ver a
beleza. A beleza em sempre estar disposta para ajudar, para servir.
A partir de agora vocês verão que a vida de Nadir é uma poesia. Uma
poesia nem sempre é bonita. Pode ser triste, reflexiva, melancólica e
macabra, sem ter a beleza, o romance, a pureza e a paixão que
acostumamos ver na arte. Mas independentemente do conteúdo, uma
poesia tem alma, tem essência, tem propósito. Essa é a vida de Dona
Nadir.
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Capítulo IV
Felicidade
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Vicente de Carvalho
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O
que é a felicidade? Como o poema no início do texto diz, e difícil
a encontrarmos. Não porque ela não exista, mas definitivamente
por nós mesmos. Pensamos muito, conjecturamos ações e
quase sempre não agimos para buscá-la. Nos acomodamos com a situação
em que estamos e pouco fazemos para mudá-la. Mas de que forma isso se
relaciona com a vida de Dona Nadir?
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E Nadir, com menos de um ano de idade, sofreu desse mal. Minha
mãe contava que eu estava em couro e osso, e ficava roendo pão duro o
dia inteiro. Todo mundo dizia que ela não iria conseguir me criar . Como
era de costume na época, ela foi levada a uma benzedeira. Não se tratava
de algo puramente físico, eles pensavam, mas sim que alguém tinha
desejado mal e feito alguma coisa contra a pequena criança. Uma vizinha
falava que não era só o Simioto não, mas que alguém tinha desejado o mal
para mim . E a mãe de Nadir, desejando evitar esse mal maior, quis se
mudar de Duartina. E foi então que a família chegou em Bauru.
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Nadir, advinda de uma família sempre humilde, com condições
financeiras difíceis, e pouca estrutura social, pouco brincou e pouco
estudou em sua infância. Desde pequena, começou a ajudar sua mãe a
cuidar de seus irmãos mais novos, afinal eram dez crianças na casa. A
brincadeira não tinha muito espaço, embora houvesse poucos momentos de
diversão e lazer em Bauru. Sempre muito ligada a avó paterna,
acompanhava-a até a igreja, junto com sua mãe (quando vieram para
Bauru, não vieram apenas seus pais, mas seus avós paternos, maternos e
tios). O trabalho na roça, junto de seu pai, também existiu desde cedo.
Quando tinha uma idade um pouco maior, já acompanhava, desde cedo,
Seu Arquelino, ajudando-o no cultivo e na plantação.
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A comida nunca foi muito farta em sua casa. Sua mãe criava galinhas,
e a carne de frango era o principal que existia nas refeições. A carne de
boi eles comiam apenas uma vez por mês, quando seu pai recebia o
salário. No final do ano era muito gostoso, meus avós matavam os porcos,
fritavam a carne e colocavam na gordura para conservar, porque não
tínhamos geladeira . A vida não era fácil. Televisão mesmo eu só fui
conhecer com 12 anos. O pessoal até brincava com meu pai que ele teve
bastantes filhos por causa disso , conta Nadir rindo.
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Capítulo V
Vinícius de Morais
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O
amor pode começar das mais diversas formas, querendo-se ou
não. Pode ser algo ao acaso, sem se imaginar e sem se
controlar; algo criado, a partir de um desejo ou ilusão; ou ainda
algo natural, único e intenso, que ocorre a partir de uma sintonia marcante
entre duas pessoas, e que pode evoluir de uma grande amizade. No caso
de Dona Nadir e Jair, foi uma situação a parte e, de certa forma, até
mesmo interessante.
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Dessa união, nasceram três filhos, de quem falaremos agora. Daqui a
pouco saberemos um pouco mais como foi a vida de Nadir junto de seu
esposo.
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De volta a Botucatu, Adriana foi seguir sua vida. Trabalhou por anos
na perfumaria Sumirê e depois na perfumaria Charme. Dedicada, era
campeã de vendas. Ela trabalhava muito, todos os clientes gostavam dela.
