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Ensaios de

Antropologia
Antropologia e Diversidade Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Edgar da Silva Gomes

Revisão Textual:
Prof. Dr.ª Selma Aparecida Cesarin
Antropologia e Diversidade
Étnica: Raça, Etnia e Racismo

• Etnia e Minoria Étnica;


• Raça e Racialismo;
• Raça e Etnia;
• Racismo: Histórico, Definições e Novos Usos.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Investigar as origens dos conceitos de etnia e raça e o modo como essas noções se articulam
com uma concepção mais geral de cultura que leva à racialização de corpos humanos e às
mais diferentes formas de racismo.
UNIDADE Antropologia e Diversidade
Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Etnia e Minoria Étnica


A palavra “etnia” deriva do grego ethnos, que designa um grupo humano portador
de um mesmo conjunto de traços linguísticos, culturais e/ou “raciais” determinantes de
sua identidade.

É interessante notar que o moderno sentido do termo permaneceu muito semelhante


àquele que lhe atribuiu pioneiramente Heródoto, ainda no século V a.C.: de acordo com
o “pai da História”, aquilo que definia o grego era ter o mesmo sangue, falar a mesma
língua e compartilhar os mesmos hábitos e costumes.

Embora o significado do ethnos antigo tenha sido preservado em essência, as Ciên-


cias Humanas do século XX, especialmente, por meio da Antropologia Cultural, foram
responsáveis por agregar ao conceito de etnia à importante noção de autoconsciência.
Portanto, nossa Disciplina entende que não basta que determinada população com-
partilhe uma cultura, uma língua e uma ancestralidade para que se tenha uma etnia.
É preciso, acima de tudo, que esse grupo se enxergue como parte de um mesmo povo.

Figura 1
Fonte: Adaptada de Getty Images

O debate em torno da questão étnica é complexo e remete a problemas filosóficos


e epistemológicos que em muito extrapolam o escopo da Antropologia. Isso, porque
o conceito está ligado a ideias como identidade, sentimento de pertença, mobilização
política e, em última instância, às discussões sobre os motivos elementares que levam o
homem a ser um animal necessariamente social.

De forma resumida, poderíamos dizer que há duas abordagens principais para o


tema. Por um lado, pode-se tomar a etnia como algo primordial, um laço ancestral
que, independentemente de fatores externos e circunstâncias históricas, une determi-
nada população.

Esse ponto de vista está identificado com as Teorias chamadas essencialistas. Atual-
mente, tal posição enfrenta sérias resistências, já que, desde a década de 1980, estudos
ligados à História Cultural e à Etimologia nos mostram que tradições e mentalidades
aparentemente longevas podem ser construções culturais recentes, por vezes, animadas
pela pura vontade política.

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O caso dos nacionalismos é emblemático: embora saibamos que o moderno conceito
de Nação não tem mais do que 150 anos de idade, e que a maioria dos atuais países tive-
ram seus contornos territoriais e repertórios culturais definidos há pouquíssimo tempo,
o discurso oficial veicula a ideia de que ser britânico, francês, americano ou brasileiro
remete a um sentimento de pertença que une a população desde tempos imemoriais.

Nacionalismo: substantivo masculino.


• Preferência determinada pelo que é nacional; exaltação dos valores de seu país de
nascimento e de tudo o que lhe é particular; patriotismo.
• [Política] Doutrina que prioriza o Estado como fundamental e único na gestão política.
• [Política] Ideologia de governo em que o povo teria poder para criar uma nação, um
Estado absoluto.
• [Literatura] Movimento artístico que valoriza o que é nacional, próprio do povo, da
pátria e de suas extensões, como fator essencial de criação.
Etimologia (origem da palavra nacionalismo). Do francês nationalisme; nacional + ismo.

Fonte: https://bit.ly/39OAiJJ

Outra abordagem possível para o problema consiste em assumir que a etnia é uma
construção histórica, política e social, ou seja, que a identidade étnica, o laço que une
determinado povo, não é algo natural ou essencial, mas uma invenção coletiva.

Essa posição, que podemos classificar genericamente como construtivista, suscita


diversos outros problemas, como o do caráter coercitivo da identidade étnica: até que
ponto a etnia é uma construção espontânea de uma Sociedade e até que ponto ela
responde a interesses políticos e discursos de poder por vezes xenófobos e intolerantes?

