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Utilitarismo

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CAPÍTULO 1

Projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional brasileiro em 2015 propôs que presos traba-
lhassem para ressarcir o Estado pelos custos de sua permanência na prisão. Qual seria o critério
ético para essa decisão?

Discussões morais sempre estiveram presentes na história da filosofia. A ética nor-


mativa é a teoria que procura estabelecer padrões sobre o que é correto ou incorreto,
sobre a conduta que os indivíduos de uma sociedade têm o dever de aceitar, formulando
normas de avaliação de nosso caráter, sendo o utilitarismo e a ética do dever os maiores
exemplos. Neste capítulo, estudaremos dois utilitaristas que priorizam a busca da felicida-
de como base para a construção de suas perspectivas a respeito da ética e da moral. São
eles Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Esses filósofos compartilham o interesse por uma
mesma questão: como maximizar a felicidade em prol do bem-estar humano?

Como Por queoaque


definir economia mundialcorreto?
é moralmente em nossos dias é eminentemente urbana?
Por que a economia mundial em nossos
peladias é eminentemente urbana?
Como Que
julgarproblemas
minhas açõespodem
porser gerados
suas urbanização
consequências? desordenada?
O que deve estar previsto?
Que problemas podem ser gerados pela urbanização desordenada?
Ao empreender ações para maximizar o bem-estar de uma comunidade, um governo tem o
direito de sacrificar a liberdade individual?

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Utilitarismo: uma teoria Imagine que você vê um trem desgovernado mo-
vendo-se em direção a cinco pessoas amarradas nos
da moralidade trilhos. Caso nada seja feito, elas morrerão. Mas você
O utilitarismo é uma teoria moral abrangente, mas pode impedir acionando uma alavanca que mudaria a
também conhecido como uma moralidade política, rota do trem. Ao puxar a alavanca, o trem segue por
pois seus princípios aplicam-se à estrutura básica da um trilho lateral e as cinco pessoas serão salvas. No
sociedade e não apenas à conduta pessoal dos indi- entanto, nesse trilho lateral há uma pessoa presa que
víduos. É uma moral que procura avaliar as condutas acabará morrendo.
em termos quantitativos, calculando custos e benefí- Qual a decisão correta? Não fazer nada e deixar
cios de cada ação. morrer as cinco pessoas ou agir e deixar morrer ape-
Podemos observar sementes do utilitarismo desde nas uma?
David Hume, quem, pela primeira vez, se preocupou Independentemente do que considere correto,
em afirmar que os princípios morais deveriam ser ava- nesse momento vamos deixar nossas crenças pes-
liados de acordo com sua utilidade; entretanto, só re- soais de lado e analisar essa questão do ponto de
cebeu nome com Jeremy Bentham (1748-1832) e John vista do utilitarismo. Para o utilitarismo, fazer o certo é
Stuart Mill (1806-1873) – este último lhe deu contornos fazer aquilo que vai trazer a maior felicidade ou bem-
mais claros na obra Utilitarismo, de 1861. -estar. Essa regra básica é o princípio de utilidade.
Para Bentham, a utilidade corresponde a um
agregado de prazeres (benefícios, vantagens, coisas
boas, etc.). Depois de deduzido o sofrimento de todos Discussão em sala
os envolvidos em uma ação, uma espécie de saldo
O dilema do trem
de prazer como base para a felicidade geral, ou seja, Para o utilitarismo, agir corretamente significa res-
as ações são boas na medida em que promovem peitar o princípio de utilidade. Ou seja, fazer aquilo
felicidade e más quando produzem sofrimento. que traz mais felicidade para todos os afetados pela
Stuart Mill, por sua vez, possuía um conceito mais ação. Discutam entre si quais as sensações que tive-
amplo, focando seus esforços não apenas na quan- ram ao tomar suas decisões? Conseguem aderir aos
tidade, mas na qualidade do prazer, o que envolvia princípios utilitaristas sem questionamentos? Caso
pensar que há formas distintas de avaliar o prazer. não, quais seriam os questionamentos?