Ela foi inclusive campeã de vendas! Superando suas dificuldades, começou
a estudar e se especializar. Nadir sempre a incentivava, vendo no estudo e
no aprendizado uma forma de melhorar de vida. Adriana terminou seu
curso de Enfermagem, e atualmente trabalha no nosso hospital, no
Hospital das Clínicas da FMB. Eu achei até engraçado ela virar
enfermeira, porque antes ela tinha pavor de sangue. Não podia nem ver,
que já passava mal .
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O primeiro companheiro era uma boa pessoa, nunca fez nada contra
Nadir ou Adriana. Inicialmente, trabalhava como agente penitenciário, após
ter passado em concurso, porém era ameaçado pelos detentos pois não
queria traficar drogas. A escolha feita foi deixar o emprego. Adriana o
ajudou e ele conseguiu o emprego na Embraer. O segundo companheiro
foi, na visão de Nadir, alguém muito importante para Adriana. Eu digo que
ele foi um anjo na vida dela . Coincidentemente, ele também trabalha na
Embraer, no escritório. Como a vida apronta peças com as pessoas.
Apesar dessa situação de relacionamento, os dois são muito amigos .
Nadir tem prazer em brincar com os netos, estar junto deles e fazê-los
felizes. Eu sempre gostei muito de brincar com crianças e de dar atenção
para pessoas idosas . Certamente Nadir apresenta o dom do cuidar.
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Odete trabalha dando plantão à noite, dia sim, dia não. É um trabalho
muito intenso e muito pesado. Mas ela é, sendo dúvida alguma, alguém
muito forte. Embora esteja sempre na correria do cuidado com os filhos e
com a família, nunca desanima. É uma mulher forte espiritualmente. A
vida é luta mesmo, a gente não pode desanimar .
O problema é que Nadir não se dá muito bem com seu genro, esposo
de Odete, com quem sempre bateu de frente. Odete queria estudar e subir
na vida, era o seu sonho. Ela tinha muita vontade em ser assistente
social, para poder ajudar os outros como sempre via na LBV. Entretanto,
conheceu seu esposo João Galdino e acabou logo se casando. Nadir foi
contra esse casamento, pois queria que sua filha corresse atrás de seus
sonhos. Jair, no entanto, aprovou o casamento. Eu falo para o Jair que,
como ele consentiu com o casamento, ele que ajude sua filha agora . Eu
sempre vou tentando conversar com meu genro, e aos poucos ele está
mudando .
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Como disse, Odete tem cinco filhos. A mais velha é Amanda, de 18
anos. Foi a segunda neta de Nadir. Ela quer ser assistente social, pois,
quando iniciou seu primeiro emprego, nos Correios, recebeu grande ajuda
de uma assistente social. Ficou tocada com todo o carinho e atenção para
com ela. Será que ela sabe que o sonho de sua mãe também era esse? O
segundo filho foi João Marcelo, de 16 anos. É um grande amigo meu . Os
outros filhos são a Julia Letícia, de 12 anos, que quer ser fisioterapeuta, o
Lucas Miguel, de 8 anos, e o Matheus Gabriel, de 1 ano e 9 meses, o neto
mais novo de Nadir. Esse meu netinho é muito esperto, ele começou a
andar com 10 meses. Sempre que eu vou para Bauru, brinco muito com
ele .
Nadir tem uma boa relação com seus netos, são todos muito amigos.
Ela liga para eles quase todo dia, com muita saudade. Eles me chamam
de vovozona, como uma forma de carinho, mas eu digo que essa é a do
filme , Nadir conta rindo. Depois eles me chamam de vovozinha para
tentar me agradar .
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Depois que veio do Nordeste, Nadir descobriu que tinha um tumor
benigno no útero, depois de ter tido um grande sangramento. Os médicos
acharam melhor tirar meu útero e meu ovário .
