Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Luís
2019
2 ESTRATÉGIAS LUSITANAS E CONQUISTAS ULTRAMARINAS
2.1 Projeto Missionário Português
Nos últimos anos, a historiografia tem voltado seus olhares para o estudo da
dinâmica dos impérios europeus da época moderna, sugerindo novas interpretações
relativas ao dualismo entre metrópole e colônia que perpassaram o conceito de
subordinação e abriram variados tópicos referentes aos espaços de negociação e
articulação entre os diversos grupos sociais e poderes locais em relação às determinações
metropolitanas, ou seja, ao invés da suposta imposição das ordens metropolitanas, havia
traduções e mediações entre os interesses gerais e locais (FRAGOSO; GOUVÊA, 2009,
p.42)1.
As concepções que secundarizavam os atos dos indivíduos locais e estruturas da
Colônia articularam-se a partir de uma interpretação dominante da historiografia
brasileira, elaborada na década de 40 do século XX por Caio Prado Júnior e sua
compreensão do chamado sentido da colonização, desdobrando-se nas décadas seguintes
em concepções do Antigo Sistema Colonial, construindo uma compreensão geral do
estatuto das conquistas portuguesas onde a metrópole e os monarcas “absolutistas”
portugueses presidiam a vida das suas subalternas terras americanas (COSENTINO,
2015, p.516).
Durante a época moderna, Portugal constituiu-se em uma monarquia de
dimensões pluricontinentais, comparada a uma verdadeira Babilônia marcada por
diferentes povos, culturas e idiomas revelando o caráter global do Estado português.
Assim, o Estado português precisou articular as jurisdições de várias partes do mundo
que representavam o corpo social caracterizando uma metrópole que possuía na periferia
a sua centralidade (FRAGOSO, 2015, p. 20).2
Por conta desta estrutura, a Coroa portuguesa necessitou estabelecer diversos
pactos políticos entre os soberanos e seus vassalos para a garantia da manutenção das
conquistas ultramarinas propiciando a articulação de diversos grupos sociais em seus
1
As ordens que chegavam da Coroa eram (re)adaptadas de acordo com as especificidades de cada região e
interesses locais (FERREIRA, 2017, p.49).
2
Os resultados parciais de alguns estudos que trabalham com a hipótese de autogoverno das conquistas
ultramarinas tendem a demonstrar que os temas relacionados ao cotidiano da sociedade colonial não eram
tratados com frequência na correspondência entre o ultramar e a Coroa. Aparentemente, os temas mais
comuns diziam respeito às ordens militares, à ação e aos desmandos dos agentes administrativos e aos
pedidos de mercês (FRAGOSO; GOUVÊA, 2009, p.45).
espaços de agenciamento, fortalecendo os espaços de negociação (FERREIRA, 2017,
p.50).
Dentre os pactos estabelecidos, a propagação da fé foi um importante mecanismo
utilizado pelo Estado português para conservar e sustentar a relação com os súditos
através das alianças. Desta maneira, o propósito evangelizador das ações missionárias
norteou as ações da Coroa Portuguesa em relação aos seus domínios ultramarinos. O
contexto pelo qual se favoreceu a atividade missionária inseriu-se na crise da Igreja
Católica que culminou com a sua reforma, sancionada pelo Concílio de Trento.3
Por conta desta medida, tornou-se fundamental a criação de um organismo
consultivo ligado a administração central que tratasse exclusivamente das questões
ligadas às missões ultramarinas. Em 1655 foi criada em Lisboa a Junta Geral das Missões,
ou Junta dos Missionários ou Junta da Propagação da Fé. Posteriormente foram
estabelecidas Juntas das Missões em diferentes localidades do domínio português, a partir
da Carta Régia de 1681 (MELLO, 2007, p.60).
Desta maneira, a instituição do Tribunal da Junta Geral das Missões ou Junta
Geral do Reino e posteriormente a instalação das Juntas das Missões nos domínios
ultramarinos, em especial na América Portuguesa, configurou-se pela importância de
propagação da fé católica como condição para manutenção e justificativa de colonização
dos territórios, estabelecendo uma interligação entre Estado e Igreja que não se dava sem
tensões, especificamente relacionadas a questão indígena, pois conforme Ferreira (2017,
p.70):
3
O Concílio de Trento teve uma importância fundamental para a história da Igreja moderna, pois nele foram
estabelecidas as diretrizes para a renovação religiosa e moral do clero e do povo que definiu a nova
fisionomia da igreja (MELLO, 2007, p.46).
conversão a fé católica, transformando os povos nativos em súditos cristãos responsáveis
pela garantia, ocupação e manutenção da terra. Para tanto, a criação de uma farta e
diversificada legislação indigenista e instauração de instituições para aplicar tais normas
levaram a atuação das Juntas das Missões em várias partes do império português, todas
subordinadas Junta Geral das Missões ou Junta Geral do Reino.
4
O período conhecido como União Ibérica (1596-1640) ocorreu após a crise dinástica iniciada com a morte
do rei Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir que culminou na União das Coroas de Portugal e
Espanha. Assim, durante sessenta anos, uniram os seus domínios e controlaram possessões europeias e
grandes áreas Ultramarinas na América, África e Ásia. Após a separação das coroas em 1640, tem início o
período de restauração (CARDOSO, 2011, p.318).
como agentes consultivos e eram destituídas de poder de decisão. Dependendo da questão
levantada, poderiam ser dissolvidas quando a questão fosse resolvida ou poderiam
continuar de forma mais prolongada, se o contexto permitisse (MELLO, 2006, p.291).
Com a multiplicação dos órgãos consultivos no século XVII e XVIII e a
complexidade cada vez maior das questões levadas à apreciação da Coroa Portuguesa,
foram criadas mais Juntas5. No final do reinado de Dom João IV, o entendimento
dominante era de que o sucesso do projeto colonial português deveria ser sustentado pelo
aspecto religioso através do projeto missionário. Assim foi criada em 1655, em Lisboa, a
Junta Geral das Missões, para tratar unicamente de questões relacionadas as missões
ultramarinas, na qual os missionários pudessem recorrer e apelar.
Acerca da instituição da Junta Geral das Missões, as ausências de fontes não
possibilitam comprovar de “onde” ou de “quem” partiu a ideia de sua criação, mas a
análise dos poucos documentos originais produzidos pela Junta, confrontado com outros
documentos, permite compreender a sua dinâmica, explorar as matérias que passavam
pela sua apreciação, suas atividades, composição e tempo de funcionamento (1655 a 1660
e 1672 a 1745) (MELLO, 2006, p.296).
Como órgão consultivo, não cabia a Junta decidir sobre a questão levantada,
geralmente originada de uma representação dirigida ao rei, mas mediante a reunião dos
seus membros e apreciação da questão levantada, apresentava ao rei o seu parecer,
cabendo a ele a decisão. Conforme a decisão da Coroa, seguia-se uma determinação aos
órgãos responsáveis para que fossem expedidas as respectivas cartas de lei ou Alvarás. A
Junta Geral das Missões também poderia apreciar as consultas de outros Conselhos, como
o Ultramarino (responsável pelas questões de defesa dos territórios ultramarinos)
apreciando novamente a matéria e submetendo a consulta ao rei para decisão final
(MELLO, 2006, p. 297-298).
Quanto as suas atribuições, a Junta Geral das Missões era encarregada do envio
de missionários para promover a propagação da fé cristã nos seus domínios ultramarinos,
devendo zelar pela admissão dos missionários mais preparados ao serviço; proceder ao
retorno daqueles que não realizavam um bom papel além de ser incumbida de garantir as
provisões para o sustento destes missionários.6
5
As Juntas eram consideradas instituições administrativas secundárias e seus membros eram chamados de
“deputados”. Sofreram forte oposição dos Conselhos e Tribunais, órgãos administrativos principais, que
viam seu poder diminuído pela sua ação das Juntas. (MELLO, 2007, p.62)
6
No entanto, a Junta Geral das Missões, em determinados momentos, excedeu suas atribuições. Isto se deu
por exemplo em 1656, quando em reunião foram analisadas algumas cartas do governador do Maranhão,
Inicialmente a Coroa Portuguesa era contrária a presença de missionários
estrangeiros em suas conquistas, no entanto, em 1671, o Procurador das Missões observou
que tal comportamento não era mais necessário e que, para a conservação dos seus
domínios, Portugal deveria enviar quantos missionários pudesse. (MELLO, 2003, p. 398)
Desta maneira, dando prosseguimento ao projeto da Coroa lusitana através da
estratégia de assumir seus domínios por meio da propagação da fé cristã, em 1681, o
Conselho Ultramarino expediu uma Carta Régia na qual foram criadas as primeiras Juntas
das Missões na América Portuguesa: inicialmente em Pernambuco, Rio de Janeiro e
Maranhão. Posteriormente foram instituídas na Bahia (1688), Pará (1701), São Paulo
(1746) e novamente no Rio de Janeiro (1750).
das câmaras do Pará e Maranhão e dos frades carmelitas acerca da lei de 1655 que dizia respeito à liberdade
indígena. Em vista de tantas demandas, a Junta entendeu que poderia ajuizar sobre esta questão, pedindo
vistas dos documentos que originaram a lei e posteriormente dando seu parecer. (MELLO, 2006, p. 298)
7
A centralização das decisões das Juntas das Missões, nem sempre foi pacífica. Em 1740, o capitão mor
da Paraíba iniciou um processo para a criação de uma Junta das Missões na Paraíba, independente da
Capitania de Pernambuco, pedido não deferido pelo rei. (MELLO, 2003, p.409)
foi enviada uma ordem real para que se instalasse uma Junta responsável por tratar de
todas as questões relativas às missões. Em 1710 deixaram de funcionar.
Quanto a Capitania do Rio de Janeiro, embora estivesse contemplada na Carta
régia de 1681, teve um funcionamento muito irregular, pois até o ano de 1696 não havia
notícias no Reino da sua Instalação. Tal fato ocasionou graves prejuízos na condução de
uma política indigenista que legitimasse a expansão portuguesa nas capitanias do Sudeste
(MELLO, 2003, p.412).
No Estado do Maranhão e Grão-Pará, a execução da carta régia de 1681 para
criação das Juntas das Missões ocorreu apenas no ano 16838, em razão do litígio
envolvendo seus componentes na composição da futura Junta. No entanto a Revolta de
Beckman em 16849 a manteve suspensa até 1687, quando foi formulada uma outra Lei
indigenista em 1686: o Regimento das Missões10. Em 1701, foi criada mais uma Junta
para funcionar, simultaneamente, na capitania do Pará e do Maranhão11. Ambas
funcionaram até 1757, quando foram reformuladas pelo Diretório dos Índios sendo
denominadas de Junta das Liberdades. (FERREIRA, 2017, p.60).
A colegialidade e o caráter plural dos componentes da Junta das Missões no
Maranhão se configuraram como a principal característica da Junta das Missões. Formada
pelo Governador, Bispo, Ouvidor-Geral, superiores das ordens religiosas além de contar
com um oficial, o procurador dos índios12 e um secretário que desempenhava a função de
escrivão. De acordo com Ferreira (2017, p.62):
8
Um dos principais motivos para a dificuldade de instalar uma Junta no Estado do Maranhão e Grão-Pará
se refere ao litígio envolvendo seus componentes na composição da futura junta. (MELLO, 2003)
9
Entre os motivos da revolta de Beckman, pode-se citar a reação dos moradores à lei de primeiro de abril
de 1680, que proibiu o cativeiro indígena.
10
O Regimento das Missões foi uma das mais importantes leis indigenistas do período colonial e de acordo
com alguns apontamentos, ela representou a síntese colonial de interesses contraditórios: de um lado os
religiosos (administração temporal), moradores (mão de obra acessível) e índios (relativa proteção).
(MATTOS, 2012, p.01)
11
O local de funcionamento da Junta das Missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará, antes de 1701,
deveria ser condicionado pela estadia do governador que ora encontrava-se em São Luís, ora em Belém
(FERREIRA, 2017, p.59).
12
O cargo de Procurador dos Índios foi criado pela Coroa Portuguesa e introduzido no Estado do Brasil no
final do século XVI, tendo sido recomendado no Alvará de 26 de julho de 1526. No Estado do Maranhão
e Grão-Pará aparece explicitamente mencionado na Lei de 09 de abril de 1655, que estabelecia os casos
válidos de cativeiro indígena. Recomendava a Lei que, ocorrendo dúvidas sobre a legitimidade do cativeiro
indígena, estes deveriam ser assistidos por um Procurador nomeado pelas autoridades encarregadas de
julgar tais demandas. Para o ofício, era incumbido um morador que atuava como advogado e auxiliar dos
índios. Não exercia nenhuma atividade jurisdicional, limitando-se a recomendar e encaminhar às
declarações em nome dos índios para as autoridades competentes, ou seja, o Governador, Ouvidor-Geral
ou Junta das Missões (MELLO, 2012, p.223).
Todos os seus membros tinham seus cargos direta ou indiretamente
comissionados pelo rei, resultando em um laço de interdependência entre
soberano e vassalo. Essa característica é fundamental para compreender a
dimensão sociopolítica das Juntas, pois se configuraram como uma estratégia
administrativa que visava à comutação de um modelo de caráter jurisdicional
de governo por um modelo político.
13
Conforme Cardoso (2002, p.13), o projeto integrador entre as duas coroas teve de ser repensado após o
fim da União Ibérica em 1640.
Por ser portadora de grande biodiversidade, a presença portuguesa não se deu da
mesma forma nas Capitanias do Estado do Maranhão e Grão-Pará, pois embora
administrativamente unidas, as capitanias possuíam uma certa autonomia. No entanto, os
processos de ocupação que remodelaram os espaços foram diretamente influenciados pela
interação com os povos nativos que habitavam a região (FARAGE, 1986: CUNHA, 2009,
MELLO, 2009: MELO, 2011).
