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EDUCAÇÃO POPULAR, CULTURA E LIBERTAÇÃO:

EDUCAÇÃO E POLÍTICA NOS MOVIMENTOS SOCIAIS A PARTIR DA


EXPERIÊNCIA DE PAULO FREIRE ENTRE 1960 E 1964.
Taís AraújoI

Resumo: O artigo analisa o livro Educação como prática da liberdade, a partir de


alguns conceitos chave como “transição”, “consciência”, “democracia” a fim de
contextualizá-lo a partir da reconstituição da trajetória de Freire no período de 1960-
1964.

Palavras-chaves: método Paulo Freire, trajetória, conscientização

Introdução
Esse artigo tem como objeto o pensamento de Paulo Freire vinculado às suas
práticas educacionais com o intuito de se focar na proposta política que se pode aferir
do conjunto de ideias dos seus livros iniciais, entrelaçadas à sua trajetória, cotejando as
contradições e dilemas enfrentados pela educação popular.
Nesse trabalho, se pretende apresentar a trajetória pessoal, política e intelectual
do educador Paulo Freire no período entre 1960 e 1964, aliada a uma discussão sobre os
temas de educação popular, cultura e movimentos sociais. Entende-se que esses quatro
anos foram fundamentais para se erigir os conceitos base do pensamento de Freire e os
pilares de suas concepções políticas. O ano de 1960 é importante devido à formação do
Movimento de Cultura Popular (MCP), cujos objetivos, métodos de atuação e propostas
diferenciavam-se substancialmente dos grupos políticos de então. Em 1963 houve a
realização do projeto de alfabetização em 40 horas na pequena cidade de Angicos, cuja
repercussão do seu sucesso lançou a representação de Freire como um educador
inovador e valoroso para o futuro da nação, envolvida em seu desejo de
desenvolvimento econômico.
O enfoque do trabalho é o livro Educação como prática da liberdade, tendo em
vista que o processo de escrita dessa obra deu-se envolvido pelas vivências políticas de
Freire antes do fatídico golpe de 1964. O livro foi publicado em 1965, em seu exílio no
Chile e no Brasil somente em 1967. A sua escolha foi devida à sensação de que o livro
particularmente e o pensamento de Paulo Freire no geral são assuntos muito
comentados, citados, debatidos e polemizados, porém pouco analisados, sobretudo na
área das pesquisas de História.

I
Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico:
taisaraujo@gmail.com
Desse modo, os objetivos desse artigo são sucintamente: analisar a trajetória de
Freire nos anos 1960 inserida dentro dos parâmetros da História Intelectual e Cultural,
ou seja, perceber como ele se apropriou de ideias e pensadores em circulação no seu
tempo e de que forma ele juntou uma diversidade de referências intelectuais de uma
maneira singular nesse seu primeiro livro; considerar os movimentos de cultura e de
educação popular dos anos 1960 como as “origens” dos movimentos sociais posteriores,
que a priori, se autointitulam como “novos”, descolando-se de uma herança de lutas
sociais, que também buscavam autonomia e autenticidade popular; levantar algumas
questões do Educação como prática da liberdade 1, conectando-as às “experiências
vivas” vividas por Freire, ao seu contexto de criação e formulando a visão de conjuntura
brasileira que transparece no livro.
A metodologia de trabalho nesse artigo foi partir do EPL como um documento
histórico, que suscita questões para serem problematizadas e não tomá-lo como um
“método didático” universal. Partir de alguns conceitos chave na pesquisa histórica para
tratar da trajetória desse intelectual como: “redes” de Jean François Sirinelli, que indica
quais os significados compartilhados por um grupo e que são capazes de influenciar
práticas; “representação” e “apropriação” de Roger Chartier, ao se problematizar a visão
do método como a salvação da educação brasileira e a solução para o desenvolvimento
econômico; encarar que em Freire, assim como na esquerda católica, com quem
partilhava muitas de suas convicções, surge uma “outra concepção do político”, assim
como caracteriza o autor Daniel Pecaut, além de analisar como que a linguagem do EPL
se constituiu numa “cultura política” 2.

Desenvolvimento

Trajetória
O período entre 1960-1964 é de fundamental importância para se entender como
foi possível a criação de projetos culturais e educacionais que ambicionavam
transformar as relações e estruturas sociais mais arcaicas do Brasil, pautadas por
desigualdades históricas, repressão e autoritarismo. Os governos de JK e Jango
demonstravam alguma preocupação com a erradicação do analfabetismo, considerado
um dos grandes entraves para o almejado desenvolvimento econômico do país. Ao lado

