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1.

A identidade civilizacional europeia


A identidade europeia construiu-se num cenário conflitual, girando entre dois pólos - a unidade e a
diversidade. O conflito centrou-se entre os adeptos da (re)construção da unidade política e religiosa
do Ocidente, aceitando a supremacia de Roma, e os defensores da diversidade representada pela
ascensão das monarquias nacionais e pelas tentativas de romper com os dogmas da Igreja. Este
processo desenvolveu-se num quadro económico e social caracterizado, enfim, por um período de
certa prosperidade, embora frágil e relativa, sempre à beira da rutura a qualquer momento.

1.1. Poderes e crenças - multiplicidade e unidade

Apesar dos esforços da Igreja, especialmente intensos desde os finais do Império Romano, no
sentido do estabelecimento da unidade dos cristãos em torno de uma monarquia cristã universal, a
verdade é que, nos finais da Época Medieval, essas tentativas caminhavam rapidamente para o
fracasso perante a emergência de uma multiplicidade de poderes políticos e religiosos.

1.1.1. Uma geografia política diversificada


A ideia de reconstituição da unidade imperial mantinha-se viva. Após a aliança dos princípios do
século IX entre a Igreja Cristã e os Francos, simbolicamente concretizada pela coroação de Carlos
Magno como imperador pelo papa Leão III (800), a divisão do reino dos francos no tratado de
Verdun (843) pôs em causa este princípio. Apesar disso, a unidade imperial não deixou de ser
perseguida na parte oriental do império carolíngio, tendo sido finalmente conseguida em 962, com a
coroação imperial de Otão I, fundador do Sacro Império Romano-Germânico. No século XIII, porém,
este império estava em desagregação, espartilhado por uma série de poderes locais (reinos, ducados
e condados).
Por sua vez, na parte ocidental da Europa ocorria a afirmação de reinos como o de Portugal, Castela
e Aragão (na Península Ibérica) ou os de França e Inglaterra. Tratava-se de entidades políticas que
podemos englobar na categoria de monarquias feudais, onde se assistia genericamente ao reforço
da autoridade real e à sua emancipação face aos poderes locais e à Igreja. Na Europa Oriental,
entretanto, reinos como o da Hungria e da Polónia lutavam pela sua afirmação, dificultada pela
persistência de senhorios cujos senhores conservavam os poderes de natureza militar, fiscal e
judicial.
Em áreas como o Norte da Itália e a zona do Mar Báltico não ocorreu esta afirmação da monarquia
feudal. Pelo contrário, favorecida pela reanimação da atividade artesanal e comercial, a burguesia
das cidades destas duas regiões, aceitando mal as imposições senhoriais, procedeu à criação de
comunas. Em consequência, de forma mais ou menos violenta, conseguiram que os senhores lhes
outorgassem documentos - as cartas comunais - que identificavam as liberdades, garantias e a
autonomia administrativa da cidade, a partir de então liderada pela burguesia local.
Assentando a formação dos reinos numa certa identificação entre o rei e a população que habitava
um território, as fronteiras internas e externas da Europa estavam bem longe da estabilidade.
Internamente, lutas constantes entre os reis traduziam-se em ganhos e perdas territoriais que
contribuíam para a modificação frequente dos limites do território. Externamente, a sul, prosseguia
o combate contra os muçulmanos na Península Ibérica, o que tendia a aumentar o território dos
reinos cristãos; a oriente, verificavam-se também avanços territoriais significativos, fruto de
movimentos de colonização devidamente organizados.
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1.1.2. A organização das crenças
A Igreja desempenhou um papel de relevo em todas as áreas da vida medieval, de que resultou o
reforço da máxima autoridade eclesiástica - o bispo de Roma ou o papado - sobre a cristandade oci
dental. No entanto, este reforço foi marcado por lutas internas com os reis que, ao procurarem
ampliar internamente a sua autoridade, inevitavelmente chocavam com as autoridades religiosas.
A Igreja foi responsável pela organização e difusão das crenças. Uma delas consistia na defesa da
sociedade trinitária, atribuindo a sua origem e legitimidade a uma instância inquestionável - a divina
providência. A sociedade dividia-se em três grupos: os que oravam (clero), os que combatiam
protegendo os outros (nobreza) e os que trabalhavam para alimentar o conjunto social (o povo). A
legitimação desta sociedade assentava nos seguintes argumentos: por um lado, os grupos eram
interdependentes, não podendo sobreviver sem os outros; por outro, a função social de cada um
