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Emily Dickinson: Não sou ninguém

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Universidade Estadual de Campinas

Reitor
José Tadeu Jorge

Coordenador Geral da Universidade


Fernando Ferreira Costa

Conselho Editorial
Presidente
Paulo Franchetti
Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno
Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo
José Roberto Zan – Marcelo Knobel
Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

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Emily Dickinson:
Não sou ninguém

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A UGUSTO DE C AMPOS

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ficha catalográfica elaborada pelo
sistema de bibliotecas da unicamp
diretoria de tratamento da informação

Dickinson, Emily, 1830-1886.


D56e Emily Dickinson: Não sou ninguém / Emily Dickinson; tradução: Augusto
de Campos. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2008.

1. Dickinson, Emily, 1830-1886. 2. Poesia americana. 3. Escritores america-


nos – Biografia. I. Título.

cdd 811.4
isbn 978-85-268-0745-7 928.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia americana 811.4


2. Escritores americanos – Biografia 928.1

Copyright © by Augusto de Campos


Copyright © 2008 by Editora da Unicamp

1a reimpressão, 2009

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sumário

introdução ....................................................................................................................................... 9

There is a word ............................................................................................................................20


1
Uma palavra se abre .............................................................................................................21

A sepal, petal, and a thorn ............................................................................................22


2
Sépala, pétala e um espinho — ...............................................................................23

We lose — because we win — .....................................................................................24


3
Um perde — o outro ganha — ...............................................................................25

If recollecting were forgetting .......................................................................................26


4
Se recordar fosse esquecer ............................................................................................27

Success is counted sweetest ...............................................................................................28


5
O Sucesso é mais doce ......................................................................................................29

Our share of night to bear — ......................................................................................30


6
Nossa porção de noite — ..............................................................................................31

’Tis so much joy! ’Tis so much joy! .........................................................................32


7
Tanto júbilo! Tanto! ...........................................................................................................33

Safe in their Alabaster Chambers — ..................................................................34


8
A salvo nos seus Quartos de Alabastro — .................................................35

I held a Jewel in my fingers — ....................................................................................36


9
Tive uma Jóia nos meus dedos — ........................................................................37

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I felt a Funeral, in my Brain .......................................................................................38
10
Senti um Féretro em meu Cérebro ....................................................................39

I’m Nobody! Who are you? ..........................................................................................40


11
Não sou Ninguém! Quem é você? ....................................................................41

We play at Paste — ...............................................................................................................42


12
Lidamos com o Joio — ..................................................................................................43

Much Madness is divinest Sense — .....................................................................44


13
Muita Loucura faz Sentido — ...............................................................................45

I died for Beauty — .............................................................................................................46


14
Morri pela Beleza — .........................................................................................................47

Beauty — be not caused — It Is — .....................................................................48


15
Beleza — não tem causa — É — .........................................................................49

Some such Butterfly be seen .........................................................................................50


16
Algumas Borboletas há ..................................................................................................51

I fear a Man of frugal Speech — .............................................................................52


17
Eu temo a Fala escassa — .............................................................................................53

Delight — becomes pictorial — ..............................................................................54


18
Prazer — vira pintura — ..............................................................................................55

Me from Myself — to banish — ..............................................................................56


19
Banir a Mim — de Mim — .......................................................................................57

Pain — has an Element of Blank — .................................................................58


20
A Dor — tem Algo de Vazio — ...........................................................................59

I dwell in Possibility — ....................................................................................................60


21
Habito a Possibilidade — ............................................................................................61

As if the Sea should part ..................................................................................................62


22
Como se o Mar rompesse ............................................................................................63

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Publication — is the Auction ....................................................................................64
23
Publicar — é o Leilão .......................................................................................................65

I could not drink it, Sweet .............................................................................................66


24
Não podia beber ....................................................................................................................67

Banish Air from Air — ....................................................................................................68


25
Corta o Ar do Ar — ..........................................................................................................69

These tested Our Horizon — ......................................................................................70


