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A cristianização da América Latina1

A compreensão do cristianismo que se estabeleceu na América Latina requer o


conhecimento de alguns pressupostos que nortearam sua inserção. Os primeiros cristãos
que chegam ao continente são agentes do processo de expansão européia que aqui se inicia
com os chamados descobrimentos, a partir de 1492. Assim, a expansão dos domínios dos
países europeus e a propagação do cristianismo na América Latina fazem parte do mesmo
processo histórico. Em curso estava o surgimento de um novo sistema mundial. Este
sistema tem como características fundamentais a expansão das fronteiras políticas dos
países europeus, um sistema econômico fundamentalmente dependente da mão-de-obra
escrava e a imposição da cultura branca, ocidental e cristã como parâmetro de civilização.
Neste processo, Igreja e Estado complementam-se mutuamente na organização da
sociedade emergente nos territórios colonizados, na construção de uma visão de mundo e
na compreensão do ser humano. Embora a diversidade étnica e cultural do continente
denominado de América Latina, a idéia de uma cristandade colonial se estabelece como
referência unificadora das diferentes sociedades latino-americanas. Com algumas exceções
marcadas pela presença de grupos protestantes, os séculos XVI ao XVIII podem ser
considerados como o período de gestação e consolidação desta cristandade colonial que, em
termos religiosos, tem como resultado o estabelecimento da Igreja Católica Apostólica
Romana como denominação hegemônica em todo o continente.

As bases jurídicas que fundamentam o vínculo entre cristianização e colonialismo na


América Latina encontram-se consolidadas em duas Bulas Papais e em um Tratado firmado
entre Portugal e Espanha. Trata-se de documentos reveladores do imaginário colonizador
europeu, que vislumbra não só novos territórios como espaços a serem ocupados, mas a
ocupação estende-se também ao corpo das populações que vivem nestes espaços. A
documentação posterior sobre a conquista da América pelos europeus é vasta e variada,
mas não altera o caráter basilar destes três documentos. São eles: a) Bula Romanus
Pontífex, de 1454. Nela o Papa Nicolau V dá legitimidade ao emergente expansionismo
europeu, dando à coroa portuguesa o direito de “...invadir, conquistar, subjugar quaisquer
sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à escravidão e
tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes ...” 2. b) Bula Inter Cetera, de
1493. Motivado pela chegada de Colombo às Américas, a bula de Alexandre VI concede as
prerrogativas da Romanus Pontifex também aos espanhóis, ou seja o direito de “ ... sujeitar
a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e
habitantes delas, e reduzi-los a fé católica”3 c) Tratado de Tordesillas, de 1494. Através
deste tratado, os reis de Portugal e Espanha dividem entre si, com a bênção do Papa, o
mundo não europeu, através de uma “raia ou linha direita de pólo a pólo ... a trezentas e

1
Publicado em Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008, p. 218-222.
2
Bula Romanus Pontifex, do Papa Nicolau V, de 08 de janeiro de 1454. In RIBEIRO, Darci; MOREIRA
NETO, Carlos de Araújo (org.). A fundação do Brasil: testemunhos, 1500 -1700. Petrópolis, Vozes, 1992, 16.
3
Bula Inter Cetera, de Alexandre VI, de 04 de maior de 1493. In: RIBEIRO, Darci; MOREIRA NETO,
Carlos de Araújo (org.). A fundação do Brasil: testemunhos, 1500 -1700. Petrópolis, Vozes, 1992, 17. As
Bulas Romanum Pontifex e Inter Cetera são basilares para emergente expansionismo europeu. São os
documentos fundantes e legitimadores. A infinidade de documentos posteriores sobre direitos de grupos
específicos de indígenas ou questionando a escravidão, não retroagiram em relação aos fundamentos firmados
nestes documentos. Antes normatizam, suavizam ou alertam para o rápido desgaste da riqueza em mão-de-
obra que o “descobrimento” propiciou aos europeus.
setenta léguas das ilhas de Cabo Verde em direção à parte do poente ....”4. Grosso modo,
Portugal fica com as terras banhadas pelo Oceano Atlântico e a Espanha as banhadas pelo
Pacífico.