destes grupos tinha sido fixada por Deus, que era também responsável pela natureza atual da
relação entre os grupos sociais. Na sua essência, aceitando o princípio ditado por Deus da
desigualdade entre as pessoas, o que esta proposição fazia era justificar as duras condições de
exploração a que o povo estava sujeito nos senhorios pertencentes aos grupos sociais privilegiados.
Desta forma, procurava-se ocultar as possibilidades de transformação da própria sociedade, que
poderia assumir configurações bem menos penalizantes para os camponeses, e evitar que os explo
rados pudessem desenvolver lutas tendentes a pôr em causa o poder dos senhores laicos e
eclesiásticos.
O papel da Igreja manifestou-se também na sacralização de determinadas instituições e
comportamentos, assegurando desta forma o respeito pelo juramento realizado perante a sagrada
escritura ou relíquias de santos. O desrespeito pelo cumprimento da “Palavra” tinha como
consequência a desonra pessoal e o castigo divino. Foi com base nestes argumentos que a Igreja
procurou reduzir os efeitos da guerra, definindo um conjunto de regras que todos eram obrigados a
jurar a propósito da utilização de armas, mas que não revelou grande sucesso.
Entretanto, o reforço da coesão interna constituiu outra linha de atuação da Igreja, tendo-se
concretizado em iniciativas como o combate aos heréticos (especialmente os cátaros ou albigenses),
a fundação das ordens mendicantes e o estabelecimento da Inquisição. Tendo surgido em meados
do século X, na zona dos Balcãs, os cátaros espalharam-se no século XII pelo Sul de França (Aquitânia
e Langdoc) e Norte da Itália. Inspirando-se na Bíblia, os cátaros recusavam a eucaristia, negavam a
divindade de Cristo, aceitavam um único sacramento - o consolamentum criticavam a riqueza do
clero perante a miserável existência do povo e dispunham de um clero - os perfeitos - integrados na
vida da comunidade. Vieram a conquistar uma base social de apoio muito ampla, desde as elites
urbanas à nobreza militar, em particular os condes de Toulouse. Condenados em 1215 pelo Concílio
de Latrão, foi desencadeada contra eles uma feroz cruzada pelo papa Inocêncio III, seguido pelo rei
Luís VIII de França, terminada violentamente em 1244 com a condenação à fogueira, em Béziers, dos
últimos representantes desta heresia.
Apesar disso, a posição inicial da Igreja em relação às heresias consistiu na tentativa de combate
através do exemplo e da pregação. Na realidade, os seguidores de S. Francisco de Assis, os Francisca
nos, estimulando o apelo a uma vida de pobreza por parte dos religiosos através do trabalho e,
quando este faltasse, da esmola, pareciam constituir uma tentativa de esvaziamento da crítica
cátara à riqueza do clero. Mais consistente do ponto de vista teológico se revelou Domingos de
Gusmão, fundador dos dominicanos e encarregado pelo papa Inocêncio III da pregação junto dos
cátaros. Franciscanos e Dominicanos, a par dos Carmelitas e dos Agostinhos, constituíram as ordens
mendicantes, um poderoso instrumento de intervenção dos papas tendo em atenção o fato de o
responsável máximo da ordem depender diretamente de Roma.
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Também neste contexto surgiu a Inquisição. O Concílio de Latrão havia estabelecido que os hereges
fossem apartados da comunidade, tendo, posteriormente, diversos reinos estabelecido a pena de
morte para os renitentes ou relapsos. Estas decisões da autoridade religiosa revelaram enormes
dificuldades de aplicação por parte da autoridade civil. Por isso, em 1231, com o papa Gregório IX
foram os próprios religiosos incumbidos da tarefa de “inquirir” sistematicamente as pessoas sobre a
sua crença, utilizando para o efeito como instrumentos a confissão, a denúncia e a delação. Daí
nasceu a Inquisição, confiada inicialmente aos Dominicanos, tristemente célebres pela severidade
dos processos utilizados e, talvez por isso, substituídos posteriormente nessa missão pelos
Franciscanos.
Finalmente, a Igreja Cristã reforçou-se externamente em relação ao Império Bizantino e ao Islão. Em
1054, verificou-se a rutura de Bizâncio com Roma, tendo nascido a Igreja Ortodoxa Grega que, além
do uso da língua grega numa liturgia mais rica e complexa, negava o dogma da Santíssima Trindade e
aceitava o casamento dos padres. Quanto ao Islão, o bispo de Roma dinamizou o movimento de
ofensivas militares - as cruzadas - iniciado em 1095 no sentido de libertar os lugares santos do poder
dos muçulmanos, mas que se repercutiu noutras áreas geográficas de confluência entre cristãos e
muçulmanos - o apoio à reconquista da Península Ibérica e a vigilância exercida no Mar
Mediterrâneo.