26
Esses testaram o Horizonte — ...............................................................................71

Drab Habitation of Whom? .......................................................................................72


27
Mansão malsã de Quem? .............................................................................................73

I hide myself within my flower .................................................................................74


28
Me oculto em minha flor .............................................................................................75

Pain — expands the Time — ....................................................................................76


29
A Dor — expande o Tempo — .............................................................................77

Death is a Dialogue between ......................................................................................78


30
A Morte é um Diálogo entre ...................................................................................79

The Opening and the Close ...........................................................................................80


31
O Abrir e o Fechar ...............................................................................................................81

Too scanty ’twas to die for you ...................................................................................82


32
Morrer por ti era pouco .................................................................................................83

Best Witchcraft is Geometry ........................................................................................84


33
A Geometria é a maior Magia ................................................................................85

The Voice that stands for Floods to me ..............................................................86


34
A Voz que para mim é um Mar .............................................................................87

Great Streets of silence led away ..............................................................................88


35
Ruas sem som serviam .....................................................................................................89

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Because my Brook is fluent ............................................................................................90
36
Se o meu Riacho é fluente ...........................................................................................91

A word is dead ...........................................................................................................................92


37
A palavra morre ......................................................................................................................93

The Riddle we can guess ...................................................................................................94


38
O Enigma decifrado ..........................................................................................................95

So proud she was to die .....................................................................................................96


39
Tanto orgulho em morrer ...........................................................................................97

In this short Life ......................................................................................................................98


40
Nesta Vida tão breve .........................................................................................................99

Yesterday is History .......................................................................................................... 100


41
Ontem é História ............................................................................................................. 101

The Mushroom is the Elf of Plants — ........................................................... 102


42
O Cogumelo — à Noite — ................................................................................... 103

Could mortal lip divine ............................................................................................... 104


43
Se o lábio hábil a sílaba ............................................................................................... 105

A Dimple in the Tomb .................................................................................................. 106


44
Um Vão na Pedra Tumular .................................................................................... 107

Fame is a bee ............................................................................................................................ 108


45
A Fama é uma abelha .................................................................................................... 109

bibliografia básica das obras


de emily dickinson ........................................................................................................... 111

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introdução

emily elizabeth dickinson nasceu em Amherst, Massa-


chusetts, em 10 de dezembro de 1830, e morreu na mesma
cidade em 15 de maio de 1886, aos 55 anos. Morou sempre
na casa paterna, levando uma vida de poucos incidentes e
poucas relações de amizade. Conheceu, apenas brevemente,
algumas cidades próximas, como Washington, Filadélfi a,
Boston, Cambridge. Tendo recebido educação puritana, foi
aluna da Academia de Amherst e, mais tarde, entre 1847 e
1848, do seminário feminino de Mount Holyhoke (South
Hadley), que abandonou depois de recusar-se publicamente
a declarar sua fé. Pode-se considerá-la uma autodidata em
poesia, ainda que admitisse como preceptores dois amigos
da família: um praticante do escritório de advocacia de seu
pai, Benjamin Newton, com quem se correspondeu até que a
morte o colhesse em 1853, e o Rev. Charles Wadsworth, com
o qual se avistou algumas vezes e também trocou cartas. Por
volta de 1860, em grande isolamento, iniciou a fase madura
de sua poesia. Em 1862, enviou quatro poemas a Th omas
Higginson, crítico literário do Atlantic Monthly, que não
chegou àquela altura a compreender inteiramente a sua poe-
sia, incapaz de enquadrá-la nos cânones vigentes. Embora
percebesse a originalidade da autora, o andamento dos seus
poemas lhe pareceu, então, “espasmódico”, e seus versos, “des-

