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PROPÓSITO
Conhecer as relações entre cultura e literatura para abordagens mais embasadas e
esclarecedoras do fenômeno literário em diversos vieses.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
Analisar a relação literatura-cultura
MÓDULO 2
MÓDULO 3
INTRODUÇÃO
Prepare-se para descobrir a riqueza de uma palavra: cultura. Você saberia defini-la?
Como você verá adiante, é possível tatear o conceito de cultura, mas talvez seja impossível
encontrar uma conceituação muito categórica ou fechada e que abarque tantos sentidos quanto
essa palavra pode ter.
Mas não se intimide pela dificuldade, não desista de pensar sobre isso. O final de cada etapa
será recompensador!
Vamos embarcar agora numa importante investigação sobre as relações entre a literatura, a
cultura e a sociedade.
MÓDULO 1
O QUE É CULTURA?
COMO DEFINIR ESSE TERMO COMPLEXO?
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A partir dessa definição ampla, caminharemos pela compreensão de que não há uma cultura, e
sim culturas, no plural, e que a vida em sociedade é uma vida em relação, que não deve ter os
saberes hierarquizados. Por fim, entraremos na intensa relação entre literatura e cultura,
entendendo como a literatura tem um papel fundamental na tradução e construção simbólica de
sentidos.
A IDEIA DE CULTURA
Cultura é uma palavra genérica que engloba uma série de características, comportamentos e
manifestações de grupos humanos. Um povo, uma nação, uma tribo se reúne em volta de uma
miríade de práticas culturais heterogêneas e que, na maioria das vezes, são plurais mesmo
dentro de um determinado grupo.
Esses conceitos formalizam um escopo do que é cultura para a humanidade, nos distinguindo
dos animais. No entanto, essa separação gera também problemas, pois, ao nos apartar do que
seria “natural”, constrói uma ideia de superioridade em relação ao resto do planeta do qual
dependemos para sobreviver e para nos expressar culturalmente. Uma sociedade
culturalmente formada só pode existir em relação, também, com a natureza, e não em face de
uma atitude predatória e colonizadora.
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Cidade medieval de Semur em Auxois, Borgonha, França.
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Mesmo sendo a cultura uma expressão particular, que se diferencia de grupo para grupo, e
possui um arcabouço de conhecimento com infinitas manifestações, existem certos
procedimentos compartilhados. A transformação das sociedades de um comportamento
caçador e coletor de alimentos para a fixação em conjuntos arquitetônicos que se organizam,
de forma mais sedentária, em torno da agricultura e da domesticação de animais, é algo que se
nota na maior parte do planeta.
Ainda que encontremos muitos desses traços comuns entre as diversas culturas ao redor do
globo, não é possível traçar, como já se tentou, uma evolução cultural da humanidade.
Culturas seculares, que possuem longa tradição escrita, gravando assim sua história, nos
deixam a possibilidade de construir uma linha evolutiva de comportamentos. No entanto, não
podemos crer que, a partir das transformações registradas na milenar cultura japonesa,
possamos traçar uma evolução que servirá para qualquer outro grupo social.
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É importante notar, aliás, como a tradição oral ficou por muito tempo em “desvantagem” em
investigações e avaliações que se faziam a respeito de grupos que não tinham escrita. Uma
avaliação limitadora e que escondia riquezas culturais.
Foto: Renan Martelli da Rosa / Shutterstock.com
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Nesse sentido, as ideias de bárbaro, selvagem e civilizado caem por terra. A hierarquização
entre as culturas é um caminho que leva a generalizações e preconceitos que apagam
saberes, línguas e procedimentos culturais, em nome de outros considerados mais avançados.
Quando os portugueses aportaram no Brasil, em 1500, o choque cultural foi intenso. Em uma
primeira interface entre literatura, escrita e cultura nestas terras, a carta de Pero Vaz de
Caminha (1500), escrita ao rei de Portugal para descrever as riquezas da nova terra
conquistada, mostra uma construção narrativa que acaba por criar uma separação entre os
dois povos, um civilizado e outro bárbaro.
“Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito
pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas
das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então
não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não
entendia nem ouvia ninguém.”
CAMINHA, 1500.
Desconhecer a língua do outro sempre foi o primeiro passo para classificar um grupo como
bárbaro. Para o Império Romano, assim era com todos que não falavam latim. No século XVI, a
invasão portuguesa se chocou com a organização tribal dos povos que já habitavam o que hoje
conhecemos como Brasil. Um enorme espanto tomou conta dos portugueses ao se depararem
com a falta de vestimentas que cobrissem as ditas vergonhas, as línguas desconhecidas, os
deuses inimagináveis, uma outra cosmogonia e outra relação com as ideias de riqueza e
acúmulo.
Para citar um exemplo desse choque, podemos lembrar da fama pejorativa utilizada com os
povos indígenas, descritos como povos preguiçosos, que se deitavam em redes à sombra ao
invés de trabalhar. Essa visão provém desse choque de conceitos sobre o que é riqueza.
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MAS E SE OLHARMOS PELA VISÃO DO OUTRO LADO?
SE TENHO O NECESSÁRIO PARA ME PROVER E
PROVER À TRIBO, POR QUE TRABALHAR MAIS PARA
ACUMULAR EM EXCESSO?
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Esse exemplo, de um encontro que aconteceu há mais de quinhentos anos, aqui nesta terra
que habitamos, repercute e resiste até hoje. Por isso, é fundamental que reconheçamos a
pluralidade e a diversidade cultural tanto externas quanto internas à nossa sociedade. É
somente dessa forma que podemos criar laços empáticos e comunicativos com o outro, com o
diferente, enriquecendo o nosso mundo com o encontro de saberes, numa outra história que
tenha como foco eliminar preconceitos, hierarquizações e perseguições entre populações,
grupos e categorias.
Essa perspectiva enxerga uma suposta civilização com acesso à cultura e um povo bárbaro
que ainda deve civilizar-se para atingir seu apogeu cultural.
Tão equivocada quanto preconceituosa, essa afirmação criou, ao longo dos últimos séculos,
uma ideia de que os colonizadores tivessem que tutelar os povos colonizados para construir
um ambiente civilizado que os tornasse capazes, até mesmo, de se governarem.
