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Escola Secundária Padre António Vieira

FILOSOFIA
10º Ano

Kant e Stuart Mill


A necessidade de fundamentar a moral surge da necessidade de distinguir o
moralmente correto do moralmente incorreto. Duas perspetivas filosóficas se
destacam: a ética deontológica de Kant e a ética utilitarista de Stuart Mill. Em
termos gerais, a questão põe-se em saber a) qual o bem último que orienta uma ação
moral e b) qual o critério que permite dizer que uma ação é moralmente boa e outra
má. Como veremos, as duas respostas apresentadas distinguem-se porque, enquanto
uma admite ações boas em si mesmas independentemente das suas consequências, a
outra considera que uma ação é boa consoante o bem que promove junto de alguém.

I) Emmanuel Kant (1724-1804)

Na ética kantiana a moralidade da ação depende da intenção que a determina,


independentemente das consequências que dela possam advir. Para Kant uma ação
tem valor moral se for realizada única e simplesmente por dever, sem qualquer
interesse ou inclinação (sentimentos como o medo, a amizade, o amor; desejos ou
impulsos; influência social ou religiosa; pressões da autoridade; etc.). À vontade que
determina as ações por dever dá-se o nome de “Boa Vontade” e esta é a única coisa
que neste mundo tem um valor absoluto, sendo que tudo o resto (coragem,
inteligência, força, saúde, etc.) possui apenas um valor instrumental cuja valia
depende do modo como é utilizado (de acordo com uma boa ou má vontade).

“A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer” 1. A Boa
Vontade surge como o bem supremo do qual todos os outros bens dependem, ela
representa a intenção moral, a intenção de cumprir o dever por puro e
desinteressado respeito pelo dever, independentemente de qualquer outro
motivo e de qualquer consideração sobre a matéria da ação e das suas
consequências (ações por dever). A ação moral constitui um fim em si mesma e
exclui qualquer interesse ou inclinação. Para além das ações por dever, podem ainda
distinguir-se: ações contrárias ao dever (que são contra a lei moral); e ações em
conformidade com o dever: ações motivadas por interesses ou inclinações, mesmo
que estejam de acordo com a matéria do dever – a lei moral. A estes dois tipos de
ações, Kant não lhes confere valor moral.

O dever impõe-se a qualquer ser racional como uma lei moral, um princípio objetivo
de ação com uma origem puramente racional, cujo valor é absoluto e que se exprime
sob a forma de um imperativo categórico ou incondicional. O imperativo moral
kantiano é formal, diz-nos como devemos agir, não o que devemos fazer em cada
circunstância particular. O imperativo categórico é a lei moral que se apresenta ao
nosso espírito sob a forma de uma obrigação que nos impomos a nós próprios e a que

1
KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p 110
se deve obedecer incondicionalmente, sem quaisquer outras considerações que não
sejam o seu cumprimento determinado pelo seu próprio valor.

O imperativo categórico kantiano distingue-se dos imperativos hipotéticos que


caracterizam as éticas materiais. Estes são condicionais, a ação é um meio para
atingir um fim (por exemplo, deves ser prudente para ser feliz) e quem quer o fim
deve aceitar o meio. O imperativo categórico é incondicional, a ação é um fim em si
mesma.

O critério que permite distinguir uma ação moral implica conhecer a intenção que
levou o agente a praticá-la. Se não envolve qualquer interesse ou inclinação, se é
desinteressada, então a ação é moral. A intenção moral exprime a subordinação da
vontade humana a uma lei racional, estabelecida a priori (independentemente das
circunstâncias empíricas que envolvem a ação) e que se impõe como uma obrigação.
Esta lei exprime-se num imperativo categórico, cujas máximas são formuladas da
seguinte forma:

Princípio da Universalidade – Age como se a máxima da tua ação devesse ser


instituída pela tua vontade como lei universal da natureza.

Princípio da Humanidade – Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua
pessoa, como na de qualquer outro, sempre simultaneamente como um fim, e nunca
simplesmente como um meio.

A universalidade é a forma da lei, a humanidade é a sua matéria. Agimos moralmente


quando as máximas que determinam as nossas ações se puderem elevar a leis
universais como as que regem a natureza e quando usarmos a humanidade como um
fim em si mesmo e nunca como um meio, respeitando sempre a dignidade da pessoa
humana. A autonomia da vontade opõe-se à heteronomia: a liberdade consiste em
submetermo-nos às leis racionais que a nós próprios nos damos. Agir por qualquer
outro motivo (pressões exteriores ou inclinações não racionais) implica uma
heteronomia da vontade.

OBJEÇÕES. Ao formalismo da ética kantiana e ao caráter absoluto do


cumprimento do dever em que assenta pode objetar-se uma ausência de contacto
com a realidade.

● Poderão existir deveres que não devemos cumprir?


