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DA LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM
HUMANIDADES/POSIH
MESTRADO INTERDISCIPLINAR EM HUMANIDADES
REDENÇÃO
2023
FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS CIGANAS
(Uma práxis interdisciplinar na extensão universitária)
Flor Fontenele1
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Cigana da etnia Rom, mestranda no programa de pós graduação interdisciplinar em humanidade – MIH na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira- UNILAB e bolsista da Fundação Cearense
de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP, florfontenele@gmail.com
Introdução
O projeto Formação de lideranças ciganas foi elaborado no ano de 2022 pelo prof. Dr.
Lailson Ferreira como desdobramento da primeira ação acadêmica voltada aos estudos e
debates das pautas ciganas no âmbito do curso do bacharelado em Humanidades da UNILAB:
o Seminário Movimento, Identidade e Cultura Cigana – SEMIC. e aprovado por edital da Pró-
Reitoria de Extensão, Arte e Cultura (PROEX).
Sua idealização contou com apoio do Instituto Cigano do Brasil2, entidade
representativa da população cigana, com fundamental atuação na articulação do público alvo e
na identificação de nossa problemática de intervenção: a baixa incidência do movimento social
cigano nos espaços de participação social e proposição de políticas públicas.
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Organização da sociedade civil, sem fins econômicos, com sede no Ceará e fundada no ano de 2018, para
promover e defender os direitos da população cigana do Brasil.
O movimento social cigano no Brasil é extremamente recente (década de 80) e
historicamente formado por organizações de cunho familiar/comunitário com atuação voltada
a suprir necessidades emergenciais das famílias/clãs e comunidades (Souza, 2013). No Ceará,
somente em 2018, surgem as primeiras organizações ciganas e a atuação dessas instituições
apresentam o mesmo perfil do movimento nacional contemporâneo, são constituídas por
famílias/comunidades e permeadas por conflitos e disputas de cunho identitário, culturais e de
poder.
A partir dos estudos dos movimentos sociais desenvolvidos pela Escola de Chicago,
partimos do princípio que o movimento social cigano não se difere da forma de organização de
outros movimentos. São provocados pelas mudanças sociais e direcionados pelo interesse
particular de seus idealizadores e lideranças que elaboram suas pautas a partir de noções
comunitárias de desenvolvimento (Gohn,2000).
Nesta direção, em janeiro de 2022 o projeto iniciou suas atividades, implementando um
espaço de formação pautado na decolonialidade, considerando os saberes locais, e pensando
uma qualificação que parte das habilidades e competências já adquiridas. Vale salientar que,
por se tratar de um projeto de extensão, para a coordenação e bolsistas envolvidos, este não se
limitou apenas a uma ação pedagógica, mas também enquanto lócus de observação
fenomenológico da pesquisa qualitativa, conforme apontam MACEDO, GALEFFI e
PIMENTEL (2009, p. 15), “[...] esforço do pensamento humano em conectar-se com a
totalidade do vivido e do vivente. Tendo em vista a auto conclusão responsável e consequente
da vida e da relação presente”.
Neste sentido, o cronograma de execução pensado em doze meses, sendo dez desses
reservados para realização de aulas quinzenais, síncronas e assíncronas na modalidade virtual,
e dois para planejamento e avaliação, garantiram também levantamentos, obtenção e análise de
dados que disponibilizaram informações para segmentação do perfil das lideranças ciganas e
suas comunidades no estado do Ceará. A exemplo, o formulário de inscrições no qual
identificamos o nível de escolaridade dos 90 inscritos para s três módulos, e a atividade de
mapeamento em comunidades ciganas que geraram uma lista de políticas prioritárias para essa
parcela da população no Brasil.
A práxis interdisciplinar e metodológica visibilizou êxitos e os desafios a serem
enfrentados, e garantiu atividades adequadas a partir das experiências vividas nos territórios e
dos indicadores levantados. A baixa escolaridade dos partícipes a exemplo, foi fundamental
para readequações no formato do projeto e para adoção de metodologias ativas e da educação
popular, pensadas a partir da realidade dos educandos e exercitada em atividades práticas no
cotidiano das comunidades.