O princípio da utilidade
O utilitarismo afirma que o ato (ações) ou proce- O utilitarismo e o
dimento (regras) moralmente correto é aquele ca- consequencialismo
paz de maximizar a felicidade (ou bem-estar) para os
membros da sociedade. Este princípio da utilidade Da situação hipotética anterior, foi possível ter a
foi apoiado por uns e rejeitado por outros, revelan- experiência com um dilema moral em que uma ação
do que a questão do bem-estar ou da felicidade, por era determinante para maximizar o bem-estar geral.
ser um conceito extremamente abrangente, carrega Julgar sua ação como certa ou errada não envolveu
interpretações distintas. o que você crê ou pensa, mas apenas os efeitos
Para compreendermos como o utilitarismo explica dessa ação. Por isso, pode-se dizer que o utilitaris-
o que é certo e errado, como devemos agir, vamos mo é considerado uma teoria consequencialista. Se
considerar um caso de dilema moral. sua ação foi a de mover a alavanca, você agiu bem,
dado que sua ação promoveu felicidade ao maior
número de pessoas. No entanto, cabe a pergunta:
todas as nossas ações devem ser julgadas por suas
consequências?
Antes de prosseguir, vamos entender o conse-
quencialismo.
Em filosofia, o modo como compreendemos
a adoção de um princípio moral em relação às
ações que realizamos nos leva a considerar que
existem teorias deontológicas (do grego “deon”
= dever, obrigação, e “logos” = ciência, teoria dos
Dilema do trem, A alavanca, desenvolvido em 1967 pela filósofa direitos e deveres) e teorias consequencialis-
moral britânica Phillipa Foot.
tas. Nas primeiras, o fator decisivo é a intenção
da ação, sendo este o procedimento ou a nor-
ma que guia o indivíduo na tomada de decisão.