Pelo primeiro ponto de vista, o foco da análise recai sobre o caráter naturalmente
dinâmico da cultura. Pelo segundo, destacam-se os aspectos ideológicos do discurso da
pertença étnica.

No âmbito da Antropologia, “etnia”, geralmente, aparece como sinônimo de “povo”


ou “cultura”, no sentido de “Sociedade humana dotada de traços distintivos próprios”.

O termo também esteve associado, especialmente, nos últimos dois séculos, à ideia
de “nação”, mas é preciso tomar cuidado com tal aproximação. Em primeiro lugar, por-
que essa é uma palavra muito jovem, que ganhou seu sentido moderno somente no final
do século XVIII.

Isso significa que ela está intimamente atrelada a noções contemporâneas como a de
Estado nacional, algo absolutamente estranho à maior parte das culturas não ocidentais
do Planeta.

Em segundo lugar, porque “nação” não se refere a um povo que partilha somente
uma língua e uma cultura, mas partilha também um território. Portanto, embora em
alguns casos “etnia” e “nação” coincidam, a nação pode abarcar mais de uma etnia ou,
ao contrário, a etnia ultrapassar qualquer limite nacional.

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Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Já na Linguagem comum, a noção de etnia adquiriu uma carga profundamente pre-


conceituosa que merece nossa atenção: termos como “étnico” ou “grupo étnico” se
referem sempre a culturas diferentes da nossa e, em geral, consideradas inferiores.

Isso inclui Sociedades africanas, indígenas americanas, asiáticas e, a partir especial-


mente da segunda metade do século XX, populações de imigrantes que aportaram na
Europa ou nos Estados Unidos.

Assim, em um interessante processo de inversão, o étnico passou a designar justa-


mente aquilo que não faz parte do repertório cultural “padrão” de uma nação.

Fiquemos com um exemplo caro à realidade brasileira: expressões como “roupa de


estampa étnica” ou “penteado étnico” designam, na maior parte dos casos, vestimentas
e cortes de cabelo ligados ao padrão estético que entendemos como sendo africano – ou
simplesmente “afro”.

Além de revelar uma profunda ignorância por parte do enunciador – tendo em vista
que a África, aludida pelo exemplo, acolhe uma infinidade de tradições culturais e es-
téticas completamente distintas –, essa acepção de etnia carrega traços de exotismo
e primitivismo que remetem, em última instância, a um ponto de vista etnocêntrico e
culturalmente hierarquizante.

Trata-se, portanto, de uma definição que não faz parte do vocabulário antropológico,
mas que deve ser levada em conta para que se compreenda melhor o peso das questões
étnicas no interior das Sociedades contemporâneas.

Leia a Matéria publicada no portal Vila Mulher, disponível em: https://bit.ly/2NLhUJV

Outro ponto importante a ser destacado é a costumeira associação entre etnia e mi-
noria (ou, mais precisamente, minoria étnica).

A Antropologia nos ensina que todo grupo humano que se reconhece dono de uma
tradição cultural singular e diferente das demais pode ser considerado uma etnia.

Ocorre que, no caso das Sociedades ocidentais, o uso dessa noção para designar,
como acabamos de ver, grupos em geral minoritários que destoam da norma cultural de
um país ou comunidade, faz parecer que etnia se refere sempre a comunidades “exóticas”,
como as indígenas, ou restritas a guetos, como no caso dos imigrantes.

Embora corriqueira, essa associação não é obrigatória. Cumpre lembrar que uma
minoria social não se define pela quantidade de indivíduos que dela participam, mas pela
condição – marginal, subordinada, excluída – com que eles se inserem na Sociedade.

Um dos exemplos mais flagrantes de como uma minoria pode ser numericamente
majoritária é o dos negros: em países como Brasil, Estados Unidos ou África do Sul,
cuja população é composta por uma enorme parcela de afrodescendentes, é possível
classificar a comunidade negra, sob vários aspectos, como uma minoria.

O caso dos negros, diga-se de passagem, é a forma mais evidente que a questão étnica
assumiu na nossa cultura. Tanto pelo número expressivo de africanos trazidos ao país

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durante séculos quanto pela forma particularmente perversa com que eles foram inse-
ridos na SOCIEDADE brasileira – diferentemente, por exemplo, das ondas imigratórias
europeias, que nunca vivenciaram situações de escravidão, o racismo contra indivíduos
de pele escura constitui o mais expressivo embate étnico de nossa história.

