Você está na página 1de 16

NOTAS SOBRE AS OBJEÇÕES DE PEIRCE AO CONCEITO CARTESIANO DE

‘INTUIÇÃO’1

Marceli Andresa Becker2

Resumo: O conceito de ‘intuição’ é um dos problemas mais discutidos na filosofia.


Descartes e Kant – para citar apenas dois grandes filósofos que abordaram o tema –
entenderam-no respectivamente como (1) o processo por meio do qual a razão certifica-se
de que suas idéias são ‘claras e distintas’ e (2) uma das categorias da sensibilidade.
Descartes recorreu à intuição, legitimada por Deus, para assegurar o acesso a uma primeira
certeza, o cogito, da qual deduz em seguida todos os demais princípios de sua filosofia;
Kant, por sua vez, vislumbrou nela a possibilidade de percebermos sensivelmente os
fenômenos do mundo. Do primeiro – contra o qual Peirce se coloca – herdamos a crença de
que é possível dispor de um acesso seguro, transparente e privilegiado à nossa mente (e
conseqüentemente de que assim temos como verificar que idéias ‘dentro dela’ são ou não
‘claras’, ‘distintas’ e, portanto, ‘evidentemente verdadeiras’); do segundo – em quem, em
certa medida, Peirce se inspira –, a convicção de que o conhecimento depende também,
ainda que não somente, da experiência (e por conseguinte de que uma experiência sensível
consiste na relação entre ‘sensibilidade’ e ‘fenômeno’, não entre ‘sensibilidade’ e
‘númeno’). Embora o conceito kantiano de intuição seja fundamental para o que a filosofia
de Peirce propõe, nosso objetivo neste texto está em compreender quais são, como se
sustentam e que conseqüências podemos extrair das objeções que Peirce, em QFRH
(Questões sobre certas faculdades reivindicadas para o homem), faz exclusivamente ao uso
cartesiano desse termo. Para dar conta da tarefa, dividimos o texto em quatro eixos: no
primeiro esclarecemos qual é o objeto de investigação de Peirce no texto (se QFRH é uma
crítica, aqui descobrimos a que se dirige essa crítica); no segundo, em que consiste o alvo
dessa crítica (se QFRH é uma crítica à intuição cartesiana, aqui percebemos o que é e que
lugar ocupa o conceito de intuição no pensamento cartesiano); no terceiro, quais são e como
se justificam as objeções do pragmatista a tal pensamento; e, finalmente, no quarto, em que
sentido essas objeções nos ajudam a pensar modelos educacionais democráticos. Sobre este
último ponto vale lembrar que o conceito cartesiano de intuição dá margens a um modelo
solipsista de educação. Peirce, contrariamente a essa abordagem, observa: se qualquer
tentativa de encontrar uma intuição imediata (o que Descartes teria proposto) nos mostra
que não temos um acesso privilegiado e seguro ao que seria ‘a certeza primeira da razão’,
então talvez seja mais produtivo procurar ‘certezas’, ainda que provisórias, numa
investigação em comunidade do que isoladamente. Esse poderia ser talvez o ponto de
1
Artigo elaborado com base nas discussões do grupo de pesquisa de que a acadêmica participa e apresentado
no VIII Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia.
2
Acadêmica do sétimo nível do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e bolsista Pibic do
professor Dr. Altair Alberto Fávero no projeto de pesquisa Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces
entre experiência, reflexão e políticas de ensino.
partida para pensarmos sociedades, de modo amplo, e salas de aula, de modo específico,
mais democráticas.

Palavras-chave: intuição, ‘acesso transparente e seguro à subjetividade’, solipsismo

1. Esclarecimentos iniciais: o que Peirce pergunta a Descartes?

Em Questões sobre certas faculdades reivindicadas para o homem3, Charles


Sanders Peirce, considerado o fundador do pragmatismo, pergunta-se se podemos saber
quando uma cognição se refere imediatamente a seu objeto e quando é determinada por
cognições anteriores. Trata-se, como podemos perceber, de um problema em que se
encontram subjacentes outros questionamentos: o que significa, para Peirce, ‘cognição’?
Uma cognição determinada por outra difere daquela que diz respeito imediatamente a seu
objeto? Que entendemos por ‘objeto de uma cognição’?
Talvez Peirce possa nos ajudar nesse caso. Em resposta às perguntas que colocamos,
ele afirma que uma cognição não determinada por cognições anteriores é o que deve ser
entendido como ‘intuição’. Saber disso, contudo, parece não adiantar muito. Trocam-se
aqui os nomes, mas a confusão permanece: que se entende por ‘intuição’? Intuímos, tal
como propõe Kant, quando percebemos sensivelmente o mundo? Ou intuímos, conforme
sugere Descartes, quando temos uma certeza ‘clara’ e ‘distinta’ (quando temos uma
‘certeza’ da qual, evidentemente, não podemos duvidar)? As duas hipóteses, uma para cada
finalidade, são válidas aqui: Peirce admite abertamente a concepção de ‘intuição’
sustentada por Kant, mas ao mesmo tempo critica a de Descartes. Nas palavras do filósofo,

[...] o termo intuição significará uma cognição não determinada por prévia
cognição do mesmo objeto, mas determinada por algo fora da consciência.
Considere o leitor o seguinte. Intuição aqui terá o sentido de “premissa não
conclusiva”, residindo a única diferença em que tanto premissas como conclusões
são juízos, enquanto que a intuição (a definição uma vez estabelecida) pode ser
qualquer espécie de cognição. Mas exatamente como uma conclusão (boa ou má)
é determinada no espírito de quem raciocina pela premissa, as cognições-que-não-
são-juízos podem ser determinadas por cognições anteriores; uma cognição não
determinada desta maneira, e sim pelo objeto transcendental, deve ser
3
Utilizaremos a sigla ‘QFRH’ para citar esta obra.
denominada intuição (PEIRCE, 1983, §5.213, p. 61).