1
A partir daqui, nos referiremos ao livro pela sigla EPL.
2
PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 173 - 184.
dos grupos de educação popular, como as escolas radiofônicas do Movimento de
Educação de Base da Igreja Católica (MEB) pululavam movimentos culturais, que
demonstravam como o Brasil não estava alheio aos acontecimentos políticos no resto do
mundo, quando parte da esquerda propunha uma “Terceira via”, que não fosse nem
ceder aos grupos direitistas, nem alinhar-se aos partidos de esquerda centralizados.
Esses grupos se destacaram pelos trabalhos de base feitos em periferias de grandes
cidades e nas áreas rurais, sendo os católicos um setor importante por conseguirem se
forjar dentro de uma instituição tradicionalmente conservadora, com as agremiações:
Ação Católica (AC), Juventude Universitária Católica (JUC), Ação Popular (AP),
dentre outras.
O próprio MCP, um dos movimentos que ganhou maior projeção devido à
quantidade de escolas implementadas e aos métodos educacionais que vigoravam,
nasceu vinculado a intelectuais da esquerda católica, como o seu fundador, Germano
Coelho, sua mulher Norma Porto Carreiro Coelho, Anita Paes Barreto, Paulo Rosas, Sik
Weber e Paulo Freire.
Em 1960, quando o movimento foi fundado, com o apoio entusiasmático de
Miguel Arraes, então governador de Pernambuco, Freire já tinha experiência
profissional no ensino em alguns colégios particulares de renome em Recife, incluindo
aquele em que havia estudado, o Oswaldo Cruz, graças à generosidade de seu dono,
Aluízio Araújo, que frequentava o Serviço Social da Paróquia do Arraial, formado por
grupos de casais católicos da AC que realizavam ação educativa com a população
local3. Concomitantemente ao seu ingresso no MCP, Freire atuava ministrando palestras
para pais de alunos do SESI, lugar onde começou a sistematizar ideias a respeito de
educação de adultos. Atuava ainda no Instituto Capibaribe cujo objetivo era a formação
“progressista” de docentes na companhia de Anita Paes Barreto, com quem partilhará
também as suas primeiras experiências no ensino universitário, quando passou a compor
o quadro da Escola de Serviço Social, incorporada pela Universidade do Recife.
Paralelamente à sua trajetória profissional – Oswaldo Cruz, SESI, Universidade
do Recife – e de militância – MCP, Instituto Capibaribe, configurava-se a sua atuação
institucional, quando foi convidado pelo prefeito do Recife, Pelópidas Silveira a integrar
o Conselho Consultivo de Educação Municipal, como um dos “notáveis da educação”

3
FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. Indaiatuba: Villa das letras, 2006.
em 1956 e por Arraes para compor o Conselho Estadual de Educação de Pernambuco
em 1963, quando Anita Paes Barreto era secretária de educação4.
Remontando parte de sua trajetória é possível perceber um grupo de uma
geração formada por intelectuais que partilhavam a atuação dividida entre os
movimentos populares de educação e cultura e a atuação institucional, marcados por
concepções da esquerda católica, lugar de onde vinham. A partir do seu trabalho como
professor de colégios particulares, Freire, que já tinha formado uma rede de contatos
desde sua formação na Faculdade de Direito, recebeu o convite para atuar no SESI,
onde com Ariano Suassuna, que também estudou no Oswaldo Cruz e na Faculdade de
Direito, trabalhou junto na formulação dos círculos de cultura, ideia que vinha dos
estudos de Suassuna em relação à desconstrução do modelo no teatro de plateia
separada do público e da qual Freire apropriou-se para seus trabalhos educativos.
Porém, apesar de Freire estar inserido num grupo de intelectuais, cujos preceitos
e visões de mundo seriam compartilhados ao redor de paradigmas da época, não se
tratam de movimentos uniformes. Assim, se por um lado a participação de Freire no
MCP ou no SESI lhe rendeu seus primeiros desafios em educação popular e deram
condições para elaboração de seu pensamento, cada um desses lugares lhes impuseram
também limites, no SESI pelo fato óbvio de se tratar de uma instituição patronal e
assistencialista, como afirmou Freire: “Foi no SESI como espécie de sua contradição
que vim aprendendo, mesmo quando ainda pouco falasse em classes sociais, que elas
existem.” 5.
E no MCP pelo fato de existirem divergências entre Freire e Coelho em relação
ao que seria o modo de conscientização dos participantes, como seriam escolhidas as
palavras geradoras e de que forma elas seriam trabalhadas com os grupos. Enquanto
Coelho defendia a entrega de frases prontamente formuladas como: “povo sem casa
vive nos mocambos”, Freire acreditava que a conscientização não viria de mensagens
prontas6. Divergiam também sobre a questão da cartilha de alfabetização. Norma
Coelho ficou com a função de alfabetizar, a partir de 1962, quando se começou a
realizar esse trabalho no MCP. Segundo Coelho no livro MCP: História do Movimento
de Cultura Popular, Freire teria recusado o trabalho pela falta de experiência na área de
alfabetização, porém mais do que por tal motivo, existiam diferentes visões sobre o