Mas antes de refletirmos sobre esse problema, precisamos entender melhor a ideia
de raça, suas semelhanças e diferenças com a noção de etnia e sua importância política
ao longo dos últimos séculos.

Quais minorias étnicas você conhece e com quais convive no seu dia a dia? Como você reconhece
que se trata de uma “etnia” diferente da sua? Pelo vestuário? Pela alimentação? Pela linguagem?

Raça e Racialismo
A palavra “raça” deriva do latim ratio que, apesar de possuir mais de uma acepção,
pode ser traduzido como “categoria” ou “espécie”. O uso do termo é antigo e pode ser
encontrado, por exemplo, nos escritos do viajante veneziano Marco Polo que, no século
XIII, relatou seu encontro com a “raça persa”.

Como se pode notar, o sentido original da palavra se aproxima muito daquilo que
hoje entendemos como nação ou povo.

Seu significado atual, intimamente ligado às diferenças físicas observáveis entre os


grupos humanos, ganhou força somente no início da era moderna, quando as Ciências
Naturais, especialmente a Zoologia e a Botânica, procuravam segmentar e classificar os
diferentes seres vivos que habitam o Planeta.

O surgimento da raça como categoria das Ciências Humanas se deve à transposição


do conceito biológico para o campo da Antropologia Física e da Etnografia.

Conforme vimos na Unidade anterior, a Revolução Cultural e Científica pela qual


passou o Ocidente a partir do século XVI – Revolução esta que deu origem à boa parte
dos pressupostos epistemológicos das Disciplinas nascentes no século XIX, Antropologia
inclusa – trouxe consigo a crença de que a Ciência é capaz de compreender plenamente
o funcionamento do mundo e, junto a ela, a defesa da unidade de método entre Ciências
Naturais e do homem.

Imbuídos dessas convicções, os pensadores modernos renegaram as explicações teo-


lógicas para as diferenças entre os povos – explicações que remetem a Jafé, Sem e Cam,
descendentes do patriarca Noé e que, de acordo com o Livro Sagrado cristão, estariam
na origem dos “brancos”, “amarelos” e “negros” – e passaram a recuperar o conceito de
raça já existente nas Ciências da Natureza para explicar as distinções fenotípicas entre
os homens.

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Figura 2
Fonte: Getty Images

Evidentemente, esse tipo de construção teórica não se dá no vácuo, livre de influên-


cias do contexto histórico e social. Portanto, o que pode à primeira vista parecer um
empreendimento científico neutro esteve, desde o início, contaminado por valores etno-
cêntricos e caros à Ciência hegemônica naquela época.

Animados pelo discurso ufanista das nações, pela Teoria darwinista erroneamente
transportada para os estudos sociais e pela força do Colonialismo que avançava sobre
a África e a Ásia, pensadores dos séculos XVIII e XIX passaram não só a identificar
as supostas raças humanas como também a organizá-las em hierarquias, procurando
explicações biológicas para comportamentos morais e situações de aparente atraso
ou primitivismo.

Em um perverso círculo vicioso, a ideologia da raça justificava a dominação imposta


aos povos africanos e asiáticos ao mesmo tempo em que ganhava legitimidade empírica
por meio justamente dessa dominação.

Curiosamente, a noção moderna de raça, que assume sua face mais trágica com a
opressão das populações negras, não coincide com a época de ouro do tráfico negreiro
e da escravidão. Muito pelo contrário: o ideário racialista ganhou força justamente na
segunda metade do século XIX, quando essas práticas estavam em declínio, criticadas
duramente e abolidas em boa parte do Globo.

Isso ocorreu em parte porque a escravatura foi uma instituição plenamente aceita no
Ocidente até meados da Idade Moderna, o que tornava dispensável um intricado aporte
teórico como o do racialismo para sustentá-la moralmente.

Com o advento dos ideais iluministas – aquele homem universal do qual tratamos na
Unidade anterior, dotado de direitos fundamentais inalienáveis – e do Capitalismo como
modo de produção hegemônico (o que alterou profundamente as relações de trabalho),

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a ideia de que um ser humano pode ser objeto de posse passou a ser repudiada, e a ideo-
logia racista surgiu para justificar a continuidade da situação de opressão e desigualdade
tanto dos negros fixados em países ocidentais quanto das próprias Sociedades africanas,
sistematicamente subjugadas por nações como Inglaterra, França, Alemanha e Bélgica.