As análises dos processos de ocupação da Capitania do Maranhão14 basearam-
se na existência de duas correntes de povoamento. A primeira, partindo da cidade de São
Luís, capital administrativa desde o século XVII, adentrou no curso dos rios Itapecuru,
Mearim, Pindaré e Munim que representavam as únicas vias de acesso ao interior da
Capitania. A segunda corrente de povoamento se desenvolveu a partir do século XVIII,
ocupando regiões mais interioranas sobretudo por sertanejos oriundos da Bahia e
Pernambuco que buscavam pastos para o gado (CABRAL, 1992: CUNHA, 2009: MELO,
2011). Cada uma das correntes de povoamento promoveu padrões de ocupação e
exploração econômica distintas, gerando duas realidades: uma litorânea e outra sertaneja
(MELO, 2001, p.17).
As primeiras tentativas de ocupação da frente litorânea ocorreram, entre 1615 a
1620, por intermédio da Coroa Lusitana, com a vinda de colonos açorianos que se fixaram
no vale do rio Itapecuru. A fertilidade do solo e a presença de terras cultiváveis levou a
organização da atividade agrícola nesta região com base em uma produção policultora
que se caracterizou pela cultura do arroz, farinha de mandioca, milho, algodão e outros
produtos que, embora não estivessem ligados ao circuito agroexportador abasteciam o
consumo interno (CUNHA, 2015, p. 133-152).
Dentre tais produtos, destacamos a produção do açúcar no processo de ocupação
da Capitania do Maranhão, com a instalação de engenhos na foz do Rio Itapecuru,
aproveitando os que haviam sido erguidos no período da dominação holandesa na região
(1641-1644). No entanto, o açúcar produzido neste espaço não seguiu a mesma lógica do
produzido nas capitanias do Estado do Brasil por conta da produção de baixa qualidade
14
Os limites territoriais da Capitania do Maranhão abrangiam a região entre o rio Parnaíba até o rio Turiaçu,
no sentido leste-oeste; e do litoral até Aldeias Altas, incluindo o vale dos rios Munim, Itapecuru, Mearim,
Pindaré e Parnaíba. Abarcava, desta forma várias microrregiões: no litoral, a cidade de São Luís e suas
proximidades (Alcântara, Icatu, a ribeira dos rios Itapecuru, Munim, Pindaré e Mearim); a área sob
influência do Rio Parnaíba; as baixadas oriental e ocidental, esta última sob a influência do Pará; finalmente
o alto Itapecuru, onde se destacava a região de Aldeias Altas, distante do litoral e em maior contato com o
Piauí, Pernambuco e Bahia (MOTTA, 2006, p. 39).
em comparação ao produzido em outras localidades; da produção incipiente e
dependência da mão de obra indígena (CUNHA, 2009, P.12).
A fixação de agrupamentos de colonos em torno dos rios, a partir do século
XVII, pode esclarecer os motivos pelos quais começaram a se multiplicar na
documentação oficial as notícias dos diversos ataques indígenas aos povoamentos de
colonos. Assim, a documentação do século XVII e XVIII, registrou diversos conflitos
envolvendo colonos e indígenas nos rios Itapecuru, Munim, Pindaré e Mearim. Esta
situação serviu de justificativa para os pedidos de entrada nos sertões através das guerras
justas, descimentos e resgates, feitos tanto em conformidade com a Lei quanto de forma
clandestina, alterando a dinâmica das populações nativas e a instabilidade dos
povoamentos de colonos, gerando alianças, acordos, dissidências e desordens que
tornaram esta região palco de constantes tensões.15
Uma carta régia, de 16 de novembro de 1700, deferiu o pedido do dono de um
engenho localizado no Itapecuru que solicitou cento e vinte escravos indígenas.16As
causas do deferimento são postas na correspondência. Em primeiro lugar, a região em que
se localizava o engenho foi considerada “infestada de bárbaros tapuias do corso”. Em
segundo lugar, a morte de muitos nativos por “contágio” trouxe prejuízos ao
funcionamento do dito engenho tornando o lugar “despovoado”. Além disso, os “escravos
da Guiné” destinados ao Estado não estariam em número suficiente para “remediar” a
situação. Desta maneira, o dono do engenho deveria fazer a repartição deles na “forma
das Leis”.17
Em outra carta régia, de 1707, endereçada aos oficiais da Câmara do Maranhão
que reclamavam da dificuldade em manter os engenhos de açúcar em pleno
funcionamento, foi defendida a guerra contra o “gentio do corso” para que as terras
ficassem livre dos seus ataques e os colonos pudessem povoá-la sem nenhum receio. A
execução de uma guerra, segundo a carta, alargaria os negócios do algodão com a
Capitania do Pará pela ocorrência de escravos. Ao fim da carta, a justificativa de uma
guerra é posta como única maneira de acabar com todas as lástimas dos moradores.18
15
Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de obras e raras e publicações. Livro Grosso do
Estado do Maranhão. Vols. 66 e 67.
16
Em relação a utilização dos textos transcritos, optou-se por modernizar a linguagem para o português
atual.
17
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 66. Rio de Janeiro, 1948, p. 200.
18
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 66. Rio de Janeiro, 1948, p. 199-200.
Desta forma, podemos compreender que as fontes relatadas acima foram
produzidas no contexto de expansão das fronteiras que, ao contrário do que
continuamente se afirmou, trouxe consequências não apenas aos nativos, mas aos colonos
que precisaram estabelecer determinadas estratégias para a conquista do espaço. Além
disso, podemos entrever uma profunda instabilidade dos povoamentos em razão dos
ataques indígenas.
Um aspecto essencial para entender o processo de ocupação e expansão do
território é o intenso despovoamento da região, conforme relatado na carta acima. John
Monteiro atentou para este fato em sua obra “Negros da terra”, no qual analisou a
sociedade paulista que estava se constituindo nos séculos XVI a XVIII, afirmando que a
ação dos bandeirantes, ao invés de contribuir para a expansão e ocupação dos territórios
foi, na verdade, uma ação despovoadora. O autor demonstrou que isso se deu pelo fato
dos portugueses não conseguirem integrar as sociedades indígenas a esfera colonial sem
destruí-las. Tal fato ainda resultou em uma organização de trabalho historicamente novas,
dentre as quais a escravidão indígena e africana.19
Outro ponto essencial destas missivas foi assinalar a extrema dependência de
mão de obra indígena em grande parte dos empreendimentos da capitania do maranhão.
Por conta disto, estabelecer uma legislação indigenista que pudesse relacionar de forma
diversa as ações destinadas aos índios considerados aliados ou inimigos foi essencial para
autorizar os meios legais de escravização indígena e desta forma, permitir a expansão das
fronteiras e, ao mesmo tempo, assegurar o problema crônico da falta de mão de obra.
Dessa maneira, foi produzida neste período uma farta legislação indigenista que
buscava diferenciar as ações em relação aos índios aldeados aliados dos portugueses e
índios inimigos espalhados pelos “sertões”.
A diferença entre o “índio amigo” e o “índio bravo” correspondeu a um corte na
legislação e política indigenistas. Assim, com exceção das grandes leis de liberdade (Lei
de 1609,1680 e 1755) que não faziam distinção entre aliados e inimigos, a política
indigenista aplicada ao índio aliado foi uma e relativa aos inimigos foi outra, ou seja, para
uns era garantida a liberdade, para outros o cativeiro. Por conta da falta de percepção
19
Conforme John Monteiro (1994, p.55), para os portugueses, o significado das conquistas era duplo. Se,
por um lado, havia liberado terras para a ocupação futura pelos invasores, por outro, ao dirimir e destruir
as reservas locais de mão de obra, havia imposto a necessidade de introduzir trabalhadores de outras regiões,
fato que implicaria na redefinição do papel e identidade do índio na sociedade colonial.
deste elemento, a legislação indigenista foi considerada, pela historiografia, como
contraditória, hipócrita, ambígua e oscilante (PERRONE-MOISÉS, 1992, p.115).
Além disso, a aparente contradição da Lei é compreendida por Almeida (2010,
p.86) como um reflexo da própria ambivalência dos objetivos da Coroa e dos religiosos
em relação aos índios, pois explorá-los como força de trabalho e ao mesmo tempo
protege-los com aliados e súditos cristãos gerou leis aparentemente contraditórias e
relações conflituosas, complexas e oscilantes entre os vários agentes.
Outro destaque apontado na carta dirigida aos oficiais da Câmara diz respeito a
cultura do algodão e o seu papel no processo de ocupação na Capitania do Maranhão. De
acordo com Farage (1986, p. 24), a cultura do algodão no Maranhão emprestou à
economia uma feição mais parecida com outras capitanias do Brasil distanciando-se da
feição extrativista reinante da Capitania do Pará.
O algodão ganhou também destaque na Capitania por funcionar como moeda de
troca.20 Além disso, o pano de algodão constituiu várias utilidades: mensurar o salário
pago aos serviços dos índios aldeados, usado em dotes e deixado como herança etc. Sobre
a cultura do algodão, Lima (2006, p. 20-21) estabelece que:
20
A região norte somente foi contar oficialmente com a circulação de dinheiro metálico na segunda metade
do século XVIII. Durante mais de cem anos da sua colonização a região utilizou produtos de origem natural
(cacau, cravo, açúcar, algodão, salsa) como meio circulante (LIMA, 2006, p. 09).
de Catherina Michaella da Silva de 1750 foi declarado como última vontade que sua
sobrinha ganhasse 05 rolos de pano enquanto o seu afilhado ficaria com 10 rolos.21
Com a diferença de um século, a ocupação do aspecto mais interiorano da
Capitania do Maranhão teve como principal atributo o caráter provado da povoação. No
início do século XVIII, chegaram os primeiros vaqueiros, vindos principalmente da Bahia
e Pernambuco. Esta migração foi em grande parte ocasionada pela incompatibilidade
entre as culturas do açúcar e da pecuária, pois esta demandava espaços maiores,
promovendo a separação entre a propriedade agrícola e pastoril. Assim, expandindo-se
inicialmente no Piauí e depois no sul do Maranhão pela transposição natural do rio
Parnaíba, os primeiros vaqueiros, vendo os verdes pastos maranhenses batizaram a região
de Pastos Bons. (CABRAL, 1992: CUNHA, 2006).
De acordo com Pompa (2003, p.269), o movimento da pecuária e a consequente
expansão portuguesa sobre as terras indígenas ocasionou diversos conflitos iniciados no
século XVII que ficaram conhecidos como “Guerra dos Bárbaros”. De acordo com a
autora, o conflito ocorreu na vasta região semi-árida do Nordeste entre o leste do
Maranhão e o norte da Bahia compreendendo parte do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Pernambuco.
No entanto, conforme hipótese desenvolvida por Pedro Puntoni (2002) em
trabalho que é considerado referência na área, os conflitos ocasionados pela expansão da
pecuária em terras originalmente indígenas não teriam a finalidade de buscar mão de obra
para manejo do gado, pois a pecuária utilizava predominantemente o trabalhador livre,
mas sim exterminar e “limpar” os indígenas dos territórios utilizados para a criação de
gado.
Assim, a presença efetiva da administração portuguesa na Capitania do
Maranhão culminou na instalação de uma nova ordem colonial marcada pela política de
conquista e ocupação do território. No entanto, a estrutura que se formou na Capitania do
Maranhão não se deu apenas pela inserção das ações da Metrópole, na já desgastada visão
homogênea de centro e periferia, como se todas as determinações da Coroa fossem aceitas
e executadas pacificamente na Capitania do Maranhão, sem sofrer influência dos aspectos
locais e peculiares desta colonização que se caracterizou pela integração de espaços que
coexistiram, complementaram-se e forneceram elementos para a estrutura que se formou
na região: o Reino, a vila e o sertão (SAMPAIO, 2011, p.37).
21
Tribunal de Justiça do Maranhão. Testamentos Maranhenses: história e legados. (1751-1756).
Coordenaria da Biblioteca. São Luís, 2015.
O estabelecimento do Tribunal da Junta das missões no século XVII no Estado
do Maranhão e Grão-Pará com o objetivo de funcionar como um órgão consultivo em
questões ligadas aos domínios ultramarinos retrata bem o palco de tensões e conflitos que
permeavam a Capitania do Maranhão no século XVIII. Inicialmente de caráter
secundário e religioso, funcionou como verdadeira estrutura política local, cada vez mais
independentes da Instituição metropolitana. Neste espaço, destinado ao exame das
demandas indígenas, eram debatidas questões acerca da liberdade e do cativeiro indígena,
e também petições de liberdade levadas pelos próprios indígenas.
As fontes textuais produzidas nas Juntas das Missões na primeira metade do
século XVIII nos oferecem algumas ferramentas para compreender a lógica que produziu
a sociedade retratada e como isto se reproduziu no cotidiano da capitania do Maranhão,
em especial nas diversas trajetórias percorridas pelos indígenas: de índios aldeados, a
descidos, escravizados ilegalmente ou sob trabalho compulsório na instalação do projeto
colonizador português na região.
Desta maneira, trilhar o cotidiano da colonização Capitania do Maranhão no
século XVIII é perceber os confrontos, embates e tensões sob um protagonismo indígena
ainda pouco divulgado que pretende escapar das armadilhas da história de extinção e
passividade dos indígenas frente às mudanças ocorridas e posicioná-los como sujeitos
históricos que também estão se redefinindo, negociando e usando de estratégias.
22
Dentre as fontes que possibilitam esta compreensão, destacamos as atas da Junta das Missões, os dois
volumes do Livro grosso do Maranhão, as cartas trocadas entre o governador e capitão-general do Estado
do Grão-Pará e Maranhão na primeira metade do século XVIII.
A sociedade que foi sendo construída a partir destes empreendimentos ainda é
pouco conhecida. Ao tecer comentários sobre a importância do indígena para a
compreensão da colonização de São Paulo, John Monteiro (1994) afirmou que a pouca
atenção, até então dada ao trabalho indígena, pela historiografia se baseava em considerar
apenas as economias desenvolvidas sob a lógica da expansão do capitalismo comercial.