Foi assim então que se constitui a família de Nadir. Parece que tendo
como base toda sua história, foi também marcada por muito sofrimento e
tristeza, mas sempre andando lado a lado com a esperança. Como Nadir
suportou tudo isso com seus filhos, com seus irmãos e com o seu marido?
Certamente foi devido à LBV. Chegou a hora de conhecermos um pouco
mais sobre essa instituição pela qual Nadir deu e dá sua vida. Sua história
tem, como parte essencial, a LBV.
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Capítulo VI
Então apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão, cor de fogo. Tinha
sete cabeças e dez chifres e, sobre as cabeças, sete coroas. Com a cauda,
varria a terça parte das estrelas do céu, atirando-as sobre a terra. O
Dragão parou diante da Mulher, que estava para dar à luz, pronto para
devorar o seu Filho, logo que nascesse. E ela deu à luz um filho homem,
que veio para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o Filho foi
levado para junto de Deus e do seu trono. A Mulher fugiu para o deserto,
onde Deus lhe tinha preparado um lugar.
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A
o falar sobre a LBV, certamente haverá a mistura entre a
história dessa instituição e as experiências vividas por Nadir.
Nada tem sua história se não tiver quem a viveu.
Antes de conhecer dona Nadir, tinha ouvido falar muito pouco sobre a
LBV. Para falar a verdade, a única coisa que conhecia era o canal de
televisão. Na minha época de ensino médio, quando ficava as tardes
deitado no sofá de minha sala (esvaindo-se a vida) e ia mudando os canais
da televisão, as vezes passava pelo canal da Legião da Boa Vontade.
Nunca tive curiosidade em assistir ou me aprofundar sobre o assunto.
Como vocês perceberam, iremos conhecer juntos um pouco mais sobre a
LBV.
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Com essa história sucinta da LBV, vemos que ela nasce em um
momento muito importante do Brasil. No momento em que se inicia
fortemente a produção industrial e ocorre o aumento da população urbana
e, desse modo, agrava-se, também a desigualdade social. A LBV vem como
um socorro a uma população sofrida e isolada socioeconomicamente. Com
as palavras fortes de Zarur, o número de seguidores só aumentou.
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O templo tem o formato de uma pirâmide, havendo no topo um cristal
de 21 kg. Esse cristal tem uma história interessante. Ele foi encontrado em
Minas Gerais por um casal muito humilde, que teve uma revelação que
aquilo seria algo para ajudar a humanidade. Nesse mesmo período, Paiva
Netto, sabendo disso, imaginou que o cristal poderia ter um sentido
espiritual, e foi atrás desse humilde casal. Muitas pessoas tentaram
comprá-lo, mas eles não venderam. Sabiam de seu significado e de sua
missão. Quando Paiva Netto chegou, entregaram o cristal prontamente. O
templo era um sonho de Zarur, e seus restos mortais se encontram no
subsolo. A construção do templo demorou 3 anos, sendo que toda a
comunidade auxiliou para transformar aquele sonho em realidade.
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Outra estrutura do templo é o parlamento, onde se tem dois auditórios,
em que se discutem trabalhos sobre o lado espiritual da vida. Não adianta
só cuidar do corpo, e não do espírito, e vice-versa. Um sempre precisa do
outro . Nadir foi voluntária na LBV por 20 anos, e de 1988 a 1998,
trabalhou com carteira assinada. Vocês verão que ela inclusive foi até a
Paraíba como voluntária.