AQUELES QUE PROCLAMAM A NECESSIDADE DE UM
PERÍODO DE INCUBAÇÃO ÉTICA PARA PREPARAR
HOMENS E MULHERES PARA A CIDADANIA POLÍTICA
INCLUEM OS QUE NEGAM AOS POVOS COLONIAIS O
DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO ATÉ SEREM
SUFICIENTEMENTE ‘CIVILIZADOS’ PARA O EXERCÍCIO
DE SUAS RESPONSABILIDADES. IGNORAM O FATO
DE A MELHOR PREPARAÇÃO PARA A
INDEPENDÊNCIA POLÍTICA SER, DE LONGE, A
INDEPENDÊNCIA POLÍTICA.
Essas palavras, do teórico Terry Eagleton, falam sobre independência cultural, e plantam a
semente de um pensamento descolonizante.
SAIBA MAIS
Descolonizar X Decolonizar
Há uma importante discussão teórica sobre o uso dos termos descolonizar ou decolonizar,
sendo o segundo indicativo de que não é possível descolonizar, o que enfatiza que o passado
não pode ser reescrito, ainda que não precise limitar as construções futuras.
Imagem: Shutterstock.com
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O que experimentamos são culturas plurais e diferentes, formando uma galáxia de vivências
possíveis, a menos que, por uma força impositiva, colonial ou ditatorial, os sistemas políticos
cerceiem e impeçam as manifestações culturais de aflorarem.
É nesse sentido impositivo que se constrói a ideia dos saberes ditos civilizados e outros
bárbaros, colocando em níveis diferentes de valor o saber erudito e o saber popular.
Essa baixa cultura estaria ligada a grupos específicos e que não estão conectados a certo rigor
científico na produção de seus conhecimentos, ou não estão em posições de poder.
A IDEIA DE QUE OS BRANCOS EUROPEUS PODIAM
SAIR COLONIZANDO O RESTO DO MUNDO ESTAVA
SUSTENTADA NA PREMISSA DE QUE HAVIA UMA
HUMANIDADE ESCLARECIDA QUE PRECISAVA IR AO
ENCONTRO DA HUMANIDADE OBSCURECIDA,
TRAZENDO-A PARA ESSA LUZ INCRÍVEL. ESSE
CHAMADO PARA O SEIO DA CIVILIZAÇÃO SEMPRE
FOI JUSTIFICADO PELA NOÇÃO DE QUE EXISTE UM
JEITO DE ESTAR AQUI NA TERRA, UMA CERTA
VERDADE, OU UMA CONCEPÇÃO DE VERDADE, QUE
GUIOU MUITAS DAS ESCOLHAS FEITAS EM
DIFERENTES PERÍODOS DA HISTÓRIA. AGORA, NO
COMEÇO DO SÉCULO XXI, ALGUMAS
COLABORAÇÕES ENTRE PENSADORES COM VISÕES
DISTINTAS ORIGINADAS EM DIFERENTES CULTURAS
POSSIBILITAM UMA CRÍTICA DESSA IDEIA.
A partir desse pensamento de Ailton Krenak acerca da visão que coloca uma distinção cultural
entre metrópole e colônia, podemos entender como a história da literatura no Brasil desprezou,
por muito tempo, os cantos e a cultura oral dos povos originários. Na maioria dos livros de
história da literatura no Brasil, ela começará no século XVI com os primeiros textos escritos em
português em território brasileiro.
AILTON KRENAK
Vale aqui destacar algumas iniciativas, como a antologia Poesia.br, que incluiu como marco
fundador da literatura brasileira os cantos ameríndios. Entrando na interface literatura e cultura,
vemos nessa coletânea cantos de culturas orais fixados em português moderno em uma
pesquisa realizada por antropólogos e poetas.
Imagem: Shutterstock.com
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SAIBA MAIS
Vale lembrar também do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que assume como ano
1 a “deglutição do Bispo Sardinha” pelos indígenas caetés, sendo o manifesto assinado no ano
374 dessa nova e significativa contagem.
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O conflito entre alta e baixa cultura persiste até hoje. Essa falsa ideia de que existem níveis
diferentes de valor para saberes e criações artísticas foi o que fez do samba um ritmo
perseguido no início do século XX; é o que até hoje cria o preconceito contra o funk e suas
variações. Não à toa esses são ritmos que nascem desse amálgama entre pretos, indígenas e
brancos expatriados. Foram nos terreiros de candomblé, remixados na presença dos santos
católicos, que os tambores dos ogãs variaram as batidas ritualísticas, criando o samba de
terreiro. É esse tambor que pulsa no sangue e no peito do Brasil que se tornou o tamborzão do
funk carioca do início do século XXI.
O preconceito recai sobre a música e os corpos de quem pensa e cria por meio de uma outra
linha evolutiva que não passa, diretamente, por uma reverência aos reinados europeus.
Foi também por conta dessas ideias que separam quem é erudito e alto de quem é
popular e baixo que Carolina Maria de Jesus, autora do impactante Quarto de despejo,
passou tanto tempo sem o devido reconhecimento como escritora de fundamental importância
para o entendimento do Brasil.
Neste entre lugar fraturado, que não é ocidente nem oriente, neste novo mundo latino-
americano, lidar com as antigas tradições e criar a partir de segundas leituras incorporadas
será um importante papel do escritor que aqui vive. Veremos mais adiante como essa interface
entre literatura e cultura se configurará em um campo de uma batalha de narrativas
semiológicas.
INTERFACE CULTURA-LITERATURA
Não é só a forma de um povo se comportar e como ele lida com o universo ao seu redor que
define o que é cultura. Essa estruturação se dá também por uma série de práticas e,
principalmente, de intercâmbios de sentidos. É por meio do compartilhamento de significados,
pela forma como um grupo interpreta o mundo, que se forma o entendimento do que é cultura.
É esse entendimento, essa troca simbólica, que diferencia o elemento humano em seu
comportamento social daquilo que é somente biologicamente direcionado.
Tal produção de sentido se dá em inúmeras esferas capazes de traduzir o mundo. A linguagem,
e seus muitos desdobramentos visuais, escritos e sonoros, é um pilar fundamental desse
comportamento social humano.
Imagem: Shutterstock.com
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Do vetor que nos impulsionou para a língua falada e escrita emerge a literatura, uma interface
de leitura do mundo que respira, se expande, se dobra e desdobra na tradução e criação de
sentidos.
Cultura tradutora de processos comunicativos
Mediante essa concepção de dupla função que se materializa em distintos e variados sistemas
simbólicos, responsáveis pela manutenção, reprodução de sistemas culturais e sociais e por
uma constante transformação em suas bases, vemos que as discussões teóricas sobre o tema
apontam uma tendência a entender a cultura como saber coletivo, gerado por processos
cognitivos e comunicativos heterogêneos, pelos quais indivíduos definem as suas esferas de
realidade.
Quando essa ampla esfera de conhecimentos e conceitos ganha forma por meio de uma
manifestação artística complexa, como é a literatura, ganhamos uma nova interface de leitura
do mundo. É possível ler as manifestações culturais partindo de muitos olhares diferentes, seja
a partir dos preceitos e regras de ciências exatas como a Física ou das biomédicas como a
Biologia, ou a partir das etnografias e descrições das ciências sociais. No entanto, é pelas
manifestações artísticas que teremos vozes e visões que, ao mesmo tempo, serão
capazes de ler e instaurar mundos.
A literatura tem um papel fundamental em todas as sociedades, é também por intermédio dela
que reconhecemos e decodificamos um corpo de signos que nos rodeia. Seja na tradição oral,
passando de geração a geração cantos e poemas que contam a cosmogonia de um povo, seja
na literatura contemporânea, capaz de fazer leituras do presente transformando biografias em
ficção, é a partir da operação no texto que temos um contorno possível para nos
reconhecermos enquanto sociedade.
Compreendemos, assim, esse papel de dupla articulação entre literatura e cultura. Um eixo
paradigmático que faz girarem juntas a prática interpretativa e a construção de sentidos.
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Como uma porta que abre para os dois lados, essas esferas irão se interpenetrar, constituindo
uma leitura que a um só tempo interpreta e cria novos mundos.
Quando Miguel de Cervantes escreve o seu célebre As aventuras do engenhoso fidalgo Dom
Quixote de La Mancha, não só uma acurada leitura do que era a cultura espanhola no século
XVII se descortinava, como também um outro mundo era instaurado. Reconhecido como o livro
fundador do romance moderno, o procedimento de Cervantes para escrever essa história se
destaca de seus contemporâneos e predecessores.
O que mais se lia na Península Ibérica naquele momento eram romances de cavalaria: livros
repletos de histórias de aventuras sobre heróis montados em cavalos, com suas lanças,
atravessando os campos plenos de virtudes, cheios de verdades e vitórias. A história de Dom
Quixote é o avesso de tudo isso. Após ler toneladas desses romances, o velho camponês
delira na figura do cavaleiro e parte pelas terras de La Mancha, com seu fiel escudeiro Sancho
Pança, por uma história que narra as falhas, as desventuras, a loucura, a pobreza e outras
realidades impensáveis em um romance de cavalaria tradicional.
Nessa virada da história, quando Dom Quixote desiste de sua própria fábula e Sancho Pança
muda de papel e convoca seu amo a reafirmar seu delírio, percebemos que, de fato, eram
gigantes os moinhos. Talvez não mais os gigantes dos contos fantásticos de outrora, mas a
representação de uma relação violenta de poder dentro dos feudos, uma relação de exploração
entre os que produziam o alimento e viviam com muito pouco e o senhor feudal, que, em seu
castelo, lucrava com aquela produção pré-industrial.
Imagem: Shutterstock.com
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O romance abre espaços para infinitas leituras. É mediante a interface do romance moderno
que a leitura das culturas se fará de forma potente e aguda. Ao construir mundos fictícios a
partir da observação do que nos cerca, a literatura se tornará um importante mediador entre a
nossa experiência no mundo e a elaboração dessa aventura diária que é conviver em
sociedade. Dentro dos livros e suas histórias, podemos viver a existência de infinitos
personagens, caminhar por paisagens impensadas e ler o mundo por outros olhos, em um
caminho da arte que nos permite receber informações por uma via do cérebro que não está
totalmente fechada com os cadeados de nossos preconceitos cotidianos.
LITERATURA E CULTURA
Vamos voltar aos principais pontos do tema, mas agora em forma de bate-papo? Aproveite!
O teórico Marshall McLuhan, autor da famosa frase “o meio é a mensagem”, estava ciente
disso ao traçar um caminho de transformações pelas quais a literatura passou e vem
passando, uma transformação diretamente ligada ao meio físico pelo qual as letras se
difundem. Para McLuhan, há um caminho que passa da cultura oral à cultura letrada
manuscrita, chegando ao que ele chama de galáxia de Gutenberg, com a invenção da
tipografia, até passar pelas revoluções da era eletrônica. Cada um desses passos enfatiza um
aspecto das possíveis percepções enquanto deixa outros de lado.
Imagem: Josephine Smith / Library and Archives Canada / Wikimedia Commons / Domínio
Público
A cultura oral e a literatura oral são expressões diretamente ligadas ao corpo, às experiências
sensoriais e ritualísticas do canto e da dança. Foi assim que a literatura nasceu, muito antes da
escrita.
Quando fazemos a passagem para a cultura letrada manuscrita, querendo ou não, há a perda
dessa dimensão corpórea, passando a uma atividade ligada à dedicação manual e a uma
leitura mais intimista e individualizada.
Neste momento no qual enfrentamos uma crescente virtualização das relações, a literatura
continua presente como interface de leitura das manifestações da cultura. A cada passo dado
por essas transformações no meio pelo qual a produzimos, precisamos estar atentos para não
cair na cilada dos aprisionamentos que as tecnologias também trazem. A questão não é se ater
ao saudosismo e querer voltar ao corpo e aos cantos da literatura oral. Nosso corpo sempre
estará aqui e nossas experiências com ele serão sempre possíveis e bem-vindas, é bom
lembrar, mas o desafio da interface literatura-cultura na era digital é o de imaginar que espaço
queremos construir, seja ele na fisicalidade sinuosa dos rios, na dureza das retas avenidas ou
na virtualidade elétrica do ciberespaço. Que mundo desejamos? Que mundo queremos? Que
mundo estamos construindo?
VERIFICANDO O APRENDIZADO
A) A baixa cultura produz literatura oral, e a alta cultura produz literatura escrita.
B) A literatura é matizada pela cultura e pela sociedade, ainda que não a influencie.