No entanto, o autor pontuava a importância em voltar os olhares para as economias não
exportadoras e sua influência na formação do país.
Analisando o trabalho escravo na Capitania de Pernambuco, Oliveira (2015,
p.214) procurou entender o “aparente” desaparecimento dos indígenas como força de
trabalho pela historiografia, argumentando que a partir do século XVII, o trabalho
indígena passou a ser dirigido não mais para a produção econômica dominante, mas para
as atividades complementares e locais.
Por conta desta construção historiográfica, Almeida (2010, p.75) situou que:
23
Este aspecto pode ser observado principalmente na divisão historiográfica proposta em antes e depois
das reformas pombalinas. O primeiro momento teria sido marcado pela extrema pobreza e isolamento da
região e o segundo, apontado por um desenvolvimento e prosperidade a partir da integração da região ao
mercado agroexportador especialmente pela criação da Companhia de Comércio (DIAS, 2014; MOTA,
2006)
24
A Nova História Indígena surge no Brasil durante a década de noventa, momento em que renasciam os
movimentos sociais que denunciaram internacionalmente os ataques sofridos pelas populações indígenas
durante a Ditadura Militar, resultando na criação da Fundação Nacional de Proteção ao Índio. Envolvendo
principalmente os profissionais da História e Antropologia, tinha como objetivo inserir o indígena no centro
variados espaços e atividades da colônia, tais como a produção de gêneros agrícolas, nas
construções de fortificações e outros serviços públicos. Além disso, faziam parte da
composição de tropas militares, eram utilizados nas atividades de pesca, caça, produção
de tecidos, atividades domésticas, expedições de guerra, resgates e descimentos,
pilotagem de canos, carregadores de carga etc. (CUNHA, 1992: MONTEIRO, 1994:
RESENDE, 2003: ALMEIDA, 2010: MELO, 2011: BOMBARDI, 2014: CARVALHO
JÚNIOR, 2005: FERREIRA, 2017: MOREIRA, 2019).
Por conta deste imperativo, buscava-se por todos os meios captar mão de obra
indígena que se dividia em livre e escrava de acordo com os critérios estabelecidos na
legislação indigenista. Assim, a interação entre os povos nativos e colonos era
fundamental para estabelecer as estratégias de exploração da força de trabalho, pois aos
índios considerados aliados dos portugueses estavam previstos os mecanismos dos
descimentos para fins de aldeamento. Os descimentos, que tinham objetivos econômicos
e religiosos, promoveram deslocamentos de populações nativa, de suas aldeias de origens,
buscando aproximá-las dos povoamentos de colonos, tornando-os úteis aos
empreendimentos coloniais.
A mão de obra aldeada atuava mediante o pagamento de salário, previsto na
legislação, porém isto nem sempre acontecia na prática. Em 1673, o Rei enviou uma carta
aos oficiais das Câmaras de São Luís e do Pará para que se efetivasse o pagamento aos
índios aldeados, visto que as informações que chegavam indicavam o contrário ao
estabelecido na legislação.25
Os índios aldeados eram repartidos para servirem colonos, coroa e missionários.
Nem a condição de súditos cristãos os livrava do regime de compulsoriedade, pois a
legislação indigenista foi construída em torno da tutela26, ou seja, mesmo considerados
livres deveriam ser administrados por não apresentarem condições de se conduzirem por
si mesmos (ALMEIDA, 2003: POMPA, 2003: CARVALHO JÚNIOR, 2005).
Com relação aos índios inimigos denominados nas fontes como “gentio do
corso”, “bárbaros”, “selvagens”, “tapuias” etc. eram destinados à condição de escravos,
dos processos estudados, procurando conhecer sua “agência” como sujeitos e não mais como vítimas
passivas e engessadas (DORNELLES & MELO, 2015).
25
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 67. Rio de Janeiro, 1948, p. 35.
26
No tocante a justiça colonial, os indígenas gozavam de um regime diferenciado através da figura da tutela
na qual sua personalidade e responsabilidade eram restringidas por serem considerados em estado de
menoridade. Por isso, necessitavam de um intermediário que servisse como seu porta-voz às suas demandas
(MELLO, 2012).
legais, nas hipóteses de guerras justas e resgates ou adquiridos de forma ilícita
(PERRONE- MOISÉS, 1992).
As guerras justas eram um conceito, ao mesmo tempo, jurídico e teológico dos
casos legais de escravidão indígena. No entanto, a noção de “guerra justa” havia sido
elaborada em Portugal, no século XIV, pelo franciscano Álvaro Pais, no contexto da
reconquista da Península Ibérica e lutas entre cristãos e infiéis (mouros). Deste modo, a
sua conceituação se assentava em três fatores: a existência precedente de uma grande
injustiça, condução baseada em boas intenções, tais como a propagação da fé católica e,
por último, declaração por uma autoridade competente (PERRONE-MOISÉS, 1992:
PUNTONI, 2002: OLIVEIRA, 2015).
Adaptada à realidade ultramarina, a legislação indigenista que foi produzida ao
longo dos séculos XVII e XVIII estabelecia as hipóteses em que a guerra justa poderia
ser declarada. Em uma Provisão Régia de 165327, que deliberou sobre a liberdade e a
escravidão do “gentio do Maranhão”, as guerras justas poderiam ser declaradas contra os
povos nativos em casos de “impedimento de propagação do evangelho”, “aliança com
inimigo da coroa”, “latrocínios por mar ou por terra”, “uso de carne humana”.28
No entanto, na prática, as guerras justas eram convocadas sempre que os grupos
indígenas eram considerados hostis às políticas de descimentos ou aldeamentos,
prejudicando os empreendimentos dos colonos e da Coroa ou dificultando a ação
missionária.
Quanto aos resgates, este pode ser considerado outra forma de escravidão lícita
que não se destinava apenas aos índios considerados “hostis”, mas aos índios feitos
prisioneiros de outros indígenas com a finalidade de serem utilizados nos rituais
antropofágicos. Assim, esses “homens à corda”, após serem salvos da execução,
tornavam-se escravos para pagar com o trabalho o preço do resgate realizado. Quanto ao
tempo destinado para o pagamento, este poderia se dar por determinados períodos (a Lei
de 1611 estipulou o prazo de 10 anos) ou pela vida toda (dependeria do preço pago pelo
resgate), de acordo com as variações da Lei (MONTEIRO, 1992, p.112: PERRONE
MOISÉS, 1992, p.128: ALMEIDA, 2010, p.84).
27
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 66. Rio de Janeiro, 1948, p. 20.
28
De acordo com a Legislação indigenista, a recusa a fé cristã não constituiu em hipótese de declaração
de Guerra Justa. Quanto a antropofagia, embora mais complexa, parece que teve o mesmo entendimento
da primeira, não se constituindo em causa de declaração de guerra (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 124)
A utilização de mão de obra dos índios descidos e aldeados assim como as
guerras justas e resgates deveria obedecer aos limites impostos na Lei. Contudo, a
necessidade constante de mão de obra indígena levou a diversos casos de cativeiro ilegal
originados da distância entre a aplicação da lei e a realidade em que se davam os processos
de descimentos, aldeamentos, guerras justas e resgates.
De acordo com John Monteiro (1992, p.108), no século XVII, houve um
aumento considerável do sertanismo de apresamento no Estado do Maranhão e Grão-
Pará, tornando-se um dos principais meios de abastecimento de mão de obra indígena,
contrariando as disposições legais que estabeleciam critérios válidos e necessários para
as expedições nos sertões. Na prática, esta ação feita por particulares, muitas delas com o
patrocínio de comerciantes do Maranhão e Pará, representou a inserção de indivíduos
escravizados ilegalmente, o que pode esclarecer as variadas petições de liberdade dos
indígenas que se dirigiam ao tribunal da Junta das Missões para solicitar a liberdade
contra o cativeiro ilegal.
Um caso apresentado a Junta das Missões demonstra a realidade do cativeiro
ilegal, pois em 1752, a viúva Francisca dos Santos, moradora da cidade de São Luís,
requereu ao Tribunal da Junta das Missões, alegando encontrar-se pobre e desamparada,
para que os dois filhos da sua ex-escrava, a mameluca Apolônia, declarados livres pelo
mesmo Tribunal da Junta, pudessem novamente servi-la mediante o pagamento de
salário. O Tribunal da Junta decidiu deixar a cargo dos rapazes a decisão, desde que
tivessem mais de vinte e cinco anos, caso contrário, a decisão passaria a cargo da mãe dos
mesmos.29
A fonte apresentada, embora não esclareça de que maneira se deu o cativeiro
ilegal, se destaca pelo fato de deixar o poder de decisão de trabalhar ou para para a
requente a cargo dos indígenas. Considerando que a Lei buscava limitar o campo de ação
do indígena, estabelecendo a sua condição jurídica e determinando os direitos e deveres
decorrentes desta situação, a fonte acima aponta aos variados caminhos produzidos pelas
estratégias e negociações do lado indígena. Além disso, serve para compreender que a
estrutura da sociedade que se formou na Capitania do Maranhão não pode ser reduzida a
uma rígida polaridade entre senhor e escravo (LARA, 2007).
29
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
Desta forma, os indígenas também integraram a nova ordem social a partir de
novos papeis definidos na sociedade colonial atuando de acordo com as práticas culturais,
políticas e sociais incorporadas ao longo do processo de transformações vivenciados por
estes indivíduos nos espaços criados pela colonização em um contexto de
experimentações e mudanças.
Uma das formas de inserção dos povos nativos ao contexto colonial foi utilizá-
los como mão de obra. De acordo com Perrone-Moisés (1990, p.30), a questão do trabalho
indígena foi um dos grandes temas do século XVII, caracterizado como arregimentação
de mão de obra. A necessidade do trabalho indígena passa a ser defendida com mais
ênfase no Maranhão a partir do século XVIII, especialmente com a “alegada pobreza”
dos seus moradores.
30
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
valores dos salários decididos pela Junta das Missões.31 Para os serviços comuns, os
índios receberiam “quatrocentos réis”. Quanto aos especialistas, o salário dos pilotos e
proeiros que anteriormente eram arbitrados respectivamente em quatro e três varas de
pano passaram ao valor de “seiscentos réis”. Os oficiais dos ofícios mecânicos passariam
a receber “tostão por dia”. Além dos salários, a decisão da Junta das Missões estabelecia
que os colonos deveriam ficar responsáveis pela alimentação dos indígenas.
A fonte não esclarece se o pagamento era realizado diretamente aos indígenas,
embora o salário, em geral, ficasse sob a responsabilidade do religioso da Aldeia e do
chefe da comunidade indígena (DIAS; BOMBARDI, 2016).
Além disso, o pagamento quantificados em dinheiro (réis e tostão) aponta a
distância entre as normas que vinham do Estado lusitano e as características locais, pois
a utilização do pagamento em dinheiro não era prática comum na Capitania do Maranhão
sendo habitual o pagamento em gêneros, tais como algodão. A Coroa buscou reprimir
esta prática a partir do século XVIII, conforme Instrução endereçada ao Governador do
Estado, em 1725, proibindo a utilização do algodão como dinheiro, devendo ser
empregado apenas como gênero (FARAGE, 1986: LIMA, 2006).32
O estabelecimento de salários pela prestação dos serviços de índios livres,
conforme indica a ata de Reunião da Junta realizada em 29 de agosto de 1751, foi fruto
de um corpo normativo construído durante a colonização que por vezes anulavam-se e
reconstruíam-se em razão do jogo de forças na colônia entre os atores envolvidos e seu
poder de influenciar o Rei e seus conselheiros (ALMEIDA, 2003). Desta forma, a
elaboração de uma variedade de dispositivos legais, tais como Alvarás, Decretos,
Provisões e Leis que ao arbitrarem sobre a questão da liberdade ou cativeiro dos
indígenas, estabeleciam as hipóteses de salários pelos serviços executados mediante o
sistema de repartição dos índios aldeados.
O Alvará Régio de 1647 concedeu liberdade aos índios do Maranhão e também
determinou o direito dos indígenas de escolherem para quem trabalhar, estabelecendo
como imperativo o pagamento pelo trabalho executado. O referido Alvará justificava tais
prerrogativas devido à péssima administração dos portugueses em relação a mão de obra
indígena que estava perecendo pelos maus tratos sofridos na execução dos serviços.33
31
MENDONÇA, Marcos Carneiro de (Org.). A Amazônia na era pombalina: correspondência inédita do
governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
1751-1759. 2ª ed. Brasília: Edições Senado Federal, 2005. Tomo I, página 189.
32
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 66. Rio de Janeiro, 1948, p. 209-210.
33
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 67. Rio de Janeiro, 1948, p. 17-18.
Posteriormente, a Provisão Régia de 1677 que versou sobre a repartição dos
índios aldeados do Estado do Maranhão também tratou sobre o pagamento de salários
pela prestação de atividades realizadas pelos índios. Segundo esta Provisão, os indígenas
deveriam somente servir aos colonos que procedessem ao depósito de dois meses de
salário, cuja competência ficaria a cargo de um depositário eleito pela Câmara que deveria
lançar os valores em livro rubricado pelo ouvidor-geral.34
A construção de dispositivos legais regularizando o salário de atividades
desenvolvidas pelos indígenas pode ser compreendida como uma estratégia da Coroa para
garantir o indígena como aliado pois, através do pagamento de salários aos índios
aldeados, buscavam o apoio destes sujeitos para o sucesso do projeto colonizador.
O domínio de determinada atividade permitiu aos especialistas indígenas uma
vantagem em relação aos que exerciam o trabalho desgastante das lavouras ou outras
atividades reservadas aos índios “mais inúteis”35. A importância de determinados ofícios
descritos na Provisão Régia apresentada na Junta das Missões perpassou pelas
peculiaridades da colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará referentes à sua
biodiversidade.