Após tudo isso, uma interessante analogia veio a minha mente. Uma
analogia que já começou a ser expressa em alguns parágrafos anteriores,
mas não se concluiu. Foi na Demétria, a dois domingos atrás, que tentei
entender um pouco mais da vida de Nadir. Em meio àquele ambiente de
tranquilidade, de calmaria e de reflexão, pude perceber quão única Nadir é
e quão importante é sua história. Na capa desse livro observamos, na
região inferior, um caminho tortuoso vermelho. Um caminho que ora é um
pouco mais alargado, ora é um pouco mais estreito, igual a vida, que
dança entre um apertar e um afrouxar. Essa é a vida de Nadir antes da
LBV. Uma vida de muito sofrimento, muitas dificuldades, porém que
prosseguiu. Junto dela, sempre havia a esperança, um caminho verde e
luminoso que dava forças para seguir em frente.
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A LBV chega como uma grande luz. Uma luz que a tudo abraça e a
tudo transforma, trazendo o reconforto. Surge então um caminho
arroxeado. O roxo como uma cor forte, trazendo imponência e força, mas
ao mesmo tempo trazendo o mistério de um contínuo sofrimento, de uma
contínua dificuldade. No entanto, a esperança está sempre ao lado.
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Capítulo VII
O acendedor de lampiões
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Jorge de Lima
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E
m nenhum momento desse livro vimos, até agora, alguma
situação em que tudo tenha se transcorrido com calma e
naturalidade. Muito pelo contrário. O que observamos é, na
realidade, uma história de superações, havendo sempre essa intensa
mistura entre alegria e tristeza. E assim foram os 37 anos de casados
junto de Jair.
Jair ficou revoltado, pois viu a chance de ter seu filho homem se
anular, já que Nadir não mais podia engravidar. A partir disso, ele
começou a ficar diferente comigo, começou a ficar estúpido .
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Nesse cenário de instabilidade familiar e dificuldades, surgiu para a
família de Nadir um convite muito inesperado: trabalhar como voluntários
da LBV na Paraíba. Não pensaram duas vezes e foram todos para o
Nordeste: o casal e as filhas Adriana e o Odete. Seria uma possibilidade
também de se esfriarem os ânimos e tudo voltar ao normal.
Eu fazia de tudo lá, mesmo não tendo estudo, não tendo nada . Nadir
fazia limpeza, cuidava das crianças e dos idosos, e ia visitar as famílias, de
porta em porta, junto com os médicos voluntários. A assistente social
sempre me dava parabéns pelo meu trabalho, porque mesmo sem estudo
eu conseguia ajudar em tudo . Nadir ia na feira, no CEASA, para trazer
comida para as crianças. Trazia sacos na cabeça até o ônibus, e depois
separava as verduras, os legumes e as frutas, sempre com muito carinho e
organização. As crianças faziam quatro refeições, e era preciso que todo
mundo ajudasse para que desse certo.
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No entanto, no período em que estiveram no Nordeste, muita coisa
aconteceu em Bauru. Inicialmente, a mãe de Jair partiu, em 1986. Não
puderam nem vir ao enterro. Ela era uma mulher muita sofrida, que tinha
um quadro muito grave de diabetes, tendo sido preciso amputar parte dos
dedos e uma das pernas. Ela era uma mulher muito boa, me dava muitos
conselhos .
Além disso, Nadir teve outra importante perda: a partida de seu pai.
Como estavam muito longe e o deslocamento era muito difícil, também não
conseguiram ir ao enterro para prestar a última homenagem. Como sua
mãe tinha ficado sozinha e Nadir estava muito longe, ela pediu para que
eles voltassem. Nadir escreveu uma carta para Paiva Netto, pedindo
autorização para que eles voltassem. Quatro anos após essa experiência,
retornaram a Bauru.
O Nordeste foi uma escola para mim e para minhas filhas. Eu falo que
esses quatro anos lá foram uma escola de sobrevivência para mim. Aprendi
muita coisa! .
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Jair se aposentou e começou a andar com pessoas ruins, sem se
importar com Nadir. Ele começou a se afastar da Igreja, a ficar descrente.
Nadir sofria em silêncio, cada vez mais.