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controlados”. Desencorajada a publicar pelo crítico, respon-
deu-lhe: “Sorrio quando sugere que eu protele a ‘publica-
ção’. Se eu conhecesse a fama, eu não poderia fugir a ela, se
não a conhecesse, ela me perseguiria o dia inteiro e eu perde-
ria a aprovação de meu cachorro”. Após longa correspondên-
cia, houve dois encontros pessoais que deixaram Higginson
ainda mais perplexo ante a personalidade extravagante e
enigmática de sua interlocutora.
Emily tinha 19 anos quando Poe (1809-1849) morreu.
Não acusa influência deste. Whitman (1819-1892), seu antí-
poda, não chegou a interessá-la, apesar de recomendado por
Higginson. Vislumbra-se em seus textos algo de Emerson
(1803-1882) — o Emerson mais contido de poemas curtos,
como “Brahma”, e do seu transcendentalismo filosófico. Mas
ela é mais radical e dissonante.
Pouco se sabe de suas leituras — Shakespeare, Keats e os
seus contemporâneos Robert Browning (1812-1889) e Eliza-
beth Barreth Browning (1806-1861) estão entre os raros poe-
tas expressamente referidos em seus escritos. Sua poesia não
se parece com a deles. Emily criou um idioma poético próprio
e antecipatório em termos de densidade léxica, economia de
expressão e liberdade sintática. Parece mais próxima das ou-
sadias metafóricas dos poetas “metafísicos” ingleses, como
Donne, que ela certamente não leu. Utiliza, muitas vezes em
combinatórias novas, versos tradicionais, nos quais os seus es-
tranhos tracejamentos gráficos introduzem recortes e pausas
inusitados, dando-lhes feição singular. “Seu desprezo por fór-
mulas aceitas ou por regularidades é incorrigível. Gramática,
rima, metro — tudo o que se opunha ao seu pensamento ou
liberdade de expressão era dispensado por ela”, afirma Conrad
Aiken, um dos primeiros a reconhecerem sua relevância, num

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artigo de 1924. É tal a modernidade de sua linguagem que em
nossos tempos podemos associá-la, sem esforço, à da também
extraordinária poeta russa Marina Tzvietáieva (1892-1941),
pela dicção elíptica e sincopada e até pelas idiossincrasias da
sua pontuação, mesmo que as duas se apartem pela natureza
de seu pathos existencial e do contexto em que viveram. Lin-
guagem densa e substantiva, que transita sem transições do
real ao imaginário — os substantivos freqüentemente maius-
culizados para acentuar a sua dominância.
Tudo em Emily é paradoxo. “Mistura de puritana e livre-
pensadora”, anota Aiken. Cruzam-se em sua poesia os traços
de um panteísmo espiritualizado, de uma solidão-solitude,
ora serena ora desesperada, e de uma visão abismal do uni-
verso e do ser humano. Micro e macrocosmo compactados
em aforismos poéticos. Da observação da natureza, em suas
mais humildes manifestações, ela consegue ascender às per-
guntas sem resposta da vida e da morte e do amor (ainda que
recessivo e sublimado) em seus epigramas-enigmas concei-
tuais. Temas que percorreram a poesia de todos os tempos,
mas assimilados aqui num idioleto de rara beleza. Sua geo-
grafia imaginária não tem limites. Freqüenta os jardins do
mundo. De uma borboleta do Brasil pode chegar às estrelas.
Do jardim aos céus. Do som ao sonho. Do cONcRETo ao
eTERNO.
A integridade poética que a caracteriza assume radi-
calismos extremos em textos como “Success is counted
sweetest” / O Sucesso é mais doce (n o 5), “I’m Nobody.
Who are you?” / Não sou Ninguém! Quem é você? (no 11),
“Publication is the Auction” / Publicar é o Leilão (no 23):
coerentes com o que ela afirmava em sua carta a Higginson,
pleiteiam o anonimato, que sua grandeza, custosamente reco-