O domínio e a navegação dos rios confundem-se com o próprio desenvolvimento
da colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará, visto que empreender viagens pelos
rios era ou navegação entre o Maranhão e o Pará era prática comum na região. Os oficiais
das canoas foram divididos em pilotos e proeiros. O conhecimento dos rios e das técnicas
de navegação era essencial em todas as jornadas empreendidas entre a costa do Maranhão
e Pará ou para as viagens ao sertão, cuja duração girava em torno de seis a oito meses
(CARVALHO JÚNIOR, 2005, p.249).
Nesta especialidade, a hierarquia era evidenciada pela autoridade e prestígio dos
pilotos, notáveis pela experiência e conhecimento dos rios da região. Os proeiros estavam
em hierarquia abaixo dos pilotos e ficavam responsáveis pelos remos; além disso eram
substitutos dos pilotos, dependendo do tempo de serviço, em caso de falecimento, o que
não era raro acontecer.
A adaptação das técnicas indígenas de navegação para a realidade colonial
provavelmente, se constituía em uma estratégia adotada para evitar piores destinos como
o cativeiro, pois embora fosse uma atividade desgastante em razão do ritmo empreendido,
das poucas horas de sono e dos maus tratos sofridos, ser oficial das canoas representou
34
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 67. Rio de Janeiro, 1948, p. 50-51.
35
ABN. Livro Grosso do Maranhão. Volume 67. Rio de Janeiro, 1948, p. 42.
um novo espaço ocupado por estes indígenas que, em muitos momentos, possibilitou
maiores espaços de negociação (CARVALHO JÚNIOR, p.259).
A Provisão Régia lida na Reunião da Junta das Missões em 29 de agosto de 1751
ainda determinava que se tais índios adoecessem, não receberiam salário algum. O
posicionamento que a Coroa lusitana buscava implementar na Capitania do Maranhão
evidenciou a prática corrente de evitar para si os prejuízos econômicos advindos da
captação e uso da mão de obra indígena, repassando aos colonos todo o risco da atividade.
Segundo Dias e Bombardi (2016), o governo de Francisco Xavier de Mendonça, irmão
do marquês de Pombal, adotou na década de 1750, a prática da administração particular
em índios que já se encontravam entre os moradores, ou seja, o colono assumiria a
responsabilidade pela instrução do indígena em troca do seu trabalho remunerado.
A conquista e uso da força de trabalho indígena livre na Capitania do Maranhão
realizou-se por meio de um elemento arquitetado pela legislação indigenista e usado
comumente no cotidiano da colônia: os descimentos e aldeamentos. A política dos
descimentos representou o tratamento dispensado aos chamados “índios aliados”, “índios
de pazes” ou “índios amigos” e foi fundamental para o projeto colonial, pois representou
a inserção no espaço colonial dos índios aldeados demonstrando a dinâmica entre a Coroa,
os poderes locais e as populações nativas.
Os descimentos inseriam-se na política portuguesa que estabelecia a saída dos
povos nativos de seus territórios para ir habitar aldeias administradas por missionários de
diversas ordens religiosas, com destaque aos jesuítas que integravam a Companhia de
Jesus, os quais tiveram um papel de destaque na colonização da Capitania do Maranhão.
Os descimentos atuavam em duas frentes principais: a religiosa, uma vez que os
índios descidos eram convertidos e tornavam-se súditos cristãos do Rei português,
cumprindo vários papéis estabelecidos pelo corpo normativo que se construiu na época.
A segunda frente correspondeu ao aspecto econômico, pois os índios descidos eram
integrados em aldeamentos próximos aos núcleos portugueses, ampliando a oferta de mão
de obra na região (ALMEIDA, 2003, p.61). 36
Após serem descidos, os indígenas eram encaminhados para as aldeias
coloniais que ficavam próximas aos núcleos de povoamento português para,
posteriormente, serem inseridos no sistema de repartição que se configurou como uma
espécie de rodízio, no qual trabalhavam determinados períodos para os colonos e depois
36
De acordo com Almeida (2003, p.61), os descimentos provocaram o povoamento das aldeias e
consequentemente o despovoamento dos sertões.
retornavam as aldeias. Perrone Moisés (1992, p.118), ao analisar os aldeamentos,
esclarece uma das finalidades da aliança entre coroa e religião ao apontar que os índios:
[...] em primeiro lugar[...] eram trazidos de suas aldeias no interior (sertão) para
junto das povoações portuguesas: lá devem ser catequisados e civilizados, de
modo a tornarem-se “vassalos úteis”, como dirão documentos do século XVIII.
Deles dependerá o sustento dos moradores, tanto no trabalho das roças
[...]quanto no trabalho nas plantações dos colonizadores. Serão eles os
elementos principais de novos descimentos, tanto pelo conhecimento que
possuem da terra e da língua quanto pelo exemplo que podem dar.
37
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
38
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 67. Rio de Janeiro, 1948. p.153.
39
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
John Monteiro (1994) estabeleceu algumas considerações ao analisar o papel dos
líderes indígena, considerando que, embora as suas ações sofressem influência da
dinâmica do colonizador, estas também correspondiam a uma dinâmica interna das
organizações indígenas. Sobre o papel dos principais, Almeida (2003) ponderou que:
40
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. p.240.
41
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. p.25-28.
popular nas cidades de São Luís e Belém culminando na expulsão dos jesuítas
(CHAMBOULEYRON ; BOMBARDI, 2011).
Em 1680, foi publicada uma Provisão Régia que estabelecia a repartição, em três
partes iguais, dos índios de serviços nos aldeamentos: a primeira ficaria na aldeia,
cultivando lavouras necessárias para o sustento das suas famílias; a segunda deveria ser
repartida entre os moradores e a terceira seria destinada aos missionários.42
No entanto, os conflitos continuaram acontecendo na região. Segundo Mello
(2009), as câmaras de São Luís e Belém uniram-se contra a ação dos religiosos, enviando
diversas missivas ao rei relatando o descumprimento da provisão pelos missionários e o
mau uso que faziam sobre a terça parte dos índios livres.
Em 1686, como resultado das diversas queixas e conflitos entre colonos e
religiosos, foi publicado o Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará
que perdurou até o ano de 1757, quando foi substituído pelo Diretório dos Índios.
Desta forma, a aparente vantagem dos religiosos sobre a administração dos
índios aldeados foi renovada em outras abordagens que buscaram visualizar estas
legislações como espaços de mediação do Estado por uma solução de compromissos entre
as demandas dos moradores e missionários além de buscar contemplar os interesses
indígenas, pois era essencial o seu comprometimento com o projeto colonial. Assim, a
legislação indigenista buscou contemplar as necessidades das partes envolvidas:
missionários (administração temporal e espiritual), moradores (acesso à mão de obra) e
índios (relativa proteção) (MATTOS, 2012).
No Regimento das Missões, a administração dos índios aldeados passou com
exclusividade ao controle dos religiosos, tanto no governo espiritual quanto temporal e
político. A repartição dos índios se constituiu em duas partes: uma ficava no aldeamento
enquanto a outra servia à Coroa e moradores. Quanto ao tempo de serviço fora dos
aldeamentos de repartição, ficou estipulado o prazo de 4 meses para o Maranhão e 6
meses para o Pará. Posteriormente, o prazo se estendeu para 1 ano em ambos os lugares
Só poderiam entrar nesta repartição os índios com idade entre 13 a 50 anos, estando
excluídas mulheres e crianças. (MELLO, 2009).
42
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. p.50-51
No entanto, a supressão das mulheres indígenas ao sistema de repartição não era
absoluta, constando na legislação os casos em que poderiam ser repartidas de acordo com
as necessidades da colônia.43
Segundo Carvalho Júnior (2005), de modo geral, as mulheres indígenas aldeadas
permaneciam nas aldeias enquanto seus maridos encontravam-se ausentes em longas
viagens pelos sertões, compondo as tropas de resgate, participando de guerras ou
trabalhando para os colonos nos sistemas de repartição.
Por conta desta realidade eram responsáveis pelas diversas atividades nos
aldeamentos: tarefas domésticas, produção de tecidos de algodão além de trabalharem nas
roças de mandioca. Porém, dependendo das atividades que exerciam, eram inseridas no
mundo branco, principalmente em trabalhos domésticos, do qual algumas nunca mais
retornavam as aldeias.
A política indigenista destinada a repartição das mulheres indígenas formulou
diversas recomendações da Coroa. Em 1716, 1719, 1722 e 1723 foram remetidas cartas
reais ao Governador do Estado do Maranhão para que se fizesse observar o cumprimento
das leis referentes a repartição das índias de leite. O conteúdo de as cartas é bastante
sugestivo sobre a distância da Lei e a realidade da colônia, pois a retirada das índias de
leite passou a ocasionar graves perturbações e prejuízos nas aldeias, principalmente pela
fuga de índios aldeados que, ao retornarem dos sertões, não encontravam suas mulheres.44
Embora a Lei condicionasse o tempo máximo em que as índias deveriam servir
aos moradores e o salário a ser pago salário a ser pago pelos seus serviços, a realidade
demonstrada nas missivas é da retirada das indígenas por moradores que já possuíam
“escravas de leite”, e muitas vezes, com certidões falsas, passavam a considerá-las
escravas sem restituí-las aos aldeamentos.45
No entanto, embora a violência fosse inegável, Carvalho Júnior (2005)
considerou o ponto de vista das indígenas, elencando que, dependendo dos interesses
destas, inserirem-se na incômoda casa dos brancos era mais vantajoso do que
permanecerem em aldeamentos, por mais contraditório que esta proposição possa parecer,
visto que, embora na condição de escravas, poderiam adquirir mais liberdade do que nos
aldeamentos servindo vários moradores. Além disso, de acordo com o autor, os favores
43
De acordo com Mello (2009, p.90), os religiosos não entravam nesta repartição, pois já contavam com
aldeias na capitania do Maranhão e Pará para servi-los.
44
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 67. Rio de Janeiro, 1948. p.77.
45
ABN. Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 67. Rio de Janeiro, 1948. p.139;169;184;191.
sexuais, embora fossem fruto de uma violência, poderiam ser o passaporte para uma
futura alforria, passando a fazer parte de uma condição jurídica diferenciada dos demais
nativos.
O final do documento apresentado na Junta das Missões que estabeleceu os
salários dos indígenas, apresentava ainda uma recomendação para criação de um livro de
matrícula com o registro de todos os índios alforriados que pudessem ser repartidos pelo
governador para aqueles que tivessem necessidade. Este detalhe nos leva a vários
apontamentos: o primeiro deles se relaciona a mudança de papel do índio cativo para o
índio liberto através da alforria. Na análise de alguns testamentos maranhenses, verifica-
se a concessão de liberdade de cativos sob a justificativa do bom serviço prestado ao
testamenteiro.
No entanto a permissão de liberdade aos cativos nem sempre seguia esta lógica,
como no registro de testamento de Francisco Mendes da Cunha, morador da cidade de
São Luís, feito em 1744, no qual concedia a liberdade ao escravo Ignácio, mas para a
mulher do cativo, uma escrava do gentio da terra, condicionava o pagamento de 50 mil
réis por sua liberdade e caso o escravo se recusasse ao pagamento, ela deveria permanecer
cativa46.
O segundo apontamento nos leva a compreensão de uma situação atípica quanto
aos alforriados, pois deixaram a qualidade de cativos para índios livres, tornando-se um
indígena que não se encaixava na situação de cativo nem de aldeado, provocando
imprecisão no controle e exploração desta mão de obra. A criação de um livro de
matrícula dos índios alforriados para serem repartidos pelo governo nos aponta duas
perspectivas: a primeira em relação às táticas utilizadas pelos poderes locais para
ultrapassar as lacunas existentes e construir meios de controlar esta força de trabalho. A
segunda aponta para a maior autonomia destes indígenas devido a sua inclusão em uma
situação jurídica não prevista na legislação.
Os detalhes contidos nas fontes citadas evidenciam que utilização sistemática da
mão de obra indígena na Capitania do Maranhão no século XVIII fez parte de uma
estratégia da Coroa para efetivar o projeto colonial português. Tal contexto redefiniu o
papel do indígena na sociedade colonial como força de trabalho e compôs uma nova
46
Tribunal de Justiça do Maranhão. Testamentos Maranhenses: história e legados. (1751-1756).
Coordenaria da Biblioteca. São Luís, 2015, p.73-79.
dinâmica interna voltada ao controle e utilização desta mão de obra que, tratando-se dos
índios livres, se caracterizou na maioria das vezes pelos descimentos e aldeamentos.
A política dos descimentos e aldeamentos não foram os únicos meios para o
controle da população indígena, pois as Guerras Justas e os resgates também
representaram meios de obtenção de mão de obra. Diferentemente do trabalho
compulsório dos índios livres, espécie de escravidão velada, os outros recursos levaram
ao abastecimento de mão de obra indígena escravizada legalmente e concorreram para o
aumento do cativeiro ilegal.
3.3 De índio livre a escravo: perpetrando guerras contra os “agitadores dos sertões”
Em reunião convocada pela Junta das Missões em 22 de julho de 1750, foi lido
um requerimento dos moradores da ribeira do Itapecuru e Parnaíba solicitando permissão
para proceder a formação de uma bandeira, com a pretensão de expulsar “os gentios
bárbaros das nações Gueguê, Timbira e Coroá”. O motivo seria as mortes e roubos que
vinham sendo praticados por estas “nações” em fazendas das regiões, promovendo
“notáveis prejuízos dos donos e dos dízimos de sua majestade” em razão do abandono
dos moradores que se viam ameaçados pelos ataques dos indígenas.47
O objetivo seria expulsar e perseguir estas “nações” até as “aldeias em que
costumavam se recolher quando se veem perseguidos da guerra defensiva”. Para tanto, os
moradores solicitavam uma ajuda de custo para adquirir “pólvora, chumbo e armas”.48
Para maiores chances de deferimento do pedido, foram trazidos alguns
documentos, como certidões juradas em que se provava, a partir do relato de testemunhas,
“a verdade das súplicas”. Após todo o procedimento, a Junta decidiu uniformemente que
a Fazenda Real enviaria ajuda para a guerra defensiva que se faria contra as nações dos
“gentios bárbaros”.
