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III Simpósio Nacional de História das Religiões – Insurgências e Ressurgências no

Campo Religioso.

Título do Trabalho: O Comportamento do Clero em Pernambuco no Século XVIII.

Autor(a): Anna Laura Teixeira de França – UFPE.

Para podermos analisar a organização eclesiástica no Brasil Colônia, faz-

se necessário, primeiramente, uma compreensão de como a Igreja estava constituída em

Portugal no momento da implantação do projeto colonizador para o Brasil. A partir de

então abordaremos a especificidade da Igreja Católica no Brasil, tendo como

perspectiva a forte influência da Coroa portuguesa na instituição eclesiástica, que ficava

distanciada do poder central de Roma. O que se pode observar como consequência deste

distanciamento é que ficou estabelecido no Brasil, um certo “relaxamento” no

comportamento e nos costumes do clero, durante o período colonial.

A Europa cristã no início do século XV, sofria uma constate ameaça ante

o avanço dos turcos por todo o continente, sendo então necessário a junção dos esforços

de diversos papas no sentido de organizar uma nova cruzada para salvar o continente.

Foi então neste momento que a expansão empreendida pelos portugueses repercutiu

como um primeiro sintoma de reação cristã, no ambiente da Santa Sé.

A partir de então, a Ordem de Cristo, constituída como o ramo português

dos extintos Templários, foi alvo de várias concessões que se tornaram a base da

instituição do Padroado em Portugal. O rei de Portugal, Dom Henrique, o Navegador,

obteve também o título de “regedor e conservador” da Ordem, conseguindo assim

angariar grande prestígio junto à Santa Sé de Roma1.

1
LACOMBE, Américo J. A Igreja no Brasil Colonial in História Geral da Civilização Brasileira (org.
Sérgio Buarque de Holanda), Tomo I, vol. 2, pp. 52.
Em 13 de março de 1456, o Papa Calisto III expediu a bula Inter coetera,

o fundamento do direito do padroado no Brasil durante a fase colonial. Esta Bula

passou a conceder o padroado à Ordem de Cristo nos seguintes termos:

Decretamos, estatuímos e ordenamos que para sempre a espiritualidade e toda a

jurisdição ordinária, domínio e poder, nas coisas espirituais somente, nas ilhas,

cidades, portos, terras e lugares dos cabos Bojador e Não, e além daquela região

meridional até o Indo... adquiridas e por adquirir... toque e pertença a esta milícia e

ordem, de futuro para sempre... E assim que o prior, na dita milícia possa e deva colar

todos os benefícios, com cura e sem cura, seculares e religiosos... proferir

excomunhões, suspensões, privações, interditos e outras sentenças, censuras e penas

eclesiásticas... decretando que estas ilhas, terras e lugares... em nenhuma diocese

sejam incluídas”2.

Em 1522, o Papa Adriano concedeu a Dom João III a dignidade de Grão-

mestre da Ordem de Cristo, título este que passou a ser transmitido a todos os reis de

Portugal, seus sucessores. Não devemos entender esse gesto como uma apropriação dos

monarcas portugueses das atribuições religiosas da Igreja, mas sim como uma forma

típica de compromisso entre Roma e o governo de Portugal3.

Do ano 1442 em diante, o direito de padroado passou a significar direito

de conquista, tomando-se por base o sentido das bulas pontifícias. Portugal se

estabeleceu então como senhor dos mares “nunca dantes navegados”, organizador da

Igreja em termos de conquista e redução dos indígenas, implantador da aliança entre

missão e colonização.

2
LACOMBE, Américo J. A Igreja no Brasil Colonial in História Geral da Civilização Brasileira (org.
Sérgio Buarque de Holanda), Tomo I, vol. 2, pp. 52.
3
BOXER. O Império Colonial Português, pp. 257. “O Padroado português pode ser definido amplamente
como uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo Papado à Coroa de Portugal,
como patrono das missões e instituições eclesiásticas católicas romanas em vastas regiões da África, da
Ásia e no Brasil”.
Por onde chegavam, os portugueses estabeleciam o “padrão” que trazia

as armas reais e a cruz intrinsecamente ligadas entre si. Portugal usufruía, neste

momento, dos favores da Cúria Romana nos negócios de além mar.