1.2. O quadro económico e demográfico – expansão e limites do crescimento


A partir do século XI assistiu-se à reanimação da atividade económica, como consequência dos
progressos ocorridos na agricultura, na indústria e no comércio, acompanhados de um importante
surto demográfico. No seu conjunto, estes fatores foram determinantes para o crescimento das
cidades já existentes ou para o aparecimento de outras novas, retomando uma linha de evolução
histórica - a civilização urbana - que as invasões “bárbaras” haviam interrompido alguns séculos
atrás (esquema 1).

Esquema 1 - A conjuntura de prosperidade no século XIII

1.2.1. Expansão agrária


Entre os séculos XI e XIII, um conjunto significativo de inovações tecnológicas veio criar condições
para o desenvolvimento agrícola, com efeitos positivos sobre a reanimação do comércio e o
crescimento populacional. A rotação trienal permitiu aumentar a superfície cultivada em cada ano, o
uso da charrua em substituição do arado revolvia de forma mais profunda a terra, o cavalo
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aumentou a rapidez na execução do trabalho agrícola, a atrelagem em fila abriu perspetivas
inovadoras no campo dos transportes ou na lavra de terrenos muito profundos e a estrumagem dos
terrenos aumentou as potencialidades das terras.
Este conjunto de inovações contribuiu para a melhoria da produção e da produtividade na
agricultura, isto é, aumentou quer o volume global das colheitas quer a relação entre a semente e a
colheita (em média, esta era cinco a seis vezes aquela). Para este aumento da produção agrícola, foi
ainda significativo o movimento de novos arroteamentos de terras até então cobertas por matagais,
especialmente intenso no Centro da Europa devido à ação de ordens religiosas, enquanto em
Portugal este movimento se manifestou pela secagem de pântanos (os pauis).