C) Sociedade e cultura pautam a literatura, mas não são transformadas por ela.
C) Cultura é sinônimo de civilização, na medida em que povos sem cultura não são civilizados.
D) A cultura é um conceito difícil de se definir por ser ela única e pelo fato de as sociedades
que não se enquadram nela serem bárbaras.
GABARITO
1. O que é correto afirmar acerca da relação entre literatura e cultura, ou ainda, literatura
e sociedade?
A literatura pode se orientar por aspectos socioculturais, assim como pode orientá-los. As artes,
de maneira geral, têm esse papel de traduzir, mas também podem transformar mundos.
2. Qual das afirmativas a seguir traz uma avaliação apropriada do conceito de cultura?
Há definições diferentes de cultura por ser esse um termo polissêmico, abrangente e usado
diferentemente ao longo da história e entre os saberes. Mas uma primeira característica
comum a qualquer definição é ela diferenciar a espécie humana dos demais animais.
MÓDULO 2
LITERATURA E ANTROPOLOGIA
A literatura pode ter uma enorme gama de funções, como produzir beleza com a linguagem,
sem um fim ou um porquê definido, até servir como instrumento de interpretação social.
Quando estamos falando da literatura enquanto leitora e descritora do mundo, esbarramos nas
Ciências Sociais e na Antropologia.
Imagem: Shutterstock.com
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A Etnografia é uma ciência que pretende, a partir de uma relação de proximidade (inicialmente
física) com o outro, interpretar, descrever e gravar em escrita como determinado grupo humano
se comporta e lê o mundo simbolicamente.
A criação literária, na prosa e no romance em especial, pode ter pontos de contato com a
Etnografia, mas funciona de forma distinta. O antropólogo que observa e descreve um grupo
cultural não é um criador de realidades, é alguém que interpreta gestos, ritos e
comportamentos. O romancista não está necessariamente preocupado com certo rigor ao
descrever determinado grupo e pode criar ficções e realidades que não descrevem o
real, mas nos ajudam a percebê-lo.
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Em algumas passagens do livro, é essa entidade quem ganha vida como um corpo único,
formado de muitos outros corpos vários (os moradores e frequentadores do cortiço), em uma
enorme engrenagem que funciona com organismos que vivem em simbiose, atração e repulsa,
numa vida pobre e batalhadora.
“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade
de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada
sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras
notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que
nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de véspera nos
coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão,
esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma
palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.”
Projetado no romance mais do que os personagens que ali vivem, o cortiço é um desenho de
parte da sociedade do Rio de Janeiro do final do século XIX. Pelo centro da cidade, centenas
de casarões habitados por um número enorme de pessoas eram a ocupação de moradia típica.
O romance traça algumas linhas narrativas de personagens que ali vivem e descreve com
precisão e criação uma espécie de ocupação da cidade que, anos mais tarde, seria arrasada
pelos novos planos de reurbanização do centro do Rio de Janeiro.
Maria Carolina de Jesus era moradora de São Paulo, mas lá também vivia em uma favela, a do
Canindé, na Zona Norte da cidade. Em uma vertiginosa sequência escrita em forma de diário,
Carolina conta o cotidiano de sua vida na favela, as idas para buscar água, a fome, o descaso
do Estado, o cuidado com os filhos, a salvação na vida comunitária, o desejo de um futuro
melhor. Por muitos anos, Quarto de despejo foi considerado um documento da vida em uma
favela e não literatura, ficando alocado em um lugar nem da etnografia, que deveria ser feita
seguindo as regulações das Ciências Sociais, nem da literatura, pois essa deveria ser praticada
por homens bem letrados e viajados.
A obra de Maria Carolina de Jesus é genial pelo que expõe de realidade e por seus
procedimentos literários. Construindo a narrativa em forma de diário, os dias se empilham
em repetições e continuações que nos fazem perder a noção de tempo, dando tons mais fortes
para as questões sociais e políticas envolvidas naquela vida de urgências e profunda
dedicação ao agora.
Nessa passagem, que junta os dias 15 e 16 de julho em um só a partir da sequência dada pela
ordem da filha no dia 15 e seu cumprimento no dia 16, o tempo da narrativa vai sendo
construído como um grande novelo embolado no qual não é mais possível distinguir as pontas
e traçar início e fim. Quarto de despejo é um livro que poderia ser lido em múltiplas direções,
como o Jogo da Amarelinha, do argentino Julio Cortázar. No entanto, em cada página está
presente uma leitura social e cultural duríssima. O excesso de trabalho e a falta de recursos
aparecem exaustivamente no recurso literário da repetição, nas descrições dos detalhes e na
exaustão da personagem/autora.
As leituras e interpretações sociais da literatura feitas por quem está imerso no fogo da falta e
por quem olha como observador distante promovem um grito de alerta, uma possibilidade de
percorrer espaços, campos e ideias que, muitas vezes, nos são negados por um olhar
imediatista e pouco abrangente da realidade que nos cerca. A importância dessa literatura que
revela a cidade em fotos preto e branco muito cruas é a de abrir nossos olhos para o que dizem
as esquinas enquanto passamos absortos, focados em nossas telas de dispositivos móveis.
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LITERATURA REGIONAL VERSUS
UNIVERSAL – O CAMPO E A CIDADE
Durante muito tempo, a literatura manteve sob a alcunha de regionalista toda a produção que
estivesse fora dos grandes centros urbanos. No Brasil, o que estava fora do eixo Rio de Janeiro
e São Paulo, focado no interior, era considerado regional. Essa leitura do campo apartado da
cidade impôs uma cisão dentro da literatura brasileira e uma relação com a interpretação
cultural que tornava:
A cidade (o centro)
O campo
Periferia.
Se, em um sentido econômico, pensando estritamente onde circula o dinheiro, essa leitura
fazia certo sentido, no campo do simbólico não poderia estar mais equivocada. As leituras de
um Brasil rural foram e são tão importantes para essa função da literatura como potência
interpretativa das manifestações culturais quanto a literatura urbana o é.
