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A i g r e ja C a t ó l ic a
NA AMÉRICA ESPANHOLA COLONIAL
3- Sobre este ponto, ver, por exemplo, Juan Villegas, Aplicación dei Concilio de Trento en
H ispanoam érica, 1564-1600: Província Eclesiástica dei Perú, Montevideo, 1975.
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de um tipo de bispo diferente do prelado da Idade Média e da Renascença. A
América espanhola pode arrogar-se o mérito da existência de uma plêiade
notável de homens firmemente devotados à difusão do evangelho sob as
mais desfavoráveis circunstâncias. Eram pobres, devotos, rigorosos na edu
cação teológica que haviam recebido, extremamente cônscios de seus deve
res e pouco inclinados a deixar-se impressionar pela interferência do poder
civil. Não é de modo algum uma coincidência que as condições coloniais
tenham levado a maioria deles a se destacar como defensores de índios:
Antonio de Valdivieso na Nicarágua, Juan dei Valle em Popayán, Pedro de la
Pena em Quito, Alfonso Toríbio de Mogrovejo em Lima e Domingo de
Santo Tomás em La Plata são apenas alguns dos nomes dentre os muitos que
merecem menção4.
Finalmente, o Concilio de Trento deve receber o crédito de uma tradição
conciliar e sinodal que se desenvolveu na América. Onze concílios provin
ciais foram celebrados no continente entre 1551 e 1629, a maioria em Lima e
em Cidade do México, mas também em La Plata (Chuquisaca) e em Santo
Domingo. Nenhum foi convocado durante o século e meio seguinte, uma
prova em si mesmo de que a Igreja estava agora bem estabelecida. O número
de sínodos diocesanos realizados foi até maior: há indicações de que, apenas
em 1555 e 1631, foram convocados mais de 25 deles. A importância dos
sínodos é ao mesmo tempo maior e menor que a dos concílios. Menor por
que geralmente se destinavam à aplicação da legislação decidida ao nível
provincial correspondente. Maior porque tomaram decisões que se aplica
A IGREJA CATÓLICA NA AMÉRICA ESPANHOLA COLONIAL
vam a uma área específica, e porque deles participavam uma parcela expres
siva do clero responsável pela implementação das decisões.
Século XVI
{ 1504-1550
1551-1600
22
9 } 31
Século XVII 5
Século XVIII 6
Século XIX 3
5< Ver Constantino Bayle, El Clero Secular y la Evangelización de A m érica, Madrid, 1950;
Pedro Borges, M étodos M issionales en la Cristianización de América, Madrid, 1960.
1
7- Luis Arroyo, “Comisarios Generales de índias”, Archivo Ibero Americano, 12:129-172, 258-
296, 429-473, 1952; Félix Zubillaga, “El Procurador de la Compania de Jesus en la Corte
532
O envio de missionários à América era, em última análise, uma questão
de política imperial. Assim, por exemplo, somente quando a coroa aquiescia
na prática, é que as ordens religiosas obtinham permissão para arregimentar
irmãos de fora da Espanha — estrangeiros, em toda a complexa variedade
que esse termo conota. Em princípio, os regulares estavam sujeitos às mes
mas exigências que o clero secular, mas havia variações na prática. Desde o
início do século XVII, por exemplo, os jesuítas receberam um número cres
cente de autorizações que lhes permitiam enviar seus sacerdotes à América
de qualquer parte dos domínios associados à coroa de Castela, e mesmo dos
domínios atuais e passados do Sacro Império Romano. Assim, entre os
jesuítas que iam para a América podemos encontrar flamengos, napolitanos,
sicilianos, milaneses, bávaros, boêmios, austríacos e outros não-espanhóis.
Entretanto, às vezes eles o conseguiam, aparentemente camuflando suas ver
dadeiras identidades com sobrenomes castelhanizados. Por outro lado, no
caso das outras ordens que trabalhavam na América, parece que o recruta
mento de não-espanhóis era mais raro, talvez porque sua estrutura fosse
orientada em termos mais locais, ou talvez porque fossem inspirados por
um nacionalismo mais patente8.
