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‘INTUIÇÃO’1
[...] o termo intuição significará uma cognição não determinada por prévia
cognição do mesmo objeto, mas determinada por algo fora da consciência.
Considere o leitor o seguinte. Intuição aqui terá o sentido de “premissa não
conclusiva”, residindo a única diferença em que tanto premissas como conclusões
são juízos, enquanto que a intuição (a definição uma vez estabelecida) pode ser
qualquer espécie de cognição. Mas exatamente como uma conclusão (boa ou má)
é determinada no espírito de quem raciocina pela premissa, as cognições-que-não-
são-juízos podem ser determinadas por cognições anteriores; uma cognição não
determinada desta maneira, e sim pelo objeto transcendental, deve ser
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Utilizaremos a sigla ‘QFRH’ para citar esta obra.
denominada intuição (PEIRCE, 1983, §5.213, p. 61).
Peirce nos apresenta no trecho citado as condições pelas quais cognições podem ser
consideradas ‘intuições’. Denso e, a princípio, um pouco confuso, esse parágrafo pode ser
reconstruído didaticamente da seguinte maneira: (1) uma ‘intuição’ é uma ‘premissa não
conclusiva’; (2) se por um lado premissas e conclusões são juízos, por outro, embora seja
uma premissa, uma ‘intuição’ pode ser qualquer espécie de cognição (não apenas cognições
que são juízos); (3) existem dois tipos de ‘cognições que não são juízos’: as que podem ser
determinadas por cognições anteriores e as que não são determinadas assim. A essas
últimas o autor se refere ao empregar, finalmente, o termo ‘intuição’.
Diretamente influenciado por Kant – não é em vão que havia decorado alguns
extensos parágrafos da Crítica da razão pura –, Peirce concebe ‘intuição’ como toda e
qualquer cognição imediatamente determinada por algo (o objeto transcendental) fora da
consciência. Diferentemente dele, entretanto, não chega a reportar-se às chamadas
‘intuições puras’, que no universo de discurso kantiano funcionam como condições de
possibilidade para que outras cognições se constituam e da qual possam derivar. Além
disso, o norte-americano também herda algumas definições de outras correntes da filosofia.
Esse aspecto fica claro quando percebemos que em Kant uma ‘intuição’ jamais é
classificada como uma ‘premissa’, ainda que ‘não conclusiva’, ou mesmo um ‘juízo’.
Mas essa definição do termo ‘intuição’ não responde à pergunta feita por Peirce no
começo do texto. Tal se sucede, na verdade, por uma razão bastante simples: o filósofo não
questiona e esclarece o que significa ‘intuição’ tal como, influenciado por Kant, ele mesmo
entende – e, se nos dá uma definição do termo no texto, trata-se apenas de um
esclarecimento quanto a como se propõe a usá-lo a partir de então –, mas se pergunta antes
pela possibilidade de existir uma faculdade tal que nos permita identificar quais cognições
dentre outras cognições são realmente ‘intuições’4. Não está em questão o que é ou qual a
natureza de uma ‘intuição’ da forma como Peirce compreende o termo, mas como se
sustenta – se é que se sustenta – a hipótese segundo a qual existe uma faculdade pela qual
conseguimos ‘olhar em nossa mente’ e identificar, entre tantas cognições, aquelas que de
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Assim como ele entende ‘intuições’, ou seja, como cognições não determinadas por cognições anteriores,
mas pelo objeto transcendental. A pergunta de Peirce, portanto, expressa uma preocupação quanto à existência
de uma faculdade pela qual essas ‘intuições’ possam ser reconhecidas.
fato são ‘intuições’. No entender do filósofo,
[...] manifestamente, são duas coisas diferentes: ter uma intuição e saber
intuitivamente que se trata duma intuição; a questão é saber se estas duas coisas
distinguíveis em pensamento estão de fato invariavelmente ligadas, de forma a
podermos sempre distinguir intuitivamente entre intuição e cognição-de-si-
própria. (PEIRCE, 1983, § 5.214, p. 61).
