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I. O Objetivo da Epistemologia
§ 1. O problema
*Traduzido do original alemão: Schein-probleníe in der Philosophie, Felix Winer Verlag. Hamburg, 1961.
150 CARNAP
gica concernente à origem de uma cognição. Para aqueles que não estão satis
feitos com as expressões “dado”, “redutível”, “fundamental”, ou para aqueles que
desejam evitar o uso desses conceitos em sua filosofia, o objetivo da epistemologia
ainda não foi em absoluto formulado. Nas investigações que seguem propomo-nos
apresentar uma formulação precisa desse objetivo. Verificar-se-á que podemos
formular o propósito da análise epistemológica sem ter que usar essas expressões
da filosofia tradicional. Devemos somente retroceder até o conceito de implicação
(tal como aparece expresso nas sentenças se — então). Este é um conceito funda
mental da lógica, que nenhuma pessoa pode criticar ou mesmo evitar: é indispen
sável em toda a filosofia e em todo ramo da ciência.
No curso do desenvolvimento de uma ciência acontece freqüentemente que
se encontram respostas, respostas de fato corretas, para uma questão, mesmo
antes que se apresente uma formulação conceituai precisa para essa questão. O
que acontece nesses casos é que se projeta ou mantém intuitivamente uma certa
tendência da formação do conceito, mas não existe nenhum reconhecimento do
que realmente significam os conceitos assim constituídos. Quando se encontra
finalmente uma formulação conceituai para as questões intuitivamente propostas,
as respostas previamente encontradas libertam-se de seu estado de suspensão e
assentam-se no sólido fundamento do sistema científico.
Exemplo: Os inventores do cálculo infinitesimal (Leibniz e Newton) tinham a capacidade
de responder a questões concernentes às derivadas (aos quocientes diferenciais) das funções mate
máticas comuns; por exemplo, a derivada da função x3 é a função 3x2. No entanto, eles não po
diam dizer a qual questão esta expressão responde, isto é, não podiam dizer o que realmente se
deve significar pela “derivada” de uma função. Podiam indicar várias aplicações (por exemplo, a
direção da tangente), mas não podiam dar uma definição precisa do conceito de “derivada”. Com
certeza, acreditavam que sabiam o que significavam por essa expressão, mas somente possuíam
uma noção intuitiva, não uma definição conceituai. Pensavam que possuíam uma definição que
lhes permitia ter um entendimento conceituai da noção de “derivada”. Entretanto suas formula
ções desta definição usavam expressões tais como “magnitude infinitesimamente pequena” e men
ções destas que, sob uma análise mais precisa, mostraram ser pseudoconceitos (palavras vazias).
Levou mais de um século antes que se formulasse uma definição inquestionável do conceito geral
de um limite e, deste modo, do conceito de uma derivada. Somente então atribuiu-se a todos esses
resultados matemáticos, que eram usados há muito tempo na matemática, seu significado real.
acontece que as análises deste tipo constituem uma parte fundamental do procedi
mento psicológico. Pois é somente através deste procedimento de formação con
ceituai que a psicologia determina seus objetos. No entanto, veremos posterior
mente que este procedimento nada mais é do que a análise epistemológica com
cujo significado estamos aqui preocupados.
Na ciência (e, em alguma medida, mesmo na vida cotidiana) estamos de posse
das respostas que estão indicadas nos exemplos acima; mas não sabemos o signifi
cado real dessas respostas. Seria um erro interpretar o “consiste em" como “sinte
tiza-se em . . . no curso da experiência". A psicologia (neste caso, especialmente a
psicologia da Gestalt) nos diz que se experiencia a percepção total antes da sensa
ção individual, a partir da qual ela é “sintetizada”. Tornamo-nos conscientes
desta última somente através de um processo subsequente de abstração. Conside
rações similares valem para os outros exemplos.