Peirce nos apresenta no trecho citado as condições pelas quais cognições podem ser
consideradas ‘intuições’. Denso e, a princípio, um pouco confuso, esse parágrafo pode ser
reconstruído didaticamente da seguinte maneira: (1) uma ‘intuição’ é uma ‘premissa não
conclusiva’; (2) se por um lado premissas e conclusões são juízos, por outro, embora seja
uma premissa, uma ‘intuição’ pode ser qualquer espécie de cognição (não apenas cognições
que são juízos); (3) existem dois tipos de ‘cognições que não são juízos’: as que podem ser
determinadas por cognições anteriores e as que não são determinadas assim. A essas
últimas o autor se refere ao empregar, finalmente, o termo ‘intuição’.
Diretamente influenciado por Kant – não é em vão que havia decorado alguns
extensos parágrafos da Crítica da razão pura –, Peirce concebe ‘intuição’ como toda e
qualquer cognição imediatamente determinada por algo (o objeto transcendental) fora da
consciência. Diferentemente dele, entretanto, não chega a reportar-se às chamadas
‘intuições puras’, que no universo de discurso kantiano funcionam como condições de
possibilidade para que outras cognições se constituam e da qual possam derivar. Além
disso, o norte-americano também herda algumas definições de outras correntes da filosofia.
Esse aspecto fica claro quando percebemos que em Kant uma ‘intuição’ jamais é
classificada como uma ‘premissa’, ainda que ‘não conclusiva’, ou mesmo um ‘juízo’.
Mas essa definição do termo ‘intuição’ não responde à pergunta feita por Peirce no
começo do texto. Tal se sucede, na verdade, por uma razão bastante simples: o filósofo não
questiona e esclarece o que significa ‘intuição’ tal como, influenciado por Kant, ele mesmo
entende – e, se nos dá uma definição do termo no texto, trata-se apenas de um
esclarecimento quanto a como se propõe a usá-lo a partir de então –, mas se pergunta antes
pela possibilidade de existir uma faculdade tal que nos permita identificar quais cognições
dentre outras cognições são realmente ‘intuições’4. Não está em questão o que é ou qual a
natureza de uma ‘intuição’ da forma como Peirce compreende o termo, mas como se
sustenta – se é que se sustenta – a hipótese segundo a qual existe uma faculdade pela qual
conseguimos ‘olhar em nossa mente’ e identificar, entre tantas cognições, aquelas que de
4
Assim como ele entende ‘intuições’, ou seja, como cognições não determinadas por cognições anteriores,
mas pelo objeto transcendental. A pergunta de Peirce, portanto, expressa uma preocupação quanto à existência
de uma faculdade pela qual essas ‘intuições’ possam ser reconhecidas.
fato são ‘intuições’. No entender do filósofo,

[...] manifestamente, são duas coisas diferentes: ter uma intuição e saber
intuitivamente que se trata duma intuição; a questão é saber se estas duas coisas
distinguíveis em pensamento estão de fato invariavelmente ligadas, de forma a
podermos sempre distinguir intuitivamente entre intuição e cognição-de-si-
própria. (PEIRCE, 1983, § 5.214, p. 61).

A diferenciação entre ‘ter uma intuição’ e ‘saber intuitivamente que se trata de uma
intuição’ exposta por Peirce nesse parágrafo é o primeiro ponto que tem de estar claro. O
segundo é entender que o propósito do pragmatista concentra-se em questionar se podemos
‘saber intuitivamente’ quais de nossas cognições são ‘intuições’. Se quisermos realmente
entender a que se dirigem as críticas de Peirce a Descartes e também qual o estatuto dessas
objeções, precisamos observar que a pergunta fundamental de QFRH coloca em evidência a
possibilidade de termos acesso a nós mesmos, à nossa própria ‘subjetividade’, e não a
possibilidade de acessarmos os objetos da experiência pelos sentidos. Mais diretamente:
sobre a possibilidade de dispormos de algo como uma ‘intuição’ aos moldes cartesianos.
Ainda não sabemos se realmente existe – e, se existe, então de que natureza é – essa
faculdade; mas já identificamos que ela corresponde àquilo que Descartes entende por
‘intuição’. Uma objeção à sua existência representa, portanto, uma objeção ao pensamento
cartesiano. Seria esse o alvo da crítica que Peirce faz ao pai da modernidade?