Vidas secas, romance publicado em 1938 por Graciliano Ramos, é hoje um dos cânones da
nossa literatura. Enveredando pelo sertão mais recuado do país, pisando a terra mais seca do
nordeste brasileiro, Graciliano, que havia sido prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, no
interior de Alagoas, faz uma aguda leitura da vida em terras áridas. Acompanhando uma família
em busca de terra e água, Graciliano anota pensamentos, imaginações e desejos de
personagens que caminham no chão do real, mas que têm a sua voz silenciada pelo barulho
dos espaços centrais do país, incapazes de escutar as bordas e interiores.
Imagem: Livraria José Olympio Editora / graciliano.com.br / Wikimedia Commons / Domínio
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Capa da primeira edição (1938) do romance Vidas Secas.
Entre os anos de 2019 e 2020, o romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, ganhou grande
projeção ao também retratar o Nordeste. Passado numa fazenda do interior da Bahia, Torto
arado visita e descreve situações precárias de trabalho, relações sociais delicadas, um mundo
regido por saberes ancestrais, das ervas, dos encantamentos e das tradições machistas,
patriarcais e colonialistas.
“Aquele tempo parecia ter passado com violência para ela, agora mãe de um menino. Pude ver
seus seios despontarem da roupa que vestia, cheios, caídos de amamentar Inácio. Mas isso
nada significava para nós mulheres da roça. Éramos preparadas desde cedo para gerar novos
trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro
lugar onde precisassem.” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 116)
Foto: Itamar Vieira Junior/ Wikimedia Commons / CC0
Itamar Vieira Junior
De outra feia, Grande Sertão: veredas, livro-ícone do escritor mineiro Guimarães Rosa, é, a um
só tempo, leitura e invenção de um sertão que fala outra língua, constrói outras ideias de país e
lê o mundo por meio de outras linguagens. Repleto de sensualidade em sua escrita, que
ressoava a oralidade da região, o romance mostra personagens de sexualidade fluida, em um
interior que vibra na voz e na sabedoria de quem vive em conexão permanente com os quatro
elementos - água, terra, fogo e ar.
Imagem: Shutterstock.com
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Uma criação que vai além da representação e problematiza a impossibilidade da
representação. A leitura do mundo acaba por ir além de tradução da realidade cultural, se
transforma em trabalho laborioso com a linguagem, que se torna homogênea no seu uso
corriqueiro, mas ganha outras possibilidades dentro da experimentação literária. A palavra pode
ser torcida, espremida, e podemos beber de seu sumo uma nova percepção.
O escritor argentino Ricardo Piglia, em seu artigo Uma nova proposta para o novo milênio,
escrito em 2001, convoca a literatura para ocupar um espaço que transcenda o uso da língua
reduzida a sua forma técnica. Para Piglia:
O nome do artigo reverbera Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino,
coletânea de seis palestras que o autor proferiu em Harvard, investigando o futuro da
literatura.
“A LITERATURA SE DEFRONTA DIRETAMENTE COM
ESSES USOS OFICIAIS DA PALAVRA E, POR
CONSEGUINTE, SEU LUGAR E SUA FUNÇÃO NA
SOCIEDADE SÃO CADA VEZ MAIS INVISÍVEIS E
RESTRITOS. [...] EM MOMENTOS EM QUE A LÍNGUA SE
TORNOU OPACA E HOMOGÊNEA, O TRABALHO
DETALHADO, MÍNIMO, MICROSCÓPICO DA
LITERATURA É UMA RESPOSTA VITAL”.
Imagem: Shutterstock.com
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Lembrando que é a construção desses campos dos signos e símbolos o que nos define como
humanos, é fundamental que tenhamos atenção a esse aspecto da existência. Intervindo na
linguagem e na língua em si, realimentando o que escrevemos a partir dos sons que falamos,
lendo símbolos e recriando signos, o papel da literatura se expande, constituindo um
pensamento que vibra aquilo que os corpos dançam e, por vezes, nem sentimos, no compasso
insano das caminhadas, corridas e escaladas do cotidiano.
LITERATURA E SOCIEDADE
Cultura, arte, literatura e sociedade: o papo continua. Pense, aprenda e divirta-se!
VERIFICANDO O APRENDIZADO
B) As duas são recriações fictícias de realidades distantes da origem social de seus autores.
E) As duas obras tratam de questões sociais, a partir da criação de um mundo paralelo, com
seres fantásticos.
A) A literatura orienta e traduz a sociedade, assim como pode ser orientada por ela.
GABARITO
Tanto Carolina Maria de Jesus quanto Graciliano Ramos retrataram em suas obras, mais
notadamente Quarto de despejo e Vidas secas, realidades que ambos conheceram, tendo as
vivido mais ou menos proximamente (ela mais de “dentro” do que foi retratado que ele). Ambos
usaram recursos literários para não apenas retratar, mas também investigar, buscar conhecer
mais e fazer conhecer mais a fundo aquela realidade, fosse a favela paulistana dos anos 1950
e 1960, ou o semiárido e seus retirantes do início do século XX.
Literatura e sociedade alimentam-se uma à outra e uma da outra. Uma obra literária pode não
apenas retratar, mas também impactar a sociedade, assim como pode ser reflexo, produto ou
desdobramento de um determinado ambiente social.
MÓDULO 3
Como a literatura se articula com as ideias de identidade? Desde a ideia considerada central de
identidade nacional, até a potência das pluralidades culturais, sociais, raciais e afetivas,
veremos como essas vozes, por tanto tempo silenciadas, ganham espaço e passam a ocupar
um importante espaço no universo literário, capaz de trazer questões por muito tempo
apagadas e abafadas por um centro que reduziu a experiência do corpo a ideias eurocêntricas,
falocêntricas e colonizadoras.
IDENTIDADE NACIONAL
Como vimos anteriormente, a literatura atua no mundo de muitas formas, como interface de
leitura do real e como instauradora de outros mundos possíveis. Nesse sentido, a relação entre
literatura e identidades ganha um especial estreitamento e uma enorme força criadora.
Logicamente, as fronteiras desses limites não são tão definidas como as fronteiras políticas
traçadas em mapas, as áreas de contato se borram e os grupos criam interseções entre si.
Mesmo assim, a literatura é um vetor capaz de exprimir certo sumo principal de determinada
identidade, assim como ajudar a forjá-la, a reforçá-la ou modificá-la.
Foi no período do Romantismo que a literatura brasileira olhou de forma aguda para as
questões do país que se formava. Aportando no Brasil via experiências europeias, a poesia e a
prosa românticas exaltaram as belezas naturais do país, construíram a ideia do índio como um
selvagem puro que fora corrompido pelas leis do mundo dito civilizado.