Agora fica patente a importância que tem apresentar uma formulação clara
do significado da análise epistemológica. Inicialmente, tal formulação não produ
zirá um aumento no conhecimento, mas somente aumentará a pureza do conheci
mento: pode-se formular claramente os resultados já alcançados pelas análises
epistemológicas. Além disso, veremos que a análise epistemológica, após a apre
sentação de uma definição mais precisa dos conceitos, se tornará aplicável a casos
em que o procedimento predominantemente intuitivo, anteriormente exposto, não
obteve sucesso, embora a falência do procedimento intuitivo não seja inevitável
nesses casos; talvez exista somente uma falta de coragem em ver isso. Se usarmos
a análise epistemológica de uma maneira consciente e claramente conceitualizada.
seremos capazes de reduzir os objetos (os conteúdos das cognições, os conceitos)
entre si em uma medida suficientemente ampla de modo que se possa demonstrar
a possibilidade de um sistema redutível geral (“sistema construcional”): é em prin
cípio possível colocar todos os conceitos de todas as áreas da ciência nesse siste
ma, em outras palavras, eles são redutíveis entre si e finaimente são redutíveis a
poucos conceitos básicos. (Somente poderei indicar a prova desta tese de um siste
ma construcional neste ensaio, no § 6.)
§ 2. A análise lógica
pretar este resultado como um alargamento da haste. Ora, pense-se que esse conteúdo é mudado
da seguinte maneira: a haste inclina-se para cima no lado em que está a chama, enquanto todos os
outros constituintes e o resto de minhas experiências parmanecem os mesmos. Sou então forçado
a desacreditar em alguma coisa na qual eu teria de outro modo acreditado. Entretanto, tenho uma
liberdade considerável de escolha. Por exemplo, posso assumir que a haste não é feita de cobre; ou
que o cobre não expande quando é aquecido; ou que o objeto amarelo não é uma chama (um pro
cesso de combustão); ou que a chama não esquenta; ou que uma inclinação da haste para cima
não indica diminuição; ou que eu estava alucinado; neste último caso tenho novamente várias
escolhas para declarar que os critérios que me fizeram acreditar em primeiro lugar que eu tinha
uma percepção consciente eram inválidos. Eu faria, então, aquela assunção que produzisse no sis
tema total das lais naturais a menor quantidade de mudança.
Uma vez que se derivaram indutivamente todas as leis naturais, a saber atra
vés de uma comparação dos conteúdos experienciais, uma variação do material
em um ponto dado pode perfeitamente mudar o conteúdo das leis e deste modo o
conteúdo da realidade, tal como ele é conhecido, mas não pode evitar o reconheci
mento das leis em geral e portanto da realidade. Falando estritamente, os conteú
dos das experiências não se podem contradizer entre si; são independentes entre
si, no sentido lógico estrito. Falando estritamente, não existe sobredeterminação
do conteúdo total das experiências: eles são sobredeterminados somente em rela
ção às regularidades empírico-indutivas.
§ 3. A análise epistemológica
cendental de Kant). Pois ainda não estamos preocupados com a questão de saber
se as (supostas) cogniçÕes da ciência especial devem ou não ser consideradas cor
retas, mas com a questão de saber se vale ou não a relação de dependência episte
mológica (núcleo-parte secundária) entre os objetos dados do campo.
c. O segundo critério: a possibilidade do erro
Torna-se particularmente evidente que os dois constituintes, a e b, de uma
experiência se colocam na relação de núcleo e parte secundária, quando o consti
tuinte b se funda em “um erro”; em outras palavras, quando se verifica que o con
teúdo teórico de b é errôneo, que o estado de coisas que se reflete em b realmente
não vale. Não é necessário que realmente estejamos errados acerca da experiência
que desejamos testar: para a análise epistemológica será suficiente sabermos, com
base em outras experiências, se com experiências desse tipo um erro tal como esse
se pode levantar.
Voltemos a nosso exemplos, a saber, o apalpar a chave com a representação
visual (S) que o acompanha, e o apalpar e a visão simultâneos da chave (S’). Ora,
consideremos o seguinte caso: apalpo a chave e penso que a reconheço como
minha própria chave; acredito que ela tem a cor do aço, mas verifica-se posterior
mente que o objeto que apalpei tem a cor do bronze. Mesmo que não aconteça
realmente isto, sei, com base em outras experiências, que pode ocorrer em um
caso como S. Isso mostra que o constituinte b em S (forma visual) é uma parte
secundária de a (forma tátil). Por outro lado, em uma experiência tal como S’, esse
erro não pode ocorrer: logo, entre b ’e a relação parte secundária-núcleo não vale.
