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Capítulo VIII

OS PRINCÍPIOS LÓGICOS∗

Na Meditação Primeira, ao ser instaurada a dúvida metafísica, o que entrava em

questão eram as coisas simples e universais tais como extensão, número, duração, etc. Em

tal ocasião, jamais foram mencionadas as noções comuns ou máximas (os princípios

lógicos). Posteriormente, no início da Meditação Terceira, quando se formulou o critério de

verdade da clareza e distinção, as idéias matemáticas foram enumeradas como verdades ao

lado do cogito e, novamente, não houve qualquer menção a respeito das noções comuns.

Agora, em meio à Meditação Terceira, quando se trata de achar uma maneira de alcançar

alguma realidade exterior para além do horizonte de nossas idéias, Descartes declara:

“Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e
total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E
como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma ?”1

Ora, todo esse quadro comporta a clara indicação de que o programa da dúvida

metódica articulado na Meditação Primeira nunca chegou a alcançar as noções comuns.

Isso será confirmado por Descartes nas respostas aos seus objetores. A Gassendi, Descartes

irá declarar que recusou apenas os prejuízos que existem em nosso espírito, mas não


O presente texto consiste na reformulação e aprofundamento de algumas reflexões já presentes em nossa
dissertação de mestrado (Dúvida Metafísica e o Processo de Constituição do Cogito na Obra de
Descartes, op. cit., cap. I).
1
Méditations—Troisième, A.T., IX, p.32; Meditationes—Tertia, A.T., VII, p. 40.

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aquelas noções que se conhecem sem afirmação ou negação2, e, na Exposição Geométrica

que acompanha Segundas Respostas, ele afirma que tais noções não precisam de prova para

serem conhecidas3.

Com efeito, o objeto de consideração crítica da filosofia cartesiana é o conjunto de

nossas opiniões ou juízos sobre a realidade. É esse o edifício que a dúvida metódica

pretendeu derrubar, e é um tal edifício que, sobre novas bases, Descartes pretende

reconstruir. É por isso que, tal como vimos, ele afirma que o erro está propriamente nos

juízos que fazemos acerca de nossas idéias. Ora, os princípios lógicos não são juízos que

fazemos acerca de nossas idéias, mas são, por assim dizer, juízos inatos; ou melhor, visto

que não consistem em atos da vontade, isto é, ações de afirmar ou negar algo, tais

princípios não são, propriamente falando, juízos, mas sim noções inatas ao intelecto, “que

se conhecem sem afirmação ou negação”. É natural, pois, que não sejam afetados pela

dúvida.

Entretanto, como entender, então, o caso das coisas simples e universais, bem como

de todo conhecimento matemático? Não são também elas noções gerais inatas ao

entendimento? E, no entanto, não são elas atingidas por uma dúvida metafísica? Se eu

posso duvidar da verdade <2 + 3 = 5>, não posso, do mesmo modo, duvidar da verdade <é

impossível que uma mesma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja>? Uma tal isenção mão

compromete a radicalidade do projeto cartesiano de uma dúvida hiperbólica e universal?

2
“... o autor [Gassendi] desse livro [Disquisito Methaphysica] não considerou que a palavra prejuízo não se
estende a todas as noções que existem em nosso espírito, das quais confesso ser impossível nos
desfazermos, mas somente a todas as opiniões deixadas em nossa crença pelos juízos que fizemos
outrora”. (Sur les Cinquièmes Objections, A.T., IX, p. 205. [T. M.]). “Mas apenas neguei os prejuízos e
nunca as noções, como estas, que se conhecem sem qualquer afirmação ou negação” (Ibid. p. 206).
3
No terceiro postulado da exposição geométrica, Descartes declara que as “noções que cada qual encontra
em si mesmo” não precisam de provas para serem conhecidas. (Secondes Réponses, A.T., IX, p. 126;
Secundae Responsiones, A.T., VII, pp. 162-163).

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De fato, as noções comuns são, elas próprias, coisas simples e universais. Na Regra

XII, quando trata das noções das coisas simples, Descartes as classifica em puramente

intelectuais (conhecimento, dúvida, volição, etc); puramente materiais (figura, extensão,

movimento, etc); comuns a ambas (existência, unidade, duração, etc); e as noções comuns.

