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AS LUZES E OS PORÕES DOS TUMBEIROS: MAÇONARIA,

NEGOCIANTES E TRÁFICO ATLÂNTICO NO BRASIL JOANINO E DO


PRIMEIRO REINADO

Autor: Gustavo Alves Cardoso Moreira (Historiador-Museu Nacional/UFRJ)

Palavras-chave: maçonaria- tráfico atlântico- escravidão

O processo de estruturação da Maçonaria moderna remonta, segundo a


historiografia especializada, ao ano de 1717, quando quatro lojas inglesas, cujos nomes
correspondiam aos das tabernas onde seus integrantes se reuniam (O Pato e a Grelha, A
Coroa, A Macieira e O Copo e as Uvas), formaram a Grande Loja de Londres. Elas
passaram a eleger um grão-mestre com autoridade sobre todos os membros.
Congregando “homens de diferentes raças, religiões e línguas”, a ordem rompeu com
uma tradição medieval, ao deixar de ser um conjunto de “velhas confrarias de
pedreiros” para incorporar outros indivíduos, não vinculados às corporações de ofício
ou ao setor da construção, que ficaram conhecidos como “maçons aceitos 1”.

Por outro lado, os maçons londrinos preservaram em grande parte a herança


ritualística da Idade Média, transmitida, segundo Colussi, pela “tradição oral” e por
“escritos esparsos”. Este processo se desdobrou na elaboração dos Landmarks, código
de conduta composto por normas escritas e não escritas, e na Constituição de Anderson,
datada de 1723, que firmou “os fundamentos jurídicos mais completos e importantes”
da instituição. Conforme a mesma autora, a Constituição possibilitou “o início da
exteriorização da Maçonaria”, apresentada ao mundo como um espaço em que,
contrastando com uma “conjuntura histórica de intolerâncias e perseguições”, poderiam
conviver homens com variadas opiniões sobre política e religião 2.

A Maçonaria logo estendeu sua atuação ao continente, com o surgimento, em


1725, de uma loja em Paris. Seu crescimento na França foi notável: no momento
anterior à Revolução de 1789 havia cerca de 50 mil maçons no país, predominando
“burgueses, nobres, religiosos ou militares”; nos termos de Barata, não existia “uma

1
Ver Alexandre Mansur Barata. Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910).
Campinas: Editora da Unicamp, Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 29.
2
Ver Eliane Lucia Colussi. A Maçonaria gaúcha no século XIX. Passo Fundo: Ediupf, 1998, p. 34-35.
cidade que não possuísse sua loja 3”. Em Portugal, a ordem se instalou em 1728, quando
apareceu em Lisboa uma loja de protestantes ingleses, apelidada “Loja dos Hereges
Mercantes”. Cinco anos depois, católicos da Irlanda criaram a Casa Real dos Pedreiros
Livres da Lusitânia, que abria às quartas-feiras nos fundos de uma taverna. Ali,
debatiam sobre temas científicos, promoviam banquetes e ouviam música4.

Existe certa controvérsia a respeito do início das atividades maçônicas no Brasil.


Antônio do Carmo Ferreira, que ocupou o cargo de grão-mestre do Grande Oriente
Independente de Pernambuco, diz que nos meses de março e abril de 1996 foram
comemorados os duzentos anos do Areópago de Itambé, sociedade que funcionou entre
1796 e 1801 na vila de Itambé, localizada a 92 km de Recife. O Areópago foi criado
por Manuel de Arruda da Câmara, paraibano de Pombal que, ordenado frade carmelita
em 1783, rumou seis anos depois para Portugal para estudar Filosofia5. Deixando a
Universidade de Coimbra, Câmara se mudou para Montpellier, na França, onde cursou
Medicina e se especializou em Botânica. Ali, segundo Ferreira, teria sido iniciado em
uma das várias lojas maçônicas, para depois, no regresso à colônia, “doutrinar sua gente
para o grande salto da liberdade e da cidadania”. A ele se reuniram, na fundação do
Areópago, um irmão de sangue, também médico, chamado Francisco, fazendeiros da
família Cavalcanti de Albuquerque, dona do engenho Suassuna, e vários padres6. Por
ser proibido falar sobre “ideias de independência e democracia”, bem como pertencer à
própria Maçonaria, o Areópago nunca possuiu registro formal. Tal como outras
sociedades do mesmo gênero, seu eixo principal de ação não era a filantropia, mas sim a
“determinação de dar uma pátria aos brasileiros”. Após o fechamento do Areópago seus
integrantes se agruparam nas Academias do Suassuna e do Paraíso, reconhecidas como
lojas maçônicas em 1817, fato que para Ferreira reforça a tese de que a sociedade
fundada por Arruda da Câmara pode ser incluída na mesma categoria7.