Assim que era ratificada pelas autoridades competentes a decisão dos
missionários de aceitar o chamado, viajavam para Sevilha — ou, mais tarde,
para Cádiz — ou para Puerto de Santa Maria, Jérez de la Frontera, ou San
Lúcar de Barrameda, onde aguardavam a autorização da Casa de la Contra-
tación para o embarque. Tinham também de esperar o navio que os trans
portaria ao Novo Mundo. Esse período de espera podia durar quase um ano,
mas, no final, depois que a coroa havia pago suas passagens transatlânticas e
os custos de sua manutenção, os missionários embarcavam sob a chefia do
procurador que havia vindo à Europa recrutá-los. Tão logo alcançavam o
porto com segurança — algo com que não se podia contar, porque tanto o
i°. Werner Promper, Priesternot in Latèinam erika, Louvain, 1965, pp. 107-117; Juan Alvarez
A IGREJA NA AMÉRICA
Mejía, “La Cuestión dei Clero Indígena en la Época Colonial”, Revista Javeriana, 44:224-
231, 1955; 245:57-67, 209-219, 1956; Juan B. Olaechea Labayen, “Sacerdotes índios de
América dei Sur en el Siglo X V III”, R evista de ín dias, 2 9 :3 7 1 -3 9 1 , 1969; idem, “La
Ilustración y el Clero Mestizo en América”, M issionalia H ispanica, 33:165-179, 1976;
Guillermo Figuera, La Form ación dei Clero Indígena en la Historia Eclesiástica de América,
1500-1810, Caracas, 1965.
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um papel na educação e nas obras de caridade, de considerável importância
para as filhas do setor crioulo da sociedade. Preparavam as moças para o
casamento e recebiam como membros permanentes aquelas que não se
casassem ou não pudessem casar-se. Entretanto, as mulheres índias não
eram aceitas como iguais dentro da vida do convento. Algumas mulheres
nativas eram admitidas, mas constituíam uma camada inferior da irmanda
de, que cuidava das tarefas manuais dentro do convento. As índias e as mes
tiças eram mais encontradiças entre as beatas, uma espécie algo inferior de
vida religiosa que apareceu primeiro na Nova Espanha, logo após a conquis
ta espanhola, e serviu para evangelizar as mulheres e elevá-las culturalmen
te, bem como capacitá-las a devotar-se às obras sociais. Algumas jovens
crioulas e mestiças engajavam-se numa vida religiosa formal fora das ordens
estabelecidas, embora, em alguns casos, pertencessem a uma ordem terceira
(franciscana). Transformavam a casa que possuíam em convento, onde se
dedicavam à oração e a formas mais ou menos extremas de penitência; por
vezes também se dedicavam a obras de caridade. Duas das mulheres ameri
canas que foram canonizadas oficialmente pertenciam a essa categoria:
Santa Rosa de Lima (1586-1617) e Santa Mariana de Jesus (1618-1645).
Ambas correspondem a um tipo ibérico peculiar de devoção, que em si
tinha pouca ligação com os problemas específicos do cristianism o na
América espanhola11.
lL Fidel de Lejarza, “Expansión de las Clarisas en América y Extremo Oriente”, Archivo Ibero-
A m ericano, 14:131-190, 265-310, 393-455, 1954-1955; e 15:5-85, 1955-1956; Josefina
Muriel de la Torre, “Conventos de Monjas en Nueva Espana, Oaxaca y Guadalajara”, Arte
en América y Filipinas, 2:91-96, 1949; Aurélio Espinosa Pólit, Santa M ariana de Jesús, Hija
de la Compania de Jesús, Quito, 1957.
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Bartolomé de Las Casas, um frade dominicano (1484-1566), foi efetiva
mente bispo de Chiapas por apenas um ano (1545-1546). Suas realizações
estão em outra esfera. Em 1514, teve seus olhos abertos para a realidade da
América, e daí por diante devotou o restante meio século de sua vida à defe
sa dos índios, lutando contra a forma que estava assumindo o sistema colo
nial. Lutou como padre secular, como frade, como bispo, como conselheiro
da corte, como polemista, como historiador e como representante dos
índios. Aliou-se à coroa para anular os privilégios dos colonos; exerceu pres
são sobre a consciência dos frades para que deixassem de absolver os enco-
menderos; propagou, através de escritos, sua própria visão do que deveríam
ser as índias; profetizou a destruição da Espanha em castigo pelas crueldades
que infligira a índios inocentes. É verdade que aquiesceu na importação de
escravos africanos para impedir a escravização de nativos americanos.