Certo período foi para Campinas, na casa de sua filha Adriana. Nessa
época ela estava morando lá pois ainda trabalhava no escritório da LBV, e
tudo estava muito corrido. Seu marido não parava em nenhum emprego e
ela não estava conseguindo cuidar dos filhos. Nadir foi então para cuidar
de seus três netos. Sempre o desejo de ajudar e servir falou mais alto na
vida de Nadir.
Eu digo que eu fui para Campinas para cuidar dos meus netos, mas
foram eles que acabaram cuidando de mim. Todos tiveram muito carinho
comigo .
Apesar (e por causa) de tudo que passaram juntos, hoje são mais
amigos um do outro do que eram antigamente. O pessoal de Bauru até
fala que não imagina que a gente está separado, porque foi muito de
repente . Embora a amizade esteja presente, Nadir evita falar muito com
Jair. Quando o vê, cumprimenta-o e conversam, mas para por aí. Às
vezes minhas filhas falam que ele está com problemas, e passando por
dificuldades, mas eu apenas oro . Depois da separação, Jair começou a
gastar com mulheres e não pensar mais nas filhas. Eu pegava no pé dele,
para ele ajudar as filhas e para me dar a pensão .
Jair continua ainda muito próxima das filhas. Ele é um amigão delas,
principalmente da Adriana. Eu acho até que as vezes a gente não se bate
porque ela ficou brava de termos nos separado . Ele se aproveita disso
para colocar as filhas contra Nadir. Mas eu vou conversando com Deus e
vou orando para ele melhorar .
Uma dúvida de todos deve ter sido como Nadir veio parar em
Botucatu. O motivo foi sua separação. Jair ficava fazendo pirraça,
pegando no pé dela, e continuava a maltratar Nadir. Ele é uma pessoa
muito machista, não tem jeito . O jeito foi ir para Botucatu. Era necessário
começar um novo capítulo de sua vida.
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Recentemente, Jair arrumou outra mulher. É uma enfermeira
aposentada, que também se divorciou do marido. Ele fala para minhas
filhas que está arrependido de ter judiado de mim. Diz que trocou seis por
meia dúzia . O ser humano é certamente inacreditável. O importante é que
Nadir é sempre forte e segura daquilo que faz. Ele que siga o caminho
dele, que eu sigo o meu .
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Capítulo VIII
A vida é assim...
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer
da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a
ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais
alegre ainda no meio da tristeza!
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vida de Nadir mudou de repente. Era casada, morava em Bauru
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Depois disso, Nadir começou a cuidar da mãe do professor Antonio
Rugolo, a dona Cecília Rugolo. Dona Cecília estava em um estágio terminal,
devido à metástase de um câncer, passando por isso durante um ano. Eu
era muito próxima a ela, e sempre que era preciso ficava com ela no
hospital . Na última internação de dona Cecília, Nadir a acompanhou
durante oito dias no Hospital das Clínicas. No momento em que ela partiu,
eu estava segurando sua mão. Eu orei muito para ela, porque via que ela
estava sofrendo muito .
Nadir tentou arrumar outros idosos para cuidar, porém estava cada
vez mais difícil conseguir emprego. Trabalhou durante cinco anos como
cuidadora, até quando ficou doente. Nadir teve uma pneumonia muito
forte, que a deixou com problemas pulmonares, e, desde então, ela não
pôde mais trabalhar com a mesma intensidade de antes.
Como ainda não tinha se aposentado, restou correr atrás do que lhe
era devido. O marido nunca tinha pagado pensão, e Nadir procurou uma
advogada. Entraram na justiça e Jair foi obrigado a pagar a pensão a ela.
Nadir não tinha mais como trabalhar, esse dinheiro seria sua única
esperança para conseguir seguir sua vida. Passou então a receber 300
reais por mês do ex-marido.
