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uma missão nacional não era apenas uma decisão interna, livre de qualquer
constrangimento externo. Apesar da relutância de determinados sectores, em
ambos os regimes, em aceitar plenamente as regras do jogo imperial-missio-
nário, as suas decisões legislativas ou administrativas acabavam por deparar-se
com elas.
A legalidade das convenções internacionais sobre liberdade missionária foi
sempre entendida pelos portugueses como um sustentáculo das acções contrá-
rias à sua soberania, pela omnipresente possibilidade de se recorrer a elas para
alegar qualquer falha da sua administração colonial, em relação à livre actuação
dos missionários estrangeiros. As tentativas das autoridades portuguesas em
controlarem a actividade destes mostraram-se sempre difíceis. Mesmo que a
Lei de Separação tivesse, através do artigo 190.º, deixado expressa a intenção
de reduzir o mais possível a presença de missões estrangeiras, desde cedo
transpareceu que uma expulsão, vista como ideal, era simplesmente ilusória.
As garantias dadas pelos membros do Governo Provisório aos representantes
americanos e britânicos das sociedades missionárias protestantes, não obstante
serem mais consequência de uma evidente atitude de cordialidade e necessidade
diplomáticas do que uma real boa-vontade, teriam de ser levadas em conta.
As concessões feitas aos missionários escoceses em 1912 demonstram essa
condescendência portuguesa.
Apesar de a República ter procurado esvaziar o carácter “católico” da mis-
sionação no império, a desconfiança em relação aos protestantes manteve-se,
por se recear a perda de influência junto das populações africanas, pois aqueles
eram vistos como corporizando os perigos que pairavam sobre a integridade
imperial. A memória desta suposta aliança tinha uma linha genealógica que
remontava à disputa em torno do Congo (anos de 1870 e 1880), continuando
por momentos como a guerra em Moçambique (1895). No período republicano,
essa tese era comprovada pela Revolta do Congo de 1913. A sua durabilidade
seria demonstrada meio século depois desta, quando deflagrou a guerra em
Angola, em 1961, e se levantaram acusações contra os missionários protestan-
tes, em moldes semelhantes aos enunciados neste trabalho: o missionário pro-
testante era encarado como estando contra o domínio colonial português, sendo
um agente activo contra a sua continuidade.
Outra questão que ocupou um lugar central neste livro foi a questão con-
greganista, que longe de ser exclusiva da Monarquia, colocou debates seme-
lhantes aos governantes republicanos, que, como explicámos, continuaram essa
“política condescendente”, mais por causa dos inconvenientes que a sua expul-
são provocava no projecto colonial português e na sua política missionária, do
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primeiro pela saída de alguns regulares dos seus postos missionários e depois
com a diminuição da ajuda financeira. Mas a realidade colonial exigiu, desde
logo, uma posição diferenciada por parte das autoridades republicanas em
Lisboa. Durante a República, o debate sobre a atitude a respeito das missões
religiosas circundou em redor de três premissas essenciais: o carácter naciona-
lizador da acção missionária religiosa de matriz portuguesa, a sua necessidade
enquanto opositor aos efeitos desnacionalizadores das missões estrangeiras
(católicas e protestantes) e a política missionária das principais potências colo-
nizadoras como exemplo demonstrativo da utilidade das missões religiosas.
O estudo sobre a questão religiosa no Portugal contemporâneo, em parti-
cular na República, período envolto em numerosas polémicas mais de cariz
ideológico do que de discussão científica, não pode continuar com um discurso
generalista de perfil estritamente metropolitano, sem ter em conta que as exi-
gências particulares do império fragilizam esse tipo de argumentário simplista.
Para se falar da questão religiosa, não se pode esquecer que em Portugal, esse
processo histórico decorreu em contextos com dinâmicas e expectativas dife-
rentes: a metrópole e o império. A realidade da primeira não auxilia a compre-
ender as particularidades do segundo. Por exemplo, a documentação consultada,
nomeadamente, nos arquivos romanos e no Arquivo Histórico-Diplomático,
onde se incluí correspondência trocada entre a Nunciatura, religiosos portu-
gueses e a Secretaria de Estado pontifícia, ajudou a reformular alguns dos
raciocínios tradicionais sobre esta delicada e conflituosa problemática na Repú-
blica. Isto, aliás, revela a importância fulcral de uma investigação histórica
baseada nas fontes documentais hoje já disponíveis, daí o recurso recorrente a
arquivos que se entendeu serem indispensáveis para o estudo da missão no
império, no país e no estrangeiro.
A missão tem de ser compreendida a partir da interacção das diferentes
dimensões que a constituem e dos diferentes actores que nela participaram. Foi
nesse sentido que se sublinhou a dimensão romana, a dimensão protestante, a
dimensão internacional e a inevitável dimensão nacional, na dupla acepção
metropolitana e ultramarina. O estudo da missão inclui-se na interrelação des-
tas dimensões. Também a participação dos agentes é crucial para perceber a
complexidade e explorar as visões multidireccionais que o tema exige. Não
podemos esquecer que cada um dos actores referidos e examinados neste tra-
balho apresentavam concepções por vezes convergentes, outras divergentes,
sobre o papel da missão.
A Missão da República: política, religião e o império colonial português
(1910-1926) procurou inserir o estudo do processo missionário na história do
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