Você está na página 1de 11

As Corporações de Ofício e a Revolução Industrial

Marcelo Andrade

As corporações de ofício da Idade Média foram a forma de organização


de trabalho mais perfeita da história. Na historiografia, muito se esconde sobre
as corporações de ofício, falando pouco delas e geralmente falando mal,
falando que elas eram tipos sindicatos da Idade Média e que garantiam o
monopólio.

Na Grécia e Roma antiga, o trabalho manual era uma coisa desprezada,


direcionado só para escravos, estrangeiros e condenados. E em outras
sociedades pagãs também, como na China onde o trabalho de comerciante era
desprezado. Já na Idade Média, a Igreja Católica deu uma dignidade muito
maior aos trabalhadores manuais. Uma coisa que colabora é que José era
carpinteiro e Cristo aprendeu essa profissão com ele, que era seu pai adotivo,
e Cristo também escolheu um pescador para ser o chefe da Igreja, São Pedro.
Então essa atividade dos artesãos foi dignificada, principalmente pelos
beneditinos, que fundaram a Europa medieval, seguindo a regra de São Bento,
de São Bento da Núrsia (480-547). Nos mosteiros beneditinos se trabalhava e
orava, “Ora et labora, Deus adest sine mora”.

Quando as invasões dos muçulmanos, magiares (húngaros) e vikings


começaram a cessar lá para o século XI, o comércio renasceu na Europa e
começaram a surgir rotas comerciais importantes e as cidades cresceram. As
corporações de ofício vão surgir então nesse século XI, em todo lugar, desde
Portugal até os limites do mundo eslavo, sul da Itália, e Inglaterra. As
corporações eram conhecidas por:

 Mercadantia ou collegia notariorum na Itália;


 Confréries na França;
 Guilds na Inglaterra, Suécia e Holanda;
 Innungen, Gilden ou Zünfle na Alemanha;
 Grêmios na Espanha;
 Bandeiras de Ofício em Portugal.

A formação das cidades gregas era feita da seguinte forma: várias


famílias se reuniam e formavam uma fratria, que reunia com outras fratrias e
formava uma tribo, que reunia com algumas tribos e formava uma cidade. Na
Idade Média, isso foi replicado em outras esferas além do mundo político. No
âmbito político, os mais baixos eram barões, depois acima estavam condes,
depois duques, e reis, e às vezes um imperador. Um monge podia ser vassalo
de um nobre, e um nobre de um monge, como o rei da França que era vassalo
do bispo de Paris. O príncipe de Andorra era vassalo do bispo de Seo de Urgel
(Espanha). Além de vínculos econômicos, as corporações de ofícios tinham
vínculos morais, como qualquer relação do feudalismo, que depende da
relação de honra.

A corporação de ofício era consubstanciada entre o aprendiz, o oficial e


o mestre. O aprendiz se iniciava com 12 a 14 anos, e se fosse o caso ele
avançava para ser um oficial, e depois um mestre. Para se tornar um mestre,
era necessário a pessoa defender o seu saber perante um conselho da mesma
corporação de ofício. E além disso, a Universidade que formava as pessoas
para a área técnica era junto da corporação de ofício. A obrigação dos
aprendizes eram obedecer ao mestre e respeitá-lo, e a obrigação do mestre
era ser um guia espiritual do aprendiz e além de ensinar o ofício, ele zelava
pela salvação da alma do aprendiz. Se alguém morria dentro da estrutura das
corporações de ofício, a própria corporação pagava o enterro e sustentava as
viúvas.

As corporações ficavam somente nas cidades, e nos feudos havia uma


estrutura paralela à esta que as banalités. O feudo era uma zona rural, onde
havia um castelo obviamente, e havia uma produção agrícola, mas também
tinha algum trabalho manual não-agrícola, como ferreiros, gente que mexia
com forno, carpinteiro, etc. Esses banalités eram em francês, análogas às
corporações de ofício só que para as profissões dentro do feudo. Se trabalhava
8 horas por dia, mais no verão e menos no inverno, e tinha muitos feriados por
causa de dias santos.

