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CASO 1 – Interiorização dos Refugiados Venezuelanos no município de Canoas


(RS)
O município de Canoas está localizado na região metropolitana de Porto Alegre, há
aproximadamente 20 km da capital. Além de ser a mais populosa entre as cidades
metropolitanas, excluindo Porto Alegre (345 mil pessoas), Canoas é a 50ª cidade com o maior
PIB no Brasil, o que concretiza o município como um dos mais importantes para o
desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul e da região Sul do Brasil.
A Prefeitura de Canoas não tinha muita experiência com a recepção de imigrantes. Isso
sempre coube, no município, as organizações sociais, na sua maioria com vocação religiosa.
Em Canoas, sempre coube ao Centro Batista de Acolhimento Social, a referência para acolher
os imigrantes que chegavam à cidade.
O município de Canoas começou a receber os venezuelanos no final de 2018. Segundo
relatos não houve uma programação do governo federal para isso. A região de Roraima,
especificamente, o município de Pacaraima estava entrando em colapso pelo grande fluxo de
imigrantes venezuelanos que diariamente chegavam ao município. Cabia ao governo federal,
através da Operação Acolhida, distribuir esses imigrantes junto a diversas regiões (municípios
brasileiros). Para recepcionar e integrar esses imigrantes, o governo federal, oferecia
alimentação para os refugiados durante seis meses, através das forças armadas, no caso
específico a marinha. Além disso, o município receberia R$ 450,00 por mês, por refugiado
acolhido, por um período de 6 meses. Esse valor seria destinado a cobrir investimentos a serem
feitos em saúde, educação e capacitação dos refugiados. De outro lado, caberia a Agência da
ONU para Refugiados (ACNUR) o pagamento do aluguel dos imóveis onde esses refugiados
ficariam hospedados, também por um período de 6 meses. No caso de Canoas a ACNUR era
representada pela Associação Padre Antônio Vieira. Neste período também, a ACNUR, através
da Associação Padre Antônio Vieira, destinava um valor que girava em torno de 50 a 100 reais
por mês, para cada família de refugiados. Esse valor era entregue em mãos pelos agentes da
ACNUR e não passava pelos órgãos dos municípios.
Dessa forma, observa-se pela primeira vez no Brasil a formação de uma política pública
com papeis bem distribuídos entre diversos órgãos. A governança central caberia ao Estado,
neste caso, ao governo federal. Esse além da disponibilização de recursos, era incumbido de
organizar o transporte para esses refugiados até aos municípios. Dessa forma, no processo de
interiorização dos refugiados, estavam envolvidos, como entidades principais, as seguintes
instituições: governo federal, marinha (alimentação), aeronáutica (através do transporte),
ACNUR e municípios. Ressalta-se que não se limita a essas instituições, mas elas cumprem um
papel central neste processo de interiorização, chamado de Programa de Interiorização de
Refugiados.
Como relatado, o município de Canoas não possuía kow how para receber esses
refugiados. Tinha/tem os seus problemas próprios e não via, por interesse próprio, a necessidade
de receber esses refugiados. Fato disso é que somente uma turma de refugiados venezuelanos
foi recebido.
Qual o fator que levou ao município de Canoas a receber os refugiados, então?
Conforme relatado pelo entrevistado C, foi uma questão de amizade/partidária com
representantes do governo federal.

“Aquela história lá “ah nós precisamos evacuar lá Pacaraima, Boa


Vista, já estavam havendo mortes tanto de brasileiros quanto de
venezuelanos, se criou o abrigo e eles tinham que esvaziar o abrigo,
então eles fazem contato com alguns prefeitos que são de relações
mais próximas...” Entrevistado C

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Assim, o Programa de Interiorização de Refugiados do Governo Federal, terceira fase
da Operação Acolhida, passa a contar com uma nova dinâmica na administração em Canoas.
Para receber os refugiados venezuelanos a Prefeitura de Canoas, através da Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), assinou um contrato de colaboração com a
Fundação La Salle para a gestão compartilhada de todos os trâmites que envolvem a execução
do programa no município.
No setembro de 2018, um total 309 venezuelanos desembarcaram no Aeroporto Salgado
Filho, em Porto Alegre, para iniciarem uma nova vida. Todos os dois prédios alugados pela
ACNUR estavam organizados, limpos, com roupas de cama, alimentação, materiais de
higienização, roupas, etc. A prefeitura, através da SDMS organizou uma série de ações junto a
comunidade local para conseguir doações de roupas e materiais indispensáveis para a formação
de um lar. Todavia, o município não soube antecipamente o perfil de refugiados que vinham
para se instalar na cidade. O que foi dito, não foi cumprido, conforme relato abaixo.