Para nosso problema não tem importância saber no que consiste realmente a dife
rença experiencial entre S e S’. Pode-se admitir que na própria esfera fenomênica
existe uma diferença de tipo qualitativo, experiencial entre uma percepção real e
uma simples representação, ou pode-se admitir que é possível decidir, com base
em outros conteúdos experienciais (a saber, na medida em que eles nos permitem
reconhecer a relação física entre o objeto e o órgão do sentido em questão), se há
ou não uma percepção real. Para a análise epistemológica é suficiente que se
possa decidir a questão de se saber se se deve considerar um constituinte dado
como sendo uma percepção real ou uma representação simples; (isto é, a questão
de saber se está presente uma experiência do tipo S ou uma experiência do tipo S’).
B. APLICAÇÃO: O CONHECIMENTO DO HETEROPSICOLÓGICO
ramente diferente; atualmente pode-se negar esse fato somente se se está ligado a
certas convicções metafísicas. A diferença epistemológica entre o heteropsico-
lógico e autopsicológico tornar-se-á particularmente clara através da investigação
da relação epistemológica entre o heteropsicológico e o físico.
As considerações subsequentes devem demonstrar a seguinte tese: o núcleo
epistemológica de toda cognição concreta das ocorrências heteropsicológicas con
siste em uma percepção dos fenômenos físicos, ou, colocando de outro modo, o
heteropsicológico ocorre somente como uma parte (epistemologicamente) secun
dária do físico. Para o objetivo desta demonstração empreenderemos em primeiro
lugar uma análise lógica, e a seguir uma análise epistemológica.
Todo conhecimento que eu poderia possuir de um fato heteropsicológico
concreto, isto é, de algumas ocorrências conscientes (ou inconscientes) de outro
sujeito, A, eu poderia tê-lo adquirido de modos diferentes. Descobrem-se ocorrên
cias heteropsicológicas se A me relata os processos de sua consciência (chame-se
neste caso En a minha experiência); em segundo lugar, descobrem-se esses fatos
sem qualquer relatório, se observo movimentos expressivos (expressões faciais,
gestos), ou atos de A (E2); ocasionalmente posso supor os processos conscientes
de A se conheço seu caráter e conheço, além disso, que ele é agora sujeito para
certas condições externas (E3). Não existe nenhuma outra maneira de conseguir
conhecimento do heteropsicológico. (Não nos preocuparemos aqui com a telepa
tia uma vez que, pelo menos na ciência, não é usada como um meio para a acumu
lação de informação acerca do heteropsicológico.)
Em cada um dos casos, E1? E2, E3, a cognição do heteropsicológico liga-se à
percepção dos fatos físicos. Para começar, empreendamos uma análise lógica e
mostremos que em todos os casos as percepções das ocorrências físicas (os consti
tuintes a1? a2, a3, respectivamente) são constituintes suficientes, isto é, que as
representações das ocorrências heteropsicológicas (os constituintes bv b2, b3,
respectivamente) ocorrem somente como constituintes dispensáveis (no sentido de
nossas definições anteriores).