A diferenciação entre ‘ter uma intuição’ e ‘saber intuitivamente que se trata de uma
intuição’ exposta por Peirce nesse parágrafo é o primeiro ponto que tem de estar claro. O
segundo é entender que o propósito do pragmatista concentra-se em questionar se podemos
‘saber intuitivamente’ quais de nossas cognições são ‘intuições’. Se quisermos realmente
entender a que se dirigem as críticas de Peirce a Descartes e também qual o estatuto dessas
objeções, precisamos observar que a pergunta fundamental de QFRH coloca em evidência a
possibilidade de termos acesso a nós mesmos, à nossa própria ‘subjetividade’, e não a
possibilidade de acessarmos os objetos da experiência pelos sentidos. Mais diretamente:
sobre a possibilidade de dispormos de algo como uma ‘intuição’ aos moldes cartesianos.
Ainda não sabemos se realmente existe – e, se existe, então de que natureza é – essa
faculdade; mas já identificamos que ela corresponde àquilo que Descartes entende por
‘intuição’. Uma objeção à sua existência representa, portanto, uma objeção ao pensamento
cartesiano. Seria esse o alvo da crítica que Peirce faz ao pai da modernidade?
Há duas considerações que precisam ser feitas quando nos propomos a entender o
conceito cartesiano de ‘intuição’: (1) Descartes apresenta a ‘clareza’ e a ‘distinção’ como
critérios de verdade para as idéias, mas (2) quem avalia se essas idéias respondem às
condições impostas pelo critério de verdade é o próprio sujeito, o chamado ‘eu pensante’,
ou, nas palavras de Descartes, o res cogitans. E – podemos perguntar – de que maneira, no
entanto, ele consegue fazê-lo? O que garante que o sujeito pensante se autocertifique da
‘clareza’ e ‘distinção’ de suas próprias idéias? A resposta de Descartes a essa pergunta até
pode ser curta, mas certamente não tão fácil de compreender: sua autocertificação está
assegurada na medida em que ele pode ter ‘intuições’.
Mas, afinal, o que são ‘intuições’ no sentido cartesiano? O que ‘temos’ – se é que
‘temos’ algo –, segundo Descartes, quando ‘temos intuições’? Já sabemos que intuímos na
medida em que reconhecemos a ‘clareza’ e a ‘distinção’ de nossas idéias. A dificuldade,
entretanto, agora se expressa, primeiramente, no que consistem as qualidades de ‘clareza’ e
‘distinção’ e em como chegamos a reconhecê-las nas idéias – a perceber que são elas, e não
outras qualidades! – por meio da ‘intuição’; e, posteriormente, no que legitima o vínculo
entre essas idéias mesmas e a ‘intuição’ que um sujeito pensante faz delas como ‘claras’ e
‘distintas’.
Quando ‘clara’ e ‘distinta’, observa Descartes, uma idéia é, ao mesmo tempo,
indubitável. A impossibilidade de a razão colocá-la em dúvida constitui, nessa perspectiva,
uma evidência de sua ‘clareza’ e ‘distinção’. Em resposta ao segundo dos problemas que
indicamos no parágrafo acima, chegamos, nesse caso, a reconhecer as qualidades de
‘clareza’ e ‘distinção’ nas idéias porque percebemos que elas são indubitáveis. É
precisamente por esse motivo que no método cartesiano a dúvida constitui o ponto de
partida para a busca de certezas. Nas palavras do filósofo,
[...] chamo clara aquela percepção que está presente e patente a uma mente atenta;
da mesma forma que dizemos ver claramente as coisas que, estando na presença
do olho que as vê, o movem com força e claridade suficientes. Chamo, porém,
distinta aquela percepção que, sendo clara, é de tal modo separada de todas as
outras e determinada, que absolutamente nada mais contém em si senão aquilo
que é claro (DESCARTES, 1995, p. 78-79).
[...] a luz da natureza, ou a faculdade de conhecer que nos foi dada por
Deus, não pode alguma vez atingir um objecto que não seja verdadeiro na medida
em que é por ele atingido, isto é, na medida em que é percebido clara e
distintamente. Com razão deveria chamar-se enganador se nos desse uma
faculdade perversa que tomasse o que é falso por verdadeiro. Assim se elimina
aquela grande dúvida, que resultava de não sabermos se porventura não éramos
de uma natureza tal que nos enganássemos mesmo naquelas coisas que nos
parecem ser evidentíssimas (DESCARTES, 1995, p. 71).