1.2.2. As trocas comerciais e as rotas do comércio


O aumento da produção agrícola e artesanal, o surto demográfico e o aparecimento de um clima de
mais estabilidade política e social contribuíram para o incremento das trocas comerciais e a
reanimação da vida urbana. As explicações para a reanimação das cidades são essencialmente duas:
uma relaciona-a com o renascimento da atividade comercial, seja por via do comércio à distância,
seja por via do incremento das trocas regionais, o que teria possibilitado que nas cidades surgissem
mercados com condições de segurança; a outra situa o renascimento urbano precisamente no seio
da própria cidade, atribuindo-o ao dinamismo da sua produção artesanal e da troca de produtos
agrícolas com o território circundante.
Como se verifica, o que está em questão são as relações entre a cidade e o campo no quadro de uma
economia monetária. No século XII, a cidade tornou-se um pólo de desenvolvimento na medida em
que ela funcionava como um centro de produção e difusão aos níveis técnico, económico e cultural.
A cidade transmitiu um significativo impulso ao aumento da superfície cultivada e à divulgação de
novas tecnologias no campo, tornando-se, ao mesmo tempo, um centro de produção e difusão de
produtos manufaturados produzidos pelos seus artesãos. A procura nas cidades determinou as
condições de produção do campo, levando à acumulação dos excedentes, que passaram a ser
direcionados para o mercado e à diversificação de culturas. As cidades recuperaram o papel
monetário que haviam conseguido especialmente com os Romanos, de tal forma que a retoma da
cunhagem de moedas de ouro no século XIII passou a constituir um símbolo de prosperidade e
orgulho municipal. A cidade foi ainda o centro produtor de um modelo cultural forjado sobretudo
nas escolas que, ao exportá-lo para o campo, lhe conferiu uma incontestável supremacia cultural.
Por outro lado, a cidade constituiu um espaço de atração de mão- -de-obra proveniente do campo,
destinada a alimentar o artesanato urbano em fase de crescimento. Simultaneamente, proporcionou
a liberdade a muitos servos até então submetidos ao jugo senhorial, muito embora alguns
tendessem a olhar esta modificação como uma passagem para um novo “jugo” - o do ofício. Em
consequência da monetarização da economia e da diminuição da mão-de-obra, pode- -se afirmar
que as condições de vida no campo melhoraram ligeiramente através da diminuição do peso das
corveias e da sua substituição por uma quantia anual em moeda.
Contudo, seria errado ignorar alguma influência do campo sobre a cidade até porque foi no quadro
dos constrangimentos impostos pelo senhorio que teve lugar o ressurgimento urbano. Os recém
chegados à cidade eram camponeses que transportavam consigo costumes e modos de pensar que a
vida urbana não deixou de refletir.
Como se referiu, ao princípio, as trocas tinham como objectivo a satisfação das necessidades de
abastecimento local, consistindo em produtos cultivados por camponeses nos campos em redor da
cidade e asseguradas pela realização de um pequeno mercado. Porém, à medida que cresceu a
produção agrícola, se verificou o surto demográfico e se desenvolveram as cidades, as trocas
ganharam nova dimensão, passando a efectuar-se entre várias regiões de um país ou entre vários
países.
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Do pequeno mercado local, com uma periodicidade semanal ou mensal, transitou-se para feiras de
âmbito nacional e mesmo internacional. Realizadas uma vez em cada ano, coincidindo com épocas
de manifestações religiosas capazes de atrair população, duravam vários dias e a elas acorriam
comerciantes de lugares diversos. Para o efeito, reis e senhores procuravam conceder facilidades e
privilégios, isentando os comerciantes de taxas e impostos, garantindo a imunidade perante a
justiça ou promovendo condições de segurança.
Com base nas feiras, animou-se um importante fluxo internacional que se traduzia pelo tráfico de
produtos como os cereais, as madeiras, os metais, o vinho, os tecidos, o sal ou as especiarias. As
condições em que ocorria o transporte de mercadorias, num negócio de carácter essencialmente
itinerante, eram, contudo, difíceis. Daí que os comerciantes fizessem as viagens acompanhados,
para melhor se protegeram em caso de ataque, o que, sem dúvida, facilitou a tendência associativa
desde cedo manifestada entre eles.
Esta actividade comercial, por outro lado, foi estimulada por um conjunto de inventos técnicos no
campo dos transportes, de entre os quais é possível destacar a utilização da ferradura e da
atrelagem em fila. Os caminhos foram também melhorados. Eram, contudo, muito penosos, quer
devido às más condições do piso quer às inúmeras portagens a pagar pelos produtos. Daí que se
tenha registado o incremento do comércio fluvial e sobretudo do marítimo, facilitado pela utilização
de inventos como a bússola e o leme central ou de cadaste.
Os principais focos de desenvolvimento da Europa no século XIII eram a Flandres, as cidades do
Norte da Itália, a Champanha e as cidades da Liga Hanseática.
As cidades da Flandres (A) constituíam importantes locais de produção têxtil, prósperos centros
comerciais e, especialmente Bruges, activas praças financeiras. Importavam matérias-primas
necessárias à indústria têxtil, como a lã (de Inglaterra), os corantes e o alúmen do Sul da Europa e
do Oriente ou os metais da Europa Central. Servidas por portos profundos e navegáveis, as cidades
flamengas funcionavam como entreposto entre o Sul da Europa, donde provinham o sal, o vinho, o
azeite e as especiarias orientais, e as cidades do Norte da Alemanha, donde chegava o peixe
salgado, as madeiras, as peles e os cereais.
As cidades italianas (B), por sua vez, asseguraram o controlo do comércio do Mediterrâneo,
nomeadamente as relações com os muçulmanos, o Império Bizantino e o Oriente, o que, até à
descoberta da rota do Cabo, lhes proporcionou grande prosperidade. A Veneza e Génova, em
especial, chegavam as especiarias orientais, tecidos de algodão, seda e pedras preciosas, as
matérias-primas da Ásia Menor (metais e alúmen, na posse de Génova), couros, peles e cereais da
Rússia, escravos, peixe e vinhos do Mar Negro. Estes produtos eram depois distribuídos por toda a
Europa, em especial pela Flandres e Sul da Alemanha, onde eram trocados por metais e têxteis.