Esse ideal, de um paraíso natural que vivia numa certa juventude do planeta, veio das ideias do
filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau e está presente em romances que são ícones do
período como Iracema e O guarani. Tal ideia coloca, novamente, os indígenas como um povo
ingênuo, forjador primeiro dessa terra idílica, mas que precisa ser tutelado para estar em
contato com a sociedade dos homens brancos.
Imagem: José de Alencar / mec.gov.br / Wikimedia Commons / Domínio Público, adaptada por
Thiago Lopes
Os poemas da fase romântica que cantam as belezas do Brasil ressoarão por muito tempo,
soando ainda na canção de Ary Barroso, Aquarela do Brasil.
Assista ao vídeo:
É uma das mais populares canções brasileiras de todos os tempos, foi escrita em 1939.
Por mais que algumas experiências românticas na literatura, como as histórias de quilombolas
de Bernardo Guimarães e o imenso poema Navio negreiro, de Castro Alves, expusessem
outras realidades em tensão no país (“Presa nos elos de uma só cadeia/ A multidão faminta
cambaleia/ E chora e dança ali!/ Um de raiva delira, outro enlouquece/ Outro, que martírios
embrutece/ Cantando, geme e ri!”), a ideia romântica de identidade nacional reforça o mito
existente na carta de Pero Vaz de Caminha.
Imagem: Shutterstock.com
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Um novo país surge apartado, no papel, de sua dependência de Portugal, mas nasce dentro de
um nacionalismo romântico ufanista que encontra um novo mundo virgem, puro, que precisa de
um caminho que só o homem branco, novamente ele, poderia guiar.
Essa identidade nacional persistirá até o rompimento geral criado pelas ideias explosivas do
Modernismo. O movimento modernista no Brasil, que tem como marco a Semana de Arte
Moderna de 1922, 100 anos após a independência do país, já vinha sendo ensaiado
desde o início do século XX por outros autores e agentes culturais. Mas vamos nos ater
aqui aos cânones desse movimento e ao modo como eles usaram a literatura para mudar a
visão e as ideias de identidade nacional.
EXEMPLO
A ideia de identidade nacional não é fixa e, hoje, quase cem anos após as revoluções
modernistas, essa ideia vem passando por transformações e críticas. Podemos entender esse
caminho por meio da literatura, esse campo sempre grávido de diálogos e trocas, fazendo um
rápido percurso poético partindo da Canção do exílio, célebre poema romântico de Gonçalves
Dias.
O poema de Gonçalves Dias, publicado pela primeira vez em 1857, mas escrito quando o
poeta estudava direito na Universidade de Coimbra em Portugal, se tornou um marco do
Romantismo brasileiro exaltando as belezas naturais, a saudade da terra, o desejo de viver em
um Brasil cheio de riquezas naturais. O nacionalismo ufanista de Dias será sempre lembrado,
mas a ideia de Brasil se transforma ao longo do tempo. Tendo o poema como um marco
fundador de uma identidade nacional brasileira, muitos poetas irão recorrer a ele fazendo
paráfrases e paródias que, com profunda ironia, alteram a visão que se tem de Brasil.
Ao longo dos efervescentes anos do Modernismo brasileiro, alguns poetas irão recorrer à
paródia dessa canção para expor e tencionar um outro país, uma outra identidade que se
descortinava. Oswald de Andrade vai se conectar aos seus afetos por São Paulo, às ideias de
modernidade ligadas ao progresso e ao desenvolvimento para criar o seu Canto de regresso à
pátria.
Este “quase mais amores” também é outro drible de paródia feita pelo poeta, a inclusão desse
advérbio muda a intensidade desse amor, deixando no ar o esplendor de uma terra que, além
das belezas, estava tomada por enormes desníveis e desafios.
A última estrofe realiza um corte seco nas belezas naturais para um caminhar pelas ruas de
uma metrópole em desenvolvimento, construindo uma outra ideia de Brasil que começava a
deixar o campo para fazer crescer as cidades.
Jogos florais I, poema de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, publicado em 1974, faz girar a
roda da história relendo Oswald e relendo Gonçalves Dias. Uma terra de palmeiras e de
cantos, mas onde os pássaros já se comportam de outra forma. Funcionando como metáfora
de um país marcado já por uma década de ditadura militar, o sabiá come o nosso fubá. O
milagre moderno, do desenvolvimentismo sonhado nos primeiros anos do século XX e vendido
como slogan de solução econômica pela ditadura militar, azeda! A água só vira vinagre.
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Além das de Oswald de Andrade e Cacaso, a Canção do exílio ganhou releituras de Casimiro
de Abreu, Murilo Mendes, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade e de autores mais
contemporâneos, como José Paulo Paes, Dalton Trevisan e Chico Buarque, entre outros. Ainda
mais recentemente, o poeta trans Tom Grito fez, no serviço de streaming de áudio Spotify, uma
paródia ao poema de Gonçalves Dias, dando características mais humanas às folhagens da
palmeira, a evocarem uma corporeidade mais livre para pensar e sentir seus prazeres e
afetos.
Imagem: Shutterstock.com
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Realizar, pela palavra, a construção de uma identidade híbrida e em movimento, uma potência
que destrua ideias de unidade e pureza. O Modernismo soube transfigurar elementos que
foram aportados ao novo mundo pelo colonizador, e criaram um discurso, gerando e
promovendo uma identidade híbrida, não unívoca. Mas há outros movimentos da história
cultural e literária que seguiram caminhos parecidos.
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática
dos conceitos de unidade e pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu
significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o
trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. [...] o
trabalho do escritor em lugar de ser comparado ao de tradução literal, propõe-se antes como
uma espécie de tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão.
Esses gestos, que podem conter humor, ironia e violência, não são destruidores, mas criadores
de uma segunda obra, que, em diálogo com a primeira, desmistifica os discursos totalizantes e
cria, a partir dos imaginários afetivos, coletivos e particulares, uma nova gramática para a
compreensão cultural das nossas identidades. Ao falar sobre esse processo de deglutição do
outro para, em uma mistura digestiva, criar outras realidades possíveis, Silviano Santiago bebe
na fonte do Modernismo brasileiro a ideia de antropofagia.