Algumas afirmações de seus panfletos e histórias eram, sem dúvida, exagera
das. Sua grandeza, entretanto — intocada por seus detratores — está na
forma com que denunciou o processo histórico do qual fazia parte e se dis
sociou dele. Na medida em que a obra de vida de Las Casas estava funda
mentada em suas convicções de cristão, frade e bispo, inclui-se entre os
grandes reformadores e “libertadores” da história da Igreja12.
Vasco de Quiroga (1470-1565) chegou pela primeira vez à América como
padre, mas como titular de um cargo leigo, o de oidor na audiência do
México, onde pouco tempo depois pôde avaliar a degradação a que estavam
sujeitos os indígenas na sociedade urbana colonial. Em 1532, fundou, nas
redondezas da capital, para atendê-los, o Hospital de la Santa Fe, uma insti
tuição que aliava funções de caridade, de saúde e bem-estar, de educação e
de catequese. Sua experiência no México iria repetir-se em Michoacán, cida
de da qual foi eleito bispo em 1538. Moldados nos ideais platônico, huma
nista e evangélico, os hospitais renovaram, no contexto do sistema colonial,
a fraternidade da comunidade indígena que esse sistema havia destruído: os
residentes usufruíam, entre outras coisas, de propriedade comum, trabalho
coletivo, instrução religiosa e profissional, igualdade de condição econômica
A IGREJA NA AMÉRICA
12. Sobre Las Casas, ver também neste volume os estudos de J. H. Elliott, caps. 4 e 7, às pp.
135-194 epp. 283-337.
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sacerdotes já se haviam ordenado nesse estabelecimento. Quiroga representa
o perfilhamento de políticas nativistas sem opressão, destinadas a libertar os
índios da exploração dos encomenderos. Colocou também em prática uma
alternativa missionária que não dependia nem de servidão econômica, nem
de hispanização13.
Domingo de Santo Tomás, um frade dominicano (1499-1570), foi um
típico teólogo e missionário mendicante. Tinha uma longa experiência do
Peru, aonde chegara em 1540. Em Lima, tornou-se professor de teologia,
especialista em questões relacionadas com os nativos, e foi correspondente e
informante de Las Casas. Em 1555 seguiu como representante dos índios
para a Espanha, onde permaneceu até 1561, durante as intermináveis e tor
tuosas negociações entre os colonos, os índios e a coroa sobre a perpetuida-
de das encomiendas. Anteriormente, havia viajado pela região montanhosa
do Peru e setores de Charcas, em busca de procurações dos índios que
tinham permissão de “comprar” sua liberdade das encomiendas e, sob uma
atmosfera altamente carregada de hostilidades, coletando os fundos necessá
rios para que o fizessem. Durante o período em que residiu na Espanha,
publicou a primeira gramática da língua quíchua (1560). Causou uma forte
impressão na corte e, em 1562, foi indicado para a diocese de La Plata em
sucessão a Tomás de San Martin, seu irmão em religião e na luta pelos direi
tos indígenas. Participou do Segundo Concilio Provincial Peruano em 1567.
São Turíbio de Mogrovejo (1538-1606) formou-se nas universidades de
Valladolid e Salamanca. Trabalhou na Inquisição de Granada, até que Filipe
13, Fintan B. Warren, Vasco d e Quiroga an d his Pueblo H ospitais o f Santa Fe, Washington,
D.C., 1963; M. Bataillon, “Utopia e Colonização”, Revista de História, 100:387-398, 1974;
“Don Vasco de Quiroga, Utopien”, M oreana, 15:385-394, 1967.