Com base nas considerações precedentes averiguamos que a relação “consti
tuinte suficiente-dispensável” vale entre a e b, mostrando que uma reconstrução
racional de b com base em a e no conhecimento anterior é possível. No caso En
a reconstrução racional de b, é possível da seguinte maneira: após ter entendido
o relato de A, isolamos dessa percepção, para o fim de avaliação epistêmica,
somente o sinal físico (aj, isto é, por exemplo, a audição das palavras faladas
(como sons) ou a visão das palavras escritas (como marcas), mas não o entendi
mento desses sinais (b n), que também está contido na experiência; desse material
a, inferimos então o conteúdo teórico de bv utilizando nosso conhecimento ante
rior. Esta reconstrução pressupõe, obviamente, que já se conhecem as palavras
que ocorrem, ou que se pode supor seu significado. Se essa pressuposição não é
satisfeita, então não se apresenta nenhuma experiência do tipo E,; o constituinte
b-! não ocorre; se tomo uma carta em chinês, nada mais vejo do que traços negros
sem verificar nada acerca das ocorrências heteropsicológicas. Entretanto, se a
pressuposição é satisfeita (isto é, se sei o significado das palavras), então posso
inferir das palavras percebidas (seja dos sons ouvidos seja das figuras vistas) o
PSEUDOPROBLEMAS NA FILOSOFIA 159
4. Objetos culturais
3. Objetos heteropsicológicos
2. Objetos físicos
1. Objetos autopsicológicos
Os objetos no interior de cada um destes níveis podem, por sua vez, ser orga
nizados segundo sua redutibilidade epistemológica. O resultado final é um sistema
de objetos ou conceitos científicos que, de poucos “conceitos básicos”, passo a
passo conduz, em uma construção, a todos os outros conceitos. Nesse sistema,
cada conceito que se pode tornar o objeto de um enunciado científico tem um
lugar definido. A organização dos conceitos neste sistema tem uma dupla impor
tância. Para começar, todo conceito é epistemologicamente secundário relativa
mente ao conceito que está abaixo dele (como indicamos para os quatro níveis
fundamentais). Além disso, pode-se definir todo conceito, isto é, pode-se dar uma
descrição definida dele, fazendo referência somente aos conceitos que estão abai
xo dele. Logo, o sistema é também um sistema derivacional, isto é, uma “genea
logia dos conceitos”. Não consideraremos isto mais detalhadamente neste
momento.
A. O CRITÉRIO DO SIGNIFICADO
existe, falso se ele não existe. Podemos saber que um enunciado é significativo
mesmo antes de saber se ele é verdadeiro ou falso.
Se um enunciado contém somente conceitos que já são conhecidos e reconhe
cidos, então seu significado resulta deles. Por outro lado, se um enunciado contém
um novo conceito ou um conceito cuja legitimidade (aplicabilidade científica) está
em questão, então deve-se indicar seu significado. Para este fim é necessário e
suficiente apontar quais são as condições experienciais que se devem supor váli
das para que o enunciado seja chamado verdadeiro (e não “para que seja verda
deiro”), e quais são as condições em que ele é chamado falso. Para começar, essa
indicação é suficiente; não é necessário indicar, adicionalmente, o “significado do
conceito”.
Exemplo. Pode-se introduzir o conceito “Júpiter” pela seguinte estipulação: o enunciado
“Júpiter esbraveja no lugar / e no tempo t" deve ser chamado verdadeiro se no lugar / e no tempo
t se pode experienciar um trovão; de outro modo deve-se chamá-lo falso. Por esta convenção atri
buiu-se um significado ao enunciado, muito embora não se tenha dito nada do significado do con
ceito “Júpiter”; pois, se digo agora a alguém “Júpiter esbravejará aqui às 12 horas”, ele sabe o que
pode esperar. Se ele satisfaz as condições apropriadas (isto é, se ele vem até o lugar descrito), pode
ter uma experiência que confirme ou refute meu enunciado.
Com o intuito de dar uma formulação mais precisa a nossa tese, introdu
zimos em primeiro lugar algumas definições. Se um enunciado p expressa o con
teúdo de uma experiência E, e se o enunciado q é igual ap ou pode-se derivá-lo de
p e das experiências anteriores, seja por argumentos dedutivos seja por indutivos,
então dizemos que a experiência E “fundamenta” q. Diz-se que um enunciado p é
“testável” se se pode indicar as condições sob as quais ocorreria uma experiência
E que fundamenta p ou a contradição de p. Diz-se que um enunciado p tem “con
teúdo fatual” se as experiências que fundamentariam p ou à contradição de p são
pelo menos concebíveis, e se se pode indicar suas características. Segue-se destas
definições que se um enunciado é testável, então ele sempre tem conteúdo fatual,
mas o inverso geralmente não vale. Se é impossível, não somente no momento
mas em princípio, encontrar uma experiência que fundamente um enunciado
dado, então aquele enunciado não tem conteúdo fatual.