2. Nós a sós com Descartes: o conceito de ‘intuição’ no sistema cartesiano

Há duas considerações que precisam ser feitas quando nos propomos a entender o
conceito cartesiano de ‘intuição’: (1) Descartes apresenta a ‘clareza’ e a ‘distinção’ como
critérios de verdade para as idéias, mas (2) quem avalia se essas idéias respondem às
condições impostas pelo critério de verdade é o próprio sujeito, o chamado ‘eu pensante’,
ou, nas palavras de Descartes, o res cogitans. E – podemos perguntar – de que maneira, no
entanto, ele consegue fazê-lo? O que garante que o sujeito pensante se autocertifique da
‘clareza’ e ‘distinção’ de suas próprias idéias? A resposta de Descartes a essa pergunta até
pode ser curta, mas certamente não tão fácil de compreender: sua autocertificação está
assegurada na medida em que ele pode ter ‘intuições’.
Mas, afinal, o que são ‘intuições’ no sentido cartesiano? O que ‘temos’ – se é que
‘temos’ algo –, segundo Descartes, quando ‘temos intuições’? Já sabemos que intuímos na
medida em que reconhecemos a ‘clareza’ e a ‘distinção’ de nossas idéias. A dificuldade,
entretanto, agora se expressa, primeiramente, no que consistem as qualidades de ‘clareza’ e
‘distinção’ e em como chegamos a reconhecê-las nas idéias – a perceber que são elas, e não
outras qualidades! – por meio da ‘intuição’; e, posteriormente, no que legitima o vínculo
entre essas idéias mesmas e a ‘intuição’ que um sujeito pensante faz delas como ‘claras’ e
‘distintas’.
Quando ‘clara’ e ‘distinta’, observa Descartes, uma idéia é, ao mesmo tempo,
indubitável. A impossibilidade de a razão colocá-la em dúvida constitui, nessa perspectiva,
uma evidência de sua ‘clareza’ e ‘distinção’. Em resposta ao segundo dos problemas que
indicamos no parágrafo acima, chegamos, nesse caso, a reconhecer as qualidades de
‘clareza’ e ‘distinção’ nas idéias porque percebemos que elas são indubitáveis. É
precisamente por esse motivo que no método cartesiano a dúvida constitui o ponto de
partida para a busca de certezas. Nas palavras do filósofo,

[...] chamo clara aquela percepção que está presente e patente a uma mente atenta;
da mesma forma que dizemos ver claramente as coisas que, estando na presença
do olho que as vê, o movem com força e claridade suficientes. Chamo, porém,
distinta aquela percepção que, sendo clara, é de tal modo separada de todas as
outras e determinada, que absolutamente nada mais contém em si senão aquilo
que é claro (DESCARTES, 1995, p. 78-79).

Uma idéia ‘clara’ e ‘distinta’, afirma Descartes, é aquela que se apresenta


nitidamente a uma ‘mente aberta’. Embora desconfie dos sentidos, o filósofo recorre, no
trecho citado, à figura do olho para ilustrar seu raciocínio: os objetos dos sentidos, diz ele,
apresentam-se ao olho tal como os objetos da mente se apresentam à mente. Percebamos,
contudo, que apesar de semelhantes os dois casos não são por essa razão idênticos: se por
um lado o ‘olho da mente’ não se engana ao admitir que uma idéia é ‘clara’ e ‘distinta’, por
outro nada impede, por exemplo, que os assim chamados ‘olhos dos sentidos’ considerem
natural uma planta artificial, mesmo depois de observá-la minuciosamente. “Só nos
enganamos”, sublinha Descartes, “quando, como acontece, julgamos a respeito de uma
coisa embora não a percepcionemos corretamente” (1995, p. 72). Inversamente, prossegue
ele, “nunca admitiremos algo falso como verdadeiro se dermos assentimento apenas àquilo
que percepcionarmos clara e distintamente” (1995, p. 77).
Uma primeira objeção a esse pensamento, prevista e refutada pelo próprio
Descartes, expressa-se notadamente nestas perguntas: o que nos garante que a razão – ou
aquilo a que, ao longo deste texto, denominamos ‘o olho da mente’ – não possa se enganar
quanto às idéias que considera ‘claras’ e ‘distintas’? Em uma objeção dessa natureza não
colocamos em suspeita a possibilidade de haver idéias ‘claras’ e ‘distintas’, mas a de
dispormos de uma faculdade tal que nos permita reconhecê-las. Trata-se, como podemos
notar, de uma dificuldade que retrata o problema sobre o qual Peirce se debruça no início
deste artigo. Ao dar-se conta disso, Descartes procura na prova da existência de Deus um
meio de resolvê-la. E, a julgar pelas suas palavras, conclui tê-lo encontrado:

[...] a luz da natureza, ou a faculdade de conhecer que nos foi dada por
Deus, não pode alguma vez atingir um objecto que não seja verdadeiro na medida
em que é por ele atingido, isto é, na medida em que é percebido clara e
distintamente. Com razão deveria chamar-se enganador se nos desse uma
faculdade perversa que tomasse o que é falso por verdadeiro. Assim se elimina
aquela grande dúvida, que resultava de não sabermos se porventura não éramos
de uma natureza tal que nos enganássemos mesmo naquelas coisas que nos
parecem ser evidentíssimas (DESCARTES, 1995, p. 71).