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nhecida, acabaria por tornar impossível. Não posso deixar de
infundir um tom pessoano à versão de linhas como essas, que
me trazem à mente, de várias maneiras, o grande poeta portu-
guês, em seus versos mais concisos, e os conceitos inscritos
nos textos de “Erostratus — sobre a Fama Póstuma” (Páginas
de doutrina estética), ou na sua “estética da abdicação”, incluída
nas racoltas do semi-heterônimo Bernardo Soares, onde se
pode encontrar: “Toda vitória é uma grosseria” e “Vence só
quem nunca consegue”. Como sucedeu com Emily Dickinson,
cuja poesia ele não chegou a conhecer, a maior parte da obra
de Fernando Pessoa foi publicada post-mortem, como se sabe.
Vários dos textos da poeta norte-americana, que admitem
múltipla interpretação, podem ser lidos também alegorica-
mente como meditações sobre a própria poesia, metapoemas.
Assim podemos entender a rosa que se autoconstrói em “A
sepal, petal and a thorn” / Sépala, pétala e um espinho (no 2), o
adereço que deixa “uma saudade de ametista” em “I held a Jewel
in my fingers” / Tive uma Jóia nos meus dedos (no 9), a pérola a
que só se pode chegar com “táticas de Gema, praticando Areia”,
em “We play at Paste” / Lidamos com o Joio (no 12) ou a rei-
vindicação da forma em “Best Witchcraft is Geometry” / A
Geometria é a maior Magia (no 33). “Beauty — be not caused —
It is” / Beleza — não tem causa — É (n o 15), afirma a poe-
ta, e me faz lembrar o poeta místico alemão do século
xvii, Angelus Silesius, que escreveu a mesma coisa numa
de suas máximas espirituais: “Die Ros’ ist ohn’ Warum,
sie blühet weil sie blühet, / Sie acht’t nicht ihrer selbst,
frag nicht, ob man sie sihet”, que eu assim traduzi: “A
Rosa é porque é, e sem Porquê, / Não sabe nem de si nem
quem a vê” (em Irmãos Germanos, Editora Noa Noa, San-
ta Catarina, 1992).

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Percebe-se, nítida, mesmo no tratamento dos temas mais
abstratos, a emergência material da palavra-coisa, objetual,
palpável. Espiritual-espirituosa, Emily é exímia nos jogos vo-
cabulares. Trouvailles, que brilham e fluem, artísticas, não ar-
tificiais, desde os seus primeiros poemas. Alguns exemplos. Já
no primeiro texto desta seleção, uma palavra se arma, quase
rima a rima, com o só acréscimo de um “s”: “There is a word /
That bears a sword”. Uma palavra se abre, como um sabre —
ecôo. “Safe in the Alabaster Chambers” / A salvo nos seus
Quartos de Alabastro (no 8), a duplicação de fonemas aos pa-
res, na quinta linha da primeira estrofe (Rafter of Satin —
and Roof of Stone!) e a inversão fonêmica nas duas últimas
linhas da segunda estrofe, terminando com Soundless as
dots — on a Disc of Snow. De “Beauty — be not caused — It
is” (no 15): a seqüência quase-paronomástica: cause, chase,
cease, creases, replicada em minha tradução como “causa,
cace-a, cessa, cresce”. De “The Mushroom is the Elf of
Plants” / O Cogumelo — à noite — (no 42): stop, spot. Pro-
curo responder, o mais que posso, a essas provocações sono-
ras, compensando-as, aqui e ali, em outras linhas. De paste e
pearl a “joio” e “jóia” (no 15). Para tanto, posso tomar a linha
“I felt a Funeral in my Brain” (no 10) e substituir a aliteração
por uma quase-rima isomórfica, interecoante: “Senti um Fé-
retro em meu Cérebro”, sem deslocar a acentuação básica do
texto de partida, e manter o clima emocional do texto per-
manecendo em sua área semântica. É um grande desafio
para o tradutor.
As últimas pesquisas apontam que Emily viu publicados,
esparsa e às vezes anonimamente, apenas dez poemas. Sua nu-
merosa produção só veio a ser conhecida após a morte. Po-
der-se-ia dizer, com ela, que “não era ninguém”, até a primeira