Descartes procurara fundar o cogito como aquilo que não pode ser duvidado ele
mesmo. A partir deste ponto, procurava erigir um critério de verdade e de
evidência das idéias “claras e distintas”. Peirce considera que esse critério se
resumiria na seguinte fórmula: tudo isto que eu concebo claramente é verdadeiro.
Mas fazer dos indivíduos singulares os juízos absolutos da verdade é algo muito
arriscado e improvável para Peirce (DA SILVA FILHO, 2002, p. 416).
Esse parágrafo esclarece, entre outros aspectos, em que sentido Peirce antevê no
cartesianismo também uma espécie de dogmatismo: assim como os metafísicos, os
cartesianos entendem que o critério de verdade de suas certezas se decide única e
exclusivamente no interior da mente de um sujeito pensante. Com efeito, se o raciocínio
procede, então todos podem concordar que a primeira ‘certeza indubitável’, e, por isso
mesmo, ‘clara’ e ‘distinta’, é realmente o cogito – mas, apesar disso, não conseguem
discutir se ao falar da ‘clareza’ e ‘distinção’ dessa certeza referem-se às mesmas qualidades.
Como saber se a ‘clareza’ e a ‘distinção’ das minhas idéias são as ‘mesmas’ das
suas? Como um critério de verdade, esse binômio tem de ser universalmente válido; como
um critério de verdade interior, no entanto, não se deixa validar por algum tipo de prova ou
verificação que seja externa ao próprio sujeito possuidor dessas idéias (não temos como
entrar na mente de uma pessoa e verificar se as suas idéias são, como talvez ela afirme,
realmente ‘claras’ e ‘distintas’).
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Utilizaremos a sigla ‘ACQI’ para citar esta obra.
Conforme esboçamos até aqui, o solipsismo é, para Peirce, um dos aspectos
condenáveis em Descartes. No próximo tópico pretendemos aprofundá-lo e explorar ainda
outros possíveis pontos do conceito cartesiano de ‘intuição’ que no entender do pragmatista
apresentam problemas.
Não há prova de que tal faculdade exista, a não ser que sentimos possuí-la. Mas o
peso do testemunho invocado depende inteiramente da nossa capacidade para
distinguir neste sentimento se ele resulta da educação, de antigas associações,
etc., ou se é cognição intuitiva; ou, por outras palavras, depende de pressupor a
própria questão que pretende abonar. É este sentimento infalível? E que dizer do
juízo que atesta a sua infalibilidade, etc., ad infinitum? Quem se fecha nessa fé é
impenetrável à verdade, à verificação pela prova (PEIRCE, 1983, § 5.214, p. 62).
A primeira frase do trecho citado é enfática: “Não há prova de que tal faculdade
exista, a não ser que sentimos possuí-la”. Entre sentir algo e provar a existência de algo há
uma diferença considerável. Até podemos, nesse sentido, afirmar que estamos convencidos
de que dispomos da faculdade cartesiana da ‘intuição’, mas jamais, como propôs Descartes,
de que estamos certos. Além disso, qualquer tentativa de mostrar que esse sentimento por si
só prova a existência de uma ‘intuição’ aos moldes cartesianos incide sobre uma petição de
princípio: ao fazer isso precisamos apontar se esse sentimento mesmo resulta da educação,
da cultura, de certos valores, ou se é uma ‘intuição’ (cognição intuitiva) propriamente dita.
“É este sentimento infalível?”, questiona Peirce; se respondemos que sim, então nos
fechamos “nessa fé impenetrável à verificação pela prova”7.
Com exceção da última frase dessa citação (“Quem se fecha nessa fé é impenetrável
à verdade, à verificação pela prova”) e seus respectivos comentários no parágrafo acima,
todas as observações feitas até então neste tópico denotam a crítica de Peirce às implicações
da admissão de uma faculdade cartesiana da ‘intuição’. O argumento do pragmatista a esse
respeito, como vimos, pode ser compactado em três considerações básicas: 1) não dispomos
de algo como uma ‘intuição’ cartesiana porque uma faculdade de tal natureza pressupõe que
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Descartes provavelmente desqualificaria nossa crítica com base na divisão que propõe entre corpo e alma.