Além disso tudo, ainda tinha as irmandades religiosas, que tinham


funções das mais variadas. Para se ter uma ideia, nos Estados Papais chegou-
se a ter mais de 10.000 irmandades religiosas. Tinha irmandade só para cuidar
da festa do Natal, outra para Corpus Christi, outra pra Páscoa, outras para
alimentar os pobres, etc. O contato com essas irmandades caritativas e as
corporações de ofício foi muito intenso e as corporações começaram a assumir
santos padroeiros. Em Portugal, as corporações que adotavam um santo eram
chamadas de Bandeiras de Ofício, porque elas adotavam a bandeira com a
figura do santo. No dia do santo da corporação não se trabalhava, mas se fazia
procissões para este santo. São José era padroeiro dos carpinteiros, São Jorge
era dos ferreiros e serralheiros, Santo Elói dos ourives e joalheiros, São
Crispim e São Crispiniano dos sapateiros, Santa Cecília dos músicos, etc.
(brasões das corporações de ofício de várias profissões)

Havia também uma espécie de direito do consumidor da época, mas do


bem, diferente do atual todo burocrático. Havia uma certa corporação que fazia
colchões, e ele só podia fechar o colchão na frente do consumidor, para ver
que ele não tinha colocado nada errado dentro. Em 1691, havia em Paris 120
corporações de ofício, e chegou-se a ter corporações de ofício de jardinheiros.
As corporações também tinham certa representação política, e quando o rei
convocava as cortes, um mestre de uma corporação podia ser convocado por
ser competente e não por ser o mais votado. Em Portugal por exemplo, havia a
Casa dos 24, que representava 12 corporações de ofício, onde se discutia com
o rei certa questões relacionadas às corporações de ofício, criada em 1383.
Elas também eram juízes nos temas relacionados à ela, e um artesão podia
ficar de 4 a 8 anos preso só por uma pena leve.

Além disso, os beneditinos estabeleceram na Europa um direito dos


pastores levarem seu rebanho em qualquer lugar sem interrupção. E esses
pastores tinham o mesmo status de uma corporação de ofício na Espanha, e
podia se sentar ao lado do rei espanhol para discutir algumas questões.

As corporações de ofício vieram para a América com a colonização, e na


América Espanhola se chamava Grêmios e no Brasil as Bandeiras de Ofício.
No Brasil se ensinava índios, escravos e ex-escravos em várias funções, e
chegou a ter muitas em São Paulo. Várias aldeias ficavam famosas por ter um
índio com um destaque em determinado trabalho, e então gente da cidade ia lá
e oferecia um contrato de trabalho ao índio, e tinha uma lei proibindo ele sair do
aldeamento. Algumas irmandades religiosas ainda existem em Minas Gerais, e
na época do Brasil Colônia chegou a ter 5000 irmandades religiosas. No Brasil
tinha escravo artesão, que muitas vezes tinha outros escravos trabalhando
para ele. E tinha escravo que apesar de não ter o título de artesão, tinha o
trabalho muito valorizado.

Há vários que falam que as corporações de ofício eram semelhantes à


sindicatos modernos. Nada poderia estar mais longe da verdade, porque na
corporação de ofício a representatividade política do mestre, aprendiz, e o
oficial juntos, enquanto no sindicato é o patrão contra o operário. Outra mentira
é que as corporações garantiam o monopólio comerical e impediram o
desenvolvimento tecnológico. Em certos casos houve sim monopólio, mas as
corporações só tinham um determinado direito em uma determinada região.
Mas havia exceções como a dos pedreiros livres, porque eles eram
construtores e tinham o direito de mudar de região, e depois a maçonaria vai
adotar esse nome porque alguns desses pedreiros livres se corromperam. No
entanto, com a grande crise do século XIV, muitas vezes os governos
começaram a favorecer os monopólios, porque o estado nacional foi sendo
criado. Durante esse período, para tentar resolver o problema da crise, o
estado inglês impôs controle de salários. Mais tarde apareceu o Estatuto do
Trabalho, de 1351, que estabelecia, entre outras coisas, trabalho forçado e
controle de salários e tornou crime contratar alguém que tinha pedido
demissão. E, por fim, o Estatuto de Cambridge, de 1388, proibiu a mobilidade
da mão-de-obra.

Com a Reforma Protestante em 1517, tudo vai mudar e as corporações


não vão ficar de fora. Mas João Calvino (1509-1564) foi mais importante nessa
parte das relações de trabalho do que Lutero. Max Weber vai associar o
pensamento capitalista aos protestantes, no seu infame livro “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Isso é uma meia-verdade, porque ele
não foi até o final. Outro livro importante foi o “Judeus e o espírito capitalista”
do Werner Sombart, que era amigo do Weber. Sombart vai provar que o
capitalismo é uma noção principalmente judaica e não calvinista como Weber
falava.