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edição de sua obra, organizada em 1890, por Mabel Loomis
Todd e T. W. Higginson, que se permitiram “corrigir” algu-
mas das “inortodoxias” de seus poemas (alterações de rimas,
métrica e até metáforas). Seguiram-se algumas outras edi-
ções, que lhe aditaram outros tantos poemas, além de cartas
da autora. Em 1945, a publicação de Bolts of melody, textos
reunidos por Mabel Loomis Todd e Milicent Todd Bin-
gham, acrescentou 668 poemas e fragmentos aos já conhe-
cidos, ficando assim praticamente mapeada toda a produção
de Emily. Mas a primeira edição crítica completa (1.775 poe-
mas), organizada sistemática e cronologicamente por Tho-
mas H. Johnson, só veio a ocorrer em 1955, depois que o
acervo de sua obra foi transferido para a Universidade de
Harvard, em 1950. Johnson preservou sabiamente as excen-
tricidades gráficas da poeta — as maiúsculas atribuídas a cer-
tas palavras e os traços ou travessões que interceptam os tex-
tos, em lugar da pontuação convencional, e que acenam com
pausas e recortes sintáticos significativos e imprevistos. Or-
ganizada pelo mesmo estudioso e por Th eodora Ward, a
epistolografia também mereceu extensa publicação em 1958.
Coerentes com a personalidade extravagante da poeta, as
cartas lançam alguma luz sobre as amizades e os supostos
amores platônicos de sua vida discreta e misteriosa, que con-
tinua a desafiar a imaginação de estudiosos e pesquisadores.
Foi a partir da edição dos poemas coligidos por Johnson
que se deu propriamente a “re-visão” definitiva e universal de
Emily Dickinson e que ela passou a personificar a “ur-Cinde-
rela” da poesia moderna, segundo a expressão com que a sau-
dou o poeta e crítico John Crowe Ranson, em 1956, em seu
estudo “Emily Dickinson: a poet restored”. Ela parece não ter
tido espaço no horizonte de referências do prose kinema que

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protagonistas do Alto Modernismo, como Pound ou Eliot, bus-
cavam nas primeiras décadas do século passado, embora sua con-
cisão pudesse ter sido apreciada por eles sob a perspectiva do
Imagismo. Em compensação, uma leitora da qualidade da poeta
Marianne Moore, admirada por ambos, já falava do “rigoroso
esplendor” de Emily Dickinson, numa carta de 1924. E também
Hart Crane a descobriria, dedicando-lhe um poema que saiu
publicado em 1927. Vozes dissonantes, que antecederam de
muito a “restauração” da imagem poética de Emily Dickinson.
Após a revelação e a reavaliação trazidas pela edição de
Johnson, o número de poemas foi ainda aumentado na edição
completa de R. W. Franklin, publicada em 1999, num único
volume, elevando-se a 1.789 textos. A partir das edições fac-
similares The manuscript books e The master letters of Emily
Dickinson anteriormente publicadas, em 1981 e 1986, pelo
mesmo Franklin, a poeta Susan Howe, entusiasta de Emily,
tem discutido os critérios utilizados pelos dois organizadores
nas edições padronizadas. Apesar de reconhecer a importân-
cia do trabalho de Johnson e de Franklin, entende ela que a
estrutura dos versos, cujas linhas aparecem quebradas irregu-
larmente nos manuscritos, deveria ser preservada, como está,
nas transcrições, assim como as variantes e correções, incluí-
das nas publicações completas universitárias, mas interpretadas
e unificadas nas edições mais acessíveis. Embora dê margem a
curiosas digressões, sua argumentação não é de todo convin-
cente nem oferece solução prática, além de não ser respaldada
por Franklin, o scholar que divulgou os manuscritos de poe-
mas e cartas de Emily. As idiossincrasias macrográficas de
Emily Dickinson constituem mais um complicador da sua
escritura enigmática, mas, em si mesmas, por mais interessan-
tes que sejam, não revelam coerência que justifique a altera-