4
Ibid.
5
Ibid. p. 83.
6
GADOTTI, Moacir. A voz do biógrafo brasileiro: a prática à altura do sonho. In: GADOTTI, M. (org.),
Paulo Freire, uma biobibliografia, São Paulo: Cortez, p.155.
processo educativo. Freire não se interessava pelo trabalho a partir de cartilhas, como o
fez Coelho com a criação de um “livro de leitura para adultos” do MCP, que seria “um
manifesto pedagógico e um manifesto político do MCP” 7.
Esses conflitos dentro do movimento foram vivenciados por muitos grupos de
esquerda sobre a conscientização de classe: se deveria ser diretiva, marxista-leninista ou
basear-se na visão de mundo dos oprimidos, se deveria ser proposta por intelectuais ou
criada em diálogo com os grupos populares, o que nos informa sobre a preocupação
intelectual do momento em relação ao papel dos educadores e das lideranças em relação
às classes populares e sua autonomia. Para Freire, o problema principal da
conscientização seria a ideia de “transmiti-la”, o que poderia acabar escapando do
diálogo, considerado por ele a base da democracia plena. Portanto, por mais que o MCP
fosse um espaço de atuação considerável da formação política de Freire, não seria ainda
lá que encontraria as condições para a formulação de suas práticas. Enquanto Norma
Coelho8 considerava que
O Livro de Leitura para Adultos, de nossa autoria, teve ampla repercussão.
As últimas aulas, Lição 75- “República” e Lição 77- “Paz” foram escritas
pelo presidente do MCP, Germano Coelho, para transmitir uma síntese do
Movimento e as linhas gerais de sua ideologia,

Freire acreditava que a saída para a esquerda e para os “educadores


progressistas” estaria em não pensar a educação como “transmissão de conhecimentos”.
Dois convites foram fundamentais para que Freire galgasse o espaço desejado
para colocar em prática suas premissas pedagógicas, já desenvolvidas em trabalhos
anteriores, com a autonomia que precisava para desenvolver seu projeto de
alfabetização de adultos. O primeiro foi a campanha De pé no chão também se aprende
a ler, de 1961, que ocorreu em Natal e o segundo as 40 horas de Angicos, de 1963.
Essas duas campanhas, a primeira realizada por Djalma Maranhão e a segunda por
Aluízio Alves, foram fruto de um contexto em que os governantes, dentro de um
espectro mais progressista, procuravam dar prioridade aos projetos educacionais,
sobretudo àqueles vinculados à alfabetização de adultos.
Do projeto realizado com sucesso em Angicos, que contou com a participação
do presidente João Goulart na “última hora” de aula e com repercussão internacional,
consolidou-se a sagração de Freire e a denominação ao seu sistema de “método Paulo

7
COELHO, G. MCP: a história do Movimento de Cultura Popular. Recife: Ed. do autor, 2012. p.29
8
COELHO, Norma P. C., GODOY, Josina, M.L. Apresentação do livro de leitura para adultos do MCP.
In: Ibid.
Freire”, a fim de propagandear o acontecimento ao resto do país como a salvação do
analfabetismo, criada ali em Angicos. Calazans Fernandes, secretário da educação do
Rio Grande do Norte, em 1963, recorda seu encontro com Freire, a fim de convencê-lo a
participar do projeto, financiado pela USAID, o que causava conflitos ideológicos. Com
o aceite do educador, ele propôs que com a consagração dessa metodologia, que poderia
vir a ser implantada em todo o Brasil, seria chamado então o “método Paulo Freire” 9.
A criação de um “método Paulo Freire” tem sua explicação no anseio dos
governantes políticos em se procurar uma solução salvadora para o analfabetismo,
considerados uma das piores doenças do país, num contexto em que a grande
Campanha de Educação de Adultos Analfabetos, de 1940 havia francamente fracassado,
com seus objetivos nem de perto atingidos. Até mesmo a gestão de John Kennedy no
governo norte-americano preocupava-se com essa questão nos países latino-americanos,
principalmente por causa do impacto da Revolução Cubana. Fernandes, em livro 10 que
retoma esse contexto, se recorda da participação ativa da Aliança para o Progresso, com
financiamento de projetos, no caso das 40 horas.
Desse modo, a ideia de “método” muito em uso entre pedagogos e na militância
em educação popular, de um modo geral, deve ser relativizada devido ao peso de
cristalização que esse termo possui. Não se trata de mistificá-lo, priorizando a
“novidade” que Freire teria criado a partir de sua genialidade, nem, no entanto, de
desqualificar o seu papel político e pedagógico. Mas de relativizá-lo, considerar suas
ideias encarnadas num caldo político que não deve ser menosprezado e na sua trajetória
individual, que se vincula a uma geração.
O “método” consistia na coleta de palavras do universo vocabular da região
onde estava sendo feito o trabalho, depois em Círculos de cultura, se discutiam algumas
delas, consideradas as “geradoras”, com os participantes e o educador separava as
famílias das sílabas que compunham essas palavras para criar novas. O princípio ativo
requerido nesse sistema já era uma ideia existente entre educadores, sobretudo por razão
do movimento escolanovista, com o qual Freire estava familiariado, tendo conhecido
pessoalmente Anísio Teixeira; a questão do uso do audiovisual para a projeção das
situações a serem trabalhadas com os educandos, já era tema das aulas de Freire como
professor universitário a respeito de um experimento de alfabetização de adultos