Exemplos: O enunciado “no outro quarto está uma mesa de três pernas” é testável; pois
se pode indicar sob quais circunstâncias (indo até lá e olhando) ocorreria uma experiência percep-
tiva de tal tipo que fundamentaria o enunciado. Logo, esse enunciado possui conteúdo fatual. O
enunciado “existe uma certa cor vermelha cuja visão causa terror” não é testável, pois não sabe
mos como encontrar uma experiência que fundamentaria esse enunciado. No entanto, este enun
ciado tem conteúdo fatual, pois podemos pensar e descrever as características de uma experiência
através da qual se fundamentaria esse enunciado. Essa experiência deveria conter a percepção vi
sual de uma cor vermelha e ao mesmo tempo o sentimento de terror acerca dessa cor. Os
pseudo-enunciados (1), (2), (3), do exemplo anterior não possuem conteúdo fatual.
do) enunciado que não pode ser em princípio estabelecido por uma experiência, e
que, portanto, não tem nenhum conteúdo fatual, não expressaria nenhum estado
de coisas concebível e portanto não seria um enunciado, mas somente um aglome
rado de sinais ou ruídos carentes de significado.
Todas as ciências empíricas (as ciências naturais, a psicologia, as ciências
culturais) reconhecem e exercem na prática o requisito de que todo enunciado
deve ter conteúdo fatual. Não faz diferença alguma que estejamos preocupados
com a mineralogia, a biologia ou a ciência da religião: todo enunciado que se
tenha de considerar significativo em qualquer um desses campos, isto é, que se
considera ou verdadeiro ou falso ou que se coloca em questão, ou retrocede direta
mente até a experiência, isto é, até o conteúdo das experiências, ou liga-se pelo
menos indiretamente com a experiência, de tal maneira que se pode indicar qual
é a experiência possível que o confirmaria ou refutaria; em outras palavras, as
experiências fundamentá-lo-iam, ou ele é testável ou ainda tem pelo menos con
teúdo fatual. Somente nos campos da filosofia (e da teologia) ocorrem os enuncia
dos ostensivos que não possuem conteúdo fatual; como veremos posteriormente,
as teses do Realismo e do Idealismo são exemplos disso. Não tomamos o ponto de
vista estrito que requer que todo enunciado esteja fundamentado ou seja testável;
ao contrário, consideramos significativos os enunciados mesmo que possuam
somente conteúdo fatual, mas não estão nem fundamentados nem são testáveis.
Logo, estamos usando um critério de significação tão liberal quanto aquele que
seria usado pelo mais liberal físico ou historiador no interior de sua própria ciên
cia; portanto, nossa refutação das teses do Realismo e Idealismo tornar-se-á total
mente obrigatória.
objeto. No entanto, uma simples representação de uma pessoa sem qualquer deter
minação de lugar ou tempo pode ser fatual se se afirmar que uma certa proprie
dade está presente, por exemplo, que essa pessoa tem o cabelo de tal ou qual cor.
Logo, depende essencialmente da intenção de uma pessoa se uma representação
é fatual ou uma simples representação do objeto; no primeiro caso, a experiência
contém um ato de julgamento que afirma ou nega que existe o fato particular. Da
diferença indicada entre os dois tipos de representações, resulta a seguinte distin
ção que é importante para nossa investigação: uma representação fatual pode
tomar parte do conteúdo de um enunciado, ao passo que uma representação do
objeto não pode. A expressão lingüística para o conteúdo de uma expressão do
objeto é um substantivo (que pode ser acompanhado por um adjetivo, oposição,
etc.). (Na terminologia da teoria dos objetos de Meinong: o conteúdo de uma
representação do objeto é um “objeto", um conteúdo de uma representação fatual
é um “objetivo”.)
Exemplos. 1. Expressão para as representações dos objetos: “meu filho”, “uma pessoa que pare
ce com isto ou aquilo”. 2. Expressão para as representações fatuais: “meu filho tem esta ou aquela
aparência”, “existe uma pessoa que tem esta ou aquela aparência”.