Reunindo para si os direitos políticos de realeza e os títulos de Grão-

mestre de ordens religiosas, os monarcas portugueses passaram, segundo Hoornaert, “a

exercer nas colônias e terras de conquista o pleno domínio político e religioso” 4. Essa

aliança em torno de interesses religiosos, políticos e econômicos, sob controle cada vez

maior do Estado, faz parte do processo de fortalecimento das monarquias nacionais e do

poder real, prenunciando assim os tempos modernos.

Em 1514, D. Manuel, rei de Portugal, conseguiu também, através da bula

Praecelsae Devotionis, o direito de “provisão”de bispados, paróquias, cargos clericais

em geral, em troca de financiamentos para a construção e conservação dos edifícios do

culto e a remuneração do clero5. Isto trouxe importantes conseqüências para a

organização da Igreja Católica no Brasil: nenhum clérigo partia de Portugal para a

colônia sem autorização explícita do rei, que exigia audiência particular com juramento

de fidelidade. Além disso, os bispos não podiam corresponder-se diretamente com

Roma. Só podiam encontrar-se com o papa por ocasião da visita ad limina, o que

considerando-se a grande distância e o custo da viagem, raramente acontecia. Dessa

forma, dificilmente se estabeleciam comunicações entre a Sé de Roma e a Igreja no

Brasil, durante o período colonial.

Em Portugal, o clero, tal como a nobreza, formava uma estrutura

4
AZZI, Riolando. A Instituição Eclesiástica Durante a Primeira Época Colonial, in História da Igreja no
Brasil (Tomo 2) . Eduardo Hoornaert (org.), pp. 162.
5
Idem, pp. 164.
privilegiada da sociedade, embora o grau de heterogeneidade em relação ao seu estatuto

econômico fosse acentuadamente diferenciado. De um modo genérico o clero dividia-se

em duas categorias principais: o clero secular, formado pelos bispos, cônegos, párocos,

abades e clérigos, e o clero regular, subordinado a uma hierarquia própria.

Devido a predominância do Padroado Régio, a influência de Roma sobra

o clero no Brasil foi mínima, especialmente a das reformulações estabelecidas pelo

Concílio de Trento, na segunda metade do século XVI, que tinham o intuito de

fortalecer a Igreja Católica e impedir o avanço do Protestantismo. Na Metrópole

Portuguesa, a adoção das propostas da Reforma Católica não se caracterizou pelo

combate às novas religiões mas sim pelas tentativas de mudanças e de renovação

ocorridas no interior da Igreja Católica6. A organização das dioceses e paróquias na

colônia foi muito lenta e, a influência romana sobre o catolicismo vivido no Brasil,

bastante reduzida. Entre 1551 e 1676, no Brasil, só havia a diocese de Salvador na

Bahia. Poucos bispos realizavam a visita pastoral, recomendada pelo Concílio, o que

poderia ser justificado pelas distâncias e dificuldades de viagem no Brasil Colonial. A

vivência da religião católica no Brasil foi, desta forma, pouco afetada pela estrutura

eclesiástica organizada em Roma7.

No sistema do Padroado, ficou estabelecido um duplo percurso

financeiro, um de ida e outro de volta. Do Brasil ao Reino iam os dízimos eclesiásticos

e, do Reino ao Brasil, voltavam as redízimas. A cobrança dos dízimos era um

expediente já utilizado pela Igreja Católica, durante a Idade Média, para o sustento do

culto e dos seus ministros. Cada cristão deveria contribuir para as despesas da Igreja

com a décima parte do que tinham conseguido com o trabalho da terra. E as redízimas,

6
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais, pp. 36.
7
AZZI, Riolando. A Instituição Eclesiástica Durante a Primeira Época Colonial, in História da Igreja no
Brasil (Tomo 2) . Eduardo Hoornaert (org.), pp.170.
contribuição da Coroa para o sustento do culto e do clero, vinham para o Brasil quase

sempre em forma de doações e “verbas” precárias e provisórias, o que deixava o clero

colonial em péssima situação. Para ilustrar esta situação podemos citar Gabriel Soares

de Sousa, que na década de 1580, comentava o fato de o bispo da Bahia, para acomodar

o seu cabido, precisar despender de um grande espaço de sua casa8.