9
FERNANDES, C., TERRA, A. 40 horas de esperança: o método Paulo Freire: política e pedagogia na
experiência de Angicos. São Paulo, Ática, 1994, p. 72.
10
Ibid.
realizado na África, citado por Fernandes11. O formato dos Círculos de cultura, usado no
MCP, nos quais a temática dos debates a serem travados era proposta pelos próprios
participantes, e para a alfabetização em Angicos, já era feito nos trabalhos anteriores de
Freire no SESI, conforme citado, numa experiência junto com Ariano Suassuna, no
setor de teatro popular, em 1955.
O mérito de Freire foi ter conseguido sistematizar uma gama de ideias criativas e
propositivas sobre um modo alternativo de se pensar a cultura e a educação que se
relacionava a uma posição política de autonomia em relação a partidos políticos de
esquerda hegemônicos à época e consequentemente às críticas mais gerais contra a
burocratização e opressão de quaisquer matizes, tanto de direita quanto de esquerda.
Anseios esses captados pela esquerda católica e pelos movimentos de uma maneira
geral.
A ideia divulgada de “método Paulo Freire”, tanto em jornais, como em
movimentos de alfabetização espalhados pelo país, deram projeção nacional a Freire,
que foi convidado pelo ministro da educação Paulo de Tarso, também um dos “quadros”
da esquerda católica” a realizar um Programa Nacional de Alfabetização (PNA), o qual
se inspiraria na experiência de Angicos para erradicar de vez o analfabetismo do país. O
método era redentor em relação aos que já vinham sendo implementados sem tanto
sucesso devido à sua rapidez (as quarenta horas), ao seu baixo custo (necessitava de um
espaço de reunião com projetores) e à sua eficiência (a quantidade de alunos desistentes
era bem pouca comparada à escola formal).
Entretanto, justamente pela sua proposta política, que assustou até mesmo a
Aliança para o progresso, que retirou seu apoio financeiro do projeto, e pelo contexto de
efervescência cultural da época, alfabetizar delineava-se como uma ação cultural e
política, que foi considerada subversiva já nos primeiros momentos do Regime Militar,
inclusive com a dissolução do MCP formado, desde as suas origens, como um
movimento de mobilização social, do PNA, com a prisão de Freire e de diversos
educadores, com a cassação de mandatos como de Miguel Arraes cassados e com a
dissolução das Ligas Camponesas.

11
Ibid. p. 70.
Nacional desenvolvimentismo
É em meio a essas experiências que se originou Educação como prática da
liberdade, um ensaio escrito em 1964 e publicado em 1965 em Santiago, no Chile e em
1967 no Rio de Janeiro. Freire desenvolveu nesse livro temas que já havia trabalho na
sua tese de doutorado e em artigos como aspectos da conjuntura brasileira de
desenvolvimento econômico e de superação da cultura colonial, vista como arcaica,
atrasada e autoritária; a construção do que chamou “sociedade aberta”, ou seja, a
democrática e o papel da intelectualidade e das classes populares nessa fase de
transição, de uma “sociedade fechada” para a “aberta”. Conforme analisa Moacir
Gadotti, o Brasil passava por um momento de mudanças estruturais e a educação seria
um dos mais importantes meios para a conscientização das classes populares, como
preocupação dos movimentos de esquerda 12 e para alavancar o progresso econômico,
desejo compartilhado por várias tendências do espectro político. Nesse livro a educação
mantém íntima ligação aos ideais desenvolvimentistas da época, particularmente o
nacionalismo dos intelectuais do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que
acreditavam na modernização proporcionada pelo governo Jango 13, ideário
compartilhado pela esquerda católica, pelo Partido Comunista Brasileiro, e por políticos
mais à direita como era o caso de Aluízio Alves, ainda que cada qual tivesse sua
maneira de expressar-se politicamente.
Os projetos de desenvolvimento nacional na América Latina dos anos 1940/50
ampliaram a entrada de jovens na universidade, pois se buscava formar intelectuais e
técnicos dispostos a participar da vida política e pública. Néstor García Canclini
14
acredita que esse tenha sido um “recurso-chave para a modernização” de alguns
países, em que podemos incluir o Brasil. A preocupação desses jovens, segundo o autor,
seria tornar menor a distância entre o culto e o popular a fim de modernizar estruturas
autoritárias em países como México, Venezuela, Chile, Peru, Uruguai, Argentina, além
do Brasil.
Freire esteve imerso nesse afã de buscar o desenvolvimento do país, como
podemos notar na passagem de Educação como prática de liberdade, em que ele