Boa parte das ideias de Lutero vem da Cabala judaica, e o Calvino


também, mas na parte do Talmud. Os judeus tem uma visão contratualista com
Deus, e no Talmud está escrito que Deus tem um livro de contabilidade para
cada um de nós. Se eu faço todas as regras judaicas então eu tenho direito de
ter tal coisa. Esse contratualismo vai influenciar toda a visão contratualista no
trabalho, no direito e na política, que vai influenciar Hobbes, Locke, Rosseau, e
vai destruir a civilização. A lei natural para esses pensadores é compreendida
pela razão humana, e a vontade tem que seguí-la. O contrato é baseado na
vontade entre as partes, e então o contratualismo é baseado no voluntariamo e
não na razão. E pela sua natureza ele vai criar direitos e não reconhecer
direitos anteriores.

O capitalismo vai fazer o trabalho ser uma relação contratual entre


patrão e empregado. Na corporação de ofício havia um contrato moral, onde
alguém ia ensinar a profissão a outra pessoa, que ia ter o ganha pão dele, e
um ia apoiando o outro na religião, na velhice, se alguém ficasse doente. O
Talmud tem passagem que elogia e engrandece o rico só por ser rico, e
amaldiçoa o pobre. E todas essas ideias do Renascimento e da Reforma
Protestante foram se disseminando ao longo da Idade Moderna.

O Absolutismo foi forte em boa parte da Europa na Idade Moderna,


sendo mais forte depois da Paz de Vestifália em 1648. O Absolutismo consiste
na concentração de poder nas mãos do rei, tirando o poder dos corpos
intermediários representados pelas corporações de ofício.

E obviamente as corporações de ofício começaram a acabar na


Inglaterra, por causa das Revoluções Protestantes e da Revolução Industrial. A
Revolução Industrial começou por volta de 1780 e vai até 1830, e foi criminosa.
A Inglaterra estava muito pobre neste período, e a Revolução Industrial
começou empregando trabalho infantil e mulheres e jovens. Teve caso de
crianças de 6 anos trabalhando em indústria têxtil e teve alta mortandade de
crianças. Vários pais que passavam fome vendiam suas crianças para as
fábricas têxteis e para as minas. Várias crianças tinham que consertar as
máquinas e tinham membros decepados nos teares mecânicos, e até morriam
em acidentes de trabalho. As crianças também limpavam chaminés e muitas
morriam caindo, além de trabalhar em minas de carvão. Pra se ter uma ideia do
quão insalubre era trabalhar nas minas neste período, na Roma antiga
trabalhar em mina era degredo equivalente à pena de morte.

A sociedade inglesa era tão imoral nessa época que tinha até comércio
de esposas, e durou mais de 100 anos. Os pastores anglicanos faziam vista
grossa, e a primeira legislação proibindo foi lá para 1905. Os operários
trabalhavam de 12 a 14 horas por dia, e tinham um dia por mês de folga
apenas, e os comerciantes aumentavam o preço neste dia. A Inglaterra
também criou uma lei de cercamento do espaço, proibindo os pastores de
trafegar sem limites. Esses cercamentos aconteceram no leste da ilha e então
as famílias se mudaram para o oeste.

O que melhorou a vida das pessoas não foi a Revolução Industrial, mas
sim o crescimento tecnológico, que iria surgir com ou sem ela. Dizem que de
100.000 a 500.000 operários morreram neste 50 anos. Essa mentalidade da
Revolução Industrial foi para o continente, foi para a Itália, Alemanha, Rússia,
França, Espanha, e depois para a América. E a Revolução Industrial é a mãe
do marxismo. E as corporações de ofício foram sendo extintas. Havia 100.000
artesãos em Londres vinculados à corporações de ofício pouco antes da
Revolução Industrial. No Brasil, as corporações de ofício foram abolidas na
Constituição de 1824, e Portugal mais ou menos na mesma época. Na
Espanha, foram abolidas ao longo das guerras carlistas (1833-1876), na Itália
pouco depois da unificação italiana (1848-1870), na Alemanha pouco antes da
unificação (1865-1870). No Império Áustro-Húngaro, último bastião católico do
mundo neste período, a corporação de ofício só foi abolida na década de 1890.

Um escravo no Brasil tinha uma condição de vida muito melhor do que


um operário inglês, e se discutia porque acabar com a escravidão aqui para
substituir pela Revolução Industrial. O escravo no Brasil no século XIX não
trabalhava nem no sábado e no domingo. Só hoje que falamos da Revolução
Industrial como um mero progresso da técnica, e na Rússia, no Brasil, na
França, na Itália, se discutia a mentalidade da Revolução Francesa.

Na Europa, ainda há alguns locais que guardam resquícios das


corporações de ofício, guardando o título de mestre, como mestre dos padeiros
na França, mestre cervejeiro, etc.