Nadir continuou morando junto com Zenaide; não havia outra opção. O
bom é que as duas eram muito amigas, eram voluntárias da LBV e todo
domingo iam fazer vista para os doentes no nosso hospital. Embora ela
quisesse ter sua casa, e poder seguir sua vida, tudo estava indo muito
bem. Até o momento em que sua vida correu perigo na casa de Zenaide.
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Zenaide era uma pessoa muito sofredora, pois tinha uma saúde muito
debilitada e passava por graves problemas com sua família. Devido a um
aborto provocado, Zenaide teve uma lesão grave nos rins e no intestino,
precisando passar por cirurgia. Ela ficou um mês intubada, e, a partir de
então, começou a fazer hemodiálise e utilizar bolsa de colostomia. Passou
por essa situação durante 40 anos. Ela dava conselhos para as mulheres
não fazerem aquilo que ela fez .
Assim como Nadir, teve inúmeros problemas com seu esposo. Ele era
mulherengo, maltratava-a e a traía, e a abandonou com quatro filhos para
ela criar sozinha. Diante de tudo isso, restava a ela apenas apagar seu
sofrimento acendendo um cigarro. Fumou durante 35 anos. Quando Nadir
começou a morar com ela, pedia muito para que ela parasse de fumar, até
que um dia conseguiu. Quando eu morava lá, a gente conversava e se
distraia, e isso a ajudou a parar de fumar .
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A situação não melhorou. A casa era de tijolos, mas muito antiga, não
havendo reparos e, no chão, os tacos estavam todos completamente
estragados. Para piorar, os filhos trabalhavam com ferramentas pesadas e
tinha muitas coisas guardadas. Pelo acúmulo de material por toda a casa,
o ambiente era muito sujo, atraindo muitos ratos. Lá tinha muitos ratos e
eu morria de medo porque a noite, quando eu deitava, os ratos ficavam
passando em cima do meu pé. Era horrível! . Nadir dormia, na sala, em um
colchão velho e estragado que Zenaide havia arrumado. Eu arrumei um
colchão novo e bom para mim, mas o filho que mexia com drogas acabou
levando embora, provavelmente para trocar por drogas .
A vida de Nadir não era fácil. Não tinha trabalho, morava em uma
situação sub-humana, e em um meio em que a situação social era
problemática. Morava em um bairro marcado pelo tráfico e pela
prostituição. Foi uma pessoa muito forte. Conseguiu suportar tudo isso
novamente. Nadir parece tirar força de onde menos esperamos.
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Depois de dois anos já estando em Botucatu, decidiu sair da casa de
sua amiga. Arrumou uma casa no bairro Cambuí, no fundo da casa de um
senhor. Era pequena, com dois cômodos e um banheiro, mas pelo menos
ela teria maior privacidade, maior segurança e maior organização. No
entanto, pouco tempo após Nadir se mudar, o senhor se amigou com uma
mulher, que iria trazer sua filha para morar na casa dos fundos. Nadir
não mais poderia ficar lá. Foi muito ruim, porque ele pediu para eu sair
para a filha da mulher morar lá. No final, ela acabou não morando e a
casa está até hoje vazia . Era necessário voltar para a casa de Zenaide.
Antes de partir, ela pediu para que eu desse apoio aos filhos dela.
Todos são filhos de Deus, apesar de tudo . Ainda hoje, ela tem contato
com os filhos de Zenaide e sempre tenta conversar com eles, tentando
ajudá-los. Para Nadir, nunca faltaram com o respeito ou tentaram fazer
algo de errado.
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Nadir disse que ela precisava de um lugar para morar, pois não tinha
condições de viver onde estava. O pessoal da Assistência Social viu que ela
não tinha terreno, não tinha imóveis e nem qualquer dinheiro guardado.
Como uma luz na vida de Nadir, disseram sobre a possibilidade de ir para a
Vila Dignidade. Embora Nadir nem soubesse do que se tratava aquilo,
prontamente aceitou. Qualquer coisa era melhor que a situação na qual ela
estava. Três dias depois, mudou-se para sua nova casa.