12
GADOTTI, op.cit.
13
TORRES, Carlos Alberto, A voz do biógrafo latinoamericano: uma biografia intelectual, In:
GADOTTI, op. cit. p.118.
14
CANCLINI, Néstor García. Introdução. In: Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa, Heloisa Pezza Cintrão e Gênese Andrade, 5ª edição. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. XXXIV.
15
caracterizou o ISEB, criado em 1955, como o “despertar da consciência nacional”
junto com a Unb (Universidade de Brasília), já que ambos os institutos privilegiavam a
realidade própria do Brasil como principal objeto de pesquisa.
Essa atmosfera de mudanças sociais e políticas caracterizava-se na América
Latina como um caldo político contraditório, que misturava desenvolvimentismo,
“populismo” e revolução, e está inserida num contexto mais amplo de crise da esquerda,
em que diversos movimentos e tendências ideológicas disputavam a hegemonia da
liderança revolucionária. Partidos comunistas de orientação leninista, grupos maoistas,
libertários, cristãos, socialistas, membros da guerrilha rural alimentavam a luta política
que envolvia os intelectuais, artistas e militantes no mundo afora 16.
Desse modo, ocorria na América Latina uma virada epistemológica das ciências
humanas em que se passava a focar nos problemas locais e regionais, o que fica claro na
referência que faz Freire do ISEB em EPL. O livro é dividido em cinco capítulos:
esclarecimento, a sociedade brasileira em transição, sociedade fechada e inexperiência
democrática, educação versus massificação, educação e conscientização, além de um
apêndice, com o material de um dos círculos de cultura, realizado no Rio de Janeiro.
A tese geral do livro é bastante vinculada às leituras de Freire que aparecem em
seu corpo como a questão de que o Brasil seria uma sociedade em trânsito - do passado
de fechamento para um futuro de abertura, ou em outras palavras, da herança colonial
presente até os tempos de República, caracterizada pelo autoritarismo das elites
agrárias, “coronelescas” para um novo momento, o da democracia, já em curso em
países da Europa e nos Estados Unidos. Um dos seus referenciais é justamente Alexis
Tocqueville para quem a essência da democracia é o comportamento participante, que
17
teria levado o povo a fazer sua própria sociedade com as “suas próprias mãos” , que
estaria ausente do Brasil até o momento do trânsito- anos 1960/1960.
Conforme a citação que Freire faz de Celso Furtado, sociedade fechada seria
aquela comandada por um mercado externo, exportadora de matérias primas, crescendo
para fora, predatória, reflexa, alienada e atrasada. A industrialização seria o principal
fator da rachadura, que proporcionaria a reflexão sobre si mesma e a mudança para a
democracia e o golpe, um “retorno catastrófico ao fechamento” 18.

15
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 98.
16
HOBSBAWN, Eric. Revolução Social. In: Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
17
FREIRE,op. cit. p. 67.
18
Ibid. p.48-49.
Canclini cita Perry Anderson em relação à ideia de que a Revolução Socialista
seria uma possibilidade permanente para a América Latina, já que o capitalismo nessa
região formava-se de modo acelerado e dinâmico, porém menos estável e estabilizado19.
Ideia comum também a Freire, tendo em vista um problema crucial na fase pela qual
passava o processo de modernização brasileiro: conseguir o desenvolvimento
econômico como suporte da democracia para suprimir o poder desumano das classes
altas20, como se pode ler na seguinte passagem:
“O desenvolvimento, envolvendo não apenas questões técnicas (...), mas
guardando em si também a passagem de uma para outra mentalidade. A da
adesão à necessidade das reformas profundas como fundamento para o
desenvolvimento e este para a própria democracia. A questão estaria em que a
emersão do povo e suas crescentes reivindicações (...) não assustassem tanto à
classe dos mais poderosos, para quem (...) ‘os direitos políticos das classes mais
baixas, particularmente o de interferir no poder lhes parece como essencialmente
absurdo e imoral’”.