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de pelo que ocorria sob sua jurisdição não podia ser delegada. Isso o levou
repetidamente a confrontos com os vice-reis e a audiência, e até com o pró
prio Filipe II, por seu chamado “crime” de informar diretamente o papa
sobre a situação da Igreja nas índias14.
A CONSOLIDAÇÃO DA IGREJA
14- Vicente Rodríguez Valencia, Santo Toribio de M ogrovejo, O rganizador y Apóstol de Sur-
América, Madrid, 1956-1957, 2 vols.
539
ponderavam esmagadoramente: ainda em 1793, a universidade possuía 172
professores de direito, 124 de teologia e apenas doze de medicina. As univer
sidades da América espanhola colonial pouco realizaram em termos de ensi
no e pesquisa originais, e pouco ofereceram no campo da apreciação crítica
da sociedade. Como a Igreja que as mantinha, sua função social era conferir
legitimidade ao sistema colonial. Entretanto, cada um desses centros acadê
micos fomentou uma certa atividade intelectual em sua área e lançou as bases
de algum tipo de tradição local de pensamento avançado15.
Outro fenômeno do século XVII foi a atitude muito mais rígida que foi
adotada para com a prática religiosa dos nativos nas zonas centrais de hege
monia colonial. Até certo ponto, pode-se dizer que no século anterior o ideal
da igreja local e o cultivo de um certo grau de diálogo intercultural havia tido
precedência sobre a pregação do evangelho, mas no século XVII verificou-se,
com preocupação, que as religiões pagãs haviam sobrevivido e continuavam a
afetar as vidas dos nativos de milhares de formas diferentes. Existem nume
rosos testemunhos que demonstram o que se poderia considerar uma falha
parcial dos métodos de evangelização que haviam sido empregados. Poderia
logicamente parecer que a conclusão deveria ser a de desfechar uma nova
campanha missionária, a fim de frustrar esse sincretismo crescente, mas a
realidade foi bastante diferente. Permitiu-se que a época dos grandes missio
nários se tornasse uma coisa do passado, sendo substituída por um sistema
pastoral conservador e rotineiro. Tomou-se a decisão de destruir o que quer
que pudesse ser visto como testemunho de falhas passadas.
Tal concepção ficou particularmente evidente nas várias campanhas A ICREJA CATÓLICA NA AMÉRICA ESPANHOLA COLONIAL
b- Ver Agueda Maria Rodríguez Cruz,' Historia de las Universidiuics Hispanoamericanas: Perío
do Hispânico, Bogotá, 1973, 2 vols.; John Tate Lanning, Acaáem ie Culture in the Spanish
Colonies, New York, 1940; Francisco Esteve Barba, Cultura Virremul, Barcelona, 1965.
540
vidas numa duplicidade esquizofrênica. Exteriormente, tornaram-se cris
tãos, ao passo que interiormente continuavam adeptos de credos religiosos
indígenas, cada vez mais desvirtuados e desorganizados. É difícil superesti
mar o impacto dessa introspecção do esforço missionário. Sem dúvida,
segundo parece, esses episódios apenas reforçaram o distanciamento dos
indígenas do mundo dos colonos, tão freqüentemente notado como uma
das principais características de sua atitude para com os brancos16.
I6- L. Millones, “Introducción al Estúdio de las Idolatrias”, A portes, 4:47-82, 1967; Pierre
Duviols, La Lutte contre les religions autochthones dans le Pérou colonial: Vextirpation de
Vidolâtrie, Lima e Paris, 1971.
541
comerciais como Potosí. Freqüentemente, entretanto, não foi possível pro
var contra eles a prática clandestina da religião judaica. Em períodos de
crescimento do antagonismo aos conversos — particularmente quando
Portugal estava em luta pela recuperação de sua independência de Castela
(1640-1667) — bastava ser português para atrair suspeitas. Uma forma de
discriminação sofrida pelos portugueses nas mãos das autoridades coloniais
era a de serem multados em com posicion es, repetidos pagamentos em
dinheiro com o objetivo de regularizar sua residência presumivelmente ile
gal nas colônias. A coroa espanhola recorreu regularmente a essa exação
para solucionar suas freqüentes crises financeiras.