Todavia, as noções comuns se distinguem das demais coisas ou naturezas simples por não

serem elas próprias coisas ou propriedades de coisas, mas tão somente laços que ligam as

outras naturezas simples entre si “e sobre cuja evidência se apóiam todas as conclusões dos

raciocínios”4. Para usar as palavras de Gouhier, “a expressão <natureza simples> comporta,

a uma só vez, realidades e verdades: as <noções comuns> são então espécies de naturezas

simples que servem de laços entre coisas consideradas, elas também, naturezas simples” 5.

Nos Princípios da Filosofia, Descartes distingue dentre as noções gerais da mente

aquelas que se referem a coisas ou propriedades de coisas (substância, duração, ordem,

número, etc.) e aquelas que se referem a verdades, que ele chama de <noção comum ou

máxima>6. Quer dizer, dentre as nossas noções de naturezas simples, algumas são noções

de coisas ou propriedades de coisas, enquanto que outras são noções de meras noções (as

noções comuns ou máximas). Quando, portanto, Descartes fala de noções gerais, primitivas

ou, de modo geral, de noções inatas ao entendimento, ele está se referindo genericamente às

noções que temos de naturezas simples; quando, porém, fala especificamente de <noções

comuns>, está se referindo a uma espécie de naturezas simples, que, enquanto tal, é ela

própria objeto de noções primitivas ou gerais. Dentre essas noções primitivas ou gerais,

apenas as noções de coisas ou propriedades são, propriamente falando, idéias.

4
Regulae Ad Directionem Ingenii—Regula XII, A.T., X, , p. 419.
5
La Pensée Métaphysique de Descartes, Paris, Vrin, 1962, pp. 274.
6
Principes, A.T., IX Première Partie, § 48 e 49, pp. 45-46.

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Quer dizer, por um lado, uma noção comum não é, propriamente falando, um juízo,

porque ela não é uma ação da vontade que se aplica a um objeto do entendimento, mas é ela

própria um objeto do entendimento: não julgamos, por exemplo, que <é impossível que

uma mesma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja> a partir da percepção de uma

determinada coisa que assim se comporta, mas percebemos (intuímos) essa proposição

mesma; por outro lado, enquanto objeto do entendimento, a noção comum não é,

propriamente falando, uma idéia, porque idéia, como vimos, é aquele pensamento que é

como imagem de uma coisa. Ora, nos diz Descartes, “quando pensamos que nunca se

poderá fazer alguma coisa do nada, n ão cremos que tal proposição seja coisa que exista ou

propriedade de alguma coisa, mas tomamo-la por uma certa verdade eterna que tem seu

lugar no pensamento e a que se chama noção comum ou máxima”7.

Temos, pois, que as noções comuns não são, rigorosamente falando, nem idéias e

nem juízos. O que são então? Ora, apenas noções ou conceitos. Mas um conceito não

expressa sempre uma idéia? Descartes mesmo não afirma que nada saberíamos exprimir

por nossas palavras, quando entendemos o que dizemos, sem termos a idéia da coisa que é

significada por nossas palavras8? Mais que isso: conceito e idéia não são termos

equivalentes em Descartes? Nas Regras para a Direção do Espírito, Descartes não define

intuição como “o conceito da mente pura e atenta”?9

Conceitos, é claro, expressam sempre “idéias” e, neste sentido, poderemos dizer que

são termos equivalentes, mesmo para Descartes. Deste modo, a noção comum é também

7
Principes—Première Partie, A.T., IX, § 49, p. 46.
8
“... não saberíamos nada exprimir com nossas palavras, quando entendemos o que dizemos, se por isso
mesmo não fosse certo que nós temos em nós a idéia da coisa que é significada por nossas palavras”.
(Correspondance, A.T., III, carta CCXLV, Descartes a Mersenne, juillet 164l, p. 393).
9
“Por intuição entendo, não a convicção flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo enganador de uma
imaginação de composições inadequadas, mas o conceito da mente pura e atenta tão fácil e distinto que
nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos”. (Regulae ad Directionem Ingenii—Regula
III, A.T., X, p. 368).