No Brasil, o clero secular era responsável pela administração dos

sacramentos, como o batismo, o casamento, a confissão anual na Quaresma, os ritos

funerários e as missas de sétimo dia. Esses sacramentos eram ministrados a toda a

população, e não apenas aos grupos que os aceitavam livremente. Eram em outras

palavras obrigatórios. Uma parte do clero secular percorria as capelas das diferentes

confrarias nas cidades, enquanto a outra parte atendia às paróquias dos centro urbanos e

do interior do país. O vigário devia fazer visitas regulares às diferentes capelas, por todo

o território, quase sempre vasto, para ministrar os sacramentos à população. Viajava a

cavalo, ou às vezes numa rede carregada por escravos. A pregação, frequentemente, era

reservada aos missionários do clero regular, enquanto os vigários de paróquias

cuidavam dos problemas disciplinares da sociedade, e ministravam os sacramentos.O

clero secular estava dividido em alto clero, que compreendia o arcebispo, os bispos e

outros dignitários, que eram pagos com os recursos eclesiásticos do padroado, e o baixo

clero, que abrangia os capelães e os curas de paróquia, os quais mais próximo do povo e

compartilhavam de suas privações. Existem grandes lacunas em nossos conhecimento

sobre a vida desses religiosos, uma camada tão importante na sociedade colonial, de sua

observância das regras do celibato, do seu envolvimento em rivalidades políticas e lutas

populares, de seus recursos financeiros e sua situação geral9.

8
SOUSA, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, II parte, cap. VIII.
9
A Igreja Católica no Brasil Colonial, in História da América Latina: a América Latina Colonial I, vol. 1,
pp.563.
No entanto, sob a responsabilidade do governo português, o aspecto mais

realçado da função de clérigo no período colonial era seu caráter de funcionário

responsável pelos assuntos eclesiásticos. A expressão “funcionários eclesiásticos” nos

dá bem a medida de como a Igreja nascente nas colônias americanas dependia do

Estado português, situação que se prolongou por todo o período colonial e durante o

Império, cujas raízes, conforme já dissemos, estavam no direito do padroado. Regra

geral, o sacerdócio era considerado nessa época como uma profissão, um ofício ou uma

carreira a qual a pessoa se dedicava de modo análogo às demais profissões então

existentes. Recebendo a côngrua, espécie de provento concedido pelo governo, o padre

passava a ser considerado como um funcionário público, incumbido de exercer as

funções litúrgicas próprias do catolicismo.

O clero, para suprir a deficiência de seus recebimentos da Coroa

portuguesa, se encarregava de cobrar as “conhecenças”, um tipo de contribuição

cobrada dos fiéis que cumpriam os preceitos da confissão anual e da comunhão pessoal.

Esses sacramentos eram administrados à população em geral, sendo considerados

obrigatórios dentro da sociedade colonial10. Oficialmente, no entanto, o clero era pago

pelos dízimos eclesiásticos, que eram canalizados para o rei como grão-mestre da

Ordem de Cristo, e redistribuídos à Igreja por intermédio dos governadores11.