Devemos dividir as representações que experienciamos segundo a maneira
pela qual pronunciamos ou pensamos um enunciado por representações enuncia
das ou que o acompanham. Entre as representações que o acompanham podem
ocorrer por sua vez representações fatuais assim como simples representações de
objetos. No caso do enunciado “aquele banco é pequeno” a representação da
pequenez do banco é a representação enunciada. A representação da cor verde do
banco é uma representação que o acompanha; uma vez que se trata de uma repre
sentação fatual podemos acrescentá-la ao conteúdo do enunciado, exprimindo o
enunciado adicional “aquele banco é verde”. Suponhamos agora que a elocução
do enunciado “aquele banco é pequeno” cause em mim a representação de um
certo tom musical e talvez também a representação de felicidade. Estas represen
tações são então simples representações do objeto; elas não pertencem aos fatos
acerca do banco; logo, não se pode admiti-las em nenhum enunciado acerca do
banco: não podemos atribuir saúde ou felicidade ao banco. Se, no entanto, tenta
mos (talvez enganados, neste caso, por uma inclinação injustificada em julgar),
então obtemos pseudo-enunciados, coleções de símbolos carentes de significado.
As representações acompanhantes de objetos, uma vez que não se podem tornar
o conteúdo dos enunciados, transcendem a verdade e a falsidade. Enquanto se
deve justificar o conteúdo teórico de um enunciado por referência a algum crité
rio, por exemplo, o critério de conteúdo fatual que indicamos, as representações
dos objetos, que acompanham um enunciado, não estão sujeitas a nenhum con
trole teórico; elas são teoricamente irrelevantes, mas possuem freqüentemente
uma grande importância prática. Imaginar certas configurações de números, os
sons dos numerais ou as configurações de pontos quando falamos ou pensamos,
por exemplo, no enunciado “2 mais 2 é igual a 4”, facilita em grande medida o
aprendizado e a manipulação desses enunciados. Os diagramas da geometria pos
suem um papel similar. A formalização da geometria que foi executada durante a
última década mostrou que as propriedades gráficas dos diagramas são uma
PSEUDOPROBLEMAS NA FILOSOFIA 167
ajuda prática valiosa para a pesquisa ou o aprendizado, mas que elas não pos
suem nenhuma importância na dedução geométrica.
Não desejamos às vezes que se permita que a ocorrência das representações
acompanhantes de objetos mude mas, devido a seu valor prático, desejamos invo
cá-la sistematicamente em nós próprios ou nos outros. Pode-se obter isto, esco
lhendo nomes apropriados para os conceitos ou escolhendo uma forma linguística
apropriada para todo o enunciado (no caso de um enunciado oral também por
entonação, melodia, gestos acompanhantes, etc.). Afinal de contas, a escolha de
um nome é independente do conteúdo teórico de um enunciado; ela é puramente
convencional. Isto nos permite expressar as representações acompanhantes de
objetos, que são também independentes do conteúdo teórico, de qualquer maneira
que previrmos ser apropriada.
Exemplos. A geometria formalizada (cf., por exemplo, Hilbert, Grundlagem der Geo-
metrie) não fala de entidades espaciais, mas de objetos indeterminados que se relacionam de uma
certa maneira. Entretanto, não designamos costumeiramente os objetos básicos do primeiro,
segundo e terceiro tipos com esta expressão neutra, mas com as palavras “ponto”, “linha reta",
“superfície”, uma vez que desejamos que o leitor una as representações de pequenos pontos
negros, de linhas retas e de finas placas retas com os enunciados acerca dos objetos básicos. (Faz-
se isso somente para facilitar as questões e isso não tem nenhuma relação com as questões de vali
dade teórica.)
Quando um índio chama seu filho de “Búfalo Negro”, então quem quer que use esse nome
tem a representação acompanhante da inspiração respeitosa ou da evocação respeitosa daquele
animal. Expressa-se aqui uma representação acompanhante que não se pode expressar por um
enunciado, uma vez que ela não reflete nenhum fato. O índio pensa entretanto que, dando esse
nome, expressa um certo fato (esperado); os filósofos, como veremos, esperaram conseguir o
mesmo, atribuindo nomes adequados aos objetos heteropsicológicos.
pertencem ao conteúdo teórico, são expressas, por exemplo, pela entonação, ges
tos, etc.). Pois, dizendo “A está alegre” e não simplesmente “A mostra expressões
faciais de tal ou qual forma”, expresso que tenho uma representação de um senti
mento de alegria, embora seja um sentimento de alegria no sentido autopsico-
lógico, uma vez que não posso conhecer nenhum outro sentimento. Entretanto,
assumir que, usando a linguagem psicológica ao invés da linguagem física, em ou
tras palavras, que, usando a expressão “alegre” ao invés de “expressões faciais
desta ou daquela forma”, expressamos um fato que transcende o estado de coisas
físico, é confundir o conteúdo teórico de enunciado com uma representação
acompanhante.