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uma idéia. Não, porém, idéia em sentido próprio, isto é, entendida como uma percepção

que o pensamento tem de determinada coisa, embora a própria noção comum possa ser o

objeto de uma percepção, ou seja, objeto de uma idéia. “Temos ainda outras idéias no

tocante às noções comuns”, nos diz Descartes na Entrevista com Burman, “e essas não são

idéias de coisas, propriamente falando; mas então a idéia é tomada em um sentido mais

largo”.10

Isto faz ver que, mesmo para Descartes, idéia, em sentido estrito, não é um termo

exatamente equivalente a conceito: se é verdade que toda idéia é um conceito, não é

verdade, entretanto, que todo conceito seja uma idéia. Ocorre que conceito é, de um modo

geral, uma noção da mente. Quando, pois, se trata da noção de uma determinada coisa, isto

é, de uma noção que resulta da percepção que o pensamento tem de alguma coisa,

chamamos esta noção de ‘idéia’; quando, porém, se trata de uma noção pura, ou seja, de

uma noção que não introduz nenhuma coisa no pensamento, mas que, no entanto, pode ser

aplicada a qualquer coisa, chamamos esta noção de ‘noção comum’. Assim, idéia é o

conceito de uma determinada coisa, enquanto noção comum (ou princípio lógico) é um

conceito puro, sem objeto determinado.

Pode-se, portanto, em sentido amplo, chamar os princípios lógicos de “idéias”, na

medida em que, tanto quanto as idéias, eles são noções ou conceitos; mas, estritamente

falando, idéias são noções de coisas, enquanto os princípios lógicos são noções comuns.

Isto significa que um princípio lógico não introduz nenhuma coisa no pensamento, mas já

é, ele mesmo, um conceito introduzido no pensamento11. Mas se esse conceito não introduz

10
Entretien avec Burman, Paris, Vrin, 1975, p. 29.
11
“... pode-se dizer que impossibile est idem simul esse & non esse é um princípio, e que ele pode
geralmente servir, não propriamente para fazer conhecer a existência de alguma coisa, mas somente para
fazer que, quando se a conhece, confirme-se a sua verdade por um tal raciocínio: é impossível que o que é

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nenhuma coisa ou propriedade das coisas, então o que ele introduz ou traduz? Ora, ele

expressa uma relação. Mas essa relação não deve ser entendida, ela mesma, como sendo

uma coisa, ou tampouco como expressando propriedades essenciais que existem nas coisas.

Trata-se de uma relação meramente conceitual expressa numa proposição. Mas se a noção

comum é uma proposição que expressa uma relação entre conceitos, ela não é, então, um

juízo? Naturalmente, se tomarmos juízo apenas no sentido lógico; mas não é juízo no

sentido específico de uma ação da vontade que se acrescenta a uma idéia. O juízo aqui é ele

mesmo uma “idéia” (noção) no entendimento. Contudo se o juízo não se acrescenta a uma

idéia, na medida que ele já é uma “idéia”, em que consiste, pois, um tal juízo? Ora, num

juízo tautológico ou analítico. Trata-se de uma proposição cujo predicado apenas explicita

aquilo que já está contido no sujeito. Dado, por exemplo, o conceito de Ser, temos, por

mera explicitação de seu conteúdo, que <o Ser é>; disso decorre que <o Ser não pode, ao

mesmo tempo, não ser>; e, do mesmo modo, temos que <uma mesma coisa não pode, ao

mesmo tempo, ser e não ser>.

Não há aqui um juízo que a vontade faz sobre um objeto percebido pelo

entendimento, mas somente a percepção que o entendimento faz da necessidade de um tal

juízo, independentemente da percepção de qualquer objeto determinado. Não há como,

portanto, introduzir a dúvida nos princípios lógicos, porque não é possível — a exemplo do

que se fazia até mesmo com as idéias matemáticas — reduzir o juízo à idéia, já que o

próprio juízo é aqui a “idéia”. Não existe aqui uma relação externa, onde a idéia de uma

coisa é ligada à coisa de que ela é idéia por uma ação da vontade, isto é, não ocorre aqui um

não seja; ora, conheço que tal coisa é; logo, conheço que é impossível que ela não seja. O que é de bem
pouca importância, e não nos torna em nada mais sábios”. (Correspondance, A.T., IV, carta CDXL
Descartes à Clerselier, [juin ou juillet 1646], p. 444).