Nesse trecho, Freire enfatizou que o desenvolvimento das “forças produtivas” do


Brasil era uma etapa importante para a passagem de uma sociedade autoritária para uma
democrática e esse processo só seria possível com a conscientização das classes
populares e sua participação ativa nas mudanças, para neutralizar as influências de uma
classe dominante desumanizadora, que mesmo tendo montado as bases para o
capitalismo desenvolver-se no Brasil, manteve as relações políticas com as mesmas
características do passado colonial.
Tendo em vista a constituição de EPL, a citação de autores como: Furtado, Caio
Prado, Gabriel Marcel, Mannheim, Mounier, os conceito de cultura e mundo, de época
no sentido hegeliano de captar as tarefas históricas ou o “Espírito”, estabelece-se um elo
entre Paulo Freire, esquerda católica e ISEB, que nos coloca em diálogo com a autora
Vanilda P. Paiva, em cujo estudo, Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista,
analisou essa vinculação, no qual ela sustenta que não é possível entender a pedagogia
de Freire sem associá-la ao movimento de ideias de 1950. Sua premissa de análise, sem
dúvida é certeira, ao estabelecer um confronto intelectual com parte da militância e
mesmo da academia, que opta por analisar o pensamento de Freire isolado do seu
contexto, criando mistificação em torno dele. Para criticar esse viés, Paiva buscou
compreender Freire como um produto da vida intelectual brasileira dos anos 1950, ao
considerar que Freire passou pelo ISEB, além do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF)

19
CANCLINI, op. cit, p. 71.
20
FREIRE, op. cit., p. 86.
para desembocar na AP, cujas práticas vão além de uma ou outra tendência teórica,
captando características e contradições do período.
Seu livro aponta respostas para parte das questões que nos colocamos: para
quem Freire produzia academicamente? Certamente, EPL insere-se mais num debate
intelectual, por sua linguagem complexa, por apresentar ideias que se referenciam em
autores clássicos como, além dos já citados anteriormente, Gilberto Freyre, Oliveira
Viana, Álvaro Vieira Pinto, Karl Jaspers, Karl Popper, Simone Weil. Dessa forma,
estabelecia diálogo com o ISEB, que representava uma geração de intelectuais que
estariam preocupados em pensar o Brasil, na sua localidade e especificidade, com a
esquerda, por um lado como um dissidente do “marxismo-leninismo” ao colocar-se
contrário à consciência que vem de fora, se considerando superior às classes populares,
que busca mobiliar, sendo assim “sectária”, além de poder incluir aí Arraes e Maranhão,
tendo em vista que foi sob a gestão do conservador Aluízio Alves que conseguiu
autonomia para desenvolver seu projeto.
Assim, Freire propõe-se a defender a sua postura, fazendo ao mesmo tempo um
elogio à esquerda católica, definindo-se como “radical” em oposição aos sectários,
hegemônicos dentre os pensadores e ativistas brasileiros. Sua militância situa-se em
EPL na defesa de tal condição: do diálogo para a transformação da consciência, de
ingênua para crítica. Sendo assim, Freire direcionava seu discurso a interlocutores,
companheiros de trabalhos nos movimentos que participou, reafirmando a sua postura
“radical”, embasado por algumas leituras fundamentais, primeiramente para definir no
plano filosófico o que seria o “homem”, depois para remontar a história do Brasil do
ponto de vista da ausência de instituições democráticas aqui, devido ao passado
colonial, em seguida, realiza uma análise da conjuntura econômica brasileira –
colocando a necessidade das reformas, a importância do momento ímpar na história de
agência dos sujeitos, em que estavam vivendo antes do Golpe. Tratava-se de uma
percepção de mudanças ocorrendo aos olhos dos agentes históricos, em que intelectuais
e classes populares, líderes políticos e governantes partilhavam de uma mesma “cultura
política” nos dizeres de Pecaut, contribuindo para a transição do Brasil para uma
sociedade aberta.
A contínua probabilidade de realizarem-se revoluções na América Latina
concretizou-se em momentos históricos como o de Cuba, em 1959 e junto com outros
acontecimentos contribuiu para desestabilizar a hegemonia cultural dos Partidos
Comunistas em diversos países do continente, inclusive no Brasil, ainda que as grandes
rupturas tenham se realizado pós-golpe. O primeiro ponto significativo da crise do PC
foi a fundação em 1962 do Partido Comunista do Brasil (PC do B), de orientação
maoista e os ecos da Revolução Cubana, que depois de 1964 incentivou a organização
de grupos que defendiam a guerrilha como estratégia central na luta contra a Ditadura.
Em EPL, ainda que de maneira tímida, a ideia de Revolução já está lá. Aparece
junto aos ideais do desenvolvimentismo, ou seja, a crença na passagem do Brasil por
um momento de transitividade para uma nova fase no seu modo de “estar com o
mundo” que foi interrompido pelo Golpe, e os da revolução, ao postular uma educação
que servisse para a conscientização, negando uma prática comum à esquerda e à direita
de se considerar as classes populares como “recipientes vazios” ou “tabulas rasas”, na
defesa de um autogoverno, de uma democracia plena, por mais contraditórias que as
duas tendências pareçam ser. A crítica a um padrão de esquerda centralizada,
autoritária, vanguardista e importância do “método”, um sucesso entre os estudantes da
década de 1960, antes do Golpe, demonstrava a preocupação com a transformação de
“massa em povo” sem ser diretivo 21, tema que também vai alimentar movimentos como
o de Maio de 68.
Nesse ponto, encontramos um ponto problemático no livro de Paiva, pois apesar
de concordar com o fato que a formação de Freire foi pautada tanto pelo catolicismo
radical quanto pelo nacionalismo isebiano, acreditamos que prevaleça a primeira
tendência e não a segunda. O que a autora denomina “debilidade teórica” em Freire,
percebemos como uma forma singular de apropriação de leituras que eram comuns no
meio intelectual da época. Por mais que por um lado haja determinação do “contexto”
sobre o “texto”, o livro tem uma autonomia relativa e possui lógica interna. Desse
modo, se o autor não fala ainda “classes sociais”, é devido, à sua postura política, de
defesa da autonomia popular em comparação com outros grupos políticos, em que essa
preocupação não é central.
O conceito de educação que aparece em EPL centraliza-se na questão da
consciência, já que era seu dever acabar com o “fanatismo” ou a falta de apreço pela
coisa pública, que caracterizaria o “homem comum”, nas palavras de Paiva: “ele
pretende que o diálogo seja instrumento de transformação do homem servil e medroso,