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Capítulo IX
Retrato
(...)Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
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Vila Dignidade foi um presente para Nadir. Sua vida acabou se
Nadir tem um carinho muito grande pela Vila Dignidade. Eu não tenho
do que reclamar. Agora eu durmo tranquila, sem nenhuma preocupação .
Ela recebe uma cesta básica da Prefeitura um mês sim, outro não. É isso
que a ajuda com sua alimentação, pois como ainda não é aposentada, e
recebe apenas os 300 reais de Jair, a situação econômica é sempre
delicada. No entanto, esse ano Nadir já deu entrada em sua
aposentadoria. Durante 10 anos a LBV pagou seu registro no INSS e, após
esse período, cada filha paga o registro um mês até que chegue ao tempo
necessário.
Mas devido à fratura exposta que teve em sua perna, Nadir realmente
não pode ficar muito tempo parada, pois seu pé começa a formigar. Por
isso eu saio bastante para andar pela cidade e fazer tudo que eu preciso,
para ativar a circulação. A assistente social até reclama que eu saio muito
daqui! , Nadir conta rindo.
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Nadir sempre acorda cedo, e já toma seu cafezinho para despertar. É
meu pretinho básico. Preciso tomar para acordar e ter um dia bom . Ela
sempre participa das atividades da Vila Dignidade e das atividades em
grupos de idosos da cidade. Eu saio com a dona Celuta e a dona Antonia,
que moram aqui, e sempre vamos fazer alguma atividade . No início Nadir
tinha uma boa relação com todos. Porém, devido a algumas situações
ocorridas (aguardem, vocês já saberão), sua relação com alguns outros
moradores foi se desgastando.
Quando Nadir mudou para lá, seu Vitoraci já era morador da Vila há
algum tempo. Entretanto, ele era muito isolado e não tinha boa relação
com os demais. Vitoraci tem um problema na audição e não consegue falar
direito. É muito difícil entender o que ele fala. Eu aos poucos fui me
acostumando e aprendendo . Ele ficou desse jeito pois, durante a
juventude, sofreu um acidente, sendo atropelado por uma moto. Desde
então, nunca mais foi o mesmo. Nadir o levou ao médico para ver sobre
sua audição, para tentar ajudá-lo. Ele está atualmente na fila para
conseguir o aparelho de audição.
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Nadir tem por ele um carinho imenso. Eu falo para ele que ele tem um
jeito de caboclo. Até a boca é como se tivesse fumado cachimbo . E por
esse carinho tão grande, é que ficou muito chateada com o que aconteceu
no início desse ano.
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Eles disseram que Vitoraci nunca mais poderia morar aqui, porque
zombeteiras, que só tratam mal aos outros. Como pode isso? Vitoraci,
que é uma pessoa boa, não pode morar aqui, mas essas pessoas podem? .
Nadir diz que hoje em dia, os idosos estão piores que os novos.
Por causa de tudo isso, Nadir tem evitado ficar muito na Vila
coisas para evitar ficar perto desse pessoal . Mesmo estando no Asilo,
casinha aqui, mas o que me incomoda é o pessoal. Queria muito ter uma
casa melhor, poder ter minhas coisas e poder ter meus animais de
Recentemente, tive meu último contato com Nadir. Nesse ano, não
tinha mais conversado com ela. Nossa última conversa tinha sido ao final
escrita. Mas, para finalizá-lo, era necessário ter uma última conversa com
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Disse para Nadir: Dona Nadir, para finalizar esse livro, gostaria de
saber como a senhora está hoje? . Fiquei muito feliz com a resposta: Hoje
posso dizer que sou uma pessoa muito feliz, apesar de tudo que passei.