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juízo que acrescenta à idéia um valor objetivo. O que temos aqui é apenas uma relação

interna à própria “idéia”, idéia que já é um “juízo” — um juízo tautológico.

Se quiséssemos suspeitar da verdade de que <uma mesma coisa não pode, ao

mesmo tempo, ser e não ser>, estaríamos então suspeitando que <Ser é não ser> e que,

portanto, <pensar é não pensar> e, do mesmo modo, que <eu não penso quando penso>, e,

por fim, que [eu não suspeito que <uma mesma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não

ser> quando eu suspeito <que uma mesma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não

ser>]. Como mostra Aristóteles, a tentativa de colocar em dúvida o princípio de contradição

já se constitui na admissão da verdade de um tal princípio; aqueles que o negam já estão

pressupondo sua verdade12.

O que portanto torna as idéias matemáticas, diferentemente dos princípios lógicos,

passíveis de dúvida é que, enquanto posso suspeitar que <2 + 3> seja igual a <5>, não

posso suspeitar que <2 + 3> seja e não seja, ao mesmo tempo, igual a <5>, ou que <5>

seja e não seja, ao mesmo tempo, <5>. Ser e não-ser são conceitos incompatíveis,

excludentes entre si: um corpo ou um número é ou não é, mas não pode ser e não ser ao

mesmo tempo.

Todavia, o conhecimento matemático também não é um conhecimento analítico?

Dados os conceitos de extensão e figura, as relações geométricas não são deduzíveis de

12
“Podemos, sem embargo, demonstrar negativamente que essa opinião é impossível, contanto que o nosso
adversário afirme alguma coisa (...). O ponto de partida de todos os argumentos dessa espécie não é
pretender que o nosso adversário diga que uma coisa é ou não é (o que poderia ser petição de princípio),
mas que diga algo que tenha significação tanto para ele próprio como para um outro; pois isso é
realmente necessário se realmente ele quer dizer algo. Se nada dizer, um tal homem não será capaz de
raciocínio, quer consigo mesmo, quer com um outro. Mas uma vez admitido isto, a demonstração se torna
possível, pois neste caso teremos uma asserção definida. O responsável pela petição de princípio,
contudo, não é o que demonstra, mas o que escuta a demonstração; porquanto, ao mesmo tempo que
refuta o raciocínio, submete-se a ele. E, por outro lado, quem admite isso já admitiu que há algo de
verdadeiro fora de qualquer demonstração [de modo que nem tudo será “assim e não assim”].
(Aristóteles, Metafísica, Livro IV, 1006a 10-30, Porto Alegre, Editora Globo, 1969, pp. 93- 94).

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uma maneira puramente lógica? Dado os conceitos de número e de ordem ou série, as

relações aritméticas também não são deduzíveis de forma puramente lógica, tanto quanto o

são, a partir do conceito de Ser, os princípios da não contradição e de identidade? Ocorre

que para Descartes o que está em jogo é a própria validade das noções de extensão,

duração, número, etc. Se, portanto, tais naturezas simples não forem essências reais, mas

tão somente ficções do espírito, então todo conhecimento matemático apoiado nelas se

converte também em mera ficção.

E quanto ao conceito de Ser, não é possível também questionar a sua validade?

Como garantir que a minha concepção de Ser corresponde ao Ser real? Não se trata, porém,

de dizer tão somente que o pensamento não pode conceber o Ser como contraditório em si

mesmo, mas dizer que o próprio pensamento que não pode ser em si mesmo contraditório:

o ato de pensar não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser ato de pensar. Portanto, não se

trata de uma verdade meramente lógica ou epistemológica, mas sobretudo de uma verdade

ontológica. E não ocorre aqui uma imposição do pensamento sobre o ser, mas é a própria

determinação do ser que se expressa no ato mesmo de pensar. Inclusive, essa associação

entre ser e pensar, que dá um alcance ontológico aos princípios lógicos, vai ser fortalecida

quando da formulação do cogito: a partir de então, não é mais um mero ato (de pensar) mas

é uma coisa (pensante) que não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser. Assim, não é mais o

ato de pensar mas o próprio ser do pensamento que expressa a impossibilidade da

autocontradição, isto é, que valida ontologicamente o princípio lógico da não-contradição.