Afinal, para o ideário racista, a desigualdade entre os homens não advém de uma re-
lação de dominação concreta como aquela que existe entre o senhor e seu escravo, mas
sim de uma determinação biológica que escapa de qualquer controle, posto que ditada
pela própria Natureza.

Como o racismo produziu uma desigualdade social sistemática nos EUA, mesmo depois do
fim da escravidão? Disponível em: https://youtu.be/Mqrhn8khGLM

Mas o que, exatamente, vem a ser raça?

Ao longo das décadas, diferentes pensadores tentaram fornecer respostas precisas e


“científicas” para esse questionamento.

Grosso modo, há duas concepções possíveis (e complementares). A primeira, mais


grosseira, é aquela que se atém quase que exclusivamente às características físicas das
populações. É também a noção que, ainda hoje, está mais profundamente disseminada
em nosso inconsciente coletivo.

Dois de seus teóricos pioneiros foram Alexander Crummel (1819-1898) e Carl von
Linné, ou Lineu (1707-1778). Este último, um naturalista sueco muito influente no seu
tempo e reconhecido até hoje por suas contribuições (de fato louváveis) às Ciências Na-
turais, elaborou uma classificação que ilustra como poucas o rigor científico com que se
tratou a questão das raças humanas e a associação ideológica entre características físicas
e os traços comportamentais.

De acordo com Lineu, o Homo sapiens se subdivide em quatro grupos, sendo eles:
• Europæus albus (“europeu branco”): pele branca, aparência sanguínea (isto é,
pessoa saudável, corada), musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas Leis,
usa roupas apertadas;
• Americanus rubescens (“americano vermelho”, o indígena): moreno, colérico,
cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, tem o corpo pintado;
• Asiaticus fuscus (“asiático moreno”): amarelo, melancólico, governado pela
opinião e pelos preconceitos, usa roupas largas;
• Africanus niger (“negro africano”): negro, astucioso, preguiçoso, negligente,
governado pela vontade de seus chefes (ou seja, propensos ao despotismo), unta
o corpo com óleo ou gordura.

Originalmente, essa classificação é muito mais completa, com descrições detalhadas


das características físicas de cada uma das subespécies.

Procuramos destacar somente algumas dessas atribuições, com atenção especial


à forma com que Lineu relaciona a organização política de cada Sociedade aos seus

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traços biológicos (trechos grifados): segundo ele, temos um homem europeu natural-
mente adaptado ao Estado de Direito contraposto, por exemplo, ao indígena, limitado
a seguir a tradição, o “hábito” – uma Sociedade, portanto, sem dinâmica, sem transfor-
mação, sem história.

O que mais impressiona é o quanto dessa classificação elaborada no século XVIII


permanece incutida no imaginário do Ocidente.

Afinal, se olharmos atentamente para os discursos racistas, é fácil encontrar de


forma mais ou menos evidente essa velha ideia de Humanidade seccionada em quatro
grandes grupos.

Figura 3
Fonte: Wikipedia Commons

A outra concepção possível de raça poderia ser chamada de “histórico-cultural”, pois


ela considera não só os elementos fenotípicos das populações humanas, mas também
suas ancestralidades e práticas culturais.

Seu principal teórico foi William Edward B. Du Bois (1868-1963), defensor da ideia
de que existem, no mínimo, oito grandes raças humanas.

Para essa vertente, a definição de uma raça deve levar em conta também as similari-
dades culturais entre os povos e, especialmente, sua procedência geográfica.

Isso permitiu a Du Bois falar tanto de uma “raça negra”, composta pelos habitantes
da África Subsaariana e por seus descendentes espalhados pelo mundo, quanto das
raças “eslava” ou “românica”, ambas brancas.

É importante que deixemos claro o significado de racialismo, para que ele não seja
confundido com racismo. O termo se refere simplesmente à aceitação da ideia de raça
como paradigma teórico, sem hierarquias ou juízos de valor a priori.

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Crummel e Du Bois – eles próprios negros – foram, como vimos, racialistas, mas
ambos se engajaram num movimento político e intelectual chamado Pan-Africanismo,
defensor da união e do fortalecimento da raça negra justamente contra o racismo e a
subjugação do continente africano pelas potências ocidentais.