Com esta confusão cometeriamos um erro muito mais grave do que aquele do índio (§ 8);
pois, a representação acompanhante do índio o conduziu, mesmo que erroneamente, à represen
tação fatual de que, falando-se de modo geral, se poderia expressar pelo enunciado: “meu filho é
tão forte quanto um búfalo”. Neste caso, entretanto, não somos apenas levados a produzir um
enunciado errôneo, mas um pseudo-enunciado. Pois não se concebe ou se enuncia nenhum fato
que poderia ligar a representação “sentimento de alegria” (no sentido autopsicológico) com o
comportamento de A.
Pensemos novamente em dois cientistas, desta vez psicólogos; seja um deles
um solipsista, o outro um idealista ou realista não-solipsista. (A linha divisória
encontra-se aqui em um lugar um tanto diferente do anterior, mas isto não é
importante para nossa discussão, uma vez que não queremos averiguar qual das
duas facções opostas é correta; desejamos mostrar apenas que toda a controvérsia
é cientificamente carente de significado.) Nossos dois cientistas decidem com
base em critérios empíricos da psicologia se a alegria de A é real ou somente
simulada (conteúdo empírico da realidade), e chegam desse modo a um acordo
(assim como fizeram os dois geógrafos acima mencionados quando estava em
questão a realidade da montanha). Entretanto, se eles passassem da psicologia à
filosofia, originar-se-ia a controvérsia. O solipsista afirma que somente o compor
tamento físico observado de A (incluindo-se suas palavras) é real; acrescenta que
deseja descrever esse comportamento com a expressão “A está alegre”, uma vez
que a linguagem psicológica, contrariamente à linguagem física, não somente tem
a vantagem de ser breve, mas também a vantagem de estimular uma representação
acompanhante mais apropriada; mas o solipsista não sustenta que a consciência
de A é real. Seu oponente, por outro lado, afirma que A não mostra somente o
comportamento físico dado, no qual se fundamenta o enunciado “A está alegre”
(testemunha das descobertas comuns aos dois psicólogos), mas que, adicional
mente, A realmente tem consciência.
No que diz respeito ao físico e observável, logo, ao apenas testável, ambos os
psicólogos concordam. Não existe nenhuma questão psicológica à qual, após
investigações suficientemente extensas, os dois não dariam a mesma resposta. Isto
mostra que a escolha do ponto de vista filosófico não tem nenhuma influência
sobre o conteúdo da psicologia (assim como não tem nenhuma influência sobre as
ciências naturais). (Aqui também não se nega a possibilidade de influência práti
ca.) A divergência entre os dois pontos de vista ocorre além do fatual, em um
domínio onde em princípio nenhuma experiência é possível; logo, segundo nosso
critério, eles não têm nenhuma importância científica.
PSEUDOPROBLEMAS NA FILOSOFIA 171
Seria útil fazer algum esforço para investigar a importância da confusão das
representações de objetos acompanhantes com as representações fatuais para a
história das idéias; mais precisamente, a importância da tentativa, que se origina
nesta confusão, de expressar a representação do objeto acompanhante através de
(pseudo) enunciados. Talvez deva-se explicar a origem da mágica (como teoria),
da mitologia (incluindo-se a teologia) e da metafísica desta maneira; não como se
pudéssemos explicar o conteúdo dessas doutrinas dessa maneira, mas lançaríamos
alguma luz sobre a estranha circunstância de que esse conteúdo não se expressa
através de meios artísticos ou através da conduta prática da vida, mas se dá na
forma de uma teoria que não tem nenhum conteúdo teórico.
Sumario
I. O Objetivo da Epistemologia
nação: autopsico lógico, físico, heteropsicológico, cultural; além disso, esta análise
conduziria a uma genealogia completa dos conceitos.