É evidente que o primeiro impasse de Descartes nesse argumento está em tentar


legitimar a eficácia da faculdade da ‘intuição’ na existência de Deus. Sabemos que desde
Kant, pelo menos, esse modo de proceder, que consiste em tentar provar algo cuja natureza
não é passível de prova, como Deus, não tem mais sentido. Também é evidente que, caso
não recorresse a um critério exterior, Descartes talvez não conseguisse validar seu sistema
filosófico. Nada garantiria, segundo essa compreensão, que a assim considerada ‘primeira
certeza’ não fosse mero engano. Apesar de sua importância ao sistema filosófico cartesiano,
porém, esse tópico não será estudado de forma aprofundada em nosso texto. O problema em
que queremos nos deter não se relaciona – ao menos não diretamente – à defesa cartesiana
da existência de Deus, mas ao que se segue da afirmação de que dispomos do poder de
distinguir quais de nossas idéias são ou não ‘claras’ e ‘distintas’.
E as conseqüências que se seguem daí são muitas. Quando consideramos a
existência de uma faculdade cartesiana da ‘intuição’ consentimos com a idéia de que o
testemunho último da verdade de algo depende única e exclusivamente de uma instância
subjetiva. Notemos, a esse respeito, que em Descartes não são apenas as idéias que, quando
‘verdadeiras’, precisam ser ‘claras’ e ‘distintas’ – ou, o que dá no mesmo, ‘evidentemente
indubitáveis’ –, senão também a própria ‘faculdade intuitiva’ mediante a qual podemos
distingui-las. Isso significa, em outras palavras, que quando falamos de idéias ‘verdadeiras’
no sentido cartesiano acenamos para uma relação em que, simultaneamente, (1) as idéias
intuídas são ‘claras’ e ‘distintas’ à mente de um sujeito e em que (2) o sujeito dispõe, em
sua mente, de uma faculdade que é ela mesma capaz de intuir idéias ‘clara’ e
‘distintamente’. Do ponto de vista de Peirce, o erro mais crasso de Descartes concentra-se
nesta última consideração: dela resulta, necessariamente, que o veredicto final sobre a
verdade de algo é emitido numa instância subjetiva. Talvez isto que venhamos a falar não
faça muito sentido – mas para Descartes, quem sabe, teria sido menos falho admitir a
possibilidade de termos idéias ‘claras’ e ‘distintas’, ainda que sem poder intuí-las, do que
de dispormos delas e, ao mesmo tempo, da capacidade de intuí-las e diferenciá-las das
demais. É verdade que nesse contexto deparamo-nos com outras dificuldades – faz sentido
falarmos da ‘clareza’ e ‘distinção’ de idéias a que não podemos ter acesso? –;
independentemente disso, porém, certamente não incorreríamos no erro de atribuir à
subjetividade o status de única, e conseqüentemente inquestionável, ‘juíza da verdade’.
Da possibilidade de o sujeito intuir quais de suas idéias são ‘claras’ e ‘distintas’
deriva o solipsismo cartesiano. Por que submeter as idéias que são, para a razão,
‘evidentemente indubitáveis’ à apreciação dos demais se a sua verdade ou não se decide,
em última análise, numa instância subjetiva, ou seja, na ‘esfera mental’ de um eu/sujeito
pensante? Para Peirce, um cientista, a superconfiança na capacidade judicativa do ‘olho
interno da mente’ mostra-se realmente arriscada. O problema, aqui, parece estar mais uma
vez naquilo que precisamos pressupor ao admitir a crença em um possível poder de
verificação que é outorgado à mente. Talvez o equívoco não esteja, portanto, em nos
apropriarmos da indutibilidade como a evidência da ‘clareza’ e ‘distinção’ das idéias e, por
conseguinte, seu critério de verdade; antes, todavia, em termos única e exclusivamente na
mente a instância capaz de julgar aquilo que é ou não indubitável. Radicalizado, esse
raciocínio indica que o estatuto da indutibilidade como evidência da ‘clareza’ e ‘distinção’
das idéias, e por conseguinte seu critério de verdade, depende de atribuirmos aos indivíduos
singulares o papel de juízes absolutos da verdade. De acordo com Waldomiro José da Silva
Filho,

Descartes procurara fundar o cogito como aquilo que não pode ser duvidado ele
mesmo. A partir deste ponto, procurava erigir um critério de verdade e de
evidência das idéias “claras e distintas”. Peirce considera que esse critério se
resumiria na seguinte fórmula: tudo isto que eu concebo claramente é verdadeiro.
Mas fazer dos indivíduos singulares os juízos absolutos da verdade é algo muito
arriscado e improvável para Peirce (DA SILVA FILHO, 2002, p. 416).