O vínculo orgânico entre cristianização e colonialismo não impediu, contudo, o surgimento


de vozes proféticas no interior da Igreja que denunciavam as conseqüências desastrosas do
processo em curso. Um dos temas principais desta denúncia era a escravidão indígena e a
submissão dos índios a condições subumanas de sobrevivência. É o caso dos freis
dominicanos que se estabeleceram no Caribe em 1510 e já em 1511, liderados por Antonio
de Montesinos, lançaram a primeira manifestação de protesto contra a escravidão indígena.
Os dominicanos tiveram no projeto evangelizador de Batolomeo de Las Casas (1474-1566)
uma obra de longo alcance e com resultados duradouros, influindo decisivamente a
legislação espanhola referente a suas colônias na América. Embora em menor escala e sem
questionar a instituição da escravidão, também há iniciativas destinadas à evangelização de
escravos negros, com destaque para o jesuíta Pedro Cláver (1580-1654) que atuou no norte
da Colômbia, a partir de 1610. Autodenominava-se “escravo dos escravos da África” e foi
canonizado em 1888, ano em que a América Latina libertou-se formalmente da escravidão,
com a abolição da escravatura no Brasil. Se a questão indígena reiteradas vezes ocupou
lugar de destaque no debate sobre o colonialismo ibérico na América Latina, o mesmo não
ocorreu em relação à escravidão negra. Na verdade, a escravidão negra nunca foi
seriamente questionada pela Igreja em todo o período colonial.

O espaço geográfico que, a partir de 1507, se convencionou chamar de América designa


uma geografia humana plural e complexa. Comum à diversidade étnica e cultural é a
cosmovisão mítica e aberta à natureza, a percepção simbólica da realidade que remete a
realidades superiores e transcendentes, a vida comunitária, a percepção cíclica do tempo
etc. A organização social variava desde comunidades de caçadores e coletores até altas
culturas estatais e estratificadas como a dos Incas na América do Sul, dos Maias na
América Central e dos Astecas no México. Igualmente complexo é o universo religioso,
que varia desde práticas rituais simples ligadas à fertilidade, a ritos de iniciação e à prática
da caça e da pesca, até a religião das Cidades-Estado, governadas por elites sacerdotais que
regiam em nome e por inspiração das divindades. Um documento representativo deste
universo cultural é o POPOL VUH, um mito dos quiché da Guatemala sobre a sua origem
do milho. As altas culturas estatais chegaram a desenvolver complexos sistemas de
calendários, sistemas de comunicação hieroclífica, técnicas sofisticadas de cultivo e
preservação do solo e arrojada arquitetura voltada principalmente para a construção de
templos piramidais.

Os principais agentes de evangelização na América Latina no período colonial foram as


ordens religiosas, principalmente franciscanos, dominicanicanos, jesuítas, beneditinos,
carmelitas, agostinhanos e mercedários. Enquanto a maioria das ordens religiosas
direcionava suas atividades predominantemente para o interior da instituição eclesiástica,
coube aos jesuítas o mais consistente projeto missionário voltado à cristianização dos povos
indígenas. Sua principal estratégia missionária consistia da implantação de aldeamentos,

4
Tratado de Tordesillas, de 07 de junho de 1494. In: RIBEIRO, Darci; MOREIRA NETO, Carlos de Araújo
(org.). A fundação do Brasil: testemunhos, 1500 -1700. Petrópolis, Vozes, 1992, 18.
com a fixação dos indígenas em regiões litorâneas ou na confluência de grandes rios. Em
seu todo a estratégia das reduções varia de atitudes claramente colaboracionistas com a
exploração da mão de obra indígena até a franca oposição aos colonizadores e a
conseqüente defesa da liberdade dos índios, como ocorreu nas missões jesuíticas da
Amazônia e com os Guaranis na futura fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.