Essa ideia pode parecer estranha hoje, haja vista que o conceito de raça humana já
foi desacreditado pelas pesquisas científicas e que, após experiências traumáticas como
o Holocausto judeu ou o apartheid sul-africano, sabemos que a crença nas diferenças
biológicas entre os homens pode levar a caminhos políticos temerários.

Mas no século XIX, período em que o conceito moderno de raça ganhou força e
legitimidade, tal noção era perfeitamente aceita nos meios científicos mais sofisticados,
e sua utilização não atendia necessariamente à ideologia da inferiorização.

Raça e Etnia
Nesse momento, já devem estar mais claras as diferenças existentes entre etnia e
raça. De modo geral, pode-se dizer que a raça se define sempre, embora não exclusi-
vamente, com base em aspectos biológicos, fenotípicos, enquanto a etnia está ligada a
aspectos culturais, sociais, históricos e até psicológicos.

Figura 4
Fonte: Getty Images

É por isso que uma suposta raça – como, por exemplo, a negra – pode abarcar uma
série de etnias diferentes. É também notável que a etnia só se concretize a partir do
autorreconhecimento de certo povo enquanto unidade cultural. Isso significa que, diver-
samente da raça, uma identidade étnica não pode ser impositiva.

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Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Mas ainda é preciso analisar melhor a questão do racismo. Isso porque a noção cor-
rente nos dias de hoje é muito diferente daquela empregada há, digamos, meio século.
É sintomático que, atualmente, chamemos de “racismo” preconceitos que se voltam,
na verdade, contra etnias, tais quais indígenas, migrantes ou estrangeiros. Embora possa
parecer um erro conceitual grosseiro, esse vocabulário costuma ser consciente e poli-
ticamente orientado, pois reflete as configurações particulares que o racismo adquiriu
historicamente na nossa Sociedade.
É sobre esse percurso, especialmente, com relação ao caso brasileiro, que nos ate-
remos agora.

• Raça: é definida majoritariamente por aspectos biológicos e, portanto, por características


físicas das pessoas (cor da pele, tipo de cabelo, altura, formato da cabeça etc.);
• Etnia: é definida, em grande parte, por hábitos e costumes compartilhados por um grupo
social (tipos de comida e de roupas, formas de expressão artística e linguística etc.)

Racismo: Histórico, Definições e Novos Usos


O conceito de racismo se disseminou e ganhou concretude teórica somente no início
do século XX (não o confundir com raça ou racialismo que, como vimos, são ideias bem
anteriores a esse período).
Desde então, o termo recebeu inúmeros significados por parte de defensores e crí-
ticos, mas até meados daquele século, todas as concepções racistas se ancoraram de
alguma forma no pressuposto de que as raças humanas possuem características físicas
transmitidas hereditariamente, e que dessas características derivam qualidades morais,
intelectuais, psicológicas, estéticas, religiosas, linguísticas e culturais.
A partir dessa perspectiva essencialista e determinista, construíram-se escalas va-
lorativas para as diferenças entre os homens, sempre baseadas numa suposta divisão
primordial, biológica, da espécie.

Ao longo das décadas, o racismo serviu de base para uma série de políticas segrega-
cionistas fomentadas pelo próprio Estado. Dois dos casos mais relevantes são o norte-
-americano e o sul-africano.

No primeiro, as Leis raciais perduraram até a década de 1960, quando movimentos


sociais massivos, como aquele liderado por Martin Luther King, pressionaram politica-
mente o Governo a aprovar a chamada Lei dos Direitos Civis de 1964, que extinguiu for-
malmente a discriminação da população afrodescendente nos Estados Unidos – embora
o preconceito de fato tenha perdurado.

Já no caso da África do Sul, o regime de apartheid (“separação”, em africâner) dividiu


a população do país em três grupos raciais – os brancos, os colorados (mestiços) e os ne-
gros, garantindo à minoria branca privilégios como reserva de porções territoriais, acesso
a locais públicos restritos aos negros e usufruto pleno dos direitos políticos, entre outros.

Essa forma de segregação oficial durou entre 1948 e 1994.