Pólos de desenvolvimento e rotas comerciais no século XIII


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As ligações comerciais entre o Norte da Europa e a Itália efectuaram-se, até ao século XII, por via
terrestre e fluvial, o que originou o desenvolvimento das cidades-feira da região da Champanha (C).
Beneficiando os comerciantes com isenções fiscais e condições de segurança, estas feiras tiveram
um papel de relevo na dinamização do comércio Norte/Sul até ao seu declínio no século XIV, em
resultado da abertura de rota marítima directa entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa.
No Norte da Alemanha e margens do Mar Báltico (D), um conjunto de cidades (Hamburgo, Dantzig,
Novgorod e Lubeque, a capital) constituíram a Liga Hanseática, poderosa associação comercial que
passou a controlar todo o comércio da zona desde a Rússia à Inglaterra e à Flandres.
Em finais do século XIII, a abertura de uma rota marítima directa entre o Mediterrâneo e o Mar do
Norte trouxe importante contributo para o desenvolvimento económico português e, em particular,
para o crescimento da cidade de Lisboa. Na realidade, dinamizou-se um activo comércio que se
traduzia pela exportação de sal, vinho, azeite, frutos secos, mel, cortiça e couros e pela importação
de metais, madeiras e têxteis.
Esta reanimação económica, por outro lado, coroava uma política encetada pelos reis de Portugal ao
longo deste século com o objectivo de apoiar os comerciantes portugueses. Assim, haviam sido
obtidos alguns privilégios em países com os quais se mantinham relações comerciais, como a
Inglaterra, a França e a Flandres que se traduziam na isenção de impostos e na garantia de condições
de segurança, o mesmo acontecendo em relação aos mercadores estrangeiros fixados em Portugal.
Em 1293, o Rei D. Dinis havia aprovado a Bolsa de Mercadores, um fundo comum destinado a
suportar despesas de viagens para a Flandres e portos do Norte da Europa, conseguido com uma
prestação a cobrar por cada barco, em cada viagem. No reinado de D. Fernando, para além de um
conjunto de medidas tendentes a incentivar a construção naval, criou-se a Companhia das Naus,
fundo de ajuda para a compra de navios perdidos em naufrágios ou aprisionados no alto-mar
conseguido com o pagamento de 2% da receita de cada viagem.
Por outro lado, também o comércio interno conheceu, nesta época, uma dinâmica interessante,
merecendo igualmente o apoio e a intervenção dos reis portugueses. Desde o século XII, existiam
mercados de carácter regular com o objectivo de abastecer quotidianamente as populações com
produtos locais, especialmente alimentos. Mas é só na segunda metade do século XIII que se
desenvolveram as feiras onde afluíam comerciantes com produtos nacionais e estrangeiros, protegi
das pelos reis através de cartas de feira que estabeleciam os privilégios a conceder aos feirantes, o
pagamento de impostos, a periodicidade e duração da feira. Apesar deste surto de desenvolvimento
do comércio interno português, convém relativizar a sua dimensão, uma vez que persistiam as más
condições de circulação, o que levou ao desenvolvimento de um corpo de especialistas - os
almocreves - que efectuavam o transporte de mercadorias no dorso de animais de carga.
Em consequência deste incremento da actividade comercial, particularmente o comércio à distância,
desenvolveram-se práticas comerciais e financeiras que vieram facilitar as trocas e simplificar as
operações com elas relacionadas. Duas destas práticas consistiram na difusão da letra de câmbio e
do cheque. Estas técnicas financeiras tinham como vantagens evitar o perigo de assalto no
transporte de moeda entre locais diferentes, minimizar os inconvenientes relacionados com as
frequentes alterações do valor da moeda e ainda permitir algum lucro pelas variações de câmbio
entre as diversas praças.
Por outro lado, dada a progressiva generalização do emprego da moeda como forma de pagamento,
um dos obstáculos à celeridade nas relações consistia na existência de uma enorme variedade de
espécies monetárias em circulação e, em muitos casos, na sua falsificação. Daí que tivessem surgido
os cambistas, que se encarregavam de proceder à troca da moeda do portador pela quantia
correspondente em moeda de circulação local.
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Simultaneamente, desenvolveu-se o crédito a que os mercadores recorriam para conseguir somas
importantes para determinada operação comercial. Com o tempo, os banqueiros passaram a
efectuar outras operações tais como pagamentos, transferências, adiantamentos e depósitos.
Entretanto, como a realização de negócios exigia importantes capitais, apareceram as sociedades
comerciais. O primeiro tipo de sociedade tinha um carácter precário, limitando-se a definir as condi
ções para uma viagem. Posteriormente, surgiram as sociedades em comandita que juntavam um
mercador e um capitalista: aquele recebia 25% dos lucros, podendo não entrar com nenhum capital,
enquanto este auferia 75%.
Estas sociedades eram características das cidades marítimas do Sul da Europa. Nas cidades do
interior, as associações de comerciantes - companhias - tinham um carácter mais duradouro,
reuniam capitais mais importantes que se distribuíam proporcionalmente ao capital investido,
efectuavam negócios em áreas diversas e possuíam filiais noutras cidades
Finalmente, também na contabilidade ocorreram inovações que melhoraram o registo das
operações comerciais. A principal foi o método das partidas dobradas, que consistia na abertura de
uma conta individual em que se escrituravam os débitos na página da esquerda e os créditos na
página da direita, permitindo ter permanentemente actualizado o respectivo saldo.