Pensando sobre a relação cultural dos índios antropófagos no gesto de devoração de seus
inimigos, Oswald de Andrade escreve o Manifesto Antropófago:
Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do
mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas
as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question.
(ANDRADE, 1976, p. 26)
Na mistura de raças, línguas e no sincretismo religioso, Oswald retoma o gesto canibal, mas
não de forma literal. Para os índios antropófagos, só era possível comer um valoroso guerreiro
de uma tribo inimiga, pois, ao fazê-lo, aqueles que participavam do ritual ganhavam a força e
as qualidades do outro. Em uma operação literária, Oswald busca incorporar esse traço cultural
indígena nos procedimentos de construção de uma literatura nacional, própria, e não mais
subjugada ao pensamento eurocêntrico. Uma literatura de outra margem do mundo, que se
relacionasse com o que vem de fora a partir da mixagem com suas experiências culturais
próprias.
A PLURALIDADE CONTEMPORÂNEA
Mas a literatura não cuida apenas da identidade nacional. No poema de Tom Grito, por
exemplo, há uma provocação a uma suposta alta cultura, a comportamentos considerados
mais civilizados e, no limite, ao já citado falocentrismo. Outras identidades são mobilizadas.
Ainda no âmbito cultural, o pensamento modernista ligado às ideias de antropofagia,
apropriação e mestiçagem construiu um mito de um Brasil misturado por índios, negros e
europeus. Criou a ideia de que um povo misturado é mais potente do que separado. Mario de
Andrade, um dos grandes mentores do movimento, escreve um poema que une o Brasil de
ponta a ponta.
Descobrimento
Ao redescobrir esse Brasil distante dos grandes centros e realizar uma conexão sob o signo do
brasileiro, Mario de Andrade costura um projeto de integração nacional. Muito embora esse
projeto tenha sido fundamental para repensar o Brasil naquele momento, fazendo surgir novas
ideias sobre que roteiros seguir, os quase 100 anos que nos separam do início do Modernismo
fizeram o Brasil caminhar roteiros diversos e outras vozes se somaram a esse pensamento do
que é uma nação. Roteiros, roteiros, roteiros, é um chamado Oswaldiano, novos
caminhos precisam sempre ser criados.
Na relação entre literatura e identidades, outros corpos aparecem com voz ativa nesse
contexto. A ideia modernista de antropofagia ganha reflexões, inflexões e críticas a partir de
ideias que surgem desses corpos que, em 1922, estavam nas ruas e na produção cultural e
musical, mas fora desse núcleo que cunhou o movimento na famosa Semana de Arte Moderna
de São Paulo daquele ano.
O artista plástico carioca Yhuri Cruz fez, em 2019, uma nova versão das ideias de antropofagia
em seu projeto intitulado Pretofagia. Exposição, ato, performance e literatura se unem em uma
explosão híbrida, que traz novas ideias sobre um Brasil plural que precisa olhar de outra forma
para seu cotidiano de violências e fraturas. A partir da frase “Vida, estou comendo você.”, Yhuri
repensa a antropofagia mediante esse corpo preto marginalizado, apartado do concerto das
ideias, e traz essa boca devoradora para o centro. Ao contrário de separar, Pretofagia inclui
mais bocas nesse gesto de devoração brasileira.
Foto: Andre_MA / Shutterstock.com
Importante lembrar que o samba, nascido em 1917 com a primeira gravação de Pelo Telefone,
as primeiras escolas de samba e todo esse movimento marginalizado aconteceram em
concomitância com o Modernismo oficial. A Pretofagia de Yuhri reconvoca a pensar a
identidade nacional a partir de corpos que, hoje, apesar de todas as violências sofridas, têm
outra participação no cenário nacional.
Evidentemente que não é de hoje que as criações literárias e as ideias do que representa o
povo negro no Brasil estão presentes. Autores como Machado de Assis e Castro Alves, além de
importantes intelectuais como Abdias do Nascimento, haviam já apontado e pavimentado a
história desse pensamento. No entanto, atualmente há uma convocação a um outro
pensamento que seja capaz de resolver o racismo e os preconceitos estruturais específicos de
nossa sociedade.
É a partir dessa convocação que muitos grupos, vozes e visões irão se manifestar pela
literatura chamando a atenção para temas antes impossíveis sequer de serem nomeados. Os
movimentos feminista, negro, LGBTQIA+ terão grandes representantes nesse caldeirão cultural
que move o país. Não é possível ser ingênuo e achar que isso significa uma vitória e o fim dos
preconceitos, mas a ação desses grupos recebe uma reação conservadora gigantesca, a
tentativa, reincidente, do silenciamento.
A escritora Grada Kilomba traz a ideia de máscara ao lembrar da máscara de Anastácia. Uma
imagem recorrente que traz o rosto de uma mulher negra escravizada, com uma mordaça de
metal que a impedia de falar. Calar o outro é um gesto brutal de dominação. Ao perder a voz e
as palavras, perdemos o poder de articular literatura, de vocalizar nossas visões de mundo, de
fabular. É tirando essas mordaças e colocando em jogo, em palavras, pela boca e fixando na
escrita, que poderemos entrar em contato com esses corpos que sofrem com esse silêncio.
Ouvir para poder estar junto nessas lutas.
LITERATURA E DESCOLONIZAÇÃO
O processo de descolonização não se dá somente pela independência de um país, é
importante notar a importância de descolonizar ideias, corpos e comportamentos. Para a
escritora Grada Kilomba, “Descolonização refere-se ao desfazer do colonialismo. Politicamente,
o termo descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e,
portanto, envolve a realização da independência e da autonomia” (KILOMBA, 2019, p. 213).
Kilomba calca seu pensamento sobre descolonização relacionando-o diretamente ao racismo.
Um corpo negro é também descoberto, invadido e subjugado pelo racismo cotidiano. Para se
libertar desse jugo, não basta independência nacional e abolição da escravidão, mas é
fundamental descolonizar esse corpo e trazer de volta sua voz silenciada.
Imagem: Shutterstock.com
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Um novo movimento que surge nos textos por ser esse um espaço possível para articulação da
pluralidade de vozes. São importantes esses olhares, pois podem ler, por outros ângulos,
realidades que são inscritas no corpo.