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Você Sabia?
Martin Luther King Jr. foi um pastor batista e o principal nome do movimento por Direitos
Civis nos Estados Unidos entre as décadas de 1950 e 1960. Sob a sua liderança, o movi-
mento antirracista americano organizou diversos protestos não violentos de Desobedi-
ência Civil. Entre eles, o mais emblemático foi a chamada Marcha Sobre Washington,
ocorrida em 28 de agosto de 1963, na qual cerca de 250 mil pessoas se reuniram para
reivindicar o fim da segregação racial naquele país. Foi nessa Marcha que fez seu discur-
so mais conhecido que se inicia com a frase “Eu tenho um sonho” (I have a dream). Martin
Luther King foi assassinado a tiros em Memphis, em 4 de abril de 1968.

Fonte: https://bit.ly/3wy2077

O caso do racismo no Brasil carrega algumas peculiaridades que merecem nossa


atenção. À semelhança dos Estados Unidos, nosso país viveu o trauma da escravidão e
recebeu quantidades massivas de africanos cativos entre os séculos XVI e XIX.
Por isso, a identidade da comunidade negra nacional não se funda em traços étnicos,
remetidos a antepassados vindos de diferentes regiões da África e portadores de tradi-
ções culturais diversas, mas sim sobre o elemento concreto da cor de pele: o escravismo
e a segregação não atingiram bantos ou iorubás, duas etnias africanas, mas simples-
mente negros.
Isso também explica porque a questão étnica brasileira adquiriu majoritariamente o
caráter de luta contra a discriminação racial. Embora o preconceito contra práticas cultu-
rais e linguísticas também exista em nosso país, a forma mais evidente de discriminação
ao longo da nossa história foi propriamente racista, voltada ao enorme contingente de
afrodescendentes que compõe a população.
No entanto, diferentemente da grande maioria das nações com passado escravista,
o Brasil nunca teve Leis de segregação racial como as americanas ou sul-africanas.

Isso significa que, embora os negros tenham sido sistematicamente excluídos de fato
da economia nacional e dos processos de decisão política, embora o país tenha adotado
políticas deliberadas de “embranquecimento” da população com a “importação” de imi-
grantes europeus após o término da escravidão, e embora várias de nossas instituições
tenham sido (e ainda sejam) discriminatórias em relação à comunidade negra, o racismo
nunca foi uma prática oficial.

Figura 5
Fonte: Getty Images

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Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Isso alimenta, por um lado, ideias como a de democracia racial, ideologia ancorada
na crença de que o Brasil e as demais regiões colonizadas pelas nações ibéricas (Portugal
e Espanha) foram mais tolerantes com os cativos trazidos da África do que, por exemplo,
a Sociedade norte-americana, na qual houve Leis raciais.

Prova disso seria a prática corriqueira da miscigenação entre europeus, negros e


indígenas nos tempos coloniais, um elemento supostamente basilar da cultura nacional.

Por outro lado, essa ideia interdita o debate sobre o racismo no país, já que, via de
regra, nossas práticas discriminatórias são veladas, não oficiais e obscurecidas pelo mito
da “cultura mestiça” que alega não existir preconceitos de cor.

A partir aproximadamente da década de 1970, os estudos científicos de ponta, espe-


cialmente aqueles protagonizados pela genética, derrubaram progressivamente a ideia
de raça, demonstrando a irrelevância das diferenças biológicas entre os seres humanos
e, acima de tudo, a inexistência de qualquer conexão entre Biologia e Cultura ou capa-
cidade intelectual.

Com isso, o racismo “clássico”, ancorado na velha ideia de raça, entrou em franco
declínio. No entanto – e esse é o ponto central para a discussão que se faz no âmbito
das Ciências Humanas, seus mecanismos de funcionamento sobrevivem e continuam
presentes nas práticas sociais até os dias de hoje.

A regra básica do velho racismo dependia da associação direta entre Biologia e com-
portamentos coletivos. Quando a Ciência provou a inexistência de tais aspectos bioló-
gicos, o “racismo contemporâneo” entra em cena para biologizar determinados Setores
sociais, isto é, a considerá-los membros de um grupo específico de homens, portadores
de uma Humanidade própria e distinta das demais, para então, como antes, atribuir-lhes
traços comportamentais coletivos.

É por isso que se pode falar em racismo contra estrangeiros, migrantes, membros de
grupos religiosos distintos e, no limite, mulheres, jovens, idosos, homossexuais.

Embora a ideia de raça não esteja necessariamente em jogo em nenhum desses casos,
o mecanismo de exclusão que ela carrega – isto é, a crença de que os homens são desi-
guais por natureza – continua a ser usado, de modo inconsciente.