Ainda que o corpo esteja sujeito às contingências, declara ele, a alma (razão) permanece pura. Limitamo-nos a
desconsiderar esse argumento neste espaço.
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Conforme interpreta Silva Filho, “seria possível estabelecer um raciocínio que parta de um princípio que não
tenha sido formado na nossa vida real e concreta pela educação e pelos hábitos e, sendo assim, fosse infalível?
Como saber se esta certeza nasceu intuitivamente (‘reporta imediatamente ao seu objeto’) ou foi apreendida na
rede pública das regras lógicas compartilhadas pela comunidade (‘conhecimento prévio’)?” (2002, p. 402).
tenhamos um acesso ‘puro’ a nós mesmos (não temos um acesso ‘puro’ a nós mesmos
porque não há parte alguma em nós que não tenha se constituído dentro de um contexto,
segundo certos valores e a partir de um determinado e ao mesmo tempo eventual processo
educativo); 2) porque, apesar de sentirmos possuí-la, nada prova que de fato possuímo-la (o
sentimento de que possuímos essa faculdade não prova sua existência, mas, antes, esbarra
numa petição de princípio: precisamos apontar se esse sentimento mesmo resulta da
educação, da cultura, de certos valores, ou se é uma ‘intuição’ propriamente dita); e,
finalmente, 3) porque nada exige sua existência (e até que algo requeira não temos razões
para sustentá-la) (PEIRCE, 1983, § 5.224, p. 63).
O segundo alvo da crítica de Peirce a Descartes encontra-se no que decorre da
crença na existência de uma faculdade cartesiana da ‘intuição’. Trata-se, em outras
palavras, das conseqüências associadas à existência mesma dessa faculdade. Entre as
apresentadas principalmente em ACQI, a principal delas está no solipsismo cartesiano, que
resulta de uma superconfiança na capacidade de a razão identificar sozinha quais de suas
idéias são verdadeiras (indubitáveis/‘claras’/‘distintas’). Esse traço profundamente
individualista se expressa no método cartesiano. Assim diz o filósofo: “[...] não se acha
tanta perfeição nas obras realizadas de muitos retalhos e compostas pelas mãos de
diferentes autores como nas que apenas um trabalhou”. E continua: “[...] é certo que a
estrutura da verdadeira religião, cujos decretos apenas por Deus foram feitos, será
incomparavelmente mais bem feita do que todas as demais”. (DESCARTES, 1986, p. 20-
21). A referência às leis de Deus na última das duas passagens sugere uma analogia
perigosa aos olhos de um cientista como Peirce: se as leis de Deus são perfeitas porque
apenas Ele as criou, então os resultados da investigação de um homem são mais prósperos
quanto mais sozinho ele se dedique a encontrá-los. Em oposição a Descartes, o pragmatista
declara que
As razões que levam Peirce a rejeitar o método solipsista de Descartes são inferidas
de sua objeção à existência da faculdade cartesiana da ‘intuição’. Se não temos um acesso
seguro e privilegiado a nós mesmos, e se a razão, portanto, não pode ser o testemunho
último da verdade de nossas idéias, então uma teoria filosófica cujas bases estejam
fundadas numa ‘intuição’ nos termos cartesianos só pode ser considerada equivocada8.
Descartes, entretanto, objetaria esse posicionamento (e os seus motivos também não seriam
menos evidentes): da compreensão de que o ponto de partida do seu sistema filosófico está,
justamente, na ‘intuição’ – faculdade que ‘habita’ o ‘interior da mente’ de um sujeito
pensante e por meio da qual ele chega às ‘verdades’ –, segue-se que todas as certezas
devem ser alcançadas num processo de investigação solipsista. No tópico a seguir veremos
como as objeções que Peirce destina ao pensamento cartesiano podem lançar luzes sobre o
que pensamos acerca da sociedade e da educação.