Consegui me aposentar agora, dia 6 de agosto. Foi praticamente um
presente de aniversário para mim de 65 anos, pois faço aniversário dia 24
de agosto! Hoje tenho meu dinheiro e já consigo ter uma vida melhor. O
que me deixe triste é essas pessoas ruins que moram aqui, e acabam nos
maltratando. Isso aborrece muito. Eu oro muito a Deus para ter condições
de um dia ter minha casa! Estou sempre saindo, almoçando junto com
minhas amigas e tentando me distrair. Recentemente quebrei minha mão,
mas agora já estou muito bem de saúde!. Sempre vou no espaço Nova
Aurora, para conversar com os idosos e passar o tempo. Posso realmente
dizer que sou feliz!
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Capítulo X
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
essas ficarão
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m ano depois de ter começado, termino nessa manhã de
Pensei que iria terminar o livro nas férias de janeiro. Como vocês
podem imaginar, não foi o que aconteceu. Acho que, quando voltei para
Botucatu, para o início das aulas, tinha escrito apenas três capítulos do
livro, sendo que meu planejamento inicial era ter essas dez partes. Iria
tentar ir escrevendo um pouco por dia para, em um mês ou dois, terminar
o livro, e, se precisasse, ir até a casa de Nadir para pegar informações
que estivessem faltando.
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Coloquei as férias do meio do ano como o período em que terminaria o
livro. Foi uma nova ilusão. Fiquei as duas primeiras semanas em São Paulo,
fazendo um estágio e, na última semana de férias, só consegui escrever
um capítulo. Estava difícil ter vontade para escrever. O projeto estava
muito distante do Antonio de agora. Mas sabia que tinha que terminar.
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O objetivo desse último capítulo não é apenas ser metalinguístico e
falar sobre a construção do livro. Seria algo muito chato. Mas achei
necessário retomar tudo para poder chegar naquilo que de mais bonito
houve nesse projeto: o conhecimento de uma vida humana e toda a
mudança gerada a partir disso.
Para mim, o projeto nunca foi apenas escrever sobre a vida do idoso,
de forma descritiva, apresentando os fatos. Não tenho formação para isso,
como os grandes biografistas. O objetivo era, em minha visão, mostrar um
pouco da vida desse idoso, a partir de minha perspectiva, entendendo
como a vida molda o ser humano naquilo que ele é hoje. Mas, além disso, o
objetivo era mostrar como esse processo de conversa e escrita me
transformou. O que vivenciei e aprendi disso tudo.
Como isso vai impactar minha vida para o futuro? Acho que aos
poucos irei me transformando ainda mais com todo esse aprendizado. Na
Medicina, é muito fácil nos tornarmos arrogantes e desumanos. À medida
que vamos aprendendo, adquirindo mais e mais conhecimento, parece que
nos distanciamos do ser humano. Ao invés de sempre estar ao lado do
paciente, nos inclinando até ela para juntos nos levantarmos, cada vez
mais colocamo-nos em um pedestal. Isso pode ser visto já na própria
graduação, pelas atitudes de cada um. Deixamos de valorizar nossos
mestres, achando que conseguimos aprender sem eles (um dos maiores
erros, em minha opinião) e o individualismo só aumenta. A formação deixa
de ser humana e passa a ser puramente técnica. Com as mínimas
dificuldades, já reclamamos e ficamos mal por muito tempo. Certamente
cada pessoa é única e julgamentos não podem ser feitos.
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Espero que, na minha vida acadêmica e profissional futura, consiga
ter essa visão. A visão de sempre ser humano, sempre acolher o outro,
sem julgamento ou imagens pré-concebidas e me doar sempre ao máximo,
sendo todo em tudo o que fazes , como Fernando Pessoa diz. Nadir me
transformou e espero poder aplicar tudo de bom que aprendi na Medicina
e em minha vida pessoal. Jamais esquecerei dessa vencedora do
sofrimento, que fez com que do sangue nascesse a luz.
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Nadir de Godoy e Antonio Rodrigues Bueno da Fonseca
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