A denominação de “gentio” para os povos nativos mais resistentes a expansão
portuguesa esteve relacionada a criação de uma dicotomia baseada em pares de oposição
e que, dependendo do contexto, podiam variar de significados. O termo gentio ganhou
força como uma categoria intermediária no campo da dicotomia religiosa. Os portugueses
47
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
48
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
quinhentistas utilizavam este termo tanto para descrever hinduístas no subcontinente
asiático quanto para designar populações africanas e ameríndias destituídas de qualquer
religião. Após um certo tempo, o contexto passou a sublinhar a distinção entre nativos
convertidos ao catolicismo e os que poderiam ser convertidos (MONTEIRO, 2003, p.
118).
Um segundo aspecto a partir da leitura da fonte corresponde ao comportamento
português que inseriu as populações indígenas em nomes étnicos e categorias fixas, como
as “nações” especificadas na ata de reunião da Junta das Missões. John Monteiro (2003,
p. 122) ao tratar sobre estas representações, criticou o comportamento comum de
historiadores e antropólogos, os quais consideraram a classificação europeia como um
fato etnográfico indiscutível, criando imagens estáticas das populações nativas. Assim,
na revisão sobre esta temática, assinalou que:
49
Os núcleos populacionais dos Rios Itapecuru, Mearim e Munim eram alvos de ataques indígenas desde
século XVII. Os grupos indígenas responsáveis pelos ataques eram principalmente os Cai-cai, Guanaré e
Guarati (MELO, 2011, p.79).
atividades exercidas ao longo do curso dos principais rios da região
(CHAMBOULEYRON; MELO, 2013).
Quanto a real intenção do autor em propagar os benefícios destas regiões,
podemos lançar algumas hipóteses. Entre elas, o de justificar e exaltar a guerra que
empreendeu em relação aos “índios Guanaré” ao longo de três meses, pois nem todas as
autoridades apoiaram a ação bélica, tendo inclusive levado ao conhecimento do Conselho
Ultramarino os abusos cometidos aos indígenas desta região (CHAMBOULEYRON;
MELO, 2013).
Desta forma, Berredo podia ter procurado exaltar as ações do seu governo, pois
ao descrever todas as vantagens advindas da exploração destas regiões, deixa tacitamente
a justificativa de que, se não houvesse empreendido esforços para expulsar ou exterminar
os indígenas destes espaços, nada disso poderia ser aproveitado pela Coroa e pelos
colonos.
Assim, em sua obra citou o rio Itapecuru, informando ser amplamente povoado
de engenhos de açúcar ao longo do seu curso, além das lavouras dos frutos. Porém os
moradores eram constantemente ameaçados pelo “terror dos tapuias”. O rio Munim
possuía muitas árvores de jandiroba, de cujas frutas se tirava o azeite que servia para fins
medicinais e para as luzes além do uso em fábrica de sabão.50
Quanto ao Rio Pindaré, este se sobressaía pela criação de gado e pelas “ricas
minas de ouro”. Não é sem razão que em uma reunião da Junta das Missões convocada
em nove de novembro de 1748 foi proposto um requerimento de Jacinto Sampaio Soares
que se apresentava como cabo de uma bandeira de descobrimento de ouro e que se achava
impedido deste empreendimento pelos ataques do “gentio da nação Acoroá” que habitava
o sertão do Mearim e Pindaré e que já estava sentenciada a guerra. Por esta razão, pedia
deferimento para “destruí-los”. A Decisão da Junta, se mostrou desfavorável ao cabo
Jacinto pelo fato deste não ser originário da Capitania do Maranhão, embora o documento
não tenha esclarecido a origem do requerente. 51
Ao apresentar a visão do Eldorado sintetizada nas expedições dos bandeirantes
na região paulista, John Monteiro (1994, p.97) estabeleceu que dos colonos que
participavam das expedições em busca de ouro, sem dúvida, alimentavam a esperança de
50
BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão.
51
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
enriquecimento rápido, mas a vasta maioria alistava-se nestas expedições pela
oportunidade de criar e expandir a posse de escravos indígenas, em um comportamento
que visava contornar os obstáculos impostos pela legislação indigenista.
Relacionando a expansão portuguesa no sertão do Nordeste no século XVII,
Pompa (2003, p.203) afirmou que boa parte das expedições de ouro que ocorreram
tratavam-se, em geral, de expedições de apresamento de índios, embora a historiografia
raramente tenha falado sobre os indígenas, preferindo a construção de uma imagem
aventureira dos bandeirantes na busca de ouro.
Desta forma, podemos empreender que a negativa da Junta das Missões quanto
ao pedido do cabo Jacinto Sampaio Soares poderia ter como justificativa evitar o cativeiro
ilícito dos indígenas pelas ações dos particulares, uma vez que o pedido, implicitamente
acarretava em apresamento de indígenas. O fato do cabo ser de outra jurisdição, também
pode ter pesado na negativa do Tribunal da Junta pela possibilidade de que, após obter os
lucros da expedição, o cabo pudesse levar os produtos para seu lugar de origem,
prejudicando os empreendimentos realizados no Maranhão.
Na descrição sobre os rios, Berredo exaltava como “príncipe soberano de todos
os rios” o Mearim. De acordo com o seu relato, a margem deste rio já havia sustentado
seis engenhos de açúcar de grosso rendimento, conservando-se, ao tempo do relato,
apenas três de pouca utilidade, por falta de fábricas e receio dos moradores quanto aos
ataques do “gentio de corso”.52 Desta maneira, as dificuldades de implantação da cultura
do açúcar nesta região não tiveram como causa principal, de acordo com o relato, a falta
da mão de obra escrava africana, mas sim os ataques dos indígenas que ocasionavam fuga
dos moradores e consequentemente o abandono dos engenhos.
Desta forma, a pressão decorrente do avanço da povoação luso-brasileira para
estes espaços provocou múltiplos confrontos com as populações nativas que habitavam a
região, contribuindo para a instabilidade nas fronteiras e construção da paisagem colonial
(MELO, 2011, P.27). Ao contrário dos descimentos e aldeamentos, a estratégia
empregada contra os “agitadores dos sertões” baseava-se na justificativa das guerras
justas.
A construção do conceito de guerra justa ocorreu anteriormente à elaboração da
política indigenista e foi fruto de um intenso debate teleológico e jurídico, mais intenso
na Espanha do que em Portugal. O conceito doutrinário da guerra justa tem raízes na
52
BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão.
derrocada do Império Romano e fortalecimento da igreja em uma proposta
harmonizadora entre a ação bélica e preceito ético que deveria guiar o Estado cristão na
tentativa de estabelecer a paz e o bem comum (QUINTA NOVA, 1996, p.172).
O debate sobre a ética da guerra contou com a participação de teólogos e juristas
e encontrou ambiente propício para ser empregado no contexto das guerras de reconquista
contra o dito infiel mulçumano. No entanto, somente no século XIV é que passam a
receber um tratamento teórico mais desenvolvido pelo precursor da doutrina da guerra
justa em Portugal: o franciscano Álvaro Pais (1280-1349), o qual debruçando-se sobre a
matéria buscou organizar cinco requisitos essenciais para tornar a guerra legítima e
justificada: persona ou quem pode combater; res ou a guerra é justa quando dá resposta
a uma injustiça, causa ou da guerra como o único meio de conseguir a paz, animus ou da
guerra sem ódio e uso da violência apenas quando estritamente necessário e por último
auctoritas ou se quem declara a guerra é titular do poder legítimo (PERRONE-MOISÉS,
1990: ZERON, 2011: MELO, 2011)
O significado da guerra justa foi transposto à América Portuguesa no século
XVI, sendo aplicada como uma prática legal aliada a doutrina cristã e orientada aos
indígenas – “bárbaros”, “índios de corso” “agitadores”- considerados uma ameaça à
colonização portuguesa e expansão da fé católica. Para tanto, a legislação indigenista
dirigida ao Estado do Maranhão e Grão-Pará produziu em seu bojo as hipóteses que
justificaram a ação bélica contra as nações indígenas e consequentemente sua
escravização. A política portuguesa dirigida aos índios mais resistentes e contrários à
expansão portuguesa também procurou definir a questão da mão de obra indígena ao
possibilitar a mudança de sua condição jurídica para escravos.
53
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. p.
20.
A antropofagia foi considerada uma das questões mais controversas e de
múltiplas interpretações ao relacionar-se como um motivo legítimo para declarar guerra.
Segundo Perrone- Moisés (1990, p.27-28):
54
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. pp.
19-21.
55
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948. pp.
57- 59.
os índios tomados por prisioneiros deveriam ser repartidos pelo Governador e inseridos
em Aldeias de índios livres e católicos.
À primeira vista, a Lei de 1680 e as anteriores apresentavam uma contradição,
pois ao mesmo tempo em que estabeleciam a liberdade como um direito natural dos índios
especificavam também os casos de escravidão justa e legal. No entanto, segundo Perrone
Moisés (1992) a aparente contradição entre liberdade e escravidão, correspondeu a uma
diferença no tratamento da legislação entre o “índio amigo” e o “índio bravo”. Assim,
com exceção das grandes leis de liberdade, que não faziam distinção entre aliados e
inimigos, a política indigenista aplicada ao índio aliado foi uma e a relativa aos inimigos
foi outra, ou seja, para uns foi garantida a liberdade enquanto para outros, o cativeiro.
Entretanto, oito anos depois, a Coroa Portuguesa derrogou a Lei de 1680, sendo
substituída pela Lei de 1688. O texto legal da referida legislação considerava que as
guerras defensivas somente poderiam ser declaradas quando os índios infiéis invadissem
as aldeias e terras do Estado do Maranhão ou impedissem, com armas, a entrada dos
missionários nos sertões. Além disso, a justificativa se daria com certidões lavradas pelas
autoridades locais e analisadas pelo Ouvidor-Geral. Quanto a guerra ofensiva, A Lei de
1688 estabeleceu que poderia ser feita apenas quando houvesse um temor certo e infalível
de que os índios infiéis tomariam os domínios da Coroa Portuguesa. Neste caso, a
Indicação da lei seria a persuasão e proposta de paz, levando adiante a guerra em casos
de hostilidades graves e notórias.56
A produção do corpo normativo que indicou as hipóteses legais de cativeiro
indígenas levou a uma incidência dos casos de cativeiro ilegal, pois os colonos passaram
a buscar pretextos e justificativas que pudessem burlar as hipóteses legais. A grande causa
seria a burocracia necessária para legitimar as ações bélicas. John Monteiro (1994, p.111-
114), ao analisar o aumento do sertanismo de apresamento no Estado do Maranhão no
século XVII, inferiu sobre as expedições particulares que entravam ilegalmente nos
sertões, financiadas por comerciantes de Belém e São Luís que representaram o principal
meio de criar, manter e até aumentar a população cativa indígena. Além disso, o autor
pontuou que mesmo as expedições legais que ocorriam nos sertões do Estado do
Maranhão dificilmente observavam a legislação, escravizando e destruindo inúmeros
povos indígenas.
56
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948.
pp. 98-100.
No litígio iniciado na Junta das Missões, na cidade de São Luís, em 18 de
dezembro de 1751, envolvendo a índia Margarida e seus filhos contra a viúva Maria
Pereira pode dimensionar a questão dos cativeiros ilegais na Capitania do Maranhão.57
Segundo alegavam os requerentes, estes teriam sido submetidos ao cativeiro ilegal após
uma guerra ofensiva supostamente ilegal realizada contra a etnia Aron, ao qual faziam
parte58.
Após adiamentos e pedidos de vista para as partes, a Junta decidiu, em 17 de
junho de 1752, reformar a sentença que concedeu a posse da índia e seus filhos à viúva
Maria Pereira, justificando não haver nenhum fundamento jurídico que sustentasse a
escravidão, pois a índia havia sido tomada em guerra ofensiva, da qual não constava “que
fosse justa”. Além disso, não havia comprovação dado deferimento real, pois os livros da
Secretaria que poderiam servir de prova estavam deteriorados Assim, a Junta estabeleceu
como alternativa de confirmar a licitude da guerra, os testemunhos de “pessoas fidedignas
que confirmassem ter visto a declaração de guerra nos ditos livros”, o que também não
ocorrera.59
A junta ainda ponderou que a referida guerra não deveria ter ocorrido contra uma
nação inteira, pois crime ocorrido, o assassinato de religiosos, fora cometido por apenas
“duas ou quatro pessoas” da determinada nação indígena. Outro aspecto essencial para o
Tribunal considerar a ilicitude da guerra foi o fato dos “Aroan” já se encontrarem
“debaixo do domínio e direção dos missionários”. Segundo o Tribunal da Junta, a referida
guerra não poderia, ainda que sob a justificativa dos assassinatos, sujeitar toda a não ao
cativeiro. A sentença também esclareceu que a Junta das Missões não havia julgado como
escravos os indígenas apanhados nesta dita guerra, fato verificado pela ausência do título
de cativeiro. Assim, decidiu pela liberdade da índia Margarida e seus filhos.60
No entanto, o Tribunal da Junta das Missões não apenas julgava a legalidade das
guerras perpetradas contra os povos indígenas, mas também assumia o encargo de
autorizá-las, constituindo um espaço marcado por interesses divergentes e conflitantes.
57
O litígio entre a índia Margarida e seus filhos contra a viúva Maria Pereira pode ser considerado um dos
mais longos do Tribunal da Junta pois, em decorrência dos recursos e reformas das sentenças, as partes
continuaram se enfrentando por anos na Junta das Missões.