Opinião diversa foi manifestada, meio século antes, por Carlos Rizzini, do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que em trabalho de 1946 assegurou
que o Areópago de Itambé “não seria porém uma loja, por lhe faltarem os ritos próprios,

3
Cf. Alexandre Mansur Barata. Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910). Op. cit,
p. 31-32.
4
Idem, p. 56.
5
Ver Antônio do Carmo Ferreira. O Areópago de Itambé: A Maçonaria Revolucionária no Brasil.
Londrina: A Trolha, 2001, p. 11, 24, 29 e 39.
6
Idem, p. 29-30.
7
Ibidem, p. 24.
de resto evitados por portugueses e brasileiros temerosos da implacável perseguição do
[intendente Pina] Manique8”. Para Barata, “até o final do século XVIII não existia no
Brasil a Maçonaria, entendendo-se como tal uma organização institucionalizada e com
funcionamento regular nos mesmos moldes das outras organizações maçônicas
internacionais”. Conforme o autor, que se baseia no Manifesto de José Bonifácio, de
1831, a primeira loja brasileira, Reunião, surgiu em Niterói no ano de 18019.

A loja Reunião era filiada a uma Obediência francesa. Sobre isto, vale destacar
que os estudantes brasileiros deixaram registros, no Grande Oriente da França, de ter
criado duas lojas naquele país, uma em Montpellier, cuja Faculdade de Medicina era
“um dos focos maçônicos franceses”, e outra na cidade próxima de Perpignan. Quando
o Grande Oriente Lusitano soube da existência da loja Reunião, em 1804, tentou sem
êxito submetê-la à sua jurisdição, mas promoveu a fundação, no Rio de Janeiro, das
lojas Constância e Filantropia. Todas tiveram suas atividades suspensas quando o vice-
rei conde do Arcos empreendeu uma forte perseguição contra a Maçonaria, em 180610.

Pouco mais tarde, se formaram na província da Bahia três oficinas maçônicas,


Virtude e Razão, Humanidade e União, que chegaram a constituir a primeira Obediência
brasileira, denominada Grande Oriente Brasileiro, cujo grão-mestre foi Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada. O primeiro GOB também entraria em recesso a partir de 1817, na
esteira da repressão à Insurreição Pernambucana daquele ano, que fora apoiada por
Antônio Carlos. Desta maneira, somente depois de abril de 1821, com o retorno de D.
João VI a Portugal, foi possível a reorganização da Maçonaria 11.

Os maçons do Rio de Janeiro correram perigo durante o governo joanino. Entre


1818 e 1820, coube ao intendente-geral Paulo Fernandes Viana a tarefa de reprimir os
elementos que representassem “ameaça à estabilidade do poder real”. Nesta categoria
figuravam os membros das lojas maçônicas, ao lado dos autores de “escritos ofensivos à
moral” e dos residentes europeus cuja conduta política fosse considerada “suspeita”. A
situação se abrandou quando, por influência da Revolução do Porto, Fernandes Viana
foi substituído por um novo intendente. Cecília Oliveira enxerga, nos bastidores deste

8
Apud Eliane Lucia Colussi. A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit., p. 85.
9
Ver Alexandre Mansur Barata. Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910). Op. cit.,
p. 59.
10
Idem, p. 59/60.
11
Ibidem, p. 60-61.
evento, a atuação de setores mercantis liberais insatisfeitos com “a atuação arbitrária da
polícia contra homens de bem12”.

Segundo o escritor maçônico Arcy Tenório D’Albuquerque, os maçons do


período imediatamente anterior à Independência, filiados ao Grande Oriente do Brasil,
assumiram um papel “vanguardeiro do movimento emancipador do Brasil”. Os
candidatos a ingressar na confraria deveriam fazer um juramento, no qual se
comprometiam a “promover por todos os modos a Independência do Brasil, a lutar por
ela, a defender a sua integridade perpétua e a sua dinastia 13”. Baseada na historiografia
maçônica, Eliane Colussi vê igualmente nas lojas “o espaço principal das articulações,
negociações e decisões” que resultaram na Independência. A Maçonaria teria
desempenhado o papel dos partidos políticos, então inexistentes. Porém, uma vez
consumada a separação entre o Brasil e Portugal, numerosos maçons que haviam
adotado “posicionamentos mais radicais” se sentiram “derrotados ou ludibriados 14”.

Conforme o documento intitulado Le Régulateur du Maçon, publicado pelo


Grande Oriente da França em 1801, os pré-requisitos básicos para fazer parte da
Maçonaria eram “ter a idade de vinte e um anos, ser de condição livre e ser senhor de
sua pessoa”. Comprovadas estas condições, o “profano” candidato à iniciação se
submetia a uma fase de “investigação ou sindicância”, que não deveria exceder a três
meses, ao fim dos quais uma assembleia dos membros da loja em questão decidia em
definitivo sobre a conveniência da admissão proposta. Procedimentos semelhantes
foram adotados no Brasil, onde o Grande Oriente instituiu, em sessão de 8 de julho de
1822, os critérios a serem empregados na adoção de novos membros:

“Estado- se é casado, que tratamento dá a sua esposa e família, que educação


a seus filhos; se é solteiro, que decência de costumes. Emprego- que crédito
tem no desempenho de seus deveres civis e morais. Política- quais são os

12
Ver Cecília Helena de Salles Oliveira. Sociedade e projetos políticos na província do Rio de Janeiro.
In: Independência: História e Historiografia/org. István Jancsó. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p.
509-510.
13
Ver Arcy Tenório D’Albuquerque. A Maçonaria e a Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Espiritualista, s/d., p. 137.
14
Cf. Eliane Lucia Colussi. A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 89.
sentimentos pela causa do Brasil e da sua Independência. Costumes em
geral- que amor à beneficência e adesão à amizade15”.

O recrutamento maçônico no Brasil do século XIX apresentou nítidas


características elitistas. Colussi declara, a respeito da Maçonaria gaúcha, que os
dirigentes da ordem eram majoritariamente “integrantes da elite regional, situando-se
entre os profissionais que vinham de famílias abastadas ou sendo, no mínimo, próximos
a essas16”. Barata ressalta que as lojas, em consonância com “a sociedade colonial e
escravista” em que estavam inseridas, tendiam a excluir os indivíduos de baixo poder
aquisitivo, incapazes de contribuir financeiramente para as atividades beneficentes, de
socorrer os irmãos que passassem por dificuldades ou mesmo de pagar a joia pela
filiação, fixada pelo Grande Oriente do Brasil, em 1822, em seis mil réis17.

Entre os segmentos proprietários aptos a participar da Maçonaria no Brasil


sempre estiveram os comerciantes e negociantes. Colussi credita a implantação das lojas
maçônicas no fim do período colonial à iniciativa de “comerciantes europeus que
aportaram nos portos brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro 18”. Barata afirma,
sobre a sociedade carioca do início do século XIX, que as lojas faziam parte das formas
de sociabilidade dos negociantes, junto com as irmandades religiosas e as misericórdias.
Construindo uma tabela sobre as ocupações dos 152 primeiros filiados e iniciados do
Grande Oriente do Brasil, o autor apurou que o grupo dos negociantes/comerciantes
detinha uma presença relevante no âmbito da ordem. Ligavam-se aos negócios 24
daqueles pioneiros, superados em número apenas pelos 29 funcionários públicos. É
preciso registrar que Barata não pôde identificar as ocupações de todos os maçons
listados: 61 deles, cerca de 40% do total, constam na coluna “outros/sem informação”, o
que nos permite supor que talvez houvesse mais negociantes19.

A desvalorização social dos profissionais do comércio no conjunto do império


português, em parte pela ascendência cristã-nova de muitos deles, é um tema recorrente
na historiografia. Jorge Pedreira, que estudou a “elite mercantil lisboeta na segunda
metade do século XVIII”, constatou que os negociantes, além de terem, em geral, uma
origem modesta, costumavam se casar com as filhas de outros integrantes da categoria.

15
Ver Alexandre Mansur Barata. Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil. In: Independência:
História e Historiografia/org. István Jancsó. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 680-681.
16
Ver Eliane Lucia Colussi. A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 303.
17
Ver Alexandre Mansur Barata. Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil. Op. cit., p. 687.
18
Ver Eliane Lucia Colussi. A Maçonaria gaúcha no século XIX. Op. cit. p. 91.
19
Ver Alexandre Mansur Barata. Sociabilidade maçônica e Independência do Brasil. Op. cit., p. 686-687.
Quando isto não ocorria, se uniam a mulheres de condição considerada ainda mais
baixa, como as “filhas de oficiais mecânicos, lavradores e capitães de navio 20”.

Esta tendência não se reproduziu necessariamente nos mesmos termos no Brasil.


No Rio de Janeiro, a “nobreza da terra”, que deteve hegemonia no exercício dos cargos
públicos durante os primeiros séculos após a fundação da cidade, já se sentia ameaçada,
em torno de 1730, “pelo avanço dos negociantes de grosso trato, baseados na
acumulação de capital nos tratos do Atlântico Sul e nos alargamentos do trato do
mercado interno”21 (relacionados às imbricações entre a economia carioca e a mineira).
Segundo Mattos, mudanças verificadas entre o final do século XVIII e o começo do
XIX, como o rápido crescimento populacional, o translado da sede da monarquia e a
criação do Banco do Brasil (permitindo o lançamento das “bases de um embrionário
sistema monetário”) tornaram o comércio “febril” na cidade22.

Antes da vinda da família real, os negociantes da praça do Rio já tinham


acumulado capitais que lhes permitiram, segundo Alvisi, “controlar as atividades
urbanas e interferir diretamente na economia”. Eles se fizeram, em seguida,
financiadores da Coroa e administradores, em troca de honras e privilégios que lhes
traziam mais vantagens nos negócios. Para assegurar posições, se aliaram aos
proprietários de terras e escravos23. Nisto parece concordar Parron, para quem a corte,
desde a vinda para o Brasil, “aprofundou laços econômicos e políticos com os homens
de grossa aventura que, operando no Rio de Janeiro, já vinham concedendo
empréstimos ao Estado português”. A associação entre a “elite ilustrada portuguesa” e a
comunidade mercantil, para o autor, se baseava no tripé “livre comércio, expansão do
sistema escravista e proteção do trato negreiro”. O projeto, porém, esbarrava nas
objeções da Inglaterra, que aboliu o tráfico em seu império no biênio 1807-180824.

20
Apud Antonio Carlos Jucá de Sampaio. Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil
carioca na primeira metade do setecentos. In: Conquistadores e negociantes; Histórias de elites no Antigo
Regime nos trópicos, América lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p. 250.
21
Ver João Fragoso. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base
escravista e açucareira: Rio de Janeiro, séculos XVII a meados do século XVIII. In: O Brasil Colonial,
volume 3 (ca. 1720- ca. 1821). Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2014, p. 173.
22
Ver Ilmar Rohloff de Mattos. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo:
Hucitec, 1990, p. 50-51.
23
Cf. Marcos Alvisi. Magistrados e Negociantes na corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio.
Rio de Janeiro: Jurídica do Rio de Janeiro: FAPERJ, 2008, p. 47.
24
Ver Tâmis Parron. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 47-48.
Segundo Pedro Campos, os negociantes da praça do Rio “se organizaram e se
aproximaram do aparelho de Estado mais ainda do que os mineiros”. Quando
decidiram estruturar um Corpo de Comércio e construir sua sede, foram beneficiados
com a doação de um terreno pelo próprio rei, que compareceu à inauguração do prédio,
em 1820. Por outro lado, em 1816, os sete principais membros do mencionado Corpo
ofertaram à Coroa capitais que deveriam ser investidos na área educacional. Isto
resultou na criação do Instituto Acadêmico e do Instituto de Belas Artes25.

Desde o século XVIII, o tráfico negreiro constituía um dos principais ramos de


negócios no Rio de Janeiro. Quando, instruído pela Coroa, o vice-rei conde de Resende
compôs uma listagem dos 36 homens mais ricos da praça carioca, com o fim de angariar
capitais para o desenvolvimento agrícola, relacionou entre aqueles sete indivíduos que
Manolo Florentino reconheceria, quase duzentos anos depois, como senhores de
“fortunas direta ou indiretamente envolvidas com o comércio de almas depois de 1811”.
Este dado, para Florentino, é indício da “confluência entre a elite mercantil e o topo da
hierarquia traficante26”. Deve-se destacar que nesse período a imagem pública dos
traficantes ainda não sofrera o desgaste registrado a partir da primeira proibição da
atividade. Segundo Jaime Rodrigues, eles gozavam de bom conceito, pois para a
sociedade era o tráfico que permitia a “multiplicação da riqueza 27”.

A partir deste conjunto de informações, concebi a hipótese de que não existiriam


entraves significativos para a entrada nas lojas maçônicas de homens com os mais
variados graus de envolvimento no tráfico. Confrontei, então, uma “lista dos membros
da Maçonaria Fluminense (1821-1822)28” com a “listagem dos traficantes de escravos
entre a África e o porto do Rio de Janeiro, atuantes entre 1811 e 1830”, organizada por
Manolo Florentino 29. Houve cinco coincidências, expressas nos nomes de Amaro
Velho da Silva, Antônio Gomes Barroso, João Militão Henriques, João Rodrigues Ribas

25
Cf. Pedro Henrique Pedreira Campos. Nos caminhos da acumulação: Negócios e poder no
abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio de Janeiro (1808-1835). São Paulo: Alameda, 2010,
101-102.
26
Ver Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro; séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 183-184.
27
Ver Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos
para o Brasil (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000, p. 127.
28
Encontrada em Maria Elisabete Vieira. O envolvimento da Maçonaria Fluminense no processo de
emancipação do Reino do Brasil (1820-1822) (Dissertação de Mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 2001,
Anexo 3. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/21840/000339269.pdf?...0.
29
Ver Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro; séculos XVIII e XIX. Op. cit., p. 254 a 256.
e Joaquim José de Siqueira. Velho, Barroso e Ribas integravam a loja Comércio e
Artes, Henriques pertencia à União e Tranquilidade e Siqueira à Esperança de Niterói.

Amaro Velho da Silva não deve ser confundido com o tio homônimo, também
traficante. Ambos, de acordo com a Gazeta do Rio de Janeiro de 18 de outubro de
1809, figuraram como doadores de elevadas quantias em uma Relação das pessoas que
têm concorrido efetivamente para socorro dos vassalos de Sua Alteza Real residentes
em Portugal, desde o 1º até 5 de outubro de 1808. Velho da Silva Sobrinho teria
ofertado um conto de réis, e seu tio oitocentos mil réis. Cerca de dois anos mais tarde,
em 16 de outubro de 1811, o mesmo periódico anunciou a venda em hasta pública de
metade do bergantim Nossa Senhora da Penha, embarcação pertencente ao “finado
Amaro Velho da Silva”. Ainda conforme a Gazeta, na edição de 8 de fevereiro de
1812, Manuel e Amaro Velho da Silva, “administradores da casa do finado Amaro
Velho da Silva”, se preparavam para vender outro bem do espólio, o navio Lusitânia.

Segundo Florentino, a família Velho esteve incluída no grupo das dezessete


maiores empresas traficantes da praça do Rio entre 1811 e 1830, sendo responsável por
dezoito expedições ao continente negro, a última delas em 1822. Treze se dirigiram a
Cabinda, na África Centro-Ocidental30. A Gazeta do Rio de Janeiro de 23 de maio de
1812 indica que a galera Flor do Rio, capitaneada pelo mestre Francisco Correa Garcia,
desembarcara 467 escravos endereçados a Amaro Velho da Silva, dos quais dois tinham
morrido na viagem. Encontrei em outras três notas da Gazeta novas remessas de
cativos ao mesmo destinatário, embora nenhuma delas cite as quantidades: em 28 de
setembro de 1816, consta a chegada da galera Maria Tomásia, que retornava de
Cabinda; em 15 de dezembro de 1819, foi publicado que a galera Lusitânia trouxera
negros de Angola (aqui, uma provável alusão ao porto de Luanda); em 26 de fevereiro
de 1822, correu que, também de Angola, viera o mencionado navio Maria Tomásia.

Através de outros anúncios pude perceber que Amaro Velho, acompanhando o


modus operandi típico dos negociantes do Rio, atuava como importador de uma gama
muito diversificada de produtos: madeira, açúcar, aguardente, sal, fazendas da Índia,
cera, marfim e azeite. Ele detinha, entre os integrantes da categoria, prestígio acima da
média, pois já em 1816 foi escolhido pelo Corpo do Comércio para fazer parte da
comissão de “notáveis” que, em nome do setor, rendeu graças a D. João pela elevação

30
Idem, p. 243 e 266-267.
do Brasil a Reino Unido 31. Bem antes da Independência, se mostrava politicamente
ativo, concorrendo com seus capitais para a construção da sede do Senado da Câmara da
Corte e para a organização de um “corpo de pretos” denominado Libertos D’El Rei 32.
Consta da edição número 9 do Boletim do Grande Oriente do Brasil 33, impressa em
setembro de 1875, a informação de que quando o “irmão Guatimozim” (D. Pedro I)
retornou de São Paulo para o Rio, após a proclamação da Independência, recebeu
felicitações de uma deputação maçônica, na qual esteve Amaro Velho da Silva. Este foi
acompanhado por João Martins Lourenço Viana, mencionado como “irmão”, que
também aparece na lista de Florentino.

Antônio Gomes Barroso (1740-1825) também foi um notório traficante, que ao


longo da carreira acumulou diversas honrarias: comendador da Ordem de Cristo, fidalgo
cavaleiro da Casa Imperial, coronel das Milícias da Corte e alcaide mor da Vila de
Itaguaí34. A família Gomes Barroso, no período compreendido entre 1811 e 1830,
patrocinou 45 expedições à África, das quais 34 rumo ao porto de Cabinda. Nelas
adquiriu, conforme Florentino, 6.761 escravos somente nas 16 viagens com registros de
mortalidade35. Não localizei dados sobre a atuação maçônica de Antônio Gomes
Barroso, o que talvez se explique pelo ingresso na instituição em idade muito avançada.

João Militão Henriques, ao contrário dos anteriores, foi figura de menor projeção
nos negócios, e no tráfico em particular. Apurei, por diversos números da Gazeta, que
costumava trabalhar como mestre de navios. Segundo o registro de entradas no porto
do Rio publicado em 29 de novembro de 1821, ele retornava de uma viagem de sessenta
dias a Quelimane, no Índico, trazendo cativos consignados a Joaquim Pires Farinha. À
primeira vista, não alcançou posição eminente na Maçonaria, mas é possível confirmar,
pela consulta ao Boletim do Grande Oriente do Brasil de março de 1875, que pertenceu
aos quadros da loja União e Tranquilidade.

João Rodrigues Ribas, que residia na Rua da Quitanda, centro do Rio de


Janeiro36, era um indivíduo envolvido no comércio de cabotagem entre as províncias

31
Ver Gazeta do Rio de Janeiro, 3 de abril de 1816.
32
Idem, edições de 13 de agosto de 1817 e 15 de outubro de 1817.
33
Acessível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=709441&pesq=Amaro%20Velho.
34
Ver João Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 353.
35
Cf. Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro; séculos XVIII e XIX. Op. cit., p. 242-244.
36
Ver Diário do Rio de Janeiro, 21 de junho de 1824, p. 4.
brasileiras; especialmente, ao que tudo indica, no transporte de mercadorias do Rio
Grande do Sul para a Corte. Podemos vê-lo, por exemplo, recebendo trigo, couros e
sebo procedentes do porto de Rio Grande, como consta da seção comercial da Gazeta
do Rio de Janeiro de 26 de junho de 1819. O mesmo periódico, na edição publicada em
24 de junho de 1818, ratifica sua associação com o tráfico: naquela semana, o navio
Príncipe Real, vindo de Cabinda sob o comando do mestre Inácio Alves Marta,
desembarcara uma carga de escravos endereçada a João Rodrigues Ribas.

Pela leitura do Boletim do Grande Oriente do Brasil de agosto de 1875 se nota


que João Rodrigues Ribas e um provável irmão, Domingos Rodrigues Ribas, seguiam
dentro da Maçonaria a orientação de um tio, Francisco Xavier Teixeira. Este, quando os
maçons decidiram dar “impulso à opinião pública” para promover a aclamação de D.
Pedro como defensor perpétuo do Brasil, ofereceu 100 mil réis como contribuição para
as despesas necessárias. Declarando-se velho para tal missão, Xavier Teixeira indicou
como emissários que poderiam ser encaminhados a Santa Catarina os dois Ribas.

Constatei, por fim, que no período joanino Joaquim José de Siqueira era um
súdito ativo no comércio de cabotagem. Exemplares da Gazeta do Rio de Janeiro
mostram que recebia vários tipos de carga, na maioria das vezes “casca de mangue”,
mas também aguardente, açúcar, café, farinha, tabaco e milho, de portos como Santos,
Caravelas, Mangaratiba e Guaratiba. Segundo a edição de 13 de maio de 1812, recebeu
um escravo vindo de Caravelas. A julgar pelos dados disponíveis, não teve grande
vulto como traficante. Dispôs, porém, de projeção entre seus pares, e foi sem dúvida
homem de amplos recursos. Conforme a Gazeta de 17 de maio de 1817, contribuiu com
dois contos de réis para subscrições administradas por Fernando Carneiro Leão e Amaro
Velho da Silva. Segundo as edições de 13 de agosto e 15 de outubro daquele ano,
ofereceu ainda duzentos mil réis para a construção da nova casa do Senado da Corte, e a
mesma quantia para o corpo dos Libertos D’El Rei. Não há no site dos periódicos da
BN mais indícios de seus laços com a Maçonaria, mas um texto do escritor maçônico
José Castellani confirma Siqueira como membro da Loja Esperança de Niterói37.

Os nexos entre a Maçonaria e o tráfico ultrapassaram a esfera dos negócios.


Durante a década de 1820, e mesmo antes, maçons defenderam na tribuna e em obras
doutrinárias a legitimidade da escravidão e da importação de cativos. O bispo Azeredo

37
Ver https://bibliot3ca.wordpress.com/historia-do-gob/, consultado em 19 de outubro de 2016.
Coutinho, falecido dois dias após sua posse nas Cortes de Lisboa 38, foi mencionado no
Boletim do Grande Oriente do Brasil de junho de 1873 como um dos “nomes ilustres
para abrilhantar a Maçonaria do Brasil”. Ele via, como outros homens da época, a
situação dos escravos como melhor do que a dos livres sem posses, e advogou, em
escritos do início do século XIX, pela continuidade das relações escravistas. Julgava
que apenas quando contasse com uma “população correspondente a seu território”, além
de condições econômicas mais favoráveis, o Brasil poderia abolir o tráfico negreiro 39.

Outro eclesiástico, monsenhor Muniz Tavares, figurou, conforme o Boletim do


Grande Oriente do Brasil de setembro de 1895, entre os diretores das oficinas
maçônicas de Pernambuco. Consta da edição relativa aos meses de novembro e
dezembro de 1897 a seguinte máxima, a ele atribuída: “A Maçonaria foi em todos os
tempos a maior propugnadora dos direitos do homem. Por isso mesmo caminhou
sempre de acordo com a igreja de Jesus Cristo”. Membro da Constituinte de 1823,
Muniz Tavares se alinhou aos parlamentares contrários às discussões sobre escravidão,
cidadania dos libertos ou quaisquer mudanças no sistema. Para ele, debates deste
gênero ocorridos na assembleia francesa haviam provocado a revolução haitiana. O
monsenhor reprovava o excesso de compaixão de alguns de seus colegas diante de uma
“pobre raça de homens, que tão infelizes são só porque a natureza os criou tostados40”.

José Clemente Pereira (1787-1854), que chegou a ocupar os postos de


conselheiro de Estado e presidente do Tribunal do Comércio, atuou como deputado na
legislatura de 1826 a 1829 pela província do Rio 41. Maçom, ingressou em 1822 na loja
União e Tranquilidade42, e segundo o Boletim do Grande Oriente do Brasil de julho de
1874, no qual foi louvado por conceber a construção de um hospício para alienados,
alcançou na ordem o cargo de Grão-Mestre Adjunto. Como membro da Assembleia,
Clemente Pereira lutou para que as pressões britânicas pelo fim do tráfico não
resultassem na liquidação imediata daquela atividade. Ele apresentou um projeto, em
19 de maio de 1826, pelo qual somente em 1841 seria proibida a introdução de
africanos no país. Mesmo assim, de acordo com seu texto o tráfico não era equiparado à

38
Ver Octaciano Nogueira e João Sereno Firmo. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1973, p. 151-152.
39
Cf. Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para
o Brasil (1808-1850). Op. cit., p. 71-72.
40
Idem, p. 52-53.
41
Cf. Octaciano Nogueira e João Sereno Firmo. Parlamentares do Império. Op. cit., p. 332-333.
42
Maria Elisabete Vieira. O envolvimento da maçonaria fluminense no processo de emancipação do
reino do Brasil (1820-1822) (dissertação de mestrado). Op. cit., p. 104.
pirataria, e os cativos apreendidos constariam como libertos (não simplesmente livres),
o que para Tâmis Parron sugere o reconhecimento ideológico “das práticas de
escravização no continente africano43”. Ainda em 1826, se uniu a outros deputados,
como Vergueiro e Paula Sousa, representantes de São Paulo, que combateram o tratado
antitráfico negociado com a Inglaterra sob o pretexto de que, naquele tema, o Executivo
passara por cima do Legislativo. Clemente Pereira chegou a dizer que o tratado feria os
“interesses da nação, a sua honra e dignidade, soberania e independência 44”.

Segundo Vieira, o pernambucano Domingos Alves Branco Muniz Barreto foi


um dos “homens de importância na corte” que reinstalaram a loja Comércio e Artes em
182145. Quatro anos antes, na Bahia, ele compôs uma “Memória”, publicada em 1837
pelos defensores do tráfico. Conforme Muniz Barreto, a atividade era “lícita” por não
depender de pirataria, e sim de entendimentos com os “potentados africanos”. Tais
acordos evitavam a “imensa mortandade” de prisioneiros de guerra e traziam o
benefício de incluir “gentios no centro do cristianismo e da verdadeira religião 46”.

O cônego Januário da Cunha Barbosa também foi maçom. A este respeito, o


Boletim do Grande Oriente do Brasil de setembro de 1874 revela que “sua morte foi
uma perda assaz sensível para a Maçonaria, cujo lugar entre as colunas deixou
eternamente vago”. Secretário-geral do IHGB, participou na década de 1830 de
discussões sobre a relação entre a escravidão negra e o presumido atraso na “civilização
dos índios”. Estudioso da presença jesuítica no Brasil e dos escritos de Manuel da
Nóbrega, que se queixava da introdução de africanos na colônia, Barbosa acompanhava
o dirigente jesuíta na percepção de que a escravidão era um “cancro”. Não vislumbrava,
todavia, sua extinção; pelo contrário: assinalou que ela “não poderia ser extirpada de
maneira tão simples como a autonomia jesuítica e nem por meio de uma lei 47”.

Considerações finais:

43
Cf. Ver Tâmis Parron. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Op. cit., p. 63.
44
Idem, p. 74 a 76.
45
Maria Elisabete Vieira. O envolvimento da maçonaria fluminense no processo de emancipação do
reino do Brasil (1820-1822) (dissertação de mestrado). Op. cit., p. 48-49.
46
Cf. Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para
o Brasil (1808-1850). Op. cit., p. 74-75.
47
Apud Jaime Rodrigues. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos
para o Brasil (1808-1850). Op. cit., p. 45-46.
Os dados empíricos levantados ratificaram minha hipótese inicial. O ingresso na
Maçonaria era plenamente viável tanto para os principais protagonistas do tráfico
quanto para os participantes menos notórios daquele comércio, desde que
razoavelmente prósperos, pelo menos. Também no terreno das ideias não se verificava
contradição significativa entre o pertencimento aos quadros maçônicos e a defesa do
tráfico. Não obstante o reconhecimento de problemas humanitários relacionados às
condições de vida dos cativos, para diversos intelectuais maçons este tipo de discussão
poderia ser inconveniente na esfera pública, e, se inevitável, deveria sempre estar
subordinado aos interesses políticos e econômicos das classes dominantes.

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