Existem muitos exemplos na literatura brasileira de escritores que expuseram essas fraturas
em tempos distintos, seja nos comentários dos contos de Machado de Assis ou no romance de
Carolina Maria de Jesus, ou nos contos e poemas de Conceição Evaristo, esse corpo negro
aparecerá resistindo a uma violência externa que se deseja silenciadora. Um apagamento
violento que encontrará respostas fortes como na fala de Evaristo:
Esse ato de resistência de corpos tidos como fora do padrão heteronormativo branco irá ganhar
potência no universo da literatura. Do final do século XX para cá, uma enormidade de autorxs
reafirmam essas vozes de luta em romances, contos e poemas de temática queer, trans e de
sexualidade fluida. A presença dessa polifonia trará para o campo da literatura todas essas
novas ideias sobre as identidades de gênero.
AUTORXS
COMENTÁRIO
Sendo o Brasil uma contradição continental, o país que mais mata transexuais no mundo e o
primeiro na lista dos sites de busca na internet sobre pornografia trans, podemos compreender
o quanto essa literatura é importante para perceber essa violência e instaurar outras
possibilidades de vivências.
Imagem: Shutterstock.com
Dos romances de temática feminista de Virginia Woolf, na primeira metade do século XX, ao
Manifesto Contrassexual, de Paul Preciado, do início do século XXI, poderemos ler a presença
e o grito desses corpos dissidentes em sua luta por espaço, poder político, mas,
principalmente, pela vida.
No prefácio do livro Esses Poetas – Uma antologia dos anos 90, a crítica e antologista Heloisa
Buarque de Hollanda atenta para o surgimento desse concerto de vozes vindas de distintos
lugares. Hollanda atenta para a presença feminina na cena literária, que havia sido já revelada
nos anos 1980 e que se mostra em definitivo, traduzindo-se em números que colocam homens
e mulheres em equivalência; considera o que chama de outing gay, uma presença intensa e
super potente, além de uma proliferação de publicações vindas de áreas tidas como periféricas
como a Antologia dos poetas da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, poetas ligados ao
movimento Mangue Beat, em Recife, e outros conectados aos movimentos sociais como o
MST, espalhados por todo o país.
Ao sair da ideia fixa de que literatura é um oceano que só pode ser navegado por quem tem
acesso a uma certa alta cultura letrada, acontece uma explosão de novos autores vindos
desses outros espaços geográficos.
As transformações culturais das últimas décadas tanto colocam a literatura em xeque como a
transformam, nesse movimento de dupla articulação, do qual já falamos, entre o que adentra e
o que sai do texto. Assim, transforma-se o espaço da fala, do livro, da literatura na rua, nos
muros e na vida em um ambiente combativo, que convoca os autores para uma jornada que
conecta experiências ancestrais e a diversidade de identidades de um mundo múltiplo, que
deve ser capaz de conviver e de se misturar para se tornar mais rico do que o mundo apartado
dos guetos criados pela violência dos corpos que ocupam a posição de poder e querem se
instituir como única verdade.
Nesse sentido, a literatura tem um papel fundamental como esfera de penetração cultural
capaz de lançar um olhar panorâmico sobre questões sensíveis do agora e instituir, por
intermédio de suas estratégias discursivas, novas possibilidades de existências, outras dúvidas
possíveis e sementes que germinem respostas para tempos de mais compreensão e
interconexão.
LITERATURA E IDENTIDADE
Uma "função" histórica da literatura foi promover identidades nacionais. Mas ela tem a ver com
outras identidades também. Continue a assistir a essa conversa para ir além.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
C) utiliza-se do verso livre, como ideal de liberdade criativa; sua linguagem é hermética,
erudita; glorifica o canto dos pássaros e a vida selvagem.
D) poesia e música se confundem, como artifício simbólico; a natureza e o tema bucólico são
tratados com objetividade; usa com parcimônia as formas pronominais de primeira pessoa.
E) refere-se à vida com descrença e tristeza; expõe o tema na ordem sucessiva, cronológica;
utiliza-se do exílio como o meio adequado de referir-se à evasão da realidade.
GABARITO
O poema Canção do exílio foi escrito durante o Romantismo (1836-1881), na sua primeira
geração. A preocupação central dos autores era a definição da identidade nacional brasileira
tempos após a Independência do Brasil (1822). Nesse contexto, a valorização da figura
indígena (considerado o herói nacional) e a exaltação dos elementos típicos da cultura local (e
da natureza brasileira) eram recorrentes nos textos literários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste passeio que fizemos até aqui, refletimos juntos sobre importantes noções para qualquer
grupamento humano: cultura, identidade, sociedade, arte e literatura.
O pensamento se mostrou não apenas de forma abstrata, mas sempre com ilustrações e
exemplos de obras que marcaram sobretudo a cultura e a sociedade brasileira, mas também
outras culturas.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. de. Poesias completas. São Paulo: Edusp, 1987.
ANDRADE. O. de. Canto de regresso à pátria. In: ______. Obras completas. São Paulo:
Difusão europeia do livro, 1966.
AQUARELA do Brasil. Direção: Wilfred Jackson. Música: Ary Barroso e Zequinha de Abreu. [S.
l.]: Walt Disney, 1942. 1 vídeo animação (3 min). Consultado na internet em: 2 jul. 2021.
CAMINHA, P. V. de. Carta de Pero Vaz de Caminha. Consultado na internet em: 11 jun. 2021.
GRITO, T. Minha xota tem palmeiras. In: FALAPALAVRA: Episódio 05 – Tom Grito.
Entrevistadores: Pedro Rocha, Julia Klien e Vitor Paiva. Entrevistado: Tom Grito. [S. l.]: [s. n],
23 abr. 2021. Podcast. Consultado na internet em: 11 jun. 2021.
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
LUDMER, J. Aqui América Latina: uma especulação. Belo Horizonte: EdUFMG, 2013.
ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1,
2018.
EXPLORE+
Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, de Antônio Cândido, é um cânone
incontornável para se pensar a relação entre a literatura e a sociedade.
Vale conhecer a coletânea Literatura e cultura, organizada pelos professores Heidrun Krieger
Olinto e Karl Erik Schøllhammer.
Para conhecer os cantos de culturas orais fixados em português moderno, leia Poesia.br, de
Sergio Cohn.
CONTEUDISTA
Domingos Guimaraens