O mestre de uma corporação de ofício preocupava além de ensinar sua


técnica ao aprendiz, em ensinar religião, moralidade, e os dois se ajudavam na
vida. Já o chefe da indústria só ensina a técnica para o operário, e não está
nem aí se ele é alfabetizado, se é religioso, se tem algo para comer, se tem
alguém parente doente, etc. Além disso, a educação já estava corrompida por
Lutero e Comenius, que estatizaram a educação, tornando-a autoritária,
burocrática, financiada por impostos, e Comenius é considerado patrono da
Unesco.
A segunda fase da Revolução Industrial, que ocorreu do final do século
XIX e começo do século XX, em especial de 1870 a 1930, teve como principal
alvo os Estados Unidos. Aí vem o fordismo, ressaltando a produção setorial e
em escala, onde um empregado faria apenas o pneu do carro, outro faria
apenas a lataria, outro o motor, etc. Ford chegou a investir na União Soviética,
na Alemanha nazista, e gostava do Mussolini. Stalin, Hitler e Mussolini
chegaram a perceber que o modelo do Ford favorece as massas, no sentido de
empregar muita gente, e então serviria para o propósito do socialismo. Além
disso, os produtos da Ford favorecem o igualitarismo, porque os carros da Ford
são todos iguais, como foi o modelo mais famoso.

Qual a diferença entre comprar uma calça de um alfaiate e comprar uma


calça de uma grande empresa multinacional? Se eu compro do alfaiate, eu
cumprimento ele, conheço ele, tomo um café na casa dele, ele vai me medir, e
ele vai fazer uma calça que só vai servir bem em mim. Eu tenho uma relação
pessoal com o alfaiate, que vale mais do que a calça em si. Se eu comprar
uma calça de uma grande empresa, eu não conheço o dono da empresa, não
sei quem fez a calça, pode ter sido um escravo chinês, a calça não foi feita pra
mim, foi feita pra quem servisse, eu só tenho a marca estampada, ou seja, a
coisa, e não a pessoa. A mesma coisa ocorre com banco por exemplo, porque
antes no Brasil, cada banco era uma agência bancária, e podia se conversar
direto com o dono.

A Revolução Protestante promoveu a igualdade na religião, a Revolução


Iluminista promoveu a igualdade na política, e a Revolução Industrial e
Socialista garantiu a igualdade econômica. Nós sabemos que não existe
igualdade porque existem hierarquias, e essas hierarquias devem ser
respeitadas para se ter harmonia nas relações humanas. Não se tem mais uma
estrutura hierárquica entre aprendiz, oficial, oficial jurado e mestre. Você vai ter
uma massa de operários, que vão ganhar a mesma coisa, que vão pensar a
mesma coisa, que vão comer a mesma coisa, tudo igualitário. Você vai ter no
topo um patrão que não está nem aí, só quer ganhar dinheiro, não importando
com o bem-estar da população.

O Mac Donalds é o exemplo perfeito do fordismo, porque o lanche é


ruim, com gosto de isopor, a produção é feita em massa, e o lanche é a mesma
coisa em todo lugar do mundo. É um lanche que você come rápido (fast-food),
só pra recarregar as suas energias e poder trabalhar mais, igual uma fábrica
fordista. Além disso, essa empresa é uma empresa corporativista que vive de
aliança com governos pra regular pequenas hamburguerias ou pequenos fast-
foods e garantir o monopólio.

Já o vinho, que não dá pra ser industrial, ele tem uma alma de
corporação de ofício, e por isso onde você toma é sempre diferente e único. As
corporações de ofício impedem por sua própria natureza, que surjam grandes
empresas corporativistas e monopólios, porque é infinitamente melhor ter
milhares de empresas pequenas e médias em um setor, do que ter uma ou
quatro empresas gigantescas nesse setor.

A terceira revolução industrial é a do mundo digital, que ocorre de 1969


e de certa forma até hoje. Essa revolução intensifica a coisificação das
relações humanas, porque coloca uma máquina entre os indivíduos, o
computador. A tecnologia nunca é mal em si, mas o abuso do uso da
tecnologia é ruim. O computador e todos os avanços digitais são muito bons,
mas o vício em usar esse mundo virtual pode ser danoso às relações humanas.

E hoje, na Quarta Revolução Industrial que estamos vivendo, temos a


Internet das coisas. Um aparelho de internet vai conversar com outro, como
uma geladeira conversar com outro eletromagnético. Isso nos torna ainda mais
escravos da tecnologia.

Referências
https://prezi.com/gyzsv09y6fi1/corporacoes-de-oficio/

Você também pode gostar