58
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
59
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
60
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
Na reunião convocada pela Junta das Missões, na cidade de São Luís, em 22 de
julho de 1750, os moradores da ribeira do Itapecuru e Parnaíba pediram autorização para
empreender “bandeira” contra os “gentios bárbaros das nações Guêguê, Timbira e Coroá”
por cometimento de “hostilidades”, decidindo o Tribunal da Junta, uniformemente,
deferir a autorização por considerar a veracidade dos documentos e testemunhas
apresentados na Junta.
Ao analisar a ação dos bandeirantes na região paulista, John Monteiro (1994,
p.57) preceituou que, ao contrário da escravidão negra, os bandeirantes tomaram para si
a tarefa de constituir uma força de trabalho. Trazendo esta análise para as Capitanias do
Grão-Pará e Maranhão, através da análise das atas de Reunião da Junta das Missões,
podemos inferir que os colonos também agiram de forma particular, algumas vezes
apoiado pelo poder local, outras vezes não, na constituição da força de trabalho indígena.
Dois anos após o requerimento dos moradores da ribeira do Itapecuru e Parnaíba,
compareceu novamente ao Tribunal da Junta, em 10 de julho de 1752, Jacinto de Sampaio
Soares61 que havia escrito duas cartas ao Governador propondo o descimento dos índios
“Amanajó”. No entanto, a Junta indeferiu o pedido por considerar que o descimento dos
indígenas desta nação poderia ser realizado “sem empréstimos de armas” por “ não fazer
oposição ao Estado”. Em seguida, a Junta ajuizou ser eficaz que o requerente fosse
empregado na tropa de guerra contra o “gentio Acoroá e Timbira”, cuja guerra ofensiva
já havia sido autorizada pelo rei em uma Provisão de 29 de maio de 1750.62
Após dois anos da Provisão de 29 de maio de 1750, o Governador da Capitania
do Maranhão, Luís de Vasconcelos Lobo, formulou um Regimento com base em algumas
instruções a serem tomadas na ação bélica contra as “nações inimigas”. A tropa partiria
da cidade de São Luís e seguiria até o Rio Itapecuru por canoa, “evitando os
inconvenientes do caminho terrestre”. A viagem seguiria até Aldeias Altas onde os
“índios Guanaré” deveriam ser inseridos na tropa de guerra, desde que concordassem e
tivessem o aval do” missionário da Aldeia e do principal”, reunindo-se com os demais
indígenas que já se encontravam na tropa.63
61
Jacinto de Sampaio Soares compareceu inicialmente ao Tribunal da Junta em 1748, como cabo de uma
bandeira de descobrimento de ouro, solicitando empreender guerra contra os índios que estavam cometendo
ataques.
62
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
63
Manuscrito 19- Declaração de Guerra aos Grupos Indígenas com base em ordens e resoluções do Rei de
Portugal. Autor: Luís de Vasconcelos Lobo. Local São Luís – MA. Data: 29/03/1752.
Além disto, o Regimento acima também previu inserir na tropa de guerra todos
os índios que fossem encontrados fora das suas aldeias e moradores que voluntariamente
quisessem fazer parte da tropa.64 Deste modo, temos uma clara separação entre a
obrigatoriedade destinada aos indígenas e a voluntariedade dos colonos em participar das
guerras.
A participação dos indígenas na formação das tropas de guerra também foi
confirmada na decisão da Junta das Missões de 10 de julho de 1752, determinando que
Jacinto Sampaio deveria seguir na direção do Rio Mearim com pelo menos “300 Gamela
com seus arcos e flechas e 40 Pindaré” além de qualquer pessoa que “voluntariamente
quisesse se juntar a tropa”. 65
Desta maneira, a participação dos indígenas como força bélica foi fundamental
para as guerras realizadas contra os indígenas. Segundo Gatti (2011, p.56), os índios
aldeados eram prontamente incorporados às forças militares portugueses para combater
os seus pares que se apresentavam irredutíveis a expansão portuguesa. Assim, podemos
apontar que os aldeamentos eram essenciais para a formação das tropas de guerra
necessárias aos combates que se faziam contra aqueles que resistiam à conquista europeia.
No entanto, é preciso levar em consideração os interesses dos indígenas ao
incorporarem as tropas de guerra, pois o seu envolvimento nas guerras coloniais se
mostrou como uma importante estratégia para salvaguardar a sua autonomia a partir de
alianças militares que poderiam ser rompidas a qualquer tempo, dependendo dos
interesses e contingências do momento.
Pelo número de indígenas solicitados para as tropas de guerra, podemos apontar
a quantificação numérica maior que os próprios colonos, os quais buscavam utilizar dos
saberes bélicos indígenas para assegurar a vitória nas guerras perpetradas contra os
nativos. Pompa (2003, p.269), também apontou a participação significativa dos índios
aldeados ao lado dos soldados contra os “tapuias” na denominada “guerra dos bárbaros”,
indicando que a presença dos “índios flecheiros” foi nitidamente superior ao de soldados
comuns.
No Regimento de 23 de março de 1752, a questão da repartição de cativos tomou
cinco capítulos, determinado o procedimento a ser realizado com as “peças da guerra”.
64
Manuscrito 19- Declaração de Guerra aos Grupos Indígenas com base em ordens e resoluções do Rei de
Portugal. Autor: Luís de Vasconcelos Lobo. Local São Luís – MA. Data: 29/03/1752.
65
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
Em primeiro lugar, deveriam ser retiradas as despesas feitas pela Fazenda Real. Após,
deveria ser retirado o “quinto” pertencente à Coroa Portuguesa; a parte do governador da
Capitania, como também do cabo, oficiais subalternos, ouvidor e provedor mor da
fazenda real e auditor. As outras “peças” restantes deveriam ser repartidas igualmente
entre soldados, moradores e mais índios. 66
Ao analisar os aspectos da escravidão indígena relativa ao Estado do Maranhão,
John Monteiro (1994, p.112) destacou como característica da região, a presença e
ingerência do poder local no abastecimento e distribuição de mão de obra nativa no
Estado do Maranhão, destacado pela presença das autoridades locais na distribuição das
“peças de guerra”.
Vanice Melo (2011, p.100) ao refletir sobre os confrontos bélicos contra
indígenas no Estado do Maranhão inferiu que as guerras eram realizadas com o intuito
maior de obter mão de obra, mas isto não significa que elas tivessem apenas este objetivo,
pois o extermínio também foi uma estratégia encontrada para aqueles que ameaçavam o
sucesso do Projeto Colonial.
Pedro Puntoni (2002) ao analisar a guerra dos bárbaros, conflito que ocorreu no
século XVII na região semiárida do Nordeste, entre o leste do Maranhão e o Norte da
Bahia, compreendendo parte do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e
Pernambuco, concluiu que os conflitos ocorridos pela expansão da pecuária, foram
guerras de extermínio, destinados a varrer as áreas para a criação de gado, pois era uma
atividade que não necessitava de um grande contingente de mão de obra.
As guerras realizadas contra os indígenas também representaram um meio de
abastecer o espaço colonial com mão de obra cativa necessária aos empreendimentos
coloniais. A ocupação dos espaços coloniais perpassou pela convivência com os
indígenas, pois em grande parte dependeu da ação destes, porém a política portuguesa
desconsiderou os nativos na organização e controle dos territórios, estabelecendo
políticas que provocaram sua desagregação e desarticulação.
As guerras justas representaram uma resposta a intervenção dos povos nativos
nos espaços controlados pela jurisdição portuguesa, através das fortalezas, vilas e cidades
cuja ocupação representava uma estratégia de domínio e representação de poder do
Estado europeu nos territórios originalmente ocupados pelos nativos.
66
Manuscrito 19- Declaração de Guerra aos Grupos Indígenas com base em ordens e resoluções do Rei de
Portugal. Autor: Luís de Vasconcelos Lobo. Local São Luís – MA. Data: 29/03/1752.
Desta forma, com o aumento da expansão portuguesa, surge a construção do
imaginário dos sertões, espaço selvagem, sem lei e fora da jurisdição da metrópole,
formado por índios bárbaros que deveriam ser combatidos pelo mundo civilizado e
cristão, justificando os diversos conflitos que ocorreram nesta capitania (PUNTONI,
2002: POMPA, 2003).
As guerras justas não podem ser resumidas em uma visão reducionista do índio
apenas como vítima, embora seja incontestável as perdas dos povos indígenas nestes
conflitos, estes também se adequaram as novas formas de controlar e organizar o
território. Ao provocar as temidas “hostilidades” como estratégia para afastar os invasores
de seus territórios, estes indígenas se colocavam como legítimos donos da terra,
pressionando povoamentos portugueses que por vezes forma abandonados e
consequentemente geraram um contra-ataque do Estado.
Ao visualizar estes conflitos, encontramos o indígena em seus mais variados
papéis: celebrando alianças, quebrando pactos, adiando descimentos, participando de
tropas de guerra, guerreando contra o Estado. Em suma, interferindo e sofrendo
interferências na construção de espaços coloniais. No entanto, as guerras justas não eram
o único meio jurídico e moralmente aceitos de fazer cativos, havendo a figura dos
resgates.
67
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948, pp25-
28.
68
Anais da Biblioteca (ABN). Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vol. 66. Rio de Janeiro, 1948, pp97-
101.
69
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
John Monteiro (1994, p.55), ao analisar a atuação dos bandeirantes paulistas, assegurou
que a partir do século XVII passaram a ser introduzidos na esfera colonial índios de
regiões remotas, totalmente desvinculados de sua terra e identidade histórica.
Desta análise, podemos depreender que o mesmo se deu, guardadas as devidas
proporções, na colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará, representando um
abastecimento externo de indígenas totalmente desvinculados de suas origens em razão
das distâncias entre a ação dos resgates e o destino final dos cativos, causando também
uma grande alteração na composição étnica da população cativa.
Desta maneira, a política indigenista da Coroa Portuguesa em relação a
colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará figurou na convivência entre liberdade
e cativeiro, pois não houve necessariamente uma fronteira intransponível entre as duas
condições jurídicas, pois a exploração e tentativa de controle do Estado e poderes locais
se fazia em ambos os contextos, seja pelo trabalho compulsório dos índios “livres” através
dos descimentos e aldeamentos seja na situação de cativos pelas guerras justas e resgates.
A situação dos povos nativos no contexto dos descimentos, aldeamentos, guerra
justas e resgates, elementos que compuseram a sociedade colonial em formação e
afetaram diretamente os indígenas, promoveu, pouco a pouco, a desestruturação e
desordem de suas sociedades. John Monteiro (1994, p.55), ao inferir sobre o processo
colonizador na região de São Paulo no Século XVI, afirmou que a política portuguesa não
conseguiu integrar as sociedades indígenas à esfera colonial sem desestruturá-las
resultando na elaboração de formas de trabalho historicamente novas, entre as quais a
escravidão indígena. Por conta disto, passou-se a introduzir na esfera colonial índios em
número crescente, os quais compuseram a sociedade colonial.
Ao tratarmos do contexto do Estado do Maranhão e Grão-Pará no século XVIII,
podemos partir da mesma compreensão acima, pois a partir das fontes analisadas,
constatamos que as ações destinadas a inserir os indígenas nos espaços coloniais
promoveram uma desordem nas organizações dos indígenas, tanto dos índios
considerados aliados quanto aos inimigos.
No entanto este controle e domínio não se fez apenas sob a ótica portuguesa, mas
contou com as ações diretas dos indígenas, pois para explorá-los, condição essencial ao
sucesso do projeto colonizador na região, foi necessário lançar incentivos de várias
espécies: concessão de terras nos aldeamentos, seja cooperando para que exigisse a sua
liberdade perante a justiça colonial, seja concedendo mercês, arbitrando salários,
formulando Leis etc.
Trilhar estes caminhos não significa negar o uso da violência, incontestável em
diversos acontecimentos relatados, mas sim refletir que ela não era a única medida
utilizada, concorrendo com diversos outros fatores. Desta maneira, a relação de domínio
sobre o indígena era negociada, o que não significa que deixou de ser desigual, mas sim
que não pode ser medida unicamente por quem detém o domínio, comportamento que
levou à visão do indígena passivo.
Para V. Exª poder compreender bem este absurdo, que na verdade se faz
incrível, é preciso saber que a palavra Tupana na tal gíria é Deus; as duas Açu
e Mirim é o mesmo que grande e pequeno, e são os ditos índios educados para
explicarem Deus dizendo Tupana Açu Deus grande; e os santos, suas imagens
e verônicas Tupana Mirim = Deus pequeno; e isto que eles dizem que é um
modo de explicar, por não haver na tal língua a palavra Santo, sempre dado por
elemento de religião a uma gente silvestre, lhes forma uma ideia de muitos
deuses, o que é totalmente defendido e oposto à verdadeira fé que nos ensina a
Igreja Católica. Além de que, este erro se poderia emendar ainda seguindo a
errada máxima de se ensinar a tal gíria barbarizando a palavra santo, assim
como têm barbarizado infinitas palavras portuguesas que se acham inseridas
nela, e de que poderia fazer um catálogo se fosse necessário .70
70
MENDONÇA, Marcos Carneiro de (Org.). A Amazônia na era pombalina: correspondência inédita do
governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
1751-1759. 2ª ed. Brasília: Edições Senado Federal, 2005. Tomo I, página 113.
constituindo em um gruo social diferenciado dos africanos e europeus (ALMEIDA, 2003:
RESENDE, 2003: CARVALHO JUNIOR, 2005: MONTEIRO, 2007,).
Ao observar as atas da reunião da Junta das Missões realizada na cidade de São
Luís, deparamo-nos com pedidos de liberdades de índios que afirmavam estarem em uma
situação ilegal de cativeiro. O destaque nestes casos é que o pedido não se restringia
apenas ao indivíduo em si, mas a irmãos, filhos e outros parentes revelando a rede de
sociabilidades gerada com as descontinuidades e mudanças do período colonial.