Teses:
1. Somente os enunciados que possuem conteúdo fatual são teoricamente
significativos; enunciados (ostensivos) que não podem, em princípio, estar funda
mentados pela experiência são carentes de significado.
2. As ciências empíricas usam somente o conteúdo empírico da realidade.
3. A filosofia usa um conceito não-empírico (metafísico) da realidade:
a) as teses do realismo e idealismo concernentes ao mundo exterior não possuem
nenhum conteúdo fatual.
b) o mesmo vale para as teses do realismo e solipsismo acerca do
heteropsicológico.
4. Não se podem nem afirmar nem refutar as teses do realismo e do idealismo de
uma ciência; elas não possuem nenhum significado científico.
5. As pseudoteses do realismo e do idealismo expressam não o conteúdo teórico
de enunciado cientificamente permitido, mas somente a representação ao objeto
acompanhante; concebe-se que expressem uma certa orientação prática com rela
ção à vida.
tido mais amplo, como o conteúdo teórico das experiências de algum tipo).
II. Considera-se que o conteúdo fatual é um critério. Entretanto, sustenta-se que uma das
duas teses, a saber, o realismo ou idealismo, tem conteúdo fatual. Distinguimos dois casos depen
dendo do campo ao qual se relacionam as teses supostamente fatuais:
1. as teses relacionam-se unicamente ao heteropsicológico. Questão: entende-se a (alegada ou
negada) “realidade do heteropsicológico" de tal maneira que o conteúdo teórico do enunciado “A
está alegre" excede o conteúdo teórico do enunciado físico correspondente?
a) Sim. Resp.: então existe uma obrigação de indicar o constituinte que transcende esse enunciado
tísico e de mostrar que se pode fundamentá-lo (isto é, devem-se indicar as características do con
teúdo experiencial que o confirmariam ou desaprovariam). Se o conteúdo teórico, e não apenas a
representação do objeto acompanhante, de um enunciado p, excede o conteúdo teórico de um
enunciado q, então existe um enunciado r (que chamamos de “o constituinte em que p excede q ’)
do seguinte tipo: r é independente de q; o conteúdo dep inclui o conteúdo de r e q (conjunção). Em
nosso caso, p é o enunciado “A está alegre”, q o enunciado físico correspondente; ora, devemos
ser capazes de encontrar um r do seguinte tipo: r é sempre verdadeiro quando p é verdadeiro; r
pode ser falso quando q é verdadeiro; r tem conteúdo fatual. (Para uma formulação precisa, os
enunciados p.qtr devem ser substituídos por funções preposicionais com variáveis temporais.)
b) Não. Resp.: então não há nenhum conflito com nosso ponto de vista. Fica somente a questão
terminológica de saber se nesse caso ainda deveriamos falar de “realismo", “idealismo” ou
“solipsismo”.
2. a tese relaciona-se (além disso ou exclusivamente) com o mundo exterior. Questão: “a rea
lidade do mundo exterior” significa que o conteúdo teórico do enunciado “Monte Blanc realmente
existe” tem um constituinte no qual ele excede o conteúdo teórico dos enunciados correspondentes
acerca das percepções?
a) Sim. Resp.: então existe uma obrigação de identificar esse constituinte e de mostrar como se
pode fundamentá-lo (cf. 1, a).
b) Não. Resp.: ver 1. b.
Tendo como fim a evidência, exige-se de todos os críticos que admitam explicita
mente um desses pontos de vista.
TESTABILIDADE E SIGNIFICADO1
I - Introdução
1 O ensaio completo foi publicado em Philosophy of Science, 3, 1936 e 4, 1937. Nesta tradução utilizamos
a versão resumida, publicada em Readings in The Philosophy of Science, editada por H. Feigl e M. Brodbeck.
A importância de Testabilidade e Significado reside no fato de que nele Carnap substitui o antigo princípio
de verificabilidade, formulado pela primeira vez por Wittgenstein, pelo requisito mais elástico da confirmabi-
lidade. É a partir deste ponto de vista que se deve ler o ensaio “O caráter metodológico dos conceitos teóri
cos” aqui publicado. (N. do T.)