Ou, se quisermos, nas palavras do próprio Peirce em Algumas conseqüências das


quatro incapacidades5:

O mesmo formalismo aparece no critério cartesiano, que equivale a isto: “É


verdadeiro aquilo de que estou claramente convencido”. Se estou realmente
convencido, nada tenho a fazer com raciocínio, e o teste da certeza é supérfluo.
Mas tornar assim os indivíduos juízes da verdade é o que há de mais pernicioso.
Resulta que os metafísicos estão de acordo em que a metafísica atinge uma
certeza muito alta – um píncaro mais alto até que as ciências físicas –, mas
também não estão de acordo sobre mais nada (PEIRCE, 1983, § 2.265.2, p. 71).

Esse parágrafo esclarece, entre outros aspectos, em que sentido Peirce antevê no
cartesianismo também uma espécie de dogmatismo: assim como os metafísicos, os
cartesianos entendem que o critério de verdade de suas certezas se decide única e
exclusivamente no interior da mente de um sujeito pensante. Com efeito, se o raciocínio
procede, então todos podem concordar que a primeira ‘certeza indubitável’, e, por isso
mesmo, ‘clara’ e ‘distinta’, é realmente o cogito – mas, apesar disso, não conseguem
discutir se ao falar da ‘clareza’ e ‘distinção’ dessa certeza referem-se às mesmas qualidades.
Como saber se a ‘clareza’ e a ‘distinção’ das minhas idéias são as ‘mesmas’ das
suas? Como um critério de verdade, esse binômio tem de ser universalmente válido; como
um critério de verdade interior, no entanto, não se deixa validar por algum tipo de prova ou
verificação que seja externa ao próprio sujeito possuidor dessas idéias (não temos como
entrar na mente de uma pessoa e verificar se as suas idéias são, como talvez ela afirme,
realmente ‘claras’ e ‘distintas’).
5
Utilizaremos a sigla ‘ACQI’ para citar esta obra.
Conforme esboçamos até aqui, o solipsismo é, para Peirce, um dos aspectos
condenáveis em Descartes. No próximo tópico pretendemos aprofundá-lo e explorar ainda
outros possíveis pontos do conceito cartesiano de ‘intuição’ que no entender do pragmatista
apresentam problemas.

3. Quando Peirce interrompe a conversa: sobre as objeções à ‘intuição’ cartesiana

As objeções de Peirce ao assim chamado ‘espírito do cartesianismo’ podem ser


divididas em dois grandes blocos: as que se dirigem às implicações da admissão de uma
faculdade cartesiana da ‘intuição’ e as que se associam às suas conseqüências. Aquelas são
trabalhadas mais profundamente em QFRH, ao passo que estas constam do texto ACQI. A
separação entre os dois eixos, no entanto, pode ser considerada meramente didática: de
acordo com Peirce, é por estar fundado em pressupostos teóricos equivocados que o
conceito cartesiano de ‘intuição’, quando assumido, produz conseqüências desastrosas.
A que nos referimos quando falamos sobre as implicações da existência de uma
faculdade cartesiana da ‘intuição’? Seria a algo mais ou menos assim?: “Talvez tenhamos
‘intuições imediatas’ dos objetos, mas não temos como saber se isso acontece; não temos,
afinal, ‘intuições imediatas’ de nós mesmos”. Essa é uma boa resposta à questão, embora
não suficiente. Podemos nos perguntar, por exemplo, por que apenas uma ‘intuição
imediata’, e não também – ou somente – ‘mediata’, das nossas ‘intuições imediatas’ dos
objetos poderia provar a existência de uma faculdade que nos leve a distinguir entre
‘intuições imediatas’ e ‘intuições mediatas’. Em outras palavras mais claras: o que está
subjacente ao conceito cartesiano de ‘intuição’ que só nos permite entendê-lo como um
acesso imediato a nós mesmos, e não também – ou apenas – como um acesso mediato? Por
que para Descartes teria sido problemático pensar a ‘intuição’ como um acesso ‘a
posteriori’ a nós mesmos, e não, como propõe, ‘a priori’? E, finalmente, por que, segundo
Peirce, o pressuposto apriorístico do conceito cartesiano de ‘intuição’ é inconcebível?
Consideremos o seguinte: para Descartes, conforme já vimos, temos uma ‘intuição’
na medida em que conseguimos ‘olhar para nossa mente’ e distinguir quais de nossas idéias
são ‘claras’ e ‘distintas’. Em que consiste um acesso dessa natureza? Podemos afirmar, com
base na própria definição cartesiana, que esse acesso tem de ser em tal medida ‘puro’ e
‘transparente’ que não nos leve a tomar, por exemplo, uma idéia ‘obscura’ por ‘clara’. Que
tipo de ‘via’ seria essa? Certamente não alguma constituída a partir de nossa educação,
costumes, cultura e valores, por exemplo; porque, se fosse assim, então cada pessoa deveria
considerar uma idéia ‘clara’ ou ‘obscura’ conforme o contexto em que vivesse, os valores
para os quais tivesse sido educada e as concepções de mundo que por ventura adquirisse ao
longo de sua formação. Entretanto, uma vez que os conceitos de ‘clareza’ e ‘distinção’ em
Descartes devem ser universalizados, contingências como o ‘contexto cultural’ e o
‘processo formativo’ não podem entrar em cena. O ‘olho’ por intermédio do qual
distinguimos idéias ‘claras’ e ‘distintas’, de acordo com a abordagem cartesiana de
‘intuição’, precisa ser de tal modo independente das interferências de nosso contexto e
formação – sob pena de confundir-se quanto àquilo que é ‘claro’ e ‘distinto’ – que talvez só
consigamos defini-lo como ‘uma parte de nós que nós não somos’. É por esse motivo,
portanto, que Descartes precisa entender uma ‘intuição’ sempre como uma ‘intuição
imediata’, ou seja, um acesso que ‘a priori’ temos a nós mesmos.
Mas por que dizemos que a ‘intuição’, na perspectiva cartesiana, parece definir-se
como ‘uma parte de nós que nós não somos’? O que essa expressão revela? Embora esteja –
assim pensa Descartes – em nossa mente (razão/subjetividade) como uma capacidade (seja
‘parte de nós’), o ‘olho da mente’ não pode ser considerado ‘algo que somos’ – pelo menos
não no caso de entendermos que ‘o algo que somos’ só pode ‘ser alguém’ que esteja em, e
sofra influências de, um determinado contexto, passe por um processo formativo, participe
de um determinado ‘jogo de linguagem’ e zele por certos valores.
Se pudesse ler essas considerações, Peirce provavelmente perguntaria: “E há como
‘ser algo’ que não isso?’ A pessoa que somos pode ‘ser alguém’ livre das contingências?”.
O parecer negativo que ele mesmo emite frente a essas perguntas caracteriza sua primeira
objeção ao pensamento cartesiano. Com efeito, observa ele, se o acesso que nos deixa intuir
idéias ‘claras’ e ‘distintas’ deve ser ‘puro’ e independente das interferências do contexto,
então de que forma concebê-lo como parte de um indivíduo, se um indivíduo não é mais do
que um ser inserido num contexto e cuja constituição se decide num horizonte de
possibilidades determinado sobretudo por contingências6? Pelo menos para indivíduos
como nós – meros mortais presos às eventualidades da vida –, não pode haver algo do tipo
uma faculdade cartesiana da ‘intuição’ (nada impede, é claro, que indivíduos superiores a
nós disponham dela, mas essa situação não vem ao caso). Além disso, destaca Peirce,