Desta forma, tais contribuições reformulam o próprio conceito de resistência
indígena, afastando-a do sentido da manutenção de uma tradição milenar congelada no
tempo ou pensada apenas em termos de revoltas, mas inserida em um complexo sistema
de negociações, estratégias, adaptações, reformulações de identidades, construção de
novas formações sociais e culturais, que buscou redefinir a maneira indígena de pensar (e
de fazer) a história do contato (MONTEIRO, 1999: POMPA, 2003: CARVALHO
JÚNIOR, 2005: OLIVEIRA, 2015: ALMEIDA, 2017.).
71
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
72
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
indígenas que haviam contraído casamento com “pessoas de diversa nação” nas Aldeias
mencionadas, devendo conservar-se nestes lugares.73
Os casos acima demonstram que a continuidade dos Aldeamentos não foi fruto
apenas de interesses da Coroa e Colonos nem dependeu unicamente da ação dos
missionários para a sua funcionalidade, os quais, de acordo com o § 1 Regimento das
Missões, detinham o governo espiritual, político e temporal das aldeias sobre a sua
administração, mas também proporcionou funções e significados próprios aos indígenas,
os quais traziam expectativas ao concordarem em adentrar nestes espaços (ALMEIDA,
2003).
Longe de serem espaços destinados a dominação e aculturação dos indígenas, os
aldeamentos se constituíam em verdadeiros “espaços de índio” 74, os quais viviam uma
experiência nova que além das perdas sofridas apresentava também espaços de adaptação
e sobrevivência (ALMEIDA, 2010, p.72).
Maria Regina Celestino de Almeida (2003) ao tratar dos índios aldeados no Rio
de Janeiro colonial, inferiu que:
Adentrar em aldeamentos conferia aos nativos uma nova posição social: índios
aldeados. Considerando o projeto missionário em curso, tornar os índios aldeados era
transformá-los em índios cristãos, ou seja, vassalos do rei, com deveres e direitos
estabelecidos em diversos dispositivos legais visando o sucesso dos objetivos
relacionados ao projeto colonizador.
Desta maneira, deixar-se converter a fé católica adquiriu um significado político
estratégico do ponto de vista indígena, com estabelecimento de direitos em Lei e novas
possibilidades de ação, utilizando-se do próprio sistema repressor para adquirir mais
73
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões na
cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
74
O regimento das missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará era categórico ao estabelecer em seu § 4
que não poderiam assistir nem morar nos aldeamentos outras pessoas que não os índios e suas famílias.
autonomia, uma vez que a condição de vassalo não era sinônima de igualdade, conforme
estabelece Almeida (2003, p.102):
75
D’VREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil.
76
D’VREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil
que a imagem do europeu saltando em terra e escorregando em índia nua 77 não
corresponderam à complexidade dos papéis exercidos por estas mulheres.
A mulher indígena reaparece em outros espaços da sociedade colonial, povoando
o ambiente doméstico, conduzindo os aldeamentos nas ausências dos índios, sendo mães
de filhos legítimos e ilegítimos, estabelecendo negociação quanto a questão do sexo,
enfim diversos olhares ainda pouco explorados. Ainda que tenham passado pela violência
física e simbólica, também conseguiram se reinventar e recriar novos papeis na sociedade
colonial.
A revisão de historiadores e antropólogos tem levado a conclusões que passaram
a reconhecer que aquilo que a moral cristã cunhou de luxúria ou libertinagem era, da
perspectiva indígena, hospitalidade e formação de rede de alianças militares e materiais
através de um processo muito simples e direto: consistia em dar ao europeu uma moça
por esposa. Assim que ele a assumia, iniciavam-se os laços de parentela (MOREIRA,
2019, P.237).
O processo de interferência na vida colonial através dos casamentos também
levou os missionários à decisão de tornar as uniões indígenas, antes da conversão, em
naturais e cristãs. Para isto deveria ser observado se prevaleceria entre os índios algum
tipo de matrimônio regido pelas leis naturais, ou seja, baseados no desejo de ter uma vida
comum e filhos.
De acordo com Moreira (2019), na Companhia de Jesus acabou prevalecendo o
entendimento de que os indígenas não possuíam casamento natural. Tal juízo provocou
aplicações práticas na evangelização dos inacianos, pois estes puderam casar os índios de
modo rápido e fácil, sem preocupar-se com as uniões anteriores.
Podemos depreender este comportamento ao analisar a mesma correspondência
já citada anteriormente, entre o Capitão General do Estado do Maranhão e Grão-Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e o seu irmão, o Marques de Pombal. Nesta parte,
especificamente, Francisco Xavier criticava o sistema de repartição, no qual estavam
dispensados os padres da Companhia, mas para compensá-los estavam destinadas para
servir os colégios e residência dos jesuítas uma Aldeia no Maranhão e outra no Pará, pois
os casamentos nestes aldeamentos aconteciam da seguinte maneira.
77
FREYRE, Gilberto.O indígena na Formação da Família Brasileira. In: Casa Grande & Senzala. Editora
Record, 28ª Edição, 1992.
Finalmente, porque não tinham liberdade em coisa alguma, até os casamentos
são a arbítrio dos padres, porque devendo casar todos, não está na sua mão o
chegarem à pessoa, mas há de ser com aquela que lhes nomear o padre
missionário, ainda que aliás seja contra sua vontade; e estejam ajustados com
outra mulher, ou elas com outro marido.78
Provavelmente, muitas vezes vivendo numa situação talvez mais incômoda nas
aldeias, optavam por permanecerem na casa dos brancos. Alternativa talvez
menos dolorosa já que, por mais contraditório que possa parecer, embora
escravas, elas adquiriam mais liberdade. [...] Pertencendo somente a uma casa
adquiriam vantagens e, provavelmente, uma extensão de vida. Os favores
sexuais, nesse sentido, poderiam ser seu passaporte para uma vida melhor. Não
se pode esquecer, no entanto, que os moradores também necessitavam
daquelas índias para trabalhar em suas roças, tecerem e fiarem o algodão e nos
serviços domésticos variáveis. Para tanto era prática comum casarem com
alguns escravos seus. CARVALHO JÚNIOR, 2005.
A análise desta fonte nos leva a alguns apontamentos: o primeiro diz respeito ao
tratamento diferenciado dos indígenas considerados aliados, pois ao defenderem a
manutenção de suas famílias, limitaram as ações dos europeus que tiveram que negociar
78
MENDONÇA, Marcos Carneiro de (Org.). A Amazônia na era pombalina: correspondência inédita do
governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
1751-1759. 2ª ed. Brasília: Edições Senado Federal, 2005. Tomo I, página 116.
e por vezes, abrir mão de garantias, para manter o apoio dos nativos. Neste caso, acatar o
pedido dos índios foi mais importante estrategicamente do que evitar a perda numérica
de mulheres e crianças no aldeamento.
A ata de reunião da Junta das Missões não nos esclarece o motivo dos índios
estarem separados de sua família, o que nos leva a estabelecer pressuposições. A primeira
pode estar relacionada ao sistema de repartição, que englobava índios destinados a servir
de mão de obra aos colonos, dos 13 aos 50 anos. O tempo dos indígenas fora dos
aldeamentos, de acordo com o Regimento das Missões, variou inicialmente em quatro
meses para as aldeias do Maranhão e seis meses para as do Pará. Contudo, em Junta
reunida em 1687 foi estipulado o prazo de um ano para que os índios pudessem ser
restituídos aos seus aldeamentos (MELLO, 2009).
As mulheres e crianças, com algumas exceções, estavam fora do sistema de
repartições, permanecendo nos aldeamentos sem a presença dos maridos por todo o tempo
em que estes ficavam servindo como mão de obra a colonos e Coroa.
Assim, o pedido dos índios Aranhiz aponta para a compreensão de que o pedido
de restituição de mulheres e crianças tenderia a uma defesa dos laços familiares, seja
evitando a separação de suas mulheres e filhos, seja por desconfiança que mantinham
contra os missionários e colonos, evitando a quebra dos laços de família que poderiam
ocorrer em uma separação prolongada entre marido e mulher.
Quanto ao pedido do índio Maurício Rayol, capitão da aldeia de Marudá,
solicitando que fossem baixadas ordens para que os índios e índias da sua aldeia que
haviam fugido para as de Pindaré e Maracu e Tapuitapera fossem trazidos de volta, a
decisão da Junta demonstra que a condição dos índios aldeados que instituíam casamento
apresentava algumas garantias, entre elas a imobilidade, ou seja, o casamento promovia
o sedentarismo dos nativos e limitava, mais uma vez, o campo de ação dos agentes
coloniais nos espaços dos aldeamentos, pois estes já não poderiam ser retirados ou postos
em novos em outros lugares sem que a sua condição de casado fosse levada em conta.
Desta forma, aqueles que haviam se casado com “pessoas de outra nação” não
poderiam ser deslocados para sua aldeia de origem, mas passavam a fazer parte do
aldeamento que tinha concretizado o casamento, recriando e fortalecendo os laços de
família e de comunidade sem a ameaça do remanejamento, ainda assim, se este ocorresse
deveria respeitar o casamento.
Além disto, a fonte nos esclarece que as fugas dos indígenas faziam parte do
cotidiano dos aldeamentos. O próprio sistema de repartição no qual os índios eram
divididos para trabalhos com os colonos e coroa aumentavam as chances de fugas. Por
isto, os missionários buscavam estabelecer um equilíbrio e certo grau de satisfação dos
indígenas, de maneira que estes pudessem manter-se nestes espaços. Não é sem razão que
os missionários incentivavam os casamentos entre os aldeados com o claro propósito de
evitar as fugas e consequentemente o esvaziamento dos aldeamentos.
Apontamos também, embora o recorte temporal do presente trabalho nos
impossibilite analisar as consequências desta medida, a nova política oficial da coroa
portuguesa em relação a vida familiar dos índios aldeados modificou-se com o advento
da lei de 04 de abril de 1755. A partir desta Lei, houve o estímulo de casamentos mistos
entre brancos e nativos em uma série de incentivos econômicos. Estas reformas
pombalinas tinham como objetivo precípuo extinguir os índios enquanto grupo étnico e
misturá-los a população colonial através da miscigenação biológica, linguística e cultural.
Assim, a aceitação do casamento pelos nativos está longe de ser apenas uma
mera questão de anuência a fé católica e aos valores culturais europeus, mas perpassa por
questões que estão no cerne do processo de negociação estabelecida nos aldeamentos que
repercutiram no cotidiano da colônia, entre os quais o sedentarismo, monogamia e
trabalho, aparentemente desconexos, mas que estavam interligados entre si (MOREIRA,
2019).
Em contrapartida, a situação dos aldeamentos em “misturar” índios de várias
nações, os casamentos entre índios e escravos, forçados ou não, constituíram-se em um
intenso contato interétnico, o qual por sua vez, levou a tentativa de controle social da
coroa através da categorização de misturas surgidas.
O processo de categorização dos grupos sociais que surgiam do intenso contato
interétnico fazia com que estes indivíduos ingressassem em um lugar na escala de
hierarquização social diverso do ocupado por seus antepassados considerados índios
verdadeiros. De acordo com Moreira (2019, p.237) a noção de cor forjada no período
colonial e herdada por homens e mulheres dos oitocentos não designavam
preferencialmente matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas
buscavam definir lugares sociais, nas quais etnias e condição civil estavam
indissociavelmente ligadas.
A exigência do casamento nos aldeamentos e suas características de
indissolubilidade e monogamia desagregaram os principais elos da sociedade nativa. No
entanto, os índios, por sua vez, promoveram um processo de adaptação, reinventando
laços de família na nova realidade social e exigindo da parte dos missionários e demais
agentes um constante processo de negociação. Contudo, os laços de família não foram
reconstruídos apenas entre índios aldeados, chegando também aqueles que se inseriam na
condição de cativos.
79
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
80
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
requerimentos, foi remetê-los ao Juiz das liberdades para que pudessem agir conforme
seus interesses.81
No dia 17 de junho de 1752, a índia Tereza insistiu mais uma vez em outro
requerimento que pedia a execução da decisão tomada em 06 de maio, para que ela fosse
retirada da casa de Francisco Serejo. Novamente a Junta decidiu por remeter o pedido ao
juízo competente ficando o caso sem solução conhecida por não ser mais citado nas
reuniões posteriores. 82
Na Junta do dia 20 de maio de 1752 foi apresentado um requerimento de
liberdade do índio Anacleto e seus irmãos Manuel, Maria e Bárbara o qual afirmavam
serem filhos da índia Silvana “oriunda do sertão do Pará da nação Manoá” contra Antônio
Pinheiro, da Vila de Tapuitapera, por este não possuir os títulos de cativeiro. 83
No mesmo dia a índia Perpétua, que afirmava ser filha da índia Domingas,
oriunda “do sertão do Pará da nação Manoá” e seus filhos Xavier, Frutoso e Desidério
requeriam a sua liberdade em face de Antônio da Costa que os estaria possuindo como
escravos sem possuir os títulos de cativeiro. A decisão da Junta em ambos os casos foi
obrigar os possuidores a apresentarem os títulos de cativeiro na próxima reunião que se
daria no dia 03 de junho. No entanto, nas reuniões posteriores da Junta das Missões os
casos não foram retomados ficando sem solução conhecida.84
Os episódios apresentados nas Reuniões das Juntas das Missões descontroem a
ideia da ausência dos laços de parentesco em razão da escravidão. Além disso,
demonstram um fato pouco debatido na historiografia maranhense: a presença de uma
unidade familiar indígena no Maranhão do setecentos em relação aos indivíduos que
encontravam-se em situação de cativeiro.