1.2.3. A fragilidade do equilíbrio demográfico


Apesar da prosperidade económica que descrevemos até aos finais do século XIII, a verdade é que,
face à fragilidade das tecnologias utilizadas no campo, a fome espreitava constantemente a
população europeia. O crescimento demográfico foi relativamente suportado pelos novos
arroteamentos que supriam o fraco nível de produtividade da terra. Mas, no princípio do século XIV,
este frágil equilíbrio entre a produção agrícola e as necessidades alimentares da população
quebrou-se, como consequência de alguns maus anos agrícolas provocados por factores climáticos,
de uma certa paragem nos novos arroteamentos e da crescente diminuição da produtividade
agrícola por algum esgotamento das terras.
Estes factores contribuíram, especialmente entre os anos de 1315-1317, para uma forte diminuição
da produção. Os preços dos cereais subiram, até porque, dadas as fracas condições de transporte de
mercadorias, não era possível ajudar as zonas da Europa mais atingidas. De imediato, as fomes
fizeram o seu reaparecimento (esquema 2).

Esquema 2 - A conjuntura de depressão no século XIV


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Afectando, fundamentalmente, os grupos sociais mais débeis, as fomes trouxeram uma elevação
brusca da mortalidade, que contribuiu para a escassez de mão-de-obra e acentuou a quebra da
produção. Finalmente, as carências alimentares da população ajudaram à difusão de epidemias,
encerrando-se deste modo a trilogia dos factores que, juntamente com a guerra, constituíam, no
imaginário da população medieval, um terrível flagelo.
Nos meados do século XIV, esta situação já difícil piorou com a chegada da Peste Negra (1347-1350).
Importada das margens do Mar Negro por comerciantes genoveses, espalhou-se rapidamente por
toda a Europa, tendo sido responsável pela mortalidade de cerca de um terço da sua população. A
Peste Negra chegou a Portugal no ano de 1348, tendo, de igual modo, sido responsável por grande
mortandade e contribuído para o despovoamento de vilas e aldeias ou o abandono dos campos.
Nem todos os locais, contudo, foram afectados da mesma forma: nas cidades, dada a concentração
da população, esta estava muito mais sujeita ao contágio, pelo que foi aí que a Peste se revelou mais
mortífera.