21
PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1980, p. 26.
resultado do paternalismo e do autoritarismo, num homem capaz de intervir e participar
usando para isso a razão e a crítica” 22.
Freire parte da ideia de “dialogação”, que seria o sentido da vida pública – da
responsabilidade pelo político 23, nesse sentido, a educação seria parte da passagem entre
emersão e imersão, que propõe ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo,
sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de
transição: “uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de
refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse
poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de
opção” 24.
Tomar EPL como documento histórico é importante por servir de baliza para os
pesquisadores da História da educação pensarem sobre o endossamento por diversos
grupos políticos da ideia de se realizar “educação popular” como forma de garantir um
direito às classes populares, excluída da educação formal e também como modo de
conscientização política, num momento em que se acreditava que o Brasil passava de
fato por mudanças significativas, nas quais a democracia formal daria espaço para
formas novas de poder popular.
Essa postura política é convergente com a “nova esquerda”, a qual Marcos
Napolitano refere-se como uma das tendências da resistência cultural à Ditadura entre
1964 e 1979, composta por católicos, que eram críticos do liberalismo, do “populismo”
e do nacionalismo comunista, formulando assim a Teologia da Libertação. Esse setor
valorizava as classes populares a partir de sua cultura cotidiana, pragmática, local e
comunitária, o que seria uma “efetiva e silenciosa resistência diante da modernização do
capitalismo” 25.
Desse modo, se extrai do texto e da prática de Freire um “modelo” de educação
popular, que se tornou paradigma nos movimentos sociais até hoje, nascida entre os
trabalhos do MEB, do MCP, de Angicos e dos Centros Populares de Cultura (CPCs),
momento em que se começou a falar em “método Paulo Freire”, se entendia que era
popular por criticar a escola excludente de então e por se realizar por fora dela, em
ambientes informais, dependendo do trabalho de educadores-militantes, onde se