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Diz-se que é uma ética do dever, pois a ação é boa específicos, isso não produza as melhores conse-
ou má por si só. Por outro lado, nas chamadas teo- quências. Vejamos dois casos: no primeiro, um po-
rias consequencialistas, a moralidade envolve a licial precisa decidir se tortura ou não um terrorista
preocupação com o resultado, com os efeitos, com para descobrir onde pode estar uma bomba prestes
a consequência da ação. a explodir. No segundo caso, temos um médico de-
Vejamos um exemplo de nossa vida cotidiana. cidindo se conta ou não a um paciente que ele tem
Imagine uma situação em que se decida empreender apenas três dias de vida, sabendo que a notícia o fa-
um roubo ou saquear um supermercado para matar a ria desperdiçar seu tempo restante em vez de desfru-
fome de um grupo de crianças em estado extremo de tar da companhia da família. Um utilitarista de regras
vulnerabilidade. Se tomássemos como ponto de par- consideraria que tanto “torturar” quanto “mentir” são
tida a ética de perspectiva deontológica, essa ação ações que em longo prazo provocam mais infelicida-
seria moralmente condenável, considerando que a de que felicidade.
intenção de roubar ou de invadir propriedade alheia Já os utilitaristas de atos julgam cada ato pelas
não é uma conduta correta, ainda que as consequên- consequências. Analisando esses exemplos e reto-
cias tragam bem-estar aos famintos. Já do ponto de mando o do trem e o do supermercado, eles sim-
vista da perspectiva consequencialista, tal ação po- plesmente farão as contas: puxar a alavanca ou sa-
deria até ser considerada moralmente boa, porque quear o supermercado promove a maximização do
produz satisfação e resolve o problema da inanição. bem-estar. Argumentariam, assim, que não há dife-
No entanto, mesmo na visão consequencialista, rença significativa entre causar dano e impedir que
posso me perguntar: O roubo afetará o dono do su- o sofrimento ocorra, de modo que a pessoa é igual-
permercado? E a pessoa que empreendeu o roubo? mente responsável pelas consequências em ambos
E se ela for presa ou sofrer agressão? os casos: agindo ou deixando de agir (negligencian-
Isso mostra que, na perspectiva consequencialis- do), ainda que pareça mais incorreto não agir.
ta, temos mais questões envolvidas ao julgar se as
ações praticadas foram corretas ou incorretas, dado
que envolve o questionamento sobre quem pratica
a ação e para quem ou para quantos ela traz be-
nefícios ou sofrimento. Conforme veremos, a pers-
pectiva consequencialista nem sempre é sinônimo O termo “consequencialismo” aparece pela
de utilitarismo, tampouco é responsável por todas as primeira vez no século XX, com a obra Filosofia da
refutações que o utilitarismo recebeu. moral moderna (1958), na qual a filósofa analítica ingle-
Para começar, se justificarmos o utilitarismo ape- sa Elisabeth Anscombe (1919-2001) defendeu a tese de
nas pela finalidade da ação, enfrentaremos muitas que um agente é responsável tanto pelas consequên-
cias intencionais de um ato como pelas não intencionais,
posturas críticas a respeito. O consequencialismo le-
quando previstas e não evitadas. Portanto, independen-
gitimaria atitudes completamente contrárias ao direi- temente das intenções, são as consequências, de fato,
to, dado que considera o bem-estar da maioria como que deveriam ser levadas em consideração quando se
sinônimo de felicidade. Em nosso exemplo anterior, fazem juízos sobre o que é correto ou incorreto. Isso
roubar ou saquear uma propriedade fere um direito fez com que o “utilitarismo”, em todas as suas variações,
individual. Neste caso, diz-se que há um desloca- mais precisamente o de Bentham e Mill, fosse tomado
mento da ética como controle dos fins e não dos como referência para todas as teorias que buscavam
meios. Os críticos veem na associação entre utilita- sua justificação nas consequências das ações, em con-
rismo e consequencialismo motivos suficientes para traponto àquelas que buscavam sua justificação em má-
ximas absolutas (deontológicas). No entanto, conforme
rejeitar essa doutrina ética.
veremos, o utilitarismo nem sempre possui uma ética
Além disso, cabe destacar a limitação espacial e puramente consequencialista.
temporal do consequencialismo, dada à impossibili-
dade de prever se as condutas podem comprometer
no futuro o bem-estar.
Para os que defendem o utilitarismo, há duas pos- Aqueles que pensam que seria certo desviar o
turas em relação ao consequencialismo. Aqueles trem frequentemente apelam para o que os filósofos
que se consideram utilitaristas de regras afirmam chamam de doutrina do duplo efeito. Simplificando,
que nem sempre devemos julgar as ações apenas essa doutrina afirma que é moralmente aceitável fa-
por suas consequências em situações particulares. zer algo que cause um dano sério para promover
Segundo esses, devemos, em vez disso, estabelecer algum bem maior se o dano em questão não for uma
um conjunto de regras morais a serem seguidas de consequência intencional da ação, mas um efeito
acordo com o que promoverá a maior felicidade do colateral. O fato de que o dano causado é previsível
maior número de pessoas em longo prazo. E então não importa, mas, sim, se o agente pretende ou não
devemos seguir essas regras, mesmo que, em casos causá-lo.