Não há prova de que tal faculdade exista, a não ser que sentimos possuí-la. Mas o
peso do testemunho invocado depende inteiramente da nossa capacidade para
distinguir neste sentimento se ele resulta da educação, de antigas associações,
etc., ou se é cognição intuitiva; ou, por outras palavras, depende de pressupor a
própria questão que pretende abonar. É este sentimento infalível? E que dizer do
juízo que atesta a sua infalibilidade, etc., ad infinitum? Quem se fecha nessa fé é
impenetrável à verdade, à verificação pela prova (PEIRCE, 1983, § 5.214, p. 62).

A primeira frase do trecho citado é enfática: “Não há prova de que tal faculdade
exista, a não ser que sentimos possuí-la”. Entre sentir algo e provar a existência de algo há
uma diferença considerável. Até podemos, nesse sentido, afirmar que estamos convencidos
de que dispomos da faculdade cartesiana da ‘intuição’, mas jamais, como propôs Descartes,
de que estamos certos. Além disso, qualquer tentativa de mostrar que esse sentimento por si
só prova a existência de uma ‘intuição’ aos moldes cartesianos incide sobre uma petição de
princípio: ao fazer isso precisamos apontar se esse sentimento mesmo resulta da educação,
da cultura, de certos valores, ou se é uma ‘intuição’ (cognição intuitiva) propriamente dita.
“É este sentimento infalível?”, questiona Peirce; se respondemos que sim, então nos
fechamos “nessa fé impenetrável à verificação pela prova”7.
Com exceção da última frase dessa citação (“Quem se fecha nessa fé é impenetrável
à verdade, à verificação pela prova”) e seus respectivos comentários no parágrafo acima,
todas as observações feitas até então neste tópico denotam a crítica de Peirce às implicações
da admissão de uma faculdade cartesiana da ‘intuição’. O argumento do pragmatista a esse
respeito, como vimos, pode ser compactado em três considerações básicas: 1) não dispomos
de algo como uma ‘intuição’ cartesiana porque uma faculdade de tal natureza pressupõe que