Grosso modo, os ciclos missionários coincidem com as frentes de ocupação econômica do


território Americano pelos europeus, sendo os mais representativos: a) Caribenho:
acompanha a exploração do ouro e o cultivo da cana de açúcar a partir de Santo Domingo e
constitui o ponto de partida para incursões na América Central, parte da atual Venezuela
bem como para o México; b) Mexicano: acompanha a ocupação do México por Hernan
Cortês, em 1519, a partir de Cuba, dando início ao “catolicismo guerreiro” na América
Latina; c) Peruano: Abrange a ocupação do império inca por Francisco Pizarro, partindo do
Panamá, em julho de 1529. Neste contexto ocorrem os primeiros movimentos de
resistência, tanto indígenas como negros; d) Platense: Ligado à extração da prata nas minas
de Potosi, que se converteu num exemplo emblemático da brutalidade da exploração da
mão-de-obra indígena. A mesma dinâmica constata-se no Brasil, cujos ciclos missionários
acompanham os movimentos da ocupação portuguesa do Brasil. Todos se caracterizam por
um período de florescimento e dinamismo seguido por um período de estagnação e
acomodação, perdendo seu ímpeto missionário inicial. Os principais são: a) Litorâneo:
Acompanha a conquista e ocupação do litoral brasileiro. Estende-se do Rio Grande do
Norte até São Vicente, em São Paulo. Inicia em 1549 com seis Jesuítas que chegam a
Salvador, juntamente com o primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza. Dentre
os missionários deste ciclo destacam-se os Jesuítas Manuel da Nóbrega (1517-1570),
primeiro provincial do Brasil, e José de Anchieta (1530-1597); b) Ciclo do Rio São
Francisco: É obra principalmente de jesuítas e franciscanos. Também conta com
capuchinhos franceses e italianos e oratorianos. Entrou em choque com os interesses dos
fazendeiros de gado, que defendiam a eliminação dos grupos indígenas do sertão para
estender suas fazendas de gado. c) Maranhense: Caracteriza-se pelo tema da liberdade dos
índios e pela implantação de uma nova estratégia de aldeamentos longe dos povoados dos
brancos, como forma de preservar a liberdade dos indígenas. É o espaço de atuação de
grandes jesuítas como Luís de Figueira e Antonio Vieira, d) Ciclo Mineiro: representativo
de um catolicismo leigo centrado em confrarias no contexto da exploração caótica das
minas de ouro em Minas Gerais e demais regiões de mineração como Cuiabá e Goiás, na
primeira metade do século XVIII.

Entre 1808 e 1824 todos os países latino-americanos declararam sua independência,


encerrando formalmente o status colonial sob a influência decisiva do mercantilismo inglês.
Um dos resultados deste processo foi a incorporação da tolerância religiosa pelos novos
países, como preceito constitucional em diferentes graus de abrangência. Esta nova
conjuntura levou a cúria romana a desenvolver uma política que se convencionou chamar
de romanização e que se caracterizou por uma série de medidas destinadas a garantir o
controle das igrejas antes dominadas pelos interesses das coroas ibéricas (superação do
Padroado Régio). Além da afirmação do controle romano da igreja nos novos países, a
política de romanização também investiu na submissão da religiosidade popular ao controle
do clero, combateu influências consideradas profanas, normatizou ritos e festas populares e
alinhou-as à disciplina centralizada e hierárquica. Por outro lado, a adoção do preceito
constitucional da tolerância religiosa forneceu a base legal para e estabelecimento de
grupos protestantes na América Latina, agora de forma permanente. Grosso modo, o
protestantismo se estabelece pela imigração e através da ação de sociedades missionárias, o
que permite agrupar as igrejas protestantes em dois grandes grupos quanto a sua origem: o
protestantismo de imigração, também chamado de étnico, e o de missão.

Bibliografia
BASTIAN, Jean-Pierre. Historia del protestantismo en América Latina. México-DF,
Ediciones CUPSA, 1990.
HOORNAERT, Eduardo. História do Cristianismo na América Latina e no Caribe. São
Paulo: Paulus, 1994.
LAMPE, Armando. História do cristianismo no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1995.
MÍGUES BONINO, José. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo:
Sinodal, 2003.
VVAA. História Liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina. São Paulo:
Edições Paulinas, 1992.

Lauri Emilio Wirth

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