Tendo em vista a repressão sangrenta que a Inquisição espanhola infligia
a quem quer que fosse suspeito da mínima inclinação, ou simpatia, por dou
trinas luteranas ou de outra origem protestante, não é de todo surpreenden
te a existência de alguns testemunhos de uma presença protestante substan
cial nos domínios espanhóis de Ultramar. Quase todos os casos nessa catego
ria que chegaram à Inquisição diziam respeito a estrangeiros — ingleses,
franceses, holandeses, belgas e alemães. Não está absolutamente claro,
mesmo na época, se o real motivo do julgamento foi mais religioso que polí
tico, como, por exemplo, nos julgamentos realizados na Nova Espanha no
século XVI, em que quase todos os acusados eram homens do mar ou piratas
dos navios de Gaspard de Coligny, Jean Ribault, John Hawkins, Francis
Drake e outros. Fora esses casos, houve comunidades protestantes de curta
duração na Venezuela sob os Welsers, em 1528-1546, e no istmo do Panamá
Por exemplo, German Colmenares, Haciendas de los Jesuítas en ei Nuevo Reino de Granada,
Siplo A \ ///, Bogotá, 1969; Pabio Maeera, Instrueeiones paru Haciendas de Jesuítas en el
Peru, lama, 1963; ll c r m a n \V. Konrad, .3 Jesmt Haeienda in (xdonial México: Santa Lucia
1576 - 1707, Stantorcí, 1980.
543
do, do capítulo e da paróquia. As somas recolhidas dessa forma variavam
bastante de uma diocese para outra, de acordo com a densidade demográfica
da região e o grau de prosperidade econômica. (Na década de 1620-1630,
por exemplo, a arrecadação do dízimo podia variar entre sessenta mil pesos
e menos de dez mil pesos, de acordo com a diocese.) O montante obtido
com os dízimos tornou-se um fator importante para a posição das dioceses
na hierarquia. Com o passar do tempo, a arrecadação de dízimos foi arren
dada a leigos em troca do pagamento imediato de uma soma em dinheiro.
Em muitos lugares, o volume dos legados recebidos e dos investimentos fei
tos gerava uma situação que deu aos bispados a condição de operar como
instituições financeiras. Começaram utilizando os rendimentos dos legados
em bens imóveis para manter as obras de caridade (juzgados de capellanias) e
acabaram por se tornar a principal fonte de crédito e de investimento de
capital na América espanhola colonial18.
Outro testemunho da estagnação em que a Igreja havia mergulhado no
século XVII foi o estreitamento de visão, a canalização das energias para uma
multiplicidade de disputas internas e domésticas, que foram amplamente
registradas nas crônicas históricas sobre a Igreja. Muitos processos se refe
rem a questões de jurisdição entre os bispos e o poder civil, que iam do fun
damental ao trivial, e outros entre os bispos e o clero secular e as ordens reli
giosas. (Basta lembrar a pendência de Cárdenas contra os jesuítas no
Paraguai, ou a de Parafox contra os jesuítas de Puebla.) As casas religiosas
também moveram processos entre si sobre supostas difamações, ou em defe
18- Ver, por exemplo, Michael P. Costeloe, Church Wealth in México, Cambridge, 1967.
19' A. Tibesar, “The Alternativa: A Study in the Spanish-Creole Relations in Seventeenth-Cen-
tury Peru”, The Américas, 11:229-283, 1955.
544
mais importante expansão da vanguarda missionária, graças aos regulares,
principalmente os jesuítas e os franciscanos, as ordens que haviam permane
cido fora do círculo vicioso da inércia e da estagnação, e que jamais inter
romperam totalmente seus esforços missionários, apesar de freqüentemente
terem sofrido insucessos ou mesmo descontinuidades. Os jesuítas, a última
grande ordem religiosa a ingressar na obra de conversão da América, justa
mente por esse motivo, desfrutaram das melhores perspectivas de se estabe
lecer no campo missionário. Assim, por exemplo, desde o início, revelaram
uma notável relutância em assumir doctrinas nas zonas centrais de ocupação
colonial, e os poucos que acabaram por aceitar, como Juli, ao lado do lago
Titicaca, assumiram-nas sob restrições significativas. Duas espécies de áreas
problemáticas atraíam os jesuítas: as comunidades prejudicadas pelo fato de
que poucos religiosos viviam fora dos muros de seus conventos, e aquelas
onde a Igreja era excessivamente dependente dos patronos e estava estreita
mente envolvida com os encomenderos.