Podemos ainda afirmar que a situação do clero, na Colônia, se agravava

ainda mais devido à limitada formação teológica dos clérigos. Mesmo os que tinham

oportunidade de receber uma formação mais cuidada nos colégios dos jesuítas não

tinham, posteriormente, condições de se atualizar dadas às distâncias e dificuldades de

se ter em mãos qualquer tipo de literatura durante o período colonial. No sertão,

10
RENOU, René. O Clero: divulgador da cultura no Brasil (Parte IV – A Cultura Explícita, 1655-1750),
in O Império Luso-Brasileiro: 1620-1750, Frédéric Mauro (org.)., pp. 406.
11
Idem, pp. 71 e HOORNAERT, Eduardo. A Evangelização do Brasil Durante a Primeira Época
Colonial, in História da Igreja no Brasil, Tomo 2. Eduardo Hoornaert (org.), pp. 38-39.
numerosos clérigos apenas recebiam o essencial para a administração dos ritos da fé

católica. Muitos viviam completamente alheios a qualquer atualização teológica,

conservando apenas o pouco que haviam aprendido na época da recepção das ordens

sagradas12.

Nos centros urbanos era muito comum, durante o período colonial, que

os clérigos fossem absorvidos por atividades profanas, fossem de caráter comercial, ou

política13. A côngrua recebida pelos religiosos nunca chegava a ser vultosa, e o clero,

para garantir um certo conforto, adotava o exercício de profissões não clericais, “muito

embora estas fossem proibidas pelo direito canônico, muitos padres tornavam-se

fazendeiros, comerciantes, professores e até mesmo proprietário de hospedarias”14.

A partir do século XVIII muitos clérigos se envolveram em atividades

políticas, sob a influência das idéias liberais e iluministas. Diversos bispos no período

colonial ocuparam posições nitidamente políticas, ou fazendo parte de juntas de

governo interino, ou mesmo substituindo os governadores. Em Pernambuco, os bispos

algumas vezes assumiram o governo civil: em 1688, D. Matias Figueiredo substituiu o

governador Fernão Cabral que acabava de falecer, e D. Álvares da Costa teve que

assumir o governo abandonado por Sebastião de Castro e Caldas durante a Guerra dos

Mascates15.

No que diz respeito ao comportamento podemos dizer ainda, que a vida

na nova terra oferecia grandes dificuldades para a manutenção de rígidas normas

morais. Liberdade, promiscuidade e relaxamento moral marcaram a sociedade colonial,

onde ainda não se conseguira impor certos padrões de vida europeus. A condição

12
AZZI, Riolando. A Instituição Eclesiástica Durante a Primeira Época Colonial, in História da Igreja
no Brasil (Tomo 2) . Hoornaert, Eduardo (org.), pp.183.
13
Idem, pp. 184.
14
ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de. Clero e Coroa na Capitania de Pernambuco in Clio – Série
História do Nordeste, n. 16 – 1996, pp. 146.
15
AZZI, Riolando. A Instituição Eclesiástica Durante a Primeira Época Colonial, in História da Igreja
no Brasil (Tomo 2) . Eduardo Hoornaert (org.), pp.179.
colonial proporcionava uma certa facilidade de relações com índias e negras e, a partir

de estudos realizados16, podemos afirmar que alguns elementos do clero deixaram-se

envolver por esse clima de permissividade.

Quanto a esse “relaxamento moral”, Sérgio Buarque de Holanda, em

Raízes do Brasil, afirma que, “subordinando indiscriminadamente clérigos e leigos ao

mesmo poder por vezes caprichoso e despótico, essa situação estava longe de ser

propícia à influência da Igreja e, até certo ponto, das virtudes cristãs na formação da

sociedade brasileira. Os maus padres, isto é, negligentes, gananciosos e dissolutos,

nunca representaram exceções em nosso meio colonial. E os que pretendessem reagir

contra o relaxamento geral, dificilmente encontrariam meios para tanto. Destes a maior

parte pensaria como nosso primeiro bispo, que em terra tão nova, muitas coisas se ão de

dessimular que castigar”17.

Segundo Gilberto Freyre, no século XVI, com exceção dos jesuítas –

“donzelões intransigentes”, padres e frades de ordens em grande número se

“amancebaram” com índias e negras; os clérigos de Pernambuco e da Bahia

escandalizaram o Padre Nóbrega. Através dos séculos XVII e XVIII, e grande parte do

XIX continuou, segundo Freyre, o livre “arregaçar de batinas para o desempenho de

funções quase patriarcais, quando não para excessos de libertinagem com negras e

mulatas”18.