Esse uso do conceito de racismo pode ser problemático. Em primeiro lugar, ele não
faz parte de um vocabulário conceitual mais rigoroso, como o da Antropologia, pois re-
corre a analogias e metáforas, além de costumeiramente confundir noções como raça e
etnia. Ele também pode contribuir para banalizar a experiência das populações verdadei-
ramente estigmatizadas em termos racistas, tirando a especificidade histórica de eventos
traumáticos como o apartheid na África do Sul ou os regimes escravistas nas Américas,
e relegando o signo do racismo a qualquer experiência de rejeição ou injustiça social.

Mas esse uso não pode ser ignorado, pois ele evidencia o principal desafio teórico
enfrentado hoje por aqueles que combatem o racismo, a saber: essa forma de precon-
ceito não depende mais da crença na raça para ter funcionalidade social. Essa é uma
ideia que ajuda a entender, inclusive, a permanência de condutas preconceituosas contra
populações estigmatizadas no passado pelo racismo “clássico”, como os negros, mesmo
que o conceito de raça tenha perdido completamente sua validade.

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Figura 6
Fonte: Getty Images

O racismo contemporâneo se baseia numa essencialização que não é mais racial-bioló-


gica, mas, acima de tudo, histórica e cultural. É sensato supor que parte considerável (se
não majoritária) dos atuais racistas não acredite na velha noção de raça, mas a associação
entre modelos de comportamento e determinados grupos sociais, como se eles fossem
donos de uma essência inescapável, transmitida hereditariamente, permanece corriqueira.
Se antes eram os aspectos fenotípicos que determinavam os limites de cada grupo,
hoje é a cultura, a história ou a procedência que mais contribuem para a estigmatização.
Curiosamente, os vários racismos contemporâneos se voltam, muitas vezes, contra as
minorias étnicas, e não contra as raças.
Os exemplos desse tipo de comportamento são inúmeros. Basta pensarmos, para
usar um caso já “clássico”, no racismo presente hoje nos países da Europa Ocidental
contra árabes, africanos e, a partir dos anos 1980, contra imigrantes vindos de países
do chamado Terceiro Mundo e da antiga Europa Oriental.

No seu dia a dia, quantas pessoas que você conhece que ocupam posições de chefia em
Empresas ou escritórios são negras e indígenas? Quantas são brancas?

Ao que tudo indica, nosso século será marcado pela luta contra esse novo racismo,
baseado nas diferenças culturais e identitárias, que emerge após o declínio da ideologia
racialista elaborada entre o fim do século XVIII e o início do XX.
Alguns dos desafios políticos e também teóricos (especialmente importantes, por-
tanto, para os cientistas sociais) já se desenham no horizonte: a luta pelo respeito às
diferenças culturais e pela construção de políticas públicas multiculturalistas pode ser
protagonizada tanto por antirracistas quanto por racistas.
Os primeiros pedem o reconhecimento de sua identidade cultural particular ou, em
outras palavras, a afirmação das diferenças para que se possa construir verdadeiramente
uma situação de igualdade e respeito à diversidade.

Já os segundos, fortemente organizados na Europa, podem reivindicar esse mesmo


tipo de proteção para a sua cultura, que já é hegemônica, numa tentativa de viver sepa-
rados de árabes, africanos, hispânicos... enfim, dos “não-ocidentais”.

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Étnica: Raça, Etnia e Racismo

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
Seus Olhos viam Deus
HURSTON, Z. N. Seus Olhos viam Deus. Rio de Janeiro: Record, 2002.

Filmes
A Cor Púrpura
1985, Estados Unidos; direção: Steven Spielberg.
https://youtu.be/V3NFGsA8hX4
Green Book: o Guia
2018, Estados Unidos; direção: Peter Farrelly.
https://youtu.be/QxXJ7vkFk48
Infiltrado na Klan
2018, Estados Unidos; direção: Spike Lee.
https://youtu.be/bbOJwWSEUmo

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Referências
BENEDICT, R. O crisântemo e a espada. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BOAS, F. Antropologia cultural. Seleção de Celso Castro. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2010.

CASTRO, C. Apresentação. In: ______ et al. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro:


Zahar, 2005.

COMTE, A.; MORAES FILHO, E. (org.). Auguste Comte: sociologia. 3. ed. São Paulo:
Ática, 1989.

DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:


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