As Reduções jesuíticas, que datam da primeira década do século XVII,
encarnavam uma clara alternativa aos métodos existentes de evangelização
pastoral e marcaram uma ruptura com os conceitos que haviam prevalecido
desde o período de experimentação missionária na primeira metade do
século XVI e um retorno ao mundo de Las Casas e Quiroga20. Os jesuítas
têm o mérito histórico de ter praticado amplamente um modelo de evange
lização que contrastava com a fórmula predominante na época da pregação
do evangelho, e ao mesmo tempo de colonização e hispanização dos conver
sos, como se os evangelizadores tivessem de ser a transmissão da máquina de
integração. As Reduções proclamavam desafiadoramente a necessidade de
construir uma sociedade paralela à dos colonos, livre da interferência tanto
destes quanto de uma administração civil sensível aos interesses destes.
Como se recusavam a atuar como reservatórios de mão-de-obra para os
colonos, as Reduções estavam aptas a estabelecer uma evangelização baseada
no interesse pela personalidade integral do converso. Seu objetivo não era
apenas doutrinar, mas fortalecer a vida social e econômica dos índios em
A IGREJA NA AMÉRICA
todos os aspectos. A Tabela 2 pode nos dar uma idéia aproximada das pro
porções da “experiência sagrada” em toda a América espanhola.
Tarahumara,
Sonora e Sinaloa 1614 40 c. 40 000
Califórnia 1695 19 c. 22 000
A no da
Colégio Missões Servidas pelo Colégio
Fundação
21 . Isidro Félix de Espinosa, Crônica de los Colégios de Propaganda Fide de la Nueva Espana, 2.
ed., W ashington, 1964; Félix Saiz Díez, Los Colégios de P ropagan da F ide en Hispano-
América, Madrid, 1969.
547
maior parte da obra missionária — do sul do Chile à Califórnia, Arizona e
Novo México.
ram seus quadros nas pessoas de mais de 2 500 padres, na maioria crioulos,
todos eles cosmopolitas, bem qualificados, disciplinados e eficientes. Com
efeito, a derrocada dos jesuítas foi a derrocada da única força dentro da
Igreja capaz de questionar as aspirações autoritárias do novo regalismo. Sem
os jesuítas, a Igreja ficou praticamente indefesa diante do Estado e teve de
entrar desarmada no período subseqüente de pré-independência.
549
O regalismo em sua ofensiva, tendo-se livrado da Companhia de Jesus,
agora avançava no sentido de colocar o aparelho eclesiástico sob um contro
le ainda mais rígido do Governo. Carlos III primeiramente proibiu o ensino
e depois a defesa pública da “doutrina jesuíta”. Em 1768-1769, convocou
uma série de concílios provinciais da Igreja na América espanhola “para
exterminar as perniciosas doutrinas novas, substituindo-as pelas doutrinas
antigas e sólidas”. Quatro concílios, o primeiro depois de mais de um século
emeio, se reuniram em 1771-1774, mas os resultados foram pouco relevan
tes. 0 concilio do México não foi tão obsequioso ao monarca e realmente
pediu ao papa que convertesse os jesuítas num clero secular. Em Bogotá, os
procedimentos foram tão ambíguos que as decisões foram inconclusivas e
tiveram de ser declaradas nulas. Em Lima, o concilio ocupou-se da reforma
do clero, mas, ao denunciar a “doutrina jesuítica”, como foi convocado a
fazer, deixou de apresentar a virulência que a autoridade civil esperava, ao
que Madri replicou com extrema falta de interesse em aprovar ou ratificar as
determinações dos prelados do concilio. Finalmente, em La Plata, o concilio
tornou-se um campo de batalha entre o metropolita local, que defendia a
aceitação da convocação real, e seu irmão de Buenos Aires, que permanecia
pouco impressionado por ela. O que a assembléia de La Plata realmente pro
duziu foi uma das primeiras formulações dessa característica essencial do
comportamento democrático — um reconhecimento de que a minoria era
obrigada a acatar as decisões da maioria23.