O confronto direto entre os dois filósofos nos leva a pensar que não há nada errado
em Descartes interpretado a partir de Descartes. A crítica peirceiana, nesse contexto, aponta
falhas nos pressupostos (premissas) e nas conseqüências da reivindicação de uma faculdade
cartesiana da ‘intuição’, mas não no processo de dedução de princípios da filosofia que
Descartes faz com base nesses pressupostos mesmos. Entendidos como parte do sistema
cartesiano, pressupostos e conseqüências associados à crença numa faculdade da ‘intuição’
8
Assim como Peirce, Wittgenstein, em suas objeções à linguagem privada, desconsidera a possibilidade de
termos um acesso ‘transparente’ e privilegiado a nós mesmos, à nossa própria ‘subjetividade’; diferentemente
dele, contudo, não chega, para mostrar que esse acesso não é possível, a legislar sobre como se formam em
nós as chamadas ‘intuições mediatas’. Wittgenstein não fala da linguagem ou do conhecimento em termos de
‘cognição’ ou ‘intuição’. Podemos dizer, nesse sentido, que, embora se assemelhem na medida em que negam
a ‘intuição’ aos moldes cartesianos, Peirce e Wittgenstein divergem em outros aspectos fundamentais: uma
vez ciente de que não temos acesso às ‘intuições imediatas’, aquele fornece, em sua semiótica, as condições
em que cognições não imediatas ocorrem; este, por sua vez, chama a atenção para o fato de que não é possível
elencar essas condições, legislar sobre elas ou elaborar uma espécie de princípio geral pelo qual possam ser
generalizadas e consideradas válidas, mas apenas descrevê-las. Tal é o que sugerem suas Investigações
filosóficas (e, contrariamente ao que diríamos de Peirce, talvez essa seja uma das razões que nos impede de
afirmar haver em Wittgenstein uma teoria dos signos ou mesmo uma teoria da linguagem).
cumprem bem o seu papel: aqueles, para Descartes, são evidentes; e estas, com base
naqueles, mostram-se necessárias. É por esse motivo, dizemos, que o intuicionismo
cartesiano pode soar como um defeito do sistema cartesiano para qualquer filósofo, exceto,
porém, para o próprio Descartes.
Na opinião de Peirce, entretanto, há nas considerações de Descartes pelo menos um
erro que não pode, em vista de sua gravidade, ser encoberto: levado a cabo, o assim
chamado ‘espírito do cartesianismo’ leva os homens a cometer certos tipos de dogmatismo.
Por se valer de pressupostos equivocados, aponta Peirce, a filosofia cartesiana pode
deflagrar alguns ‘autoritarismos da razão’ que são capazes de impedir que a filosofia exerça
com propriedade o seu papel de crítica da própria razão. Erguer o cogito ao patamar de
primeira certeza – e dar ‘graças’ à ‘intuição’, esta faculdade divina da razão, por tê-lo
encontrado – remonta, de acordo com Peirce, à idolatria que os medievais dedicavam a
Deus como uma autoridade externa e à razão como uma faculdade ofertada por Deus. Nas
palavras do pragmatista,
Na Idade Média, a razão e a autoridade externa eram olhadas como duas fontes
coordenadas do conhecimento, exatamente como o são agora a razão e a
autoridade da intuição; [a única diferença é que] não se tinha chegado ainda ao
feliz expediente de considerar as declarações da autoridade como essencialmente
indemonstráveis. [...] crer na autoridade era encarado pelos homens daquela
época como premissa última, como uma cognição não determinada por uma
cognição prévia do mesmo objeto, ou, em termos nossos, como uma intuição. [...]
Acontecerá a mesma coisa absurda na história das opiniões com a autoridade
interior [da intuição] que aconteceu com a autoridade exterior? (PEIRCE, 1983,
§ 5.215, p. 62).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______. Princípios da filosofia. Trad. Leonel Ribeiro dos Santos. Lisboa: Editorial
Presença, 1995.
______. Escritos publicados: questões sobre certas faculdades reivindicadas pelo homem.
Trad. Armando Mora D’Oliveira e Sérgio Pomerangblum. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1983b.
______. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 337 p.