6
Descartes provavelmente desqualificaria nossa crítica com base na divisão que propõe entre corpo e alma.
Ainda que o corpo esteja sujeito às contingências, declara ele, a alma (razão) permanece pura. Limitamo-nos a
desconsiderar esse argumento neste espaço.
7
Conforme interpreta Silva Filho, “seria possível estabelecer um raciocínio que parta de um princípio que não
tenha sido formado na nossa vida real e concreta pela educação e pelos hábitos e, sendo assim, fosse infalível?
Como saber se esta certeza nasceu intuitivamente (‘reporta imediatamente ao seu objeto’) ou foi apreendida na
rede pública das regras lógicas compartilhadas pela comunidade (‘conhecimento prévio’)?” (2002, p. 402).
tenhamos um acesso ‘puro’ a nós mesmos (não temos um acesso ‘puro’ a nós mesmos
porque não há parte alguma em nós que não tenha se constituído dentro de um contexto,
segundo certos valores e a partir de um determinado e ao mesmo tempo eventual processo
educativo); 2) porque, apesar de sentirmos possuí-la, nada prova que de fato possuímo-la (o
sentimento de que possuímos essa faculdade não prova sua existência, mas, antes, esbarra
numa petição de princípio: precisamos apontar se esse sentimento mesmo resulta da
educação, da cultura, de certos valores, ou se é uma ‘intuição’ propriamente dita); e,
finalmente, 3) porque nada exige sua existência (e até que algo requeira não temos razões
para sustentá-la) (PEIRCE, 1983, § 5.224, p. 63).
O segundo alvo da crítica de Peirce a Descartes encontra-se no que decorre da
crença na existência de uma faculdade cartesiana da ‘intuição’. Trata-se, em outras
palavras, das conseqüências associadas à existência mesma dessa faculdade. Entre as
apresentadas principalmente em ACQI, a principal delas está no solipsismo cartesiano, que
resulta de uma superconfiança na capacidade de a razão identificar sozinha quais de suas
idéias são verdadeiras (indubitáveis/‘claras’/‘distintas’). Esse traço profundamente
individualista se expressa no método cartesiano. Assim diz o filósofo: “[...] não se acha
tanta perfeição nas obras realizadas de muitos retalhos e compostas pelas mãos de
diferentes autores como nas que apenas um trabalhou”. E continua: “[...] é certo que a
estrutura da verdadeira religião, cujos decretos apenas por Deus foram feitos, será
incomparavelmente mais bem feita do que todas as demais”. (DESCARTES, 1986, p. 20-
21). A referência às leis de Deus na última das duas passagens sugere uma analogia
perigosa aos olhos de um cientista como Peirce: se as leis de Deus são perfeitas porque
apenas Ele as criou, então os resultados da investigação de um homem são mais prósperos
quanto mais sozinho ele se dedique a encontrá-los. Em oposição a Descartes, o pragmatista
declara que

A filosofia deveria imitar as ciências bem-sucedidas em seus métodos, ao ponto


de só proceder a partir de premissas tangíveis que possam ser submetidas a um
exame cuidadoso, e confiar antes no grande número e na variedade de seus
argumentos do que no caráter conclusivo de um argumento qualquer. Seu
raciocínio não deve formar uma cadeia que não seja mais forte que o mais fraco
de seus elos, mas sim um cabo cujas fibras podem ser muitíssimo finas, contanto
que sejam suficientemente numerosas e estejam intimamente conectadas.
(PEIRCE, 2003, § 2.2645.3, p. 260)

As razões que levam Peirce a rejeitar o método solipsista de Descartes são inferidas
de sua objeção à existência da faculdade cartesiana da ‘intuição’. Se não temos um acesso
seguro e privilegiado a nós mesmos, e se a razão, portanto, não pode ser o testemunho
último da verdade de nossas idéias, então uma teoria filosófica cujas bases estejam
fundadas numa ‘intuição’ nos termos cartesianos só pode ser considerada equivocada8.
Descartes, entretanto, objetaria esse posicionamento (e os seus motivos também não seriam
menos evidentes): da compreensão de que o ponto de partida do seu sistema filosófico está,
justamente, na ‘intuição’ – faculdade que ‘habita’ o ‘interior da mente’ de um sujeito
pensante e por meio da qual ele chega às ‘verdades’ –, segue-se que todas as certezas
devem ser alcançadas num processo de investigação solipsista. No tópico a seguir veremos
como as objeções que Peirce destina ao pensamento cartesiano podem lançar luzes sobre o
que pensamos acerca da sociedade e da educação.

4. Conseqüências para a sociedade e a educação

O confronto direto entre os dois filósofos nos leva a pensar que não há nada errado
em Descartes interpretado a partir de Descartes. A crítica peirceiana, nesse contexto, aponta
falhas nos pressupostos (premissas) e nas conseqüências da reivindicação de uma faculdade
cartesiana da ‘intuição’, mas não no processo de dedução de princípios da filosofia que
Descartes faz com base nesses pressupostos mesmos. Entendidos como parte do sistema
cartesiano, pressupostos e conseqüências associados à crença numa faculdade da ‘intuição’
8
Assim como Peirce, Wittgenstein, em suas objeções à linguagem privada, desconsidera a possibilidade de
termos um acesso ‘transparente’ e privilegiado a nós mesmos, à nossa própria ‘subjetividade’; diferentemente
dele, contudo, não chega, para mostrar que esse acesso não é possível, a legislar sobre como se formam em
nós as chamadas ‘intuições mediatas’. Wittgenstein não fala da linguagem ou do conhecimento em termos de
‘cognição’ ou ‘intuição’. Podemos dizer, nesse sentido, que, embora se assemelhem na medida em que negam
a ‘intuição’ aos moldes cartesianos, Peirce e Wittgenstein divergem em outros aspectos fundamentais: uma
vez ciente de que não temos acesso às ‘intuições imediatas’, aquele fornece, em sua semiótica, as condições
em que cognições não imediatas ocorrem; este, por sua vez, chama a atenção para o fato de que não é possível
elencar essas condições, legislar sobre elas ou elaborar uma espécie de princípio geral pelo qual possam ser
generalizadas e consideradas válidas, mas apenas descrevê-las. Tal é o que sugerem suas Investigações
filosóficas (e, contrariamente ao que diríamos de Peirce, talvez essa seja uma das razões que nos impede de
afirmar haver em Wittgenstein uma teoria dos signos ou mesmo uma teoria da linguagem).
cumprem bem o seu papel: aqueles, para Descartes, são evidentes; e estas, com base
naqueles, mostram-se necessárias. É por esse motivo, dizemos, que o intuicionismo
cartesiano pode soar como um defeito do sistema cartesiano para qualquer filósofo, exceto,
porém, para o próprio Descartes.
Na opinião de Peirce, entretanto, há nas considerações de Descartes pelo menos um
erro que não pode, em vista de sua gravidade, ser encoberto: levado a cabo, o assim
chamado ‘espírito do cartesianismo’ leva os homens a cometer certos tipos de dogmatismo.
Por se valer de pressupostos equivocados, aponta Peirce, a filosofia cartesiana pode
deflagrar alguns ‘autoritarismos da razão’ que são capazes de impedir que a filosofia exerça
com propriedade o seu papel de crítica da própria razão. Erguer o cogito ao patamar de
primeira certeza – e dar ‘graças’ à ‘intuição’, esta faculdade divina da razão, por tê-lo
encontrado – remonta, de acordo com Peirce, à idolatria que os medievais dedicavam a
Deus como uma autoridade externa e à razão como uma faculdade ofertada por Deus. Nas
palavras do pragmatista,