“Tudo que foi dito pra nós pelo Governo Federal de que eles vem
com a documentação em dia, eles vem com a vacinas em dia, tudo
perfeito... Nada disso. As pessoas vieram assim, num estado
deplorável de desnutrição, de cuidado, de higiene, alguns com
sacolinha de plástico com uma roupa e um calçado dentro, alguns
nada” Entrevistado E

Enfim, depois dos holofotes da imprensa, foi a necessidade de formação de uma força
tarefa para cuidar das pessoas com problemas graves de saúde. A falta de vacinação, por
exemplo, poderia gerar uma série de doenças na cidade, que já estavam erradicadas no
município.
Além dos problemas de saúde, os refugiados que vieram para o município de Canoas
estavam sem documentação e ilegais. Ou seja, o governo federal ingressou, transportou e
“entregou” os refugiados junto ao município de Canoas sem qualquer documento. Isso
ocasionou uma série de problemas para a real integração junto ao mercado de trabalho e a
órgãos federais de assistência social. Isso ainda possibilitou a vinda de pessoas com históricos
de violência e crimes.
Ou seja, o problema era muito maior do que a prefeitura imaginava. Receberam alguns
refugiados com histórico criminoso e com tráfico de drogas. Não obstante ainda, receberam
quase todos os refugiados com problemas de saúde e todos com quadros de desnutrição. O
desafio era enorme. Antes de pensar em inserir essas pessoas a sociedade, dando dignidade a
elas, antes de trabalhar o seu psicológico, fazia-se necessário agir para minimizar os efeitos
danosos que essa população poderia ocasionar para ela e para toda a comunidade de Canoas.
Essa foi uma ação conjunta que envolveu a secretaria de saúde do município, a secretaria de
desenvolvimento social, a diretoria de Igualdade Racial e Imigrantes, a secretaria de segurança
do município, através da contratação de uma empresa de segurança e a Brigada Militar (Polícia
Militar do Rio Grande do Sul). Observa-se que neste primeiro momento, não se viu a ação da
secretaria de educação nem da necessidade de legalização dos refugiados. O estado físico em
que chegaram ao município de Canoas fez as entidades públicas darem atenção todas à essas
ações.
Em um segundo momento a SMDS começou a ter dois focos principais de atuação:
oferecer educação para as crianças e regularizar os documentos dos refugiados. Com relação ao
legalização essa era fundamental não apenas para almejar um emprego e uma renda digna. Era
necessário para inscrição em órgãos como o SUS e à inscrição em programas de apoio do
Governo Federal como o Bolsa Família. Muitas mulheres estavam grávidas e precisavam fazer
o pre-natal, todavia sem a devida legalização estava tornando tudo inviável. Apesar de procurar
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diversas vezes, assim relatado, o governo federal e à ACNUR esses não se prontificaram a
ajudar. Coube a equipe da SMDS realizar tal ação. Novamente, sem planejamento, sem
conhecimento prévio do perfil do refugiados e com problemas que foi aparecendo ao longo do
processo de inserção das pessoas junto a comunidade.
Bem, em uma terceira fase do processo de interiorização dos refugiados venezuelanos
no município de Canoas, pode-se citar a sua empregabilidade e a saída dos prédios alugados
pela ACNUR. Ou seja, o município tinha seis meses desde a sua chegada para finalizar o
trabalho direto com os refugiados. Nos dois primeiros meses, o município se preocupou com a
situação sanitária e de saúde dos refugiados. Nos meses seguintes, o foco se deu para o trabalho
educacional e de legalização dessas pessoas. Na última parte do processo era necessário o
resgate da cidadania através do emprego e da sua moradia. Esse foi um trabalho intenso e que
contou com a parceria da comunidade local. Essa também abraçou a causa sensibilizada pela
situação das pessoas que ali encontravam. Segundo relatos, cerca de 30% dos refugiados saíram
dos prédios alugados pela ACNUR por conta própria antes do prazo. Essas pessoas (famílias)
conseguiram trabalho e moraria própria e foram desenvolver as suas atividades sem mais a
ajuda do município.
Apesar das dificuldades encontradas depois de 6 meses, após finalizado o processo de
interiorização da Operação Acolhida, pelo ao menos um membro de cada família estava
trabalhando. Isso permitiu que todas as famílias conseguissem alugar as suas próprias moradias,
com apoio da prefeitura e, fizessem a sua mudança.
Atualmente a prefeitura através da SMDS presta assistência aos refugiados através dos
CRAs quando são procurados. Existem contatos informais e diários com os refugiados
venezuelanos, mas não existem ações específicas mais sobre os refugiados. Problemas que
ocorrem ainda são resolvidos pela SMDS e pela Igualdade Racial e Imigrantes.
O processo de interiorização é um aprendizado contínuo. Hoje o município de Canoas,
dado o seu sucesso nesta ação, vem recebendo novos refugiados venezuelanos de forma
informal. Ou seja, amigos, conhecidos dos refugiados que já se estabeleceram no município
vêm para morar com essas famílias. Esses números não são identificados pelo município, mas
são visíveis junto à comunidade local. O fato de a comunidade local ter abraçado a causa, aliado
a liderança da SMDS junto a diversas associações, foi também um fator determinante para o
sucesso dessa interiorização.
O relato desse caso demonstra alguns pontos importantes para o aprendizado no
processo de interiorização dos refugiados. Primeiro, é que sem planejamento o trabalho é
redobrado e as chances de erros são muito maiores. Segundo, deve-se existir um grupo
qualificado, experiente e dedicado ao trabalho, pois apesar da falta de competência específica
sobre o tema, sabe lidar com o principal desse trabalho, dar dignidade as pessoas. Terceiro,
construir uma sistemática de trabalho, mesmo de forma improvisada, através de erros e acertos.
Isso é fundamental para se saber onde quer chegar e como percorrer o caminho. O final, neste
caso, não existe. Ele é constante. E por fim, ter o apoio da sociedade onde esses refugiados
estão sendo acolhidos. Isso vem crescendo, sendo menos importante na parte inicial, mas
aumentando à importância no decorrer do processo. No final, quem acolhe e integra não é a
prefeitura ou qualquer órgão público ou entidade social e sim as pessoas que vivem no
município.

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