Você está na página 1de 6

Conclusão

A Missão da República teve como principal objectivo problematizar as


relações entre Estado e religião no período republicano na sua dimensão ultra-
marina, normalmente apartada dos estudos sobre a temática da República em
Portugal. A análise da questão missionária é também parte da complexa ques-
tão religiosa que marcou o relacionamento entre as esferas do político e do
religioso no país entre finais do século XIX e inícios do século XX. As espe-
cificidades existentes em qualquer processo missionário, face à realidade da
metrópole, não justificam que o mesmo não possa ser integrado num estudo
sobre a religião no Portugal contemporâneo, até porque as suas vicissitudes,
mesmo de âmbito estritamente metropolitano, podem ser melhor compreendi-
das tendo em conta esse quadro mais alargado. Sendo a missão uma componente
incontornável da questão religiosa da República, era imprescindível um traba-
lho que integrasse a primeira na segunda.
O estudo da política missionária em Portugal durante a República deve
abranger o longo período de emergência e consolidação das estratégias colo-
nizadoras das potências europeias, porque a missão foi um dos elementos estru-
turantes dessa expansão. Nesse sentido, houve a preocupação de apresentar o
contexto, nomeadamente o internacional, de onde saíram alguns dos pressu-
postos que marcaram a definição dessa política missionária. A realidade com
que os republicanos se depararam quando decidiram elaborar a sua política de
missão era a mesma com que os monárquicos haviam lidado. O projecto para

189

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 189 15/01/29 23:31


A MISSÃO DA REPÚBLICA

uma missão nacional não era apenas uma decisão interna, livre de qualquer
constrangimento externo. Apesar da relutância de determinados sectores, em
ambos os regimes, em aceitar plenamente as regras do jogo imperial-missio-
nário, as suas decisões legislativas ou administrativas acabavam por deparar-se
com elas.
A legalidade das convenções internacionais sobre liberdade missionária foi
sempre entendida pelos portugueses como um sustentáculo das acções contrá-
rias à sua soberania, pela omnipresente possibilidade de se recorrer a elas para
alegar qualquer falha da sua administração colonial, em relação à livre actuação
dos missionários estrangeiros. As tentativas das autoridades portuguesas em
controlarem a actividade destes mostraram-se sempre difíceis. Mesmo que a
Lei de Separação tivesse, através do artigo 190.º, deixado expressa a intenção
de reduzir o mais possível a presença de missões estrangeiras, desde cedo
transpareceu que uma expulsão, vista como ideal, era simplesmente ilusória.
As garantias dadas pelos membros do Governo Provisório aos representantes
americanos e britânicos das sociedades missionárias protestantes, não obstante
serem mais consequência de uma evidente atitude de cordialidade e necessidade
diplomáticas do que uma real boa-vontade, teriam de ser levadas em conta.
As concessões feitas aos missionários escoceses em 1912 demonstram essa
condescendência portuguesa.
Apesar de a República ter procurado esvaziar o carácter “católico” da mis-
sionação no império, a desconfiança em relação aos protestantes manteve-se,
por se recear a perda de influência junto das populações africanas, pois aqueles
eram vistos como corporizando os perigos que pairavam sobre a integridade
imperial. A memória desta suposta aliança tinha uma linha genealógica que
remontava à disputa em torno do Congo (anos de 1870 e 1880), continuando
por momentos como a guerra em Moçambique (1895). No período republicano,
essa tese era comprovada pela Revolta do Congo de 1913. A sua durabilidade
seria demonstrada meio século depois desta, quando deflagrou a guerra em
Angola, em 1961, e se levantaram acusações contra os missionários protestan-
tes, em moldes semelhantes aos enunciados neste trabalho: o missionário pro-
testante era encarado como estando contra o domínio colonial português, sendo
um agente activo contra a sua continuidade.
Outra questão que ocupou um lugar central neste livro foi a questão con-
greganista, que longe de ser exclusiva da Monarquia, colocou debates seme-
lhantes aos governantes republicanos, que, como explicámos, continuaram essa
“política condescendente”, mais por causa dos inconvenientes que a sua expul-
são provocava no projecto colonial português e na sua política missionária, do

190

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 190 15/01/29 23:31


CONCLUSÃO

que por vontade de aceitarem a permanência dos regulares. A expulsão dos


jesuítas, inquestionável para o Governo Provisório, era parte da estratégia ide-
ológica republicana para o país, mas a complexidade em torno do processo,
culminando na aceitação de uma nova congregação religiosa, resultava de
factores só explicados pela dimensão internacional da questão missionária.
A entrada de novos religiosos estrangeiros, comunicada aos representantes
estrangeiros em Portugal no dia seguinte à publicação da Lei de Separação, é
um dos exemplos iniciais das ambiguidades da República na elaboração da sua
política missionária, mesmo que Bernardino Machado não dissesse que se
tratava de membros de uma congregação religiosa. A anuência do Governo
Provisório aos missionários germânicos corrói a imagem de um anticongrega-
nismo agressivo dos republicanos e as teses que procuram comprovar esse
imaginário. Ao ler-se o Decreto de 8 de Outubro de 1910 e o artigo 190.º do
texto de 20 de Abril de 1911, a decisão do governo em aceitar os congreganis-
tas era plenamente ilegal, contradizendo a ideia de uma missionação de feição
nacionalizadora, que caso tivesse de ser religiosa, ou seja, católica, deveria ser
do clero secular.
Aliás, o sonho do poder político português de poder contar apenas com
uma missionação católica de matriz secