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A Companhia de Jesus foi fundada em 1534 por Santo Inácio de Loyola, e em poucos
anos conquistou grande prestígio por seu dinamismo e pelo sólido preparo teológico e
cultural de seus membros, que ascenderam a posições de destaque no clero e nos
conselhos de reis e príncipes. A Ordem se tornou a principal força da Igreja Católica no
processo da Contra-Reforma, renovou a pedagogia na Europa, e de fato representou a
vanguarda religiosa em seu tempo, contando com privilégios especiais e grande
independência da estrutura hierárquica católica, mas votando uma obediência total ao
papa.[8][9] Os jesuítas aportaram no Brasil em 1549, no Peru chegaram em 1567, no
México em 1572 e na Nova França em 1611, mas o sistema missioneiro levou várias
décadas para se estruturar e consolidar.[1] Dessa forma, as primeiras tentativas de
evangelização foram informais, itinerantes, pouco coerentes e sem resultados
significativos, e encontraram os entraves da ausência de instituições jurídicas e
administrativas de apoio eficazes, da pouca colaboração de outras Ordens - quando não
sua conivência com as práticas predatórias dos colonizadores, como lamentou no Brasil
Manuel da Nóbrega - e da objeção dos primeiros colonizadores que já estavam
instalados, para quem os índios eram tão desprezíveis quanto os negros e só lhes
pareciam úteis como trabalhadores braçais. A primeira iniciativa de fundação de
povoados especiais para os índios cristianizados partiu de Dom João III, que em
Regimento ao primeiro governador-geral do Brasil Tomé de Sousa ordenou que eles
vivessem em grupos nas proximidades das vilas para que pudessem entrar em mais
íntimo contato com os cristãos e pudessem ser melhor doutrinados. A idéia foi louvada
por Nóbrega, pois ele sem demora percebeu a ineficiência das missões itinerantes,
pouco antes de o padre espanhol José de Acosta fazer a mesma constatação no Peru.[7]
As idéias de Acosta foram levadas adiante na América espanhola por Antonio Ruiz de
Montoya, que trabalhou entre os guaranis do Paraná-Paraguai e escreveu o livro
Conquista espiritual (1639), onde propôs a fundação de aldeamentos indígenas
afastados das zonas de colonização, dando diretrizes para a organização da sua vida
sócio-cultural e para uma evangelização mais profunda, salientando o fato de que os
índios eram, por força da Conquista, súditos legítimos do rei espanhol e merecedores
assim de respeito e de uma proteção oficial mais efetiva, tanto mais que seu trabalho
revertia em rendas para a Coroa e as reduções espanholas funcionavam como baluartes
contra a expansão portuguesa. Na mesma obra relatou os progressos positivos que
testemunhara aplicando suas idéias entre os índios e a rica e harmoniosa sociedade que
conseguira estabelecer nas reduções que fundara. Enquanto isso, no Brasil, o padre
Antônio Vieira se esforçava por livrar os índios da escravidão e exigia, com sucesso, do
novo rei português, Dom João IV, a regularização do status jurídico e a autonomia
administrativa dos povoamentos estabelecidos pelos jesuítas, fazendo o monarca ver
que os interesses da Ordem não eram contrários aos da Coroa, e mais do que isso, lhes
eram de auxílio. Mas mesmo que os jesuítas trabalhassem para minimizar a dependência
das reduções do Estado e o contato com os outros colonizadores, essas ligações não
foram rompidas completamente. Tampouco os jesuítas se opuseram ao conceito simples
da colonização européia da América, pois ela era evidentemente irreversível e eles
mesmos foram um de seus agentes mais importantes.[1][11] Além disso, para os jesuítas
uma evangelização centrada em núcleos urbanos novos se revelava imediatamente
vantajosa, tanto pela maior facilidade de administrar o povoado desde o início de acordo
com suas idéias, criando um modelo econômico auto-sustentável que facilitasse a obra
catequética, como pelo fato de que se mantinham mais isolados do contato com os
outros colonizadores.[14]
Em meados do século XVII muitas das reduções já eram prósperas o bastante para
desenvolver um ativo comércio com as cidades e províncias próximas, chegando a
exportar muitos produtos para a Europa, incluindo instrumentos musicais e esculturas, e
importando outros tantos. Em diversos casos o seu sucesso foi de fato notável,
superando em muito o nível de vida dos colonos assentados nas vilas e cidades,
desenvolvendo uma estrutura administrativa e econômica muito mais eficiente e
humana, e práticas tecnológicas mais avançadas. Apesar disso o sistema missioneiro
jamais se livrou de continuadas dificuldades e imprevistos. Na maior parte das missões
houve declínio na taxa de natalidade dos índios. Nas da Califórnia se verificou uma
queda populacional de 80% até o fim do século XVIII, e essa queda, se bem que não tão
acentuada em outros locais, foi um fenômeno generalizado, situação piorada com a
ocorrência de diversas pragas agrícolas, prejudicando a produção de meios de
subsistência e provocando períodos de fome, quando não eram as epidemias e os
ataques de tribos selvagens que dizimavam ou afugentavam a população de núcleos já
consolidados. Outro problema foi o conflito entre a constante pressão do Estado para
uma aculturação rápida e a incapacidade de alguns grupos indígenas de se integrarem à
civilização estrangeira no ritmo desejado pelos colonizadores, fazendo com que suas
estruturas culturais originais se desvirtuassem a ponto de causar uma crise interna no
grupo e a rejeição completa da proposta missioneira, revertendo para as selvas, mas já
tendo perdido boa parte de seu conhecimento tradicional de práticas caçadoras-coletoras
e guerreiras, acabaram não podendo se readaptar ao ambiente primitivo, perecendo de
fome ou caindo nas mãos dos caçadores de escravos. Em outros casos os padres eram
em número insuficiente ou estavam mal-preparados, seja não conseguindo estabelecer
laços de confiança eficientes com os índios, seja administrando de forma incompetente,
ou acabaram desmotivados diante da aspereza da tarefa e abandonaram as povoações.[15]
[16][17][18]
Além disso o conflito de interesses entre os colonos já instalados e os
missionários nunca se resolveu, e os confrontos violentos não foram raros,
especialmente nas incursões dos contrabandistas de gado, dos que cobiçavam supostos
tesouros escondidos pelos padres, dos bandeirantes no Brasil e dos encomenderos na
América espanhola, buscando nos índios mão-de-obra escrava, com o resultado de
mortes numerosas e destruição de muitas reduções. Por fim, nas tentativas de
aproximação algumas tribos se mostraram hostis e outras se rebelaram depois de
reduzidas, com o consequente assassinato dos padres, e as diferenças de visão entre os
jesuítas e as outras Ordens e a Inquisição lhes trouxeram problemas adicionais.[19][20][21]
Em 1768, por ordem do rei Carlos III, a Espanha fez o mesmo em suas colônias
americanas, justificando a decisão por considerar que a Companhia se opunha ao Estado
e ao bem público, sendo fechadas também todas as suas cátedras de filosofia nos
colégios, acusando-os de se colocarem indevidamente como mediadores entre a vontade
divina e o livre arbítrio, de manterem uma postura pouco humilde, e de sustentarem
interpretações excessivamente liberais da doutrina e muito condescendentes para com as
fraquezas humanas, fazendo pouco caso das decisões dos cânones e concílios, o que
indica que além de serem vistos como ameaça política também seu sistema filosófico e
moral estava em xeque.[25] Considerando que sua atividade era equívoca e infrutífera,
disse o enviado espanhol ao Novo Mundo, Francisco Antonio de Lorenzana, Inquisidor-
Geral da Espanha e encarregado de implementar o decreto e reformar o sistema de
ensino religioso:
Antes que tudo isso pudesse se concretizar era necessário em primeiro lugar reunir a
população-alvo, convencendo-os das vantagens da vida em uma redução. Para que o
primeiro contato fosse possível se recorria a algum índio do mesmo ramo linguístico do
povo que se pretendia atrair, servindo de intérprete, e com o tempo surgiu a figura do
missionário itinerante, já conhecedor de várias línguas e da geografia local, e perspicaz
na psicologia própria dos índios. Nem sempre os índios se deixavam levar de imediato,
e podia ser necessária uma aproximação lenta ao longo de anos, com várias trocas de
presentes e promessas, ou com o convite para que algum representante indígena
visitasse uma redução já em funcionamento.[35] As inteligentes técnicas de contato e
interação usadas pelos jesuítas os colocam entre os primeiros etnólogos da América,[6]
mas mesmo assim muitas tribos nunca aceitaram sua proposta, como os mapuches do
Chile, cujas hostilidades contra os jesuítas acabaram em martírios,[37] e alguns guaranis
do Paraguai, para quem a troca da vida nômade por uma sedentária, justo quando a
introdução do cavalo na região tornara os deslocamentos mais fáceis, não pareceu
atraente.[21]
A cada família se atribuía uma porção de terra, hereditária, destinada a fornecer o seu
sustento privado com o plantio de culturas diversificadas de legumes e frutas próprias
de cada região, e de algumas básicas como o milho, batata, algodão e feijão. Outras
áreas eram "propriedade de Deus", cujos frutos revertiam para a comunidade, e onde o
índio deveria trabalhar dois dias por semana, numa jornada que durava cerca de seis
horas. Os instrumentos de trabalho eram de propriedade coletiva e seu uso estava sujeito
a prioridades estabelecidas pelos padres. Não se usava dinheiro nas reduções, mas o
fumo, mel e milho serviam, às vezes, como moeda de troca. Entretanto este sistema
tinha papel pouco relevante, pois os centros comunais de abastecimento forneciam o
que faltasse. Com o tempo a pecuária se desenvolveu consideravelmente, criando-se
enormes rebanhos de gado. O comércio também prosperou, tanto entre as regiões
próximas como para o exterior, com a exportação de gêneros como mel, couro, frutas,
tinturas, instrumentos musicais e esculturas para a Europa em troca de papel, livros,
tecidos, agulhas e anzóis, ferramentas, instrumentos de cirurgia, metais e sal. Os lucros
se aplicavam em investimentos internos e pagavam os impostos exigidos pela Coroa.
Resistindo em rebaixar o nível de vida e reduzir o abastecimento de gêneros para os
índios quando era necessário investir recursos para manter o ritmo de desenvolvimento
geral da redução, os padres muitas vezes se viram obrigados estabelecer fazendas e
estâncias independentes com objetivos basicamente de lucro ou suprimento alimentício
suplementar. Essas instalações separadas empregavam o trabalho dos escravos negros, e
às vezes eram administradas pelos jesuítas em conjunto com os índios, o que evidencia
a grande diferença de tratamento que era dispensado a cada uma das duas etnias não-
brancas, e que é um dos paradoxos da proposta humanitária jesuíta. Índios também
trabalharam em fazendas, mas nesse caso seu trabalho era remunerado.[36][38][39]
Havia também um serviço de cuidado aos doentes em todas as reduções, contando com
um grupo de enfermeiras instruídas pelos padres. Faziam rondas diárias pelo povoado e
davam relatórios detalhados para seus superiores sobre as condições de saúde dos
reduzidos. Com isso dificilmente alguém morria sem receber atendimento médico e a
extrema-unção. Os remédios eram feitos principalmente com ervas conhecidas pelos
indios, se mantinha uma farmácia junto dos colégios, e foram compilados manuais
médicos para uso prático, mas os relatos sobre epidemias de doenças vindas da Europa
são frequentes, e nesses momentos se tolerava o auxílio dos curandeiros tribais.[5]
[editar] Cotidiano
A vida numa comunidade missioneira seguia uma rotina precisa. Antes do amanhecer
tocava-se o sino para despertar. Seguiam-se a oração individual, as crianças eram
acordadas, assistia-se à missa e às 7 horas os trabalhos do dia eram distribuídos. Nesta
hora as crianças recebiam o desjejum e logo oravam. Às 8 horas realizava-se a visita aos
doentes e enterravam os mortos. Depois os demais tomavam um desjejum, em seguida
se dirigiam aos diversos afazeres e as crianças iam às aulas. Entre 11 e 12 horas havia o
almoço, seguido de um descanso de uma hora, para depois voltarem ao trabalho. Das 16
horas em diante havia o catecismo, novas orações, lanche, reunião para novo culto e
depois o jantar. Entre as 20 e 21h os fogos eram apagados e a aldeia dormia. Nos dias
santificados o trabalho era proibido, aos domingos havia uma missa solene, e em dias de
grandes festejos realizavam-se encenações teatrais, danças comunitárias, procissões,
profissões públicas de fé e às vezes autoflagelações, combates simulados e concertos de
música, em celebrações coletivas que podiam durar todo o dia.[38][45]
Nossa Senhora da Conceição, Sete Povos das Missões, acervo do Museu Júlio de
Castilhos. Note-se os traços indígenas da face e dos cabelos longos e lisos
Altar da igreja de San Rafael de Velasco na missão de Chiquitos, Santa Cruz, Bolivia
A questão educativa foi entendida desde o início como central para garantir qualquer
futuro para o projeto missioneiro, pois era vista como alavanca privilegiada para todo
progresso social, econômico, moral e religioso. Nessa questão de imediato se colocou o
problema da comunicação entre os europeus e os índios, que falavam uma multidão de
línguas desconhecidas. O preparo dos jesuítas na Europa já previa essa dificuldade, e
lhes dava sólidos conhecimentos de linguística e de oratória, ao mesmo tempo em que
os capacitava como professores hábeis e os ilustrava com grande cultura geral,
incluindo formação artística. Sua metodologia educativa, sistematizada no compêndio
Ratio atque institutio studiorum Societas Jesu (1599), era tão eficiente que a Ordem foi
reconhecida como uma das mais eruditas da Europa, e vários de seus membros se
destacaram como polímatas. Mas mais do que eruditos, seguindo a orientação de Loyola
para que os conhecimentos abstratos fossem postos ao serviço das demandas do
cotidiano (usus, non praecepta), se tornaram mestres na arte da persuasão e na
adaptabilidade ao contexto diversificado que encontraram na América.[51]
A atuação dos jesuítas quanto às línguas nativas se revelou ao mesmo tempo protetora e
destrutiva. Protegeram-nas sistematizando-as e dando-lhes grafia latina, o que permitiu
sua perenização através de bibliografia impressa e o seu estudo pelos linguistas
europeus, e em alguns casos a sua reconstituição moderna quando se extinguiram ou
desvirtuaram mais tarde. Também as protegeram contra a política colonial oficial, que
preferia antes a completa erradicação das culturas nativas e uma europeização total dos
povos conquistados. Mas por outro lado o uso que delas fizeram para a propagação da
nova fé em muitas ocasiões as desfigurou profundamente, o conhecimento reunido pelos
padres foi muitas vezes usado pelos outros colonizadores para dominarem mais
facilmente os indígenas, e o progressivo desaparecimento dos pajés levou com eles a
prática da "palavra inspirada", uma das mais importantes formas de preservação através
das gerações da eloquência política, dos mitos e das tradições tribais.[41][51]
É preciso notar que nem sempre os jesuítas dominaram as línguas nativas, alguns até se
recusaram a fazê-lo, e mesmo durante a ministração dos sacramentos às vezes era
necessário um intérprete, o que deu origem a disputas entre a hierarquia do clero e se
complicava no caso da confissão dos pecados, que deveria ser um assunto de completa
privacidade. O testemunho do fundador da Província do Paraguai, Nicolás Durán,
confirma a importância da fluência no vernáculo, dizendo que nas casas onde os
superiores não falavam a língua os ministros eram tão letárgicos que se tornavam uma
vergonha para Companhia, e dizia que nesses casos o trabalho ficava todo para os
versados no idioma, enquanto os outros se entregavam à preguiça. No Brasil também
era enfatizada a utilidade do conhecimento idiomático a fim de que se obtivesse a
confiança dos índios e autoridade sobre eles, e para, evidentemente, doutriná-los
melhor. Mas em linhas gerais se pode dizer que os jesuítas se tornaram grandes
linguistas, e sua habilidade nesse campo se tornou notória. Foram os primeiros autores
de gramáticas e dicionários em vernáculo ou bilíngues, e produziram boa quantidade de
obras literárias, a maior parte ligada à catequização.[17][52] Em 1700 foi fundada a
primeira gráfica missioneira na Missão de Loreto, na Argentina, e ali foi produzido,
pelo indígena Juan Yapai em 1705, o primeiro livro impresso neste país, um
Martirológio Romano. Outras produções incluíam calendários, tabelas astronômicas e
partituras. As missões também geralmente possuíam uma boa biblioteca. A de Loreto
contava com mais de trezentos livros, a de Corpus Christi cerca de quatrocentos,
Santiago mais de 180, e Candelária a cifra, assombrosa para a época, de 4.724 volumes.
[38]
A eficiência da pedagogia jesuítica se prova nos poucos anos que eram precisos para
uma redução entrar em pleno funcionamento, mas existem relativamente poucos estudos
que aprofundaram esse tópico e a controvérsia sobre seus resultados é grande. Era dada
atenção especial à educação das crianças, consideradas "anjos inocentes" e "o bem e o
remédio desta terra", já que elas aprendiam com mais facilidade, podiam transmitir o
conhecimento aos adultos e mais tarde ensinar as outras gerações. Muitos índios adultos
nunca foram capazes de receber uma educação além da mais elementar. Havia
separação de sexos nas escolas, e se seguia uma política de aproveitamento das
capacidades e talentos individuais. Os filhos dos caciques e dos oficiais eram
alfabetizados em vernáculo, castelhano e latim, o que tem dado margem a uma opinião
muito generalizada de que o ensino dos padres foi elitista, mas isso provavelmente
decorre da simples percepção das possibilidades reais, e existem alguns documentos que
sugerem uma abrangência bem maior do estudo do que se tem pensado.[53] Há relatos de
índios muito habilidosos com as letras, como foi o caso do cacique Nicolás Yapuguay,
da redução argentina de Santa Maria, que escrevia em guarani com grande clareza e
elegância, tendo dois de seus livros impressos, um deles um catecismo em espanhol e
um livro de sermões em guarani. O índio Melchor escreveu a história de sua aldeia
Corpus Christi, e o índio Vásquez, de Loreto, era também um bom escritor.[38] Os
restantes eram educados através do ensino oral, do trabalho e da arte. As aulas gerais
não eram ministradas pelos padres, encarregados da administração da comunidade, mas
por um professor contratado ou por algum índio já educado, sob a supervisão dos
religiosos. Entretanto, diariamente algum padre assumia as classes por determinado
tempo para ministrar a educação religiosa. De manhã era dado o catecismo no
vernáculo, e à tarde na língua do reino. Chegando a noite o padre reunia alguns índios
talentosos para ensinar música na igreja. No Vice-Reino do Peru os primogênitos dos
caciques eram muitas vezes mandados para uma escola na capital, já que os caciques
eram o elo de ligação principal entre as autoridades coloniais e os índios, e se supunha
que uma educação mais aprimorada fosse capaz de formar futuras lideranças com
conhecimento maior dos costumes europeus e assim mais capazes de se integrarem ao
sistema administrativo da colônia. Essa educação parece ter tido êxito, mas não foi
usada pelos novos caciques da forma pretendida pelo governo espanhol, e vários deles
encabeçaram rebeliões mais tarde, como foi o caso de Túpac Amaru II.[2][17][27][51][54][55]
Para a fixação dos povos indígenas e construção dos povoados foi dado um ensino
prático em técnicas de agricultura e pecuária, e elementos de arquitetura, cantaria,
carpintaria e fundição. Gradativamente foi sendo dada uma formação adicional em artes
diversas, que incluíam escultura, pintura, gravura, poesia, música, teatro, oratória e
ciências para aqueles que mostravam mais capacidade.[2][53]
[editar] Artes
A facilidade dos índios para as diversas artes era famosa e sua capacidade de imitação
de modelos formais europeus causava espanto nos próprios missionários.[47] Dizia o
Padre Sepp:
"O que viram uma só vez, pode-se estar convencidíssimo que o imitarão. Não
precisam absolutamente de mestre nenhum, nem de dirigentes que lhes indiquem
e os esclareçam sobre as regras das proporções, nem mesmo de professor que
lhes explique o pé geométrico. Se lhes puseres nas mãos alguma figura humana
ou desenho, verás daí a pouco executada uma obra de arte, como na Europa
não pode haver igual".[58]
Parte do trabalho catequético dos jesuítas se valia do teatro como forma de ilustração de
verdades religiosas. Encenavam-se dramas sacros, que versavam sobre a vida de santos
e passagens das Escrituras, e também havia ocasiões em que eram montadas obras
clássicas. Certas peças, vindas da Europa, eram traduzidas para o vernáculo, outras eram
escritas nas próprias reduções. Na pintura também se registraram indivíduos com
grandes dotes, como Kabiyú, produzindo entre outras coisas uma notável Virgem das
Dores.[38] Também deve ser citado o índio zapoteca Miguel Cabrera, que conseguiu
ultrapassar os preconceitos ligados à sua origem e o âmbito das missões, tornando-se o
maior pintor do Vice-Reino da Nova Espanha e o pintor favorito dos jesuítas
mexicanos, fundando e dirigindo ainda a segunda academia de pintura do México.[59]
Mas foi especialmente brilhante a Escola de Cuzco, fundada pelos jesuítas Juan Íñigo de
Loyola e Bernardo Bitti, junto com alguns outros mestres, que introduziram um estilo
derivado do Maneirismo em meados do século XVI. Recebendo ao longo dos anos a
influência do Barroco e contando com a participação de índios incas, um povo de
sofisticada cultura própria, que deram sua própria contribuição estética, logo a escola se
desenvolveu numa forma original, sincrética e de tendência fortemente ornamental, cuja
influência se espalhou a partir do século XVII por todo Vice-Reino do Peru e ainda hoje
permanece em atividade.[60]
Página do Cancioneiro Chiligudú, com 19 partituras que Bernardo de Havestadt
incorporou ao II volume de sua obra sobre a língua dos índios mapuches do Chile. A
letra das canções, publicadas em separado, é em mapuche e trata de conceitos básicos da
fé cristã.[61]
São muitos os testemunhos sobre a grande inclinação natural dos índios para a música,
que foi usada desde os primeiros contatos para atrair os aborígines para fora de suas
selvas.[62] O padre Noel Berthold afirmou que o Irmão Verger podia fasciná-los de tal
modo quando tocava órgão que eles permaneciam imóveis, como que em êxtase, por até
quatro horas. Muitos índios chegaram a se tornar proficientes construtores de
instrumentos, como Ignacio Paica e Gabriel Quiri, ou instrumentistas exímios, a
exemplo de um menino de doze anos que executava com perfeição sonatas e danças
cortesãs de insignes compositores europeus. Diversos dentre os próprios jesuítas eram
músicos de primeira ordem, como os ditos padres Verger e Sepp, este o autor do
primeiro órgão construído nas Américas, o padre Juan Vaseo, e Domenico Zipoli, cuja
obra foi imensamente popular na América. Formaram-se grandes orquestras e coros,
que rivalizavam com grupos de formação européia e eram convidados para se apresentar
nas cidades principais. Na missão de San Ignacio funcionou um dos primeiros
conservatórios de música da América.[27][58][63][64] Alguns índios até mesmo se tornaram
compositores eruditos, como um paraguaio que foi co-autor de uma ópera sacra sobre a
vida de Inácio de Loyola, e um mexicano que compôs uma missa completa em 1560. A
maior parte das partituras compostas ou executadas nas missões se perdeu após sua
dissolução, mas no século XX diversos estudos especializados trouxeram novamente à
luz uma significativa quantidade de material, como foi a espetacular descoberta em
1972 de cerca de dez mil partituras na missão de Chiquitos, na Bolívia, e já existe
discografia disponibilizando parte desse acervo.[61]
Detalhe de pintura na fachada da igreja de San Rafael de Velasco, missão de
Chiquitos, Bolívia
missão de San Pedro y San Pablo del Tubutama, Sonora, México
As ruínas jesuítas de São Miguel das Missões, na Região das Missões. Patrimônio da
Humanidade desde 1983 no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Muito se tem discutido sobre o verdadeiro papel e caráter dos Jesuítas e dos índios neste
grande ciclo sócio-cultural. Diversos autores consideram os padres como simples
senhores de escravos travestidos de anjos evangelizadores, instrumentos das potências
européias num impulso imperialista. Para Octavio Paz o indígena se ajoelhava diante do
Cristo sangrante e humilhado, golpeado pelos soldados, condenado pelos juízes, porque
que via nele a imagem transfigurada do seu próprio destino.[66] É questionada acima de
tudo a legitimidade da transformação profunda das culturas nativas com a consequente
perda de suas identidades, e também a homogeneização de grupos distintos tratados em
bloco, a postura paternalista dos religiosos, e também a falha fundamental da didática
jesuíta, revelada tarde demais, na dissolução imediata de todas as aquisições culturais e
espirituais quando o índio foi privado da orientação dos religiosos, não havendo
evidência importante da formação de culturas ou sequer de escolas artísticas regionais
que tenha subsistido de forma independente e viva após a derrocada da Ordem e suas
reduções,[11][27][66][67][68] salvo casos pontuais, como os povoados de Chiquitos, na Bolívia,
que conseguiram sobreviver até os dias de hoje com muitas de suas tradições e hábitos
comunais preservados,[41] e a Escola de Cuzco de pintura, que também permanece em
atividade, com a ressalva de que ali se cristalizaram fórmulas visuais dos séculos XVIII-
XIX que não encontraram um caminho de renovação verdadeira. É importante assinalar
ainda, conforme faz David Sweet, que repetidas vezes ficou patente o abismo entre os
altos ideais da proposta evangelizadora e a dura realidade cotidiana, e que as relações
dos padres com seus reduzidos não foram sempre amistosas, especialmente quando
lidaram com tribos mais primitivas e resistentes à redução, como algumas da Amazônia,
onde ocorreram vários episódios de tortura, segregação e trabalho forçado.[12][69] Outras
vezes apoiaram o extermínio de tribos inteiras, ou se valeram do suborno dos caciques
para conseguir a adesão dos seus comandados.[70] Em vários documentos históricos
essas culturas primitivas são descritas com a mais baixa estima, chamando os índios de
"peças", como se fazia para com os negros escravos. Também abundam comparações
dos índios com animais, e é frequente o uso dos verbos "amansar", "domar" e
"domesticar" quando se referem ao processo de reduzí-los. São muito raras as citações
de índios por seus nomes, salvo os caciques, e não parece ter se desenvolvido nenhuma
amizade estreita entre padres e índios individuais em qualquer das reduções, pelo menos
não há evidência documental; nenhum escritor jesuíta jamais declarou ter aprendido
alguma coisa com os povos que liderava nem referiu algum aporte autóctone
significativo à cultura que nascia, e finalmente até no século XVIII ainda havia alguns
que duvidavam que eles fossem de fato humanos ou que possuíssem a faculdade da
razão.[12]
Antes da expulsão dos jesuítas diversas apreciações favoráveis ao seu trabalho foram
publicadas por influentes autores europeus, como Montesquieu, que disse ser "uma
glória para a Companhia de Jesus ter mostrado pela primeira vez ao mundo como é
possível a união entre religião e humanidade", e em termos semelhantes d'Alembert
louvou seu trabalho dizendo que "mediante a religião alcançaram os jesuítas no
Paraguai uma autoridade moral apoiada puramente em sua arte de convencer e em seu
modo suave de governo". Até o próprio Voltaire, que era um dos grandes inimigos da
Companhia, os comparou a verdadeiros soberanos, legisladores e pontífices. Disse ele:
"pareciam um triunfo da humanidade".[51][71] Com suas falhas e contradições internas,
trazidas à luz abundantemente pela pesquisa moderna, mas principalmente por suas
conquistas positivas, as missões jesuíticas exerceram um impacto profundo na vida das
Américas. Para Aguirre o caráter revolucionário das reduções jesuíticas deriva
"da premissa que lhes serve de ponto de partida, premissa que implica um
expresso reconhecimento dos vínculos que costumam ligar as injustiças sociais
com o atraso geral das sociedades. Por isso o sistema econômico missioneiro
jesuíta se encaminha, desde o princípio, para conseguir o desenvolvimento
econômico dos povos aborígines, para organizar uma ordem social e produtiva
que permita aos indígenas americanos romperem as barreiras da miséria e
terem uma alternativa distinta daquela que era se submeter à economia da
encomienda, da mita e do latifúndio colonial. Os jesuítas não definiram o
problema da justiça no plano jurídico, mas se propuseram a realizá-la no
âmbito de um sistema econômico e social, onde a riqueza se acomodava às
pautas de uma filosofia inspirada na noção cristã de igualdade entre todos os
homens...".[72]
Arte Missioneira: Nosso Senhor dos Passos, século XVIII. Acervo do Museu Júlio de
Castilhos
Para Wolfgang Reinhard por mais controversos que tenham sido os intentos dos jesuítas
de adaptar a mensagem cristã às concepções autóctones e de prover uma mudança
cultural dirigida, a empresa missioneira foi a melhor alternativa de que a América
dispôs para levar adiante uma colonização que era sob todos os aspectos irrefreável e
que em outras esferas se revelou brutal, e por isso mesmo continuam a ter um apelo para
o mundo moderno, onde a problemática integração dos povos indígenas remanescentes
com as culturas de entorno ainda não encontrou soluções satisfatórias,[73] uma opinião
que era compartilhada com Darcy Ribeiro.[74] Unindo uma diligência evangelizadora
intrépida com uma base cultural de alto gabarito, uma praticidade única na lida com os
problemas que enfrentaram com um pensamento econômico, político e social arrojado e
de amplo horizonte, sua atuação foi decisiva na formação da civilização americana
moderna, e o estudo do seu exemplo de desenvolvimento auto-sustentado, onde o
objetivo primário era o bem-estar e harmonia das populações através do
estabelecimento de um modelo de vida sadia, significativa, solidária e justa para todos
pode ser de alguma forma ainda útil para a sociedade moderna, num continente que
ainda sofre com as desigualdades sociais e onde os índios sobreviventes permanecem