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ção dos critérios prevalentes. No entanto, uma experiência
significativa foi feita no livro Open me carefully (Paris Press,
Ashfield, Massachusetts, 1998), organizado por Ellen Louise
Hart e Martha Nell Smith, contendo todas as cartas íntimas
de Emily endereçadas a Susan Huttington Dickinson. Focali-
zando, com ousadia, o relacionamento passional, mesmo se
platônico, de Emily por sua amiga e depois cunhada, as orga-
nizadoras decidiram transcrever literalmente vários dos poe-
mas e das cartas que integram essa coletânea, pela primeira
vez publicados como um todo. Embora reconhecendo que os
manuscritos não podem ser plenamente traduzidos em escrita
tipográfica, procuraram reproduzi-los com a máxima fideli-
dade, com seus cortes inusitados, determinados às vezes pelo
formato e pelas dimensões do papel ou do material em que se
inscrevem, com ênfase nos textos que a própria Susan já iden-
tificava como letter-poems, poemas-cartas ou cartas-poemas.
O resultado desse verismo gráfico — que sugere poemas re-
cortados segundo técnicas ultramodernistas — pareceu-me
estimulante, embora discutível o entendimento de que “a
fusão de poesia e prosa, fazendo poemas de cartas e cartas de
poemas, seja uma deliberada estratégia artística” que suposta-
mente envolveria o próprio projeto gráfico dos textos. De todo
modo, é uma abordagem instigante, que pode conviver com-
plementarmente com a reconstituição normatizada dos poe-
mas de Emily, tais como os conhecemos nas edições habituais.
As edições de Johnson e Franklin, que consideraram as
variantes e se basearam principalmente em valores métricos,
rítmicos e rímicos para a reconstituição e a fixação dos tex-
tos, mantendo suas peculiaridades essenciais, são ainda as
mais confiáveis e objetivas. Para as minhas traduções adotei
os textos e datas estabelecidos pelo primeiro.

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O tradutor de poesia tem algo de um intérprete musical,
daqueles que voam livres e, imprevisíveis, fazem-nos ouvir de
novo, como nunca ouvíramos, a obra do compositor. Deve
ser o quanto possível fiel aos significados — mais ao contexto
semântico do que ao texto, quando não houver troca possível
sem perdas artísticas —, mas, acima de tudo, dar ao poema
uma interpretação pregnante em seu idioma, corresponder
aos seus achados estéticos e emocionais, surpreender-se e sur-
preender-nos de novo. “A técnica” — segundo Pound — “é
o teste da sinceridade. Se a técnica for dispensável para dizer
alguma coisa é porque essa coisa é de valor inferior”. Mas a
paixão é imprescindível. O mesmo Pound escreveu, certa vez,
a propósito do Imagismo, que deve haver “intensa emoção”
para que a poesia se simplifique a esse ponto: “A austeridade
ou economia do discurso representa essa emoção intensa e
se a emoção, a força que funde, organiza, unifica, não está lá,
a obra se esboroa”. É preciso, além da técnica, uma identifi-
cação com o texto interpretado. Assumir-lhe, no trânsi(to), a
“persona”. É a razão de querermos ouvir “Summertime” com
Janis Joplin ou as “Variações Goldberg” com Glenn Gould.
Ouvi-las com eles não é o mesmo que ouvi-las com outros.
Não tendo a pretensão de acertar sempre, reivindico essa es-
pécie de liberdade para as minhas interpretações tradutórias.
A liberdade da improvisação e do rubato. Como se. Como
se o poeta tivesse de expressar-se originariamente — resolver
seu enigma fundoformal — na língua de chegada. Para aspi-
rar à esperança de que o poema originário continue original
em português. Sem presumir…

Augusto de Campos
2007

Introdução | 17

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Poemas

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1

There is a word
Which bears a sword
Can pierce an armed man —
It hurls its barbed syllables
And is mute again —
But where it fell
The saved will tell
On patriotic day,
Some epauletted Brother
Gave his breath away.

Wherever runs the breathless sun —


Wherever roams the day —
There is its noiseless onset —
There is its victory!
Behold the keenest marksman!
The most accomplished shot!
Time’s sublimest target
Is a soul “forgot!”

(c. 1858)

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