Na Idade Média, a razão e a autoridade externa eram olhadas como duas fontes
coordenadas do conhecimento, exatamente como o são agora a razão e a
autoridade da intuição; [a única diferença é que] não se tinha chegado ainda ao
feliz expediente de considerar as declarações da autoridade como essencialmente
indemonstráveis. [...] crer na autoridade era encarado pelos homens daquela
época como premissa última, como uma cognição não determinada por uma
cognição prévia do mesmo objeto, ou, em termos nossos, como uma intuição. [...]
Acontecerá a mesma coisa absurda na história das opiniões com a autoridade
interior [da intuição] que aconteceu com a autoridade exterior? (PEIRCE, 1983,
§ 5.215, p. 62).

Por ‘autoridade interior’ Peirce entende, aqui, o postulado cartesiano de que o


testemunho último da verdade de uma idéia se decide, via faculdade da ‘intuição’, de
maneira isolada na mente de um sujeito pensante. Ao listar o dogmatismo e o autoritarismo
da razão como alguns dos riscos que corremos ao nos apropriar da filosofia cartesiana,
Peirce chama a atenção para os efeitos que a abordagem solipsista da filosofia produz na
sociedade, de modo amplo, e na educação, de modo específico.
Uma pergunta mostra-se ser pertinente nesse horizonte de compressão: o que
podemos esperar de um modelo solipsista de sociedade e educação? Pode uma sociedade
ser democrática quando elege a ‘autoridade da razão’ como seu fundamento
inquestionável? Talvez em nenhuma outra esfera da sociedade as conseqüências do
solipsismo se mostrem tão catastróficas quanto na educação. A experiência de uma
investigação em conjunto, em sala de aula, não faria qualquer sentido num contexto em que
acreditássemos numa faculdade ‘intuitiva’ da razão. As certezas que encontraríamos, da
mesma maneira, não precisariam ser submetidas ao crivo alheio – e, nesse caso, podemos
perguntar como então chegaríamos a consensos ou acordos sobre quem governar, que
regras seguir e que pena aplicar a criminosos. Parafraseando Peirce, a abordagem cartesiana
da filosofia quando radicalizada nos leva a conceber uma cidade em que todas as pessoas
concordem sobre o quanto esta ou aquela de suas idéias é ‘clara’ e ‘distinta’ (e também
‘verdadeira’), mas não disponham de critérios para avaliar, entre muitos outros aspectos,
nem mesmo se as idéias (e, conseqüentemente, as propriedades de ‘clareza’ e ‘distinção’)
de que falam são as mesmas ou ao menos estão próximas. Uma filosofia que aponte os
alcances e os limites do ‘espírito do cartesianismo’ pode ser, nesse sentido, também uma
filosofia que reapresente e revise a democracia como um valor social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DA SILVA FILHO, Waldomiro José. Pragmatismo e crítica da subjetividade: Peirce contra


o “espírito do cartesianismo”. In: Síntese Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 29, n. 95,
p. 397-424, setembro/dezembro de 2002.

DESCARTES, Rennè. Discurso sobre o método. São Paulo: Hemus, [19--]. 85 p.

______. Princípios da filosofia. Trad. Leonel Ribeiro dos Santos. Lisboa: Editorial
Presença, 1995.

PEIRCE, Charles Sanders. Escritos publicados: Algumas conseqüências de quatro


incapacidades. Trad. Armando Mora D’Oliveira e Sérgio Pomerangblum. In: Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983c.

______. Escritos publicados: questões sobre certas faculdades reivindicadas pelo homem.
Trad. Armando Mora D’Oliveira e Sérgio Pomerangblum. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1983b.
______. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 337 p.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1994.

Você também pode gostar