Difusão da Peste Negra na Europa

A guerra constituiu outro factor de impacto no aprofundamento da crise. E não pelo número de
mortes que directamente ela provocava, uma vez que as técnicas militares eram relativamente
rudimentares. Mas, sobretudo, devido às pesadas implicações que ela tinha para o povo: aumento
de impostos, abandono forçado dos campos para combater, confiscação de bens para alimentar
prioritariamente o exército, destruição de colheitas pelos inimigos. Ao longo do século XIV, um
conflito envolveu boa parte da Europa: a Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra, para a
qual Portugal se viu arrastado devido à política de alianças, tendo ocorrido três guerras (Guerras
Fernandinas) contra Castela, tremendamente desastrosas.
A instabilidade política e social motivou as populações a abandonarem os campos, procurando as
cidades mais protegidas pelas suas muralhas. Em consequência, verificou-se uma crescente escassez
de mão-de-obra para os trabalhos agrícolas, fazendo diminuir a produção e obrigando à reconversão
das terras em pastagens. Os que ficaram exigiram melhores salários. No seu conjunto, estes factores
agravaram a situação dos senhores, afectados pela diminuição das rendas, pela quebra da produção
e pelo aumento dos salários dos camponeses.
Daí que os senhores e os reis tentassem resolver a situação através da publicação de leis sobre o
trabalho. Portugal constitui um exemplo. Em 1349, D. Afonso IV, perante as queixas dos
proprietários segundo as quais os camponeses se recusavam a trabalhar no campo ou quando o
faziam exigiam elevados salários, obrigou ao trabalho agrícola todos os que antes da Peste Negra a
ele estavam afectos e permitiu às autoridades municipais a fixação dos salários. Não tendo a
situação sido resolvida, anos mais tarde, D. Fernando publicou a Lei das Sesmarias pela qual
procurava obrigar possuidores de terras a cultivarem-nas, os antigos trabalhadores rurais a voltarem
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ao campo, fixava os salários a pagar e proibia a criação de gado, com excepção dos animais
necessários ao cultivo das terras.
A crise fez-se igualmente sentir na actividade industrial. Nos meados do século XIV, a crise de mão
de-obra permitiu aos artesãos reivindicarem aumentos salariais, no que foram contrariados pelas
autoridades públicas, que, tal como no campo, procuraram fixar os salários, tarefa em que foram
ajudados pela pressão resultante da chegada de populações camponesas. Por outro lado, os preços
dos produtos da indústria, apesar da significativa contracção dos negócios, não registaram o mesmo
comportamento dos produtos agrícolas, pelo que a crise neste sector foi relativamente menos grave.
A situação descrita teve influência sobre o comportamento dos preços, da moeda e da actividade
comercial. Os preços, especialmente os dos cereais, passado o curto período a seguir à má colheita,
tenderam a descer devido à forte diminuição da população. Os salários, em contrapartida,
registaram uma subida em virtude da rarefacção da mão-de-obra, o que contribuiu para uma ligeira
melhoria das condições de vida dos trabalhadores.
Face à escassez de moeda, necessária para pagar salários elevados ou reunir recursos para pagar
despesas de guerra, os reis procederam a desvalorizações monetárias. Com elas, procuravam
aumentar a moeda em circulação, reduzir o peso das dívidas ou pagar salários. Daí que os mais
afectados fossem os trabalhadores, que viam, de facto, os seus salários reais diminuírem; os ban
queiros que assistiam à baixa dos seus créditos e os titulares de rendimentos fixos, que a inflação
rapidamente desactualizava.
A actividade comercial foi a menos afectada pela crise, muito embora alguns efeitos ainda se tenham
feito sentir. Particularmente importante foi o declínio das feiras da Champanha, afectadas pela
insegurança resultante da Guerra dos Cem Anos e pelo agravamento dos impostos sobre as
mercadorias.
Apesar de inicialmente muito atingidas pela crise, a vida das cidades rapidamente recuperou o seu
dinamismo. O crescimento urbano retomou-se, fruto da afluência de populações camponesas. As
actividades reactivaram-se ou reconverteram-se. As cidades flamengas, privadas das lãs inglesas, em
consequência da Guerra dos Cem Anos, encontraram a alternativa em Espanha (com o carneiro
merino) e aperfeiçoaram a produção. As cidades italianas, além de controlarem o comércio oriental
de produtos de luxo, desenvolveram ainda as indústrias de tecidos de seda e algodão. As cidades do
Sul da Alemanha, beneficiaram com a crise das feiras da Champanha, constituindo-se em elemento
de ligação entre o Norte da Itália e as cidades do Norte da Europa. Aqui, as cidades da Hansa
conheceram o seu apogeu, controlando o comércio no Báltico. Entretanto, na Península Ibérica, a
par do florescimento da indústria de lanifícios, Portugal e Castela ensaiavam as primeiras tentativas
de expansão marítima.
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