● Não resolve conflitos entre deveres cujas máximas se possam
simultaneamente universalizar (deveres incompatíveis).
● Desculpa ações negligentes, mas bem intencionadas.
● Ignora o papel de emoções como piedade ou generosidade na moralidade.

II) John Stuart Mill (1806-1873)

Na ética de Stuart Mill são as consequências, os resultados da ação que determinam


se esta é moralmente correta ou não. A felicidade (ou bem estar) é o único bem com
valor intrínseco e consiste na procura do prazer e no evitar da dor, do sofrimento.
Todos nós desejamos ser felizes, por isso a felicidade é a única coisa realmente
desejável. Deriva daqui o princípio moral do utilitarismo: as ações são boas na
medida em que contribuem para promover e maximizar a felicidade para o maior
número possível, e más na medida em que tendem a gerar o sofrimento – Princípio
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da maior felicidade ou princípio da utilidade. É por esta razão que a ética de Stuart
Mill se pode considerar uma ética hedonista.

Apesar de identificar a felicidade com o prazer, Mill distingue prazeres superiores


(prazeres espirituais, que promovem a dignidade e a realização do ser humano) de
prazeres inferiores (ligados ao corpo, às sensações, aos aspetos animais),
considerando estes menos importantes do que aqueles: «é preferível um Sócrates
insatisfeito do que um porco satisfeito». Por isto, é necessário proceder a uma
avaliação qualitativa dos prazeres que, mais do que considerar aspetos quantitativos
(intensidade e duração dos prazeres) deve ter em conta a sua qualidade
especificamente humana.

O critério da moralidade tem a ver com a finalidade ou com o cálculo


(vantagens/desvantagens; custo/benefício) acerca dos resultados ou consequências
da ação, mas de uma forma imparcial e altruísta. Quando se fala de bem maior, ou
de maior felicidade, referimo-nos à felicidade para o maior número de pessoas
afetadas pela ação, o desejo de bem-estar comum. A ética de Stuart Mill baseia-se
num cálculo assente na cooperação com os outros que exclui completamente
qualquer forma de egoísmo. Não é a felicidade individual que conta mas a felicidade
geral.

Pode, assim, concluir-se: a) não há ações intrinsecamente boas (boas em si


mesmas), mas a sua bondade é determinada pelos resultados que delas resultam; b)
não há relativismo moral: o princípio da utilidade é objetivo, é universal; c) não é
admissível qualquer tirania das maiorias: a avaliação qualitativa dos prazeres e o
princípio da felicidade geral excluem a legitimação de situações como a exploração
de minorias a favor de maiorias, a escravatura, etc.

OBJEÇÕES: A ética de Stuart Mill, ao basear-se apenas no critério das


consequências, permite formular algumas objeções como, por exemplo, mesmo uma
ação praticada com a pior das intenções deverá ser considerada moralmente valiosa
se os seus resultados acabarem por ser positivos?

● Valoriza os «heróis» e os resultados obtidos por acaso.


● Não desvaloriza males que não tenham prejuízo (mentir sem
consequências, etc.).
● Sacrifica-se uma vida humana em prol do salvamento de muitas? Quanto
sofrimento é legítimo infligir, e a quantos, para proporcionar quanto
prazer, e a quantos?
● E os prazeres ilusórios também devem ser considerados da mesma forma
que os prazeres reais? O desejável deve ser o que desejamos (mesmo
ilusoriamente) ou o que deve ser desejado?
● Dificuldade em fazer os cálculos das consequências principalmente quando
estas não são imediatas. Por outras palavras: no cálculo da felicidade
comum deve ter-se em consideração a imprevisibilidade do futuro e a
incerteza acerca das consequências de uma ação.

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III) Comparação entre Kant e Stuart Mill: deixar morrer ou matar - o
problema do trólei.

Enquanto para Kant o critério da moralidade reside no princípio que norteia a ação e
na intenção com que esta é praticada, para Stuart Mill o que conta são os resultados
da ação medidos pela sua maior ou menor utilidade. Num caso, o que determina
aquilo que é ou não moral são as consequências ou finalidade; no outro, é a natureza
dos princípios e o modo de os pôr em prática.

Para Kant, o bem último a ser prosseguido consiste no império daquilo que designa
por boa vontade; para Stuart Mill é a felicidade. Para Kant, o critério de moralidade
de uma ação consiste no facto de ela ser praticada com a intenção de cumprir o
dever pelo dever, por ser determinada por um imperativo categórico; para Stuart
Mill, nas suas consequências, na sua utilidade para o bem comum.

KANT STUART MILL

Ética deontológica (dos deveres) Ética teleológica (das finalidades)

Ética formal (diz como fazer) Ética material (diz o que fazer)

Baseia-se em princípios universais (lei


moral, Razão, Boa Vontade, imperativo
Baseia-se nas consequências: utilidade.
categórico)

Moral baseada no princípio da maior


Moral baseada no dever.
felicidade para o maior número.

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