Através das confissões à Inquisição no fim do século XVI, podemos

conhecer um pouco da opinião popular acerca do comportamento do clero. A existência

de religiosos amancebados dava origem ao dito “que o estado de casado era superior ao

estado religioso”19, frase que o Santo Ofício interpretava como uma heresia luterana
16
Ver AZZI, Riolando. A Instituição Eclesiástica Durante a Primeira Época Colonial, in História da
Igreja no Brasil (Tomo 2). Eduardo Hoornaert (org.), pp.184 e ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios,
pp. 246-7.
17
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, pp. 85.
18
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, pp. 443.
19
Confissões de Pernambuco, pp. 120.
mas que, na verdade, nada mais era do que a expressão decorrente da observação, por

parte do povo, da mancebia dos religiosos.

Também reclamava a população das propostas desonestas que alguns

clérigos faziam às mulheres que iam se confessar. Um lavrador do recôncavo baiano foi

levado a desabafar: “a gente só a Deus se havia de confessar e não aos homens”,

aborrecido por o vigário a quem a mulher foi se confessar ter procurado seduzi-la

dizendo “que mal empregada era ela nele e que se ele vigário tivera mulher lhe havia de

querer grande bem e a havia de trazer vestida de seda”20.

Bastante deficiente se apresentava a formação moral e cultural na região

açucareira. É bastante sombrio o quadro que nos apresenta do clero cearense o autor

Raimundo Girão:

Recebendo côngruas irrisórias, eram os padres forçados a procurara profissões mais

lucrativas metendo-se às vezes até demasiadamente nas competições políticas, e

tornando-se na realidade, donos de fazendas de criar. Decaídos na maioria da dignidade

e correção do sacerdócio, esqueciam as suas obrigações e os interesses de suas

paróquias, e para tanto concorria por imposição dos pais, vaidosos de ter um “filho

padre”. Frequentando cursos aligeirados, para os quais faltava a verdadeira vocação,

faziam por fazer votos sagrados, nem sempre respeitavam o da castidade, quantos deles

constituindo famílias de concubinas teúdas e manteúdas. Legitimavam geralmente os

filhos, e sabe-se como inúmeros destes vieram a ser homens ilustres na vida pública e

nas letras21.

Também na Bahia os dados e informações mostram um quadro

igualmente parecido às demais províncias. Raposo de Almeida assim descreve a

situação do clero no período colonial:

O clero achava-se enredado no labirinto inexplicável da política, que era então uma

moléstia social aguda, que ao depois se tem tornado enfermidade crônica.

20
Confissões da Bahia, pp. 119-120.
21
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará, pp 166.
O povo estava esfomeado do pasto espiritual, e muitas igrejas se achavam acéfalas por

falta de pároco...

Se os costumes do Clero estavam derrancados, a sua instrução eclesiástica era quase

uma espécie de ofício, e não uma vocação. Os padres eram como capitães ou baixás dos

lugares, e acobertados pela sua influência política, menosprezavam e até zombavam da

disciplina e da autoridade diocesana22.

Independentemente dessas considerações, não é demais insistir na alta

estima em que era tido o sacerdócio num tempo, e numa sociedade, em que a Igreja

Católica tinha uma extraordinária força e influência: o padre era o ministro dos

sacramentos, o celebrante dos atos litúrgicos, o conselheiro e confessor, o mestre da

doutrina da Igreja, o árbitro moral em muitas crises na família e nos grupos sociais.

Com o intuito de atenuar o afastamento dos padres da ordem imposta, as

próprias autoridades eclesiásticas na Colônia procuraram remediar a situação

elaborando, no Sínodo Diocesano de 1707, em Salvador, as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia, código de “leis diocesanas para o bom governo do arcebispado,

direção dos costumes, extirpação dos vícios, e abusos, moderação dos crimes, e reta

administração da justiça” para “o aproveitamento espiritual, e temporal e a quietação”

dos seus súditos23.