E não é caso da imposição de um princípio lógico ao ser, mas de constatação no ser

(pensante) da legitimidade do princípio lógico; e também não é o caso de estabelecer uma

lei universal para todos os seres a partir da observação de uma determinação específica do

ser pensante, mas de experenciar no ser pensante a realidade do princípio universal.

293
A própria formulação do cogito é uma confirmação do princípio da não-contradição:

penso, logo existo significa que existo à medida que penso e não poderia, ao mesmo tempo

(à medida que penso), não existir. Isto é, o pensamento constata a sua existência e a

constata de um modo que exclui a possibilidade da autocontradição — a qual, de sua parte,

excluiria a própria possibilidade da existência. Isto significa que não é porque o

pensamento não pode conceber o ser como autocontraditório que ele se constata sem

autocontradição; ao contrário, ele constata a sua existência como uma exclusão necessária

da possibilidade de autocontradição e isso confirma a impossibilidade de conceber o ser

como sendo autocontraditório.

Agora, o fato do cogito confirmar os princípios lógicos não implica em afirmar que

antes do cogito eles podem ser postos em dúvida. Pelo contrário, o único modo de

questioná-lo seria questionando o próprio cogito. Para entender isso devemos traçar um

paralelo com as idéias matemáticas.

Para se colocar em dúvida as idéias matemáticas foi preciso, primeiramente,

suspeitar da existência do mundo exterior — desta forma questionava-se a existência da

matéria (a extensão) da qual elas representavam as propriedades e relações essenciais;

depois, como elas poderiam ser verdadeiras mesmo que não existisse a realidade exterior,

na medida em que a extensão, suas propriedades e relações poderiam ser essências

verdadeiras (verdades necessárias para qualquer mundo material possível), foi preciso

questioná-las em si mesmas, suspeitando que a sua necessidade fosse uma ilusão criada por

um Deus enganador. Ora, embora as idéias matemáticas tivessem permanecido verdadeiras

independentes da dúvida sobre a existência do mundo, de modo que foi necessário um novo

argumento para atacá-las, elas não teriam conquistado essa independência se o mundo

exterior não pudesse ter sido questionado: elas podem ser verdadeiras sem que o mundo

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exterior exista, mas o mundo exterior não pode existir sem que elas, que são suas

propriedades essenciais, sejam verdadeiras.

Do mesmo modo, com relação aos princípios lógicos, o único modo de questionar o

seu alcance ontológico é começar por questionar a realidade da existência e, apenas depois,

questioná-los em si mesmos. Ora, com o argumento do sonho a existência material foi

questionada e depois, com o argumento do Deus enganador, foram questionadas as

essências matemáticas. Entretanto, isso não esgota todo o ser: a existência não-extensional

ou inteligível, isto é, o pensamento, não foi afetada. Na verdade, ele mesmo, o pensamento,

que foi quem colocou em suspeição toda a realidade material, sequer foi constatado (ou

melhor, se auto-constatou). Contudo quando isso acontecer, com a formulação do cogito,

ele não somente não cairá sob suspeição como será automaticamente confirmado. Neste

sentido, os princípios lógicos nunca chegaram a perder integralmente o seu solo ontológico

(a existência inteligível ou pensante não foi questionada) — o qual, enquanto sobreviver,

legitima necessariamente os princípios.

Os princípios lógicos, portanto, não são suscetíveis a nenhum gênero de dúvida: não

são passíveis de uma dúvida natural porque a experiência não sugere e nunca sugeriu a

possibilidade de que as coisas, ao mesmo tempo, sejam e não sejam — há uma

impossibilidade de fato; por outro lado, não são passíveis de uma dúvida metafísica, tal

como as idéias matemáticas, porque assim como não é possível pensar que as coisas não

sejam na medida em que são, tampouco é possível pensar que eu não existo na medida em

que penso, ou melhor, tampouco é possível que eu de fato não exista na medida em que

efetivamente penso, e mesmo que eu não pense na medida em que penso — há uma

impossibilidade de direito.