em muito marginalizados e despossuídos. Adicionalmente, as missões são vistas
também como parte integrante das identidades nacionais nos países americanos,[3][11][24]
[72][75]
e a importância do projeto jesuíta nas Américas é reforçada pelo fato de a
UNESCO ter declarado como Patrimônio Mundial um significativo grupo de
monumentos missioneiros - seis na Bolívia, cinco na Argentina, dois no Paraguai e um
no Brasil.[4]
Do lado dos índios o balanço final talvez seja de avaliação ainda mais árdua, uma vez
que a cultura predominante tende a analisar as coisas sob sua ótica particular. Com
certeza foi uma experiência impactante para os povos indígenas, mas no contato com o
branco a anulação de sua índole vital, de sua visão de mundo e de sua cultura - cujos
elementos, quando preservados, eram adaptados e traduzidos sempre para servir ao
propósito da cristianização - talvez tenham sido perdas mais importantes do que os
supostos benefícios recebidos. Muito se tem aplaudido as igrejas, a estatuária, a música
e as outras artes de que foram autores ou co-autores, mas uma vez que nenhuma
tradição se arraigou entre eles que pudesse evoluir independentemente a partir do
modelo inaciano quando as missões foram extintas, talvez seja procedente o argumento
de que o indígena, com exceções notadas, não passou de uma tábua rasa nas mãos dos
religiosos. Mesmo assim se registraram muitas declarações de índios protestando
veementemente quando as missões foram extintas, acusando os reis da Espanha e
Portugal de não saberem o que havia custado erguer aquelas comunidades e o quanto
estavam apegados a elas, numa postura que era o perfeito oposto da sustentada no início
do processo missioneiro, quando geralmente as reduções eram vistas mais como locais
de cativeiro dissimulado,[24][27][66][76] e vale a pena transcrever o testemunho de Auguste
de Saint-Hilaire, que em passando pela província do Rio Grande do Sul em 1820, época
em que os povoados locais já estavam em ruínas, registrou:
"Entre os índios, vi apenas uma mulher que viveu sob o governo dos jesuítas, e
ela pronuncia o nome de jesuítas com profundo respeito; porém muitos guaranis
se lembram de haver ouvido seus pais ou avós falar deles, dizendo que, quando
esses religiosos administravam a região, foi o tempo da felicidade." [77]
A revalorização cultural das missões jesuíticas nasceu a partir do ínício do século XX,
quando se fundou em 1932 a primeira faculdade de Missiologia na Universidade
Gregoriana do Vaticano e o movimento missionário ganhava novo impulso,
antropólogos estudavam com métodos mais científicos as culturas tradicionais,[78]
arquitetos passavam a dedicar sua atenção ao modelo urbano das reduções, e órgãos de
patrimônio histórico também se voltavam para elas na preservação de suas relíquias,
trazendo-as novamente à evidência.[41] As missões ainda são um tema fértil e seu caráter
- real ou suposto - de utopia já deu margem ao surgimento de obras literárias,
documentários, exposições de arte e filmes, bem como à formação de um folclore
próprio, com variadas abordagens e conclusões. Em anos recentes a produção
cinematográfica norte americana A Missão, estrelada pelo conhecido ator Robert De
Niro, recebeu larga divulgação e diversos prêmios internacionais.[63] Na cultura oficial
da América Latina contemporânea se percebe uma tendência a uma glorificação muitas
vezes acrítica e propagandística das missões e de seus personagens mais destacados,
transformados em figuras numinosas e focos agregadores de virtudes coletivas de
civismo, fé e coragem, discurso enfatizado pelo fato de alguns missionários terem sido
santificados ou beatificados pela Igreja Católica, isso depois de um período de intensa
negação de seu valor no século XIX no processo de construção das independências
nacionais, quando eram memória indesejada do período colonial.[79][80] Como exemplo,
Paulo Suess aponta que as missões dos Sete Povos são apresentadas nos dias de hoje
pelo poder público brasileiro como um momento glorioso na história do sul do Brasil, e
os índios massacrados na Guerra Guaranítica são retratados como heróis, especialmente
Sepé Tiaraju, centro até de um culto popular, embora esta postura tenda a ocultar ou
dissimular os graves problemas enfrentados por todas as comunidades indígenas que
ainda existem, em grande parte num estado de miséria e abandono, numa espécie de
"cultos ao esquecimento, liturgias que desarmam os guerreiros homenageados e se
apropriam de sua causa".[75]
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