12 Filosofia

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A doutrina do duplo efeito desempenha papel as consequências relativas aos seres humanos ou a
importante na teoria da guerra justa. Ela tem sido fre- todos os seres sencientes (aqueles com capacidade
quentemente usada para justificar certas ações mi- de sentir dor e prazer, como alguns animais).
litares que causam “danos colaterais”. Um exemplo A teoria consequencialista corresponde a um con-
desse tipo de ação é o bombardeio de depósitos de junto muito abrangente e diversificado de teorias da
munição, dado que, ao destruir o alvo militar, a morte obrigação moral e do certo e o errado, e não há con-
de civis também pode eventualmente acontecer. senso quanto às condições que deve satisfazer para
A questão da maximização do bem, princípio fun- ser classificada como tal. Para a maioria, o utilitarismo
damental do utilitarismo, foi o que fez com que mui- é consequencialista.
tos o considerassem como consequencialista. No
entanto, há quem discorde dessa visão, dado que
o próprio princípio apresenta problemas, conforme Jeremy Bentham:
veremos a seguir.
Para alguns, o prazer (traço hedonista do utilitaris-
o pai do utilitarismo
mo) não é mensurável entre pessoas com identida- Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo e ju-
des e inclinações diferentes, e, por isso, a utilidade rista inglês que chefiou um grupo de filósofos “utilita-
agregada seria uma impossibilidade e, portanto, sem ristas” que pregava reformas políticas e sociais, entre
possibilidade de consequencialismo. elas uma nova Constituição para o país.
Filho e neto de advogados, desde cedo come-
Hedonismo: refere-se àquele que considera o prazer um çou a aprender latim e grego e ingressou na esco-
bem supremo. Há no utilitarismo um aspecto hedonista, la de Westminster. Com 13 anos, foi para o Queen’s
pelo modo como define felicidade. O hedonismo tem College, em Oxford, e após graduar-se foi para o
raízes antigas na filosofia, desde Epicuro. Os hedonistas Lincoln’s Inn, com o objetivo de se qualificar para a
associam a felicidade ao prazer, que para eles é o único prática do Direito. Exerceu a advocacia, mas logo pas-
referencial de bem. sou a se dedicar à filosofia.
Inconformado com o sistema jurídico de seu país,
Há ainda, uma série de contestações feitas ao dedicou-se a um estudo intenso sobre questões rela-
princípio distributivo do utilitarismo. Se o conteúdo tivas à reforma do sistema de jurisprudência, tanto do
do que é útil está relacionado à felicidade, ao poder Direito Civil como do Penal, motivado não só pelo que
ou à riqueza, haverá uma limitação na realização des- observou como estudante nas cortes da justiça, mas
sa ética, pois a distribuição desses bens é limitada também pelas justificativas teóricas, como as descri-
pela estrutura econômico-social da própria socieda- tas no livro Comentários sobre as leis da Inglaterra,
de. Outros, por sua vez, afirmam que o utilitarismo do jurista William Blackstone.
conduz a ações claramente erradas, resultado da Em 1776, publicou seu primeiro livro, Um fragmento
violação de direitos muito básicos, como o direito à sobre o governo, uma crítica ao antirreformismo, que
vida e à integridade física. Há ainda debates sobre foi considerado o primeiro passo da “escola utilitarista
a obrigatoriedade de o utilitarismo abranger apenas inglesa”.

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• Doze homens e uma sentença. Direção: Sidney Lumet. 1957.


Classificação indicativa: livre.
Filme clássico para estudo da argumentação racional como
estratégia para fundamentar a condenação ou a absolvição
de alguém acusado de um crime. Especificamente, você verá
como o personagem Davis, o único dos jurados que deve de-
cidir o destino do acusado, pondera o sistema jurídico para
guiar sua decisão. Ele utiliza o princípio da utilidade para auxi-
liar na construção de seu argumento, evidenciando que julgar
envolve convicções morais, filosóficas e emocionais.

Fotograma de Doze homens e uma sentença. A certeza da


decisão: no sistema estadunidense de justiça, o veredicto do
júri deve ser unânime, seja para condenar ou absolver.