Este sínodo representou um grande passo para a regularização da Igreja,

no período colonial. As peculiaridades da vida religiosa na América, evidentemente,

exigiam uma legislação especial. O clero no Brasil colonial anteriormente se regia pelas

constituições do Arcebispado de Lisboa, adaptadas pelos cânones tridentinos, mas era

preciso elaborar uma nova legislação específica para a realidade colonial. Este trabalho

foi obra do arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, que convocou os bispos

22
ALMEIDA, Francisco Manuel Raposo. Elogio Histórico e Biográfico do Exmo. Sr. Arcebispo Dom
Romualdo A. de Seixas, 76 s.
23
AZEVEDO, Thales de.Igreja e Estado em Tensão e Crise, pp. 77.
(Rio de Janeiro, Pernambuco, Angola e São Tomé) para um Concílio Provincial. Mas

estando vagos os bispados de Pernambuco e São Tomé, e faltando o bispo do Rio de

Janeiro, modificou o arcebispo seus planos e celebrou somente um Sínodo Diocesano,

em que tomou parte grande número de altas personalidades da Igreja tanto do clero

secular quanto do regular24. Foram então debatidas e aprovadas as Constituições, que o

arcebispo havia elaborado para a direção e o governo deste arcebispado, promulgadas

em 21 de Julho de 1707.

Essa assembléia serviu para ajustar a instituição eclesiástica no Brasil aos

cânones tridentinos e para uniformizar práticas sacramentais, como o batismo e o

casamento entre os fiéis, fossem livres ou escravos. Promulgou uma legislação que,

teoricamente, dava aos membros do clero todos os meios e recursos necessários para

organizar-se e manter-se como um clero digno, instruído e trabalhador.

A “santificação” não só do clero brasileiro, mas também dos fiéis,

deveria fazer-se pelo cumprimento das normas estabelecidas por estas Constituições. A

situação do clero no Brasil Colônia, no seu distanciamento da Cúria Romana devido ao

Padroado, indicava um certo afastamento dos preceitos da Santa Sé e uma certa

ausência de recato, o que muito preocupava a Igreja em Portugal. Não eram raros os

casos de homossexualismo, de excessos no trajar-se, de corrupção, de sedução de

mulheres, fora o mais frequente dos delitos em que se envolviam os padres: o

concubinato25. Desta maneira, as Constituições tinham o cuidado de reprimir os

sacerdotes, não só nos pecados da carne, visto que há títulos inteiros dedicados a outros

desvios de comportamento. Para ilustrar essa afirmativa, podemos destacar o seguinte

título contido nas Constituições: “Da obrigação que tem os clérigos de viver virtuosa e

exemplarmente” (liv. 3, tít. 3, 438-9). No Terceiro e Quarto Livro, das Constituições

24
LACOMBE, Américo J. A Igreja no Brasil Colonial in História Geral da Civilização Brasileira (org.
Sérgio Buarque de Holanda), Tomo I, vol. 2, pp. 60-1.
25
ARAÚJO, Emanoel. O Teatro dos Vícios, pp. 246.
Primeiras várias páginas especificam as proibições: o padre não podia andar à noite,

nem comer ou beber em tavernas, conservaria perfeita castidade, não entraria em teatros

ou locais de dança, não participaria de festas carnavalescas ou em que tivesses de usar

máscaras, não tomaria parte em jogos, não exerceria a medicina ou a cirurgia.

Essas Constituições se revelaram um importante instrumento da Igreja

Católica, “apto à correção das muitas irregularidades vigentes e à regulamentação dos

usos e costumes religiosos”26. Elas atendiam às exigências da Reforma Católica, pois a

Igreja se mostrava inquieta “com a distância que a separava dos fiéis, para o que muito

contribuíam o despreparo, o absenteísmo e a ineficácia do clero, desde a alta hierarquia

aos curas paroquiais”27.

26
AZEVEDO, Thales de. Igreja e Estado em Tensão e Crise, pp. 77.
27
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados, pp. 20.
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