A importância da constatação da presença indígena integrada no cotidiano
familiar da Capitania do Maranhão em pleno século XVIII possui importantes
desdobramentos quanto a reformulação de uma historiografia que destacou a participação
indígena apenas nos anos iniciais da colonização, especialmente como mão de obra que
81
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
82
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
83
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
84
Livro de registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinarem em cada Junta de Missões
na cidade de São Luís do Maranhão. (1738–1777).
logo viria a ser substituída pela inaptidão ao trabalho da lavoura, tornando-os menos
produtivos do que os escravos vindos da África.85
Os estudos sobre a temática das famílias escravas revisitaram as análises
clássicas sobre o tema, como as conclusões de Caio Prado Júnior (1942), para quem a
instabilidade familiar, o desregramento e a promiscuidade associados a escravidão seriam
características marcantes de toda a sociedade colonial, incluindo as famílias de elites. No
entanto, os estudos que se desenvolveram, principalmente a partir da década de oitenta,
apontaram na direção contrária ao que havia sido construído, revelando a existência de
organizações familiares escravas estáveis e complexas (FARIA, 2001, MATTOS, 2015,
SLENES, 1998).
No entanto, a abordagem renovada da História social da escravidão
desenvolveu-se marcadamente sob a organização familiar escrava africana,
especialmente pelos avanços da pesquisa histórica da África pré-colonial que rapidamente
foi incorporada pela historiografia sob o Brasil, construindo novos sentidos para o período
colonial (MATTOS, 2015, p.83).
Deste modo, os debates historiográficos recentes passaram a discutir quanto da
cultura africana estaria presente no cotidiano de homens e mulheres da África tornado
escravos na América. Esta nova inversão contribuiu para o questionamento da
interpretação que considerou, por décadas, a aculturação e ocidentalização destes
indivíduos, cuja herança africana teria sobrevivido apenas em alguns resquícios de
costumes, como comida, música e expressões (FARIA, 2001: FARIA, 2007: LARA,
2007: LEWKOWICKZ, 1989: MATTOSO, 1982: MATTOS; RIOS, 2005).
No tocante aos estudos sobre organização familiar indígena em indivíduos
submetidos a cativeiro, estes ainda carecem de maior desenvolvimento. Dentre os
trabalhos que se propuseram a analisar esta temática, destaca-se a tese de doutorado
apresentada em 2003, na Universidade de Campinas, sob o título “Gentios Brasílicos.
Índios coloniais em Minas Gerais Setecentista” de autoria de Maria Leônia Chaves de
Resende, que abrangeu a trajetória dos indígenas e seus descendentes nas Vilas e
Lugarejos de Minas Gerais no século XVIII, destacando os arranjos familiares entre estes
85
O destaque aos indígenas nos anos iniciais da colonização, para logo depois serem silenciados, tem suas
origens em uma narrativa histórica que buscava conferir suporte a identidade nacional. Para Vanrhagem,
que publicou, de 1854 a 1857, a obra História Geral do Brasil, o africano havia provado melhor resistência
ao extenuante trabalho da lavoura de açúcar do que o indígena (MATTOS, 2015). Sobre isto, ver Stuart B.
Schwartz, “Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 1550-1835.
sujeitos, seja com o casamento aceito pela Igreja ou concubinato, seja entre indivíduos
que partilhavam da mesma situação jurídica ou não.
O distanciamento apressado entre a organização familiar que se reconstruía na
Colônia e sua herança indígena remete à herança historiográfica do século XIX que ao
lançar o olhar sobre as fontes do período colonial, buscava construir uma identidade
nacional afastada das origens indígenas e próxima à europeia. Deste modo, a narrativa
que considerou o primitivismo dos sistemas econômicos indígenas, a fragilidade de sua
política e o aspecto bizarro dos seus costumes, destacado principalmente pelo ritual
antropofágico, teriam sido mais do que suficientes para comprovar a pouca importância
dos indígenas para a História do Brasil (OLIVEIRA, 2015).
No entanto, os novos olhares sobre estas fontes ensejam novas interpretações
que perpassam a ideia de dizimação das sociedades nativas, estendendo sua análise para
a capacidade adaptativa dos indígenas que também reconstruíram organizações familiares
no período colonial. Assim, o próprio conceito de resistência foi reformulado, afastando-
se da ideia de uma tradição milenar congelada no tempo ou pensada apenas em termos de
revoltas. As consequências destas análises deixaram aos nativos apenas dois papeis
antagônicos e generalizantes: vítimas da aniquilação ou mártires da conservação da sua
cultura. Porém, em ambos os casos, o resultado que se apresentou foi um silencioso e
heroico desaparecimento (POMPA, 2003, p. 22).
Assim, voltando novamente aos episódios relatados nas atas de reunião das
Juntas das Missões, em que organizações familiares formadas por mãe e filhos, irmãos,
marido e mulher buscavam auxílio do próprio aparelho repressor para manter uma
unidade familiar contribuem para a desconstrução da problemática que sempre
considerou os indígenas como exteriores e radicalmente opostos a sociedade colonial
fortalecendo a imagem do índio isolado puro (MONTEIRO, 1999, p.241).
Desta forma, através destes fragmentos documentais é possível identificar e
interpretar os processos que marcaram as experiências indígenas das populações do
passado, repensando como os sujeitos nativos, expulsos de suas terras e escravizados em
guerras justas e resgates passaram a viver na Capitania do Maranhão e como se
posicionaram em relação a nova ordem que estava sendo construída.
Nos casos relatados na Junta das Missões, os sujeitos buscavam uma justificativa
para assegurar a própria liberdade e a dos seus familiares através da reivindicação de uma
herança indígena, especificamente do lado materno ou de outros elementos como
pertencimento a uma determinada “nação” ou aldeamento, estabelecendo maiores
espaços para contestar o cativeiro em que se encontravam, além de buscarem garantir a
manutenção da unidade familiar a partir do requerimento coletivo que apresentavam
perante o tribunal da Junta das Missões.
Por isto, não é sem razão que a identificação de uma herança indígena se faz tão
marcante nos pedidos de liberdade registrados nas atas de reunião da Junta das Missões,
pois a necessidade de se fazer-se reconhecido como indígena ou descendente era
pressuposto para uma possível liberdade, caso vencessem os demais obstáculos
conhecidos como lentidão para execução das leis e os numerosos recursos que se faziam
presentes, como o caso da índia Tereza e seus filhos da “nação Guanaré”, cuja decisão de
ser retirada da casa de Francisco Serejo pareceu não ter sido efetivamente cumprida, tendo
sido delegado para outra instância, neste caso específico, o juiz das liberdades.
No entanto, contrariamente ao relatado no caso acima, algumas decisões
favoráveis aos indígenas se faziam rapidamente, sem a necessidade de ser revista em outra
reunião da Junta, como no caso do requerimento do índio Caetano pedindo a liberdade da
sua mulher Maria, cuja liberdade foi concedida sem demora a partir do acordo entre as
partes, no qual sujeitava-se recompensar o antigo possuidor da indígena pela perda
acarretada com a sua liberdade.
Em outro momento, seja no pedido de liberdade do índio Anacleto e seus irmãos
ou da índia Perpétua e seus filhos, verifica-se a defesa de uma descendência indígena do
lado materno que se apresentava livre do cativeiro. Tal condição era essencial para o
pleito da liberdade, pois conforme explica Moreira (2018, p.46):
86
No mundo Lusitano, as ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas de 1446, 1521 e 1603 não fizeram
referência a famílias de escravos. A proteção legal destas famílias só passou a existir no Brasil em 1869.
(RUSSELL-WOOD, 2005, p. 250-251).
87
Tribunal de Justiça do Maranhão. Testamentos Maranhenses: história e legados. (1751-1756).
Coordenaria da Biblioteca. São Luís, 2015.
“cafuzo forro” de nome Inácio, juntamente com sua filha. Além disso, o mesmo declarava
a alforria de uma “mameluca já de idade” chamada Severina. No entanto a condição da
alforria seria de que esta não se cassasse com nenhum escravo da sua fazenda ou de
alguma outra fazenda. O mesmo ainda concedeu alforria de “dois mamelucos”, filhos de
suas escravas. No entanto, estes deveriam permanecer na fazenda por “saberem
escrever”.88
No testamento de João Morais Lobo, de 1742, este declarava possuir em sua
fazenda o escravo Salvador e sua mulher Eugênia, juntamente com seus dois filhos
Ignácio e Mariana que era casada com Silvestre, um “gentio da terra”. Já em 1748, no
testamento de Paulina da Silva, esta revelava possuir uma mameluca Roza com três filhos
e como última vontade, a escrava poderia escolher a pessoa a quem serviria, juntamente
com seus filhos.89
Nos testamentos apresentados acima, podemos considerar alguns aspectos. O
primeiro consiste em considerar a coexistência de diversos modelos de organização
familiar que conferiam aos indivíduos estabilidade ou movimento, além de influenciar
diretamente no status e classificação social (FARIA, 1998).
O segundo ponto corresponde ao estabelecimento de uma rede de parentesco
motivada pela concessão de alforrias, pois segundo Russel- Wood (2005, p.268), ao
referir-se ao papel da liberdade em famílias escravas africana depreendeu que:
88
Tribunal de Justiça do Maranhão. Testamentos Maranhenses: história e legados. (1751-1756).
Coordenaria da Biblioteca. São Luís, 2015.
89
Tribunal de Justiça do Maranhão. Testamentos Maranhenses: história e legados. (1751-1756).
Coordenaria da Biblioteca. São Luís, 2015.
família tinham maior probabilidade de serem mais produtivos do que os escravos solteiros
e sem obrigações familiares (RUSSELL-WOOD, 2005, p.250). Tal compreensão pode
ser considerado nos testamentos acima em que na maioria das vezes, a unidade familiar
era mantida, mesmo em casos de doação ou compra.
Por último, a análise de tais documentos vislumbra a possibilidade de observar
os comportamentos dos indivíduos considerados “mestiços” que passaram a experimentar
uma nova experiência diferente dos seus antepassados, reelaborando novos padrões a
partir de sua leitura de mundo. Isto permite estabelecer uma releitura de como os nativos
criaram e reconstruíram um novo espaço pautado na rearticulação de identidades,
contemplando tanto as formas pré-coloniais quanto as estruturas coloniais, pois um
quadro comum na construção historiográfica, da qual a mestiçagem sempre ocupou um
lugar considerável, foi o distanciamento apressado entre o mestiço e suas origens
indígenas (MONTEIRO, 1999, p.251).
Os estudos sobre etnogênese, etnificação e mestiçagens, ampliaram a discussão
das populações nativas no período colonial. De acordo com John Monteiro (2007), a
capacidade adaptativa dos nativos gerou no período colonial o surgimento de novas
categorias sociais, sobretudo destacadas por seus marcadores étnicos genéricos tais como
“carijós”, “tapuios” ou, no limite “índios”. Esta categorização trouxe diversos espaços de
ação tanto para os que definiam as categorias étnicas em uma clara estratégia colonial de
controle dos indivíduos presentes na sociedade colonial quanto para os nativos que
tomaram a classificação étnica como referência para estabelecer seus meios de ação no
cotidiano colonial, pois:
[...] a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas
como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a
sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de
estratégias geralmente enfeixadas num dos polos do inadequado binômio
acomodação/ resistência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Biblioteca Nacional
Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de obras e raras e publicações.
Livro Grosso do Estado do Maranhão. Vols. 66 e 67.
D’EVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614. Disponível
em: <https://catalog.hathitrust.org/Record/100366175>. Acesso em 20.07.2019.
2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Alírio Carvalho. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos
e conflitos no antigo Estado do Maranhão (1607-1653). 2002. Dissertação de mestrado
apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
CUNHA, Ana Paula Macedo. Engenhos e engenhocas: atividade açucareira no Estado
do Maranhão e Grão-Pará (1706-1750). 2009.110f. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém.
LIMA, Alam José da Silva. Do “dinheiro da terra” ao “bom dinheiro”: moeda natural
e moeda metálica na Amazônia colonial (1706-1750). 2006. 225 f. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Belém, 2006. Programa de Pós-Graduação em História Social na Amazônia.
MELO, Vanice Siqueira de. Cruentas Guerras: índios e portugueses nos sertões do
Maranhão e Piauí (primeira metade do século XVIII). 2011.156f. Dissertação (mestrado)
- Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém.
MOTA, Antônia da Silva. Família e Fortuna no Maranhão Colonial. São Luís: EDUFMA,
2006.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MELLO, Márcia Eliane Alves de Souza e. As Juntas das Missões Ultramarinas na
América Portuguesa (1681-1757). In: Anais da V Jornada Setecentista: Curitiba, 2003.
p.397. Disponível em <http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/As-
Juntas-das-Miss%C3%B5es-Ultramarinas-na-Am%C3%A9rica-Portuguesa-1681-1757-
Marcia-Eliane-Alves-de-Souza-e-Mello.pdf>Acesso em 14.06.2018.
__________. “Uma Junta para as missões do Reino”. In: Promontoria. Faro, Universi-
dade do Algarve, n°4, 2006. Disponível em <
https://sapientia.ualg.pt/bitstream/10400.1/7145/1/PROM04_pp291-318.pdf>Acesso em
14.06.2018.
MONTEIRO, John Manuel. O escravo índio, esse desconhecido. IN: Luís Donisete Benzi
Grupioni (org.). Índios no Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994,
p. 105-120.
__________. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
__________. Armas e Armadilhas: História e resistência dos índios. In: Novaes, Adauto
(org) A outra Margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.237-256.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Os indígenas nas Formação da Colônia: uma abordagem
crítica. In FRAGOSO, João Luís Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima (org). O Brasil
Colonial: volume 1 (1443-1580). 2ª Ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015,
p.167-203.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Legislação Indigenista Colonial. Inventário e Índice.
1990. 238f. Dissertação (mestrado) –Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da
legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.
115-132.
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos. Índios Coloniais em Minas
Gerais Setecentista. 2003. 387f. Dissertação (Doutorado em História) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas.
SLENES, W Robert; FARIA, Sheila de Castro. Família Escrava e Trabalho. Tempo, vol.3
– nº
06, Dezembro de 1998. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-4.pdf>. Acesso em 10.10.2019.