Unidade 1 – Capítulo 1 – Utilitarismo 13

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National Portrait Gallery, Londres
estabelecida com base na verificação, experiência, re-
petição e utilidade das ações. A intenção era que sua
doutrina deveria servir de base para o Direito Penal.
Em 1796, Jeremy Bentham recebeu uma herança,
o que lhe proporcionou estabilidade financeira e, em
alguns anos, transformou sua casa em centro de inter-
câmbio cultural e foco de um ativo movimento “utilita-
rista”. Entre seus amigos e seguidores estavam James
Mill e seu filho, o filósofo e economista John Stuart Mill,
que também vamos estudar neste capítulo.
Os interesses de Bentham voltam-se mais forte-
mente para a questão dos limites entre o Direito Civil
e o Direito Penal, o que lhe rendeu um importante
trabalho dedicado a codificar e organizar o corpo de
leis existente.
Bentham também expressou suas ideias reformis-
tas por meio do jornal Westminster Review, que era
oposto ao pensamento conservador de seus princi-
pais concorrentes: o Quarterly Review e o Edinburgh
Review. Para isso, contou com a colaboração de vá-
rios seguidores do utilitarismo, formando uma escola
de renovação de ideias, incluindo John Stuart Mill.

PICKERSGILL, Henry William. Jeremy Bentham, 1829. Óleo


sobre tela. Utilitarismo de Bentham
Dez anos depois, Bentham se dirigiu à Rússia, onde O ponto de partida do utilitarismo de Bentham en-
iniciou o estudo de uma reforma do sistema peniten- contra-se na sua crítica à teoria do Direito Natural e no
ciário, então obsoleto. Planejou um edifício destinado a questionamento da própria utilidade dos conceitos e
ser uma prisão modelo. Defendeu seu projeto durante das normas jurídicas, a fim de observar a aplicação
vinte e cinco anos, sem nenhum resultado concreto. prática para o homem. Seus pressupostos filosóficos
Nesse tempo, escreveu seu primeiro trabalho sobre exercem, até hoje, influência sobre o pensamento de
economia, Defesa da usura (1787), no qual se pode ver legisladores e juristas. Bentham afirma que o mais
a influência do pensamento de Adam Smith (1723-1790). elevado objetivo da moral é maximizar a felicidade:
Ao retornar para a Inglaterra, Bentham publicou em
1789 seu trabalho teórico mais importante, Uma introdu- Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio
ção aos princípios da moral e da legislação. Nesta obra, que aprova ou desaprova qualquer ação; segundo a ten-
apresenta sua doutrina filosófica denominada “utilitaris- dência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da
mo”. O nome provém da ideia de que a moral teria sido pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma
coisa em outros termos, segundo a tendência a promover
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ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer


ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somen-
te para qualquer ação de um indivíduo particular, mas
também de qualquer ato ou medida de governo.
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 4.

Para ele, a coisa certa a fazer é maximizar a


utilidade e como utilidade ele define qualquer coisa
que produza prazer ou felicidade e evite dor ou
sofrimento. Chega a esse princípio porque parte do
seguinte pressuposto: somos todos governados pelos
sentimentos de dor e prazer.
Desse modo, a utilidade é um princípio não ape-
nas para o cidadão comum, mas também para os
Estrutura do Panóptico para presídios, idealizado por Bentham:
legisladores. As leis, portanto, devem ser feitas para
torre central permite a vigilância constante dos prisioneiros dis- maximizar a felicidade da comunidade em geral. Mas
postos em celas em uma estrutura circular. o que é comunidade, para Bentham?

14 Filosofia

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Em sua visão, a comunidade é um corpo fictício e pode fazer com que os seres humanos sejam ins-
corresponde à soma de indivíduos que a abrange. Ao trumentalizados, ameaçando a própria dignidade da
somarmos todos os benefícios e subtrairmos todos os pessoa humana.
custos, saberemos quão feliz é a comunidade. Assim,
Bentham conclui que todo argumento moral deve,
implicitamente, inspirar-se na ideia de maximizar a Críticas recebidas
felicidade. Para muitos, o utilitarismo não respeita os
É por meio da quantidade de dor ou felicidade direitos individuais. Ao considerar apenas a soma
provocada nos seres humanos que os interesses en- de satisfações, o modelo é cruel com o indivíduo
tram em jogo em cada ação tomada. A quantidade isolado. Os indivíduos têm importância apenas se
de pessoas beneficiadas pelas ações é, portanto, um as preferências de cada um forem consideradas em
objetivo muito importante no utilitarismo de Bentham. conjunto, o que induz a pensar que a aplicação do
Para ele, o princípio da felicidade era uma ciência da utilitarismo pode validar a violação das normas fun-
moral que poderia servir de base para reformas políti- damentais da decência e do respeito. Pensemos,
cas. Por isso, propôs uma série de projetos, a exemplo por exemplo, na tortura: ela pode ser justificável em
do Panóptico, bem como a criação de um reformató- alguma circunstância?
rio para abrigar moradores de rua. Seguindo a lógica A tortura é um assunto no debate sobre interroga-
utilitarista, Bentham buscava reduzir a mendicância tórios de suspeitos de terrorismo. Torturar para obter
nas ruas, aumentando a felicidade dos transeuntes. informações é justificável? O argumento a favor da
Segundo ele, a exposição à pobreza trazia sofrimen- tortura começa sempre por um cálculo utilitarista. A
to generalizado, de modo que confinar mendigos em tortura provoca dor extrema ao suspeito, reduzindo
abrigos parecia-lhe boa solução. sua felicidade, mas salva a vida de inocentes, pre-
Aos que não consideravam a medida justa em venindo sofrimento em larga escala. Encontraremos
relação aos mendigos, Bentham argumentava que, argumentos de distintas naturezas entre os que repu-
apesar de tolher a liberdade daqueles, diminuía-se o diam a tortura.
sofrimento do público em geral. O repúdio pode ser por princípio quando se con-
Por outro lado, para que seu projeto funcionasse sidera esse recurso como violação aos direitos huma-
como política pública, seguramente haveria custos nos. Neste caso, ser contra a tortura não depende de
para o cidadão, e isso poderia reduzir a suposta fe- considerações utilitaristas. Os direitos e a dignidade
licidade geral. Para isso, Bentham também tinha res- humana, nesse caso, têm uma base moral que trans-
posta: sendo o projeto autofinanciável, o morador de cende a noção de utilidade, invalidando, neste caso,
rua seria levado ao abrigo e trabalharia para pagar a teoria de Bentham.
por seu sustento, contando pontos em uma cota de Os utilitaristas argumentariam que, até certo pon-
autolibertação. Para ele, o objetivo não era a punição, to, mesmo o mais ardente defensor dos direitos hu-
mas promover o bem-estar geral. manos encontra dificuldades para justificar que é
A maior crítica que este projeto recebeu foi o ar- moralmente preferível: deixar um grande número de
gumento de que a ideia de maximizar o bem-estar inocentes morrer ou torturar um único suspeito.

O tema da tortura é uma das principais questões no debate con-


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temporâneo no Brasil. Apesar de a tortura política ter acabado com


o fim da ditadura, ela é praticada nas delegacias, cadeias e prisões em
geral. Centros de Defesa de Direitos Humanos, Comissões de Justiça e
Paz, Conselhos Seccionais e Comissões de Direitos Humanos das OABs,
Pastorais Carcerárias têm vigiado e denunciado com veemência essa prá-
tica em presídios.
A repulsa à tortura significa afirmar que todo ser humano deve ser reco-
nhecido como sujeito de direitos. A tolerância para com a tortura jogaria
por terra a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não por coinci-
dência, a proscrição da tortura e o reconhecimento de todo ser humano
como pessoa aparecem lado a lado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos: artigos 5 e 6.
Definiu-se como tortura todo ato pelo qual um funcionário no exercício Um adolescente foi chicoteado por furtar barra de
de função pública infrinja, intencionalmente, a outra pessoa dores ou so- chocolate em São Paulo, em agosto de 2019. Este
frimentos graves, com o fim de obter dessa pessoa ou de terceiro uma não foi um episódio isolado no país que maltrata
confissão ou com o fim de castigar, intimidar ou coagir. jovens negros nas ruas e no sistema prisional.

Unidade 1 – Capítulo 1 – Utilitarismo 15

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Aplicando conhecimentos
1 Nem sempre há consenso em uma sociedade 3 Nucep-Seduc 2015 Sobre a ética utilitarista,
plural, diversificada, sobre se uma ação é certa ou marque a alternativa CORRETA:
errada, moral ou imoral. Um bom exemplo disso é o (a) O utilitarismo é uma ética conceitualmente volta-
caso do aborto. Tirar a vida de um feto com menos da para o egocentrismo, uma vez que toma como
de 3 meses de idade, num caso em que a gravidez critério definidor do agir moral aquilo que resulta
ocorreu por descuido, é visto por algumas pessoas ser o mais útil para o indivíduo dentre os cursos de
como uma ação imoral, mas ao mesmo tempo, ou- ação possíveis.
tras pessoas pensam que se trata de uma ação mo- (b) Segundo o utilitarismo, o conteúdo do agir correto
ral. Diante dessa questão, o que diria um utilitarista? se define pela maior quantidade de prazer ou uti-
(a) Que o aborto é uma ação imoral, portanto a mu- lidade para o indivíduo produzido pelo curso de
lher que é dona de seu próprio corpo, pode fazer ação indicado.
o que desejar com ele. (c) A ética utilitarista é uma ética do tipo deontológi-
(b) Que existe apenas uma resposta correta para a co, uma vez que não raciocina com a ideia de um
questão e é necessário apenas, para descobrir fim último para o agir humano.
essa resposta, calcular o quanto de prazer ou so- (d) A ética utilitarista opera da perspectiva de um agir
frimento cada uma das possibilidades de ação irá com consequências coletivas, ou seja, o valor moral
provocar. da ação se define pela maior quantidade de bem-
(c) Que ambas as respostas estão corretas, depen- -estar ou utilidade para o maior número de pes-
dendo da perspectiva da pessoa. soas dentre os cursos de ação possíveis.
(d) Que o aborto é uma ação imoral porque está tiran- (e) A ética utilitarista se reduz, ao final, a um hedonis-
do a vida de uma pessoa em formação e tirar uma mo individual, uma vez que opera com o conceito
vida humana é incorreto. central de prazer em sua estrutura teórica.
(e) Que a resposta depende da cultura. Em algumas
sociedades isso pode ser correto, mas em outras 4 O utilitarismo é uma teoria moral que procura ofe-
não. recer uma forma de diferenciar ações corretas e in-
corretas. Qual das alternativas abaixo define melhor o
2 Enem 2017 A moralidade, Bentham exortava, princípio básico do utilitarismo?
não é uma questão de agradar a Deus, muito menos (a) Uma ação moralmente correta é aquela que está
de fidelidade a regras abstratas. A moralidade é a ten- de acordo com a regra “não faça aos outros aquilo
tativa de criar a maior quantidade de felicidade possí- que não gostaria que fizessem para ti”.
vel neste mundo. Ao decidir o que fazer, deveríamos, (b) Uma ação moralmente correta é aquela que pro-
portanto, perguntar qual curso de conduta promove- duz o maior saldo positivo de prazer ou bem-estar
ria a maior quantidade de felicidade para todos aque- para todos os afetados pela ação, considerados
les que serão afetados. imparcialmente.
(RACHELS, J. . (c) Uma ação moralmente correta é aquela está de
Barueri-SP: Manole, 2006)
acordo com o dever moral.
Os parâmetros da ação indicados no texto estão em (d) Uma ação moralmente correta é aquela que gera
conformidade com uma: mais felicidade para o agente.
(a) fundamentação científica de viés positivista. (e) Uma ação moralmente correta é aquela em que a
(b) convenção social de orientação normativa. pessoa age com honestidade.
(c) transgressão comportamental religiosa.
(d) racionalidade de caráter pragmático.
(e) inclinação de natureza passional.

20 Filosofia

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