Sendo um dos objetivos, contrapor o modelo educacional acadêmico, evitamos textos
complexos e inacessíveis ao nível de escolaridade do público e principalmente proporcionamos
a atratividade necessária para evitar evasões por desinteresse. Não podemos negar que cada
grupo e sociedade tem sua maneira própria de conhecer e gerar conhecimento e o conjunto de
fatores considerados verdades por uma sociedade nunca será o mesmo para outras
(Kaphagawani e Malherbe, 2002).
A cultura distinta e a forma própria de organização das comunidades ciganas também
foram agente mobilizadores de várias decisões durante a execução do projeto. Havíamos
planejado uma capacitação continuada com duração de dez meses, mas com os desafios
enfrentados no aumento dos níveis de evasão no segundo mês identificamos a necessidade de
readequação do formato e dividimos as aulas em módulos, para que trimestralmente
pudéssemos reabrir inscrição para novos participantes e ocupação das vagas ociosas.
A decisão de abrir espaço para inscrições de lideranças de todo território nacional surgiu
quando identificamos que nos indicadores de evasão figurava um alto índice de participantes
com nível de escolaridade fundamental e dificuldades de acesso a internet na zona rural.
Com a adequação no formato, no perfil do público-alvo e na territorialidade, o projeto
finalizou em janeiro de 2023, tendo executado três módulo distintos: o módulo I com lideranças
ciganas do Estado do Ceará, o módulo II com lideranças Ciganas do Brasil e o módulo III com
lideranças ciganas e não ciganas do Brasil. Nestes três módulo, foram trabalhadas temáticas
diversas, por exemplo: identidade, cultura, movimento social, políticas públicas, comunicação,
gestão estratégica e etc., que foram desenvolvidas nas aulas síncronas numa didática amparada
por várias atividades : a) apresentação dos alunos e suas atividades assíncronas (diagnósticos,
mapas mentais, entrevistas e etc.) difundidas pelo grupo do WhatsApp, b) aula expositiva
síncronas sobre os tema e uso de recursos audiovisuais (músicas, fotos, vídeos e etc.), rodadas
de conversas com facilitadores, convidados e c) realização de debate a partir de tempestade de
ideias entre os participantes.
Todos os conteúdos foram definidos coletivamente, a partir das escutas durante as aulas
e inseridas no planejamento do mês posterior e nos módulos seguintes, sempre respeitando as
competências e habilidades externalizadas pelas lideranças, assim como sinaliza
KAPHAGAWANI e MALHERBE (2002, p. 6):
Nunca descartando os traços étnicos e culturais como faz a moderna cultura ocidental. Este
exercício visibilizou o que já abordamos no início deste tópico: a presença de conflitos e
disputas, principalmente, nas tentativas das lideranças em definir uma “ciganidade universal”
para os povos ciganos (identidade e cultura).
Os impactos do projeto são constatados quando identificamos que 30% das lideranças
ciganas e não ciganas egressas da formação, se inseriram no movimento social organizado, seja
assumindo cargos de coordenação no ICB ou mesmo implementando novas organizações e
coletivos de luta. Numa rápida visita nas redes sociais, dessas lideranças e ou do ICB,
facilmente identificamos as transformações ocorridas na atuação desses atores e nas
representações acionadas. O que antes dava visibilidade para representações romantizadas, sem
uma análise das implicações e disputas de pertencimento étnico, hoje dão lugar a socialização
de ações sócio-políticas, de narrativas que defendem a atuação em rede, a diversidade identitária
e cultural e a mobilização de ciganos e não ciganos para atuação no movimento de forma
articulada.
Concluo este ensaio, reconhecendo que a extensão universitária possibilita para as
instituições de ensino superior aproximação com as comunidades externas, uma intervenção
positiva de promoção da cidadania e nesta direção a ampliação de oportunidades e ações de
extensão, especialmente àquelas com e para aos povos e comunidades tradicionais é
extremamente importante, A extensão universitária é espaços privilegiados de exercício da
práxis interdisciplinar, onde os métodos, teorias, objetos, sujeitos e instituições se interagem
propiciando a construção de novos saberes (Ramos e Ferreira, 2020).
Referências bibliográficas
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2011.