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Assim como o cogito, portanto, nem as mais extravagantes suposições dos céticos

poderiam colocar em questão os princípios lógicos. Ocorre que, nos diz Descartes, “uma

vez que eles estão presentes em nós de nascença e com muita clareza, e uma vez que os

experimentamos dentro de nós, o que fazemos é desprezá-los ou pensar sobre eles de um

modo confuso, e nunca em abstrato, ou dissociando-os das coisas materiais e das instâncias

particulares”13. Mas ninguém teria dúvida sobre esses princípios se os pensasse

devidamente, isto é, em abstrato. “E se o Cético tivesse feito isso”, afirma Descartes, “ele

não teria sido sempre cético”14.

Entretanto, a dúvida cartesiana não parece questionar o conhecimento matemático

apenas na medida em que coloca em questão as naturezas simples sobre as quais ele se

funda. Descartes afirma explicitamente que pode haver um Deus que me engane quando

faço a adição de dois mais três, ou quando enumero os lados de um quadrado. Neste sentido

é possível insistir: as operações matemáticas não são fundamentalmente relações lógicas? A

afirmação de que um quadrado tem quatro lados não é meramente deduzível do conceito de

quadrado, e o conceito de quadrado e de triângulo não são incompatíveis e excludentes

entre si? <2 + 3> não está implícito no conceito de número cinco?

Ocorre que a distinção cartesiana entre as noções comuns e as idéias matemáticas,

que lhes confere estatutos diferentes, como que prefigura a famosa distinção que Kant fará

mais tarde, entre “juízos analíticos” e “juízos sintéticos a priori”. Diferentemente de

Leibniz que, entre as “verdades de razão”, opostas às “verdades de fato”, incluía tanto os

princípios lógicos quanto as verdades matemáticas; e também diferentemente de Hume que,

do mesmo modo, entre as suas “relações de idéias”, que opunha às “questões de fato”,

13
Entretien avec Burman op. cit., p. 5.
14
Ibid.

296
incluía igualmente os princípios lógicos e as idéias matemáticas - Kant, assim como

Descartes, defendia um estatuto diferente para o conhecimento matemático. Para Kant, os

princípios lógicos eram “juízos analíticos”, ou seja, juízos em que o predicado pertence ao

sujeito “como algo contido (ocultamente) nesse conceito”. Ele denominava também esses

juízos de “juízos de elucidação” 15. Os juízos matemáticos, entretanto, Kant os considerava,

do mesmo modo que os juízos de experiência, “juízos sintéticos” (ou “juízos de

ampliação”), isto é, juízos em que o predicado está completamente fora do conceito,

“embora em conexão com o mesmo”. A diferença era que, enquanto que os juízos de

experiência eram “juízos sintéticos a posteriori”, os juízos matemáticos, na medida em que

eram universais e necessários, deviam ser “juízos sintéticos a priori”16. Entretanto, como

Kant negava a intuição intelectual, ele fundamentou os juízos sintéticos a priori da

matemática, diferentemente de Descartes que os fundava na intuição intelectual, numa

“intuição sensível a priori”17 .

Antes de Kant, portanto, Descartes já concebia as matemáticas como conhecimento

que embora não fosse a posteriori (por indução a partir da experiência) também não era

analítico (derivado das leis lógicas do entendimento): era a priori, mas sintético. E é por

causa desta concepção que as idéias matemáticas, diferentemente dos princípios lógicos,

tornam-se passíveis de dúvida. Se o conhecimento matemático não deriva das leis lógicas

do meu entendimento, mas é um conhecimento adquirido por intuição intelectual, então é

possível duvidar da validade de um tal conhecimento colocando em questão a legitimidade

da própria intuição. E se, por exemplo, o espaço tiver necessariamente quatro dimensões,

15
Crítica da Razão Pura, Introdução, op. cit., p. 27.
16
Ibid., p. 27 e 28.
17
Ibid., “Estética Transcendental”, p. 51 e 52.

297
mas a malícia de um gênio maligno fizer com que eu sistematicamente o intua como tendo

três dimensões?

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