Durante as últimas décadas do domínio colonial espanhol, a Igreja (espe
A IGREJA CATÓLICA NA AMÉRICA ESPANHOLA COLONIAL
cialmente o alto clero predominantemente espanhol) era mais dependente
do Estado e subordinada a ele do que jamais fora. Na revolta tributária dos
comuneros, nas províncias de El Socorro, Tunja, Sogamoso, Pamplona e Los
Llanos de Nova Granada, em março de 1780, os protagonistas foram os
crioulos (embora, como em outros lugares, eles tenham usado os índios e os
mestiços para defender seus interesses). O representante da autoridade colo
nial que teve de enfrentar a crise foi o arcebispo Caballero y Góngora, de
Bogotá. Sua estratégia foi uma obra-prima de maquiavelismo. Primeiro,
pareceu aceitar as exigências dos insurretos, enquanto esses pensavam estar
conduzindo os rebeldes à vitória. Mais tarde, denunciou os acordos assina
dos e deixou a repressão correr livre quando as autoridades se sentiram com
23- A. Soria-Vasco, “Le Concile Provincial de Charcas de 1774 et les Déclarations des Droits
de rH om m e ”, VAnnée Catholique, 15:511, 1971.
550
vantagem militar para fazê-lo24. Na mesma época, o Peru estava sendo sacu
dido pela mais profunda comoção que algum dia atingiu a sociedade andina:
milhares de índios e mestiços rebelaram-se contra os abusos coloniais, os
antigos e os recentes. Agosto de 1780 assistiu à irrupção de uma revolta
aberta na região central da Audiência de Charcas (Alto Peru): Chayanta,
Yampara, Purqu e Aullagas; novembro de 1780 nas regiões de Cuzco, Are-
quipa, Huamango e Puno; e março de 1781 as de La Paz, Oruro, Cocha-
bamba e Chuquisaca. De que lado se alinhou a Igreja? Os poucos sacerdotes
que lutaram ao lado dos rebeldes ou mostraram simpatias por eles fizeram-
no por necessidade. Por outro lado, entretanto, desde o início, toda a classe
clerical intuitivamente identificou seu destino ao da minoria branca e se dei
xou usar pelo poder civil repressor como instrumento de “pacificação” (isto
é, de subjugação) dos não-brancos. A profundidade da divisão entre os dois
lados forneceu indícios adicionais de que a Igreja estava lá para servir muito
mais ao Estado colonial que aos índios. Surgiram algumas especulações
sobre as supostas simpatias tupamaristas do bispo crioulo de Cuzco, Juan
Manuel de Moscoso y Peralta; a verdade, no entanto, é que nunca demons
trou tal simpatia; o que ocorreu foi apenas uma conspiração entre um cône
go local e dois funcionários da coroa, Benito de la Mata Linares e Jorge de
Escobedo. Se existiram tais simpatias em algum lugar entre o baixo clero ou
entre os missionários, sua doutrinação pelas autoridades da Igreja tê-los-ia
educado a mascarar com sucesso tais sentimentos.
Todavia, por volta de 1808-1810 e com a crise final do sistema colonialis
ta, não era muito segura a lealdade do baixo clero predominantemente
crioulo à coroa. Estavam cada vez mais ressentidos com o monopólio virtual
dos altos postos eclesiásticos pelos peninsulares. Muitos de seus privilégios,
especialmente o fu ero eclesiástico que lhes dava imunidade em relação à
jurisdição civil, estavam sendo impugnados. E uma série de medidas, que
culminaram no decreto de consolidação ou amortização, lançado em 26 de
dezembro de 1804, tentaram (com um sucesso apenas limitado, deve-se
dizer) apropriar-se dos bens imóveis e do capital das fundações religiosas e
A IGREJA NA AMÉRICA