22
Ibid., p. 112.
23
Ibid., p. 49.
24
Ibid., p. 59.
25
NAPOLITANO, M. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar
brasileiro (1964-1980). São Paulo: USP, Tese de livre-docência, 2011.
integravam as dimensões culturais, a vocação social e a responsabilidade política do
trabalho do educador, voltado, sobretudo para a alfabetização de adultos.
Um das grandes contribuições de Freire para a construção desse “modelo” de
educação popular foi o conceito de “estar sendo” do educando ou de “estar com o
mundo”, que deveria ser o ponto de partida da educação e não conteúdos prontos, nem
cartilhas. Essa prática significava que o educador deveria cercar-se das aspirações,
modos de vida, visões de mundo dos educandos para realizar seu trabalho de maneira a
surtir efeitos, pois a educação formal, como era realizada, “verborrágica”, alheia à vida
das pessoas, só fazia com que as classes populares fugissem das escolas e não tivessem
interesse em aprender.
Nesse processo de considerar o “estar sendo” como a baliza do educador, outro
conceito fundamental para a educação popular é o de “diálogo” ou “dialogação”, já que
além de alfabetizar ou ensinar, a educação para Freire tinha por objetivo maior o
“desvelamento do mundo” ou a “predisposição para constantes revisões”, que
aconteceria com a troca de saberes formulada entre educadores e educandos, ou seja,
enquanto estes aprendiam os códigos de leitura e escrita, compreendendo-se como
criadores de cultura e situando-se na sua realidade com olhar crítico, aqueles aprendiam
a visão de mundo dos oprimidos, a fim de que ambos pudessem atuar no espaço público
da política em igualdade de condições. Nesse sentido, por mais que haja alguns
problemas teóricos e políticos em EPL, em relação ao que Freire chama de
“ingenuidade” dos homens comuns, que poderiam apontar certa diretividade da política,
o que não era a sua proposta inicial, o objeto desse artigo não é tal assunto, mas
procurar entender a gestação de EPL frente à trajetória de seu autor e da esquerda
católica.
Entendemos que a construção do seu “método” e de seu pensamento deu-se em
consonância a um contexto de crise das tradicionais esquerdas alinhadas ao Partido
Comunista, que se agudizou após o golpe com a sensação de derrota dos projetos
sociais. A busca pelo diálogo e pela democracia tornou-se pilar da posição política de
Freire, que também se alinhava a um novo tipo de revolução instaurado pela experiência
cubana e chinesa: alicerçada pelas massas oprimidas e aspirando reformas sociais.
Desse modo, os resultados iniciais dessa pesquisa foram, após realizar releituras
da obra de Freire e de alguns de seus comentadores, formulações de uma crítica à
identidade estabelecida dentro da educação popular entre os termos: educação e política.
O repensar a síntese do “método Paulo Freire”, que se traduz na afirmação de que
“educação é política”, instiga a problematizar essa relação realocando os dois termos em
lugares diferentes, mas que são imbricados um no outro.
As releituras do texto e sua vinculação com a trajetória de Freire levou a uma
aproximação intrínseca entre Freire e a esquerda católica, como a AP, JUC e o MCP, já
que é perceptível um caldo cultural comum entre textos de Freire e dos movimentos,
ainda que cada qual tenha suas singularidades e que existam contradições entre eles.
Pela análise de documentos do MCP divulgados em livro de Germano Coelho percebe-
se que Freire não tinha lá o espaço de atuação que teve no projeto 40 horas de Angicos,
quando conseguiu desenvolver plenamente as suas concepções de realizar o processo
pedagógico junto com os educandos e não “sobre eles”.
Em EPL percebemos que educação possui um momento distinto do da política.
Enquanto aquele seria um instrumento para corrigir desigualdades históricas
perceptíveis nos índices alarmantes de analfabetismo, aquela seria a necessidade de
26
“aprender a democracia, com a própria existência desta” deixando um recado para a
militância que é o fato de não ser possível “ensinar política”, mas sim conscientizar a
partir do instrumento que é a educação.
Mostrou-se relevante inserir EPL na História da educação popular e dos
movimentos sociais para pensá-lo como documento histórico e político e não só como
um método de alfabetização ou de ensino. Esse ato sugere a nós novas formas de se
conceber a política, ao mesmo tempo em que fornece as bases para a sua própria crítica,
pois o militante-educador deve sempre estar preocupado em não tornar-se um “invasor
cultural” nem uma vanguarda que prega no deserto.

Considerações finais

A escolha por analisar Educação como prática da liberdade tecendo uma


relação com os movimentos sociais foi uma colocação de Marilena Chauí, na
apresentação do livro de Eder Sader Quando novos personagens entram em cena, em
que ela afirma o surgimento dos novos sujeitos nos anos 1970/80, fazendo alusão ao
próprio título da obra, que ficam justificados com a questão da “novidade” em: criar um
novo sujeito coletivo, lugares políticos novos, e uma prática nova com a reivindicação
de direitos. Porém, seguindo a tese de Walter Benjamin:
O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois
não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem,

26
FREIRE, op.cit. p. 92.
nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as
mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim
é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a
nossa. (...) Foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o
passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente 27.

Essa relação estabelecida entre passado e presente é interessante para


considerarmos que os movimentos de alfabetização e cultura popular do período entre
1960-1964 são as “origens” desses movimentos sociais que se autointitulam “novos”,
pois há entre eles características semelhantes em relação à agência dos personagens
participantes do espaço político, a valorização da cultura popular, a busca por sua
autenticidade e pelo diálogo e o rechaço pela esquerda “sectária” e burocrática.
Esses movimentos dos anos 1960 sentiram de forma aguda a crise da esquerda e
a sensação de derrota dos projetos sociais pós-Golpe. Deixam de herança para a
Educação popular os anseios pela busca de condições de igualdade onde possam atuar
politicamente os sujeitos e a angústia em se lidar com a vitória da barbárie ou nos
dizeres de Benjamin,
O dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio
exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de
vencer28

Portanto, é imperativo não mais afirmar que “educação é política” no sentido de


que ela não seja neutra, pois isso já é um lugar comum, mas realocar os dois termos em
lugares diferentes, ainda que imbricados: qual é o espaço da educação? Qual é o espaço
da política? É possível ensinar política? Quais as implicações dessa prática? Tendo em
vista que Educação como prática da liberdade é um rico documento histórico e não
método didático. Se a ideia de “educação política” possui validade, é no sentido de
criação de espaços públicos onde atuam sujeitos, não a escola, que não estava em pauta
de acordo com esse viés nos anos 1960.

Referência bibliográficas
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

27
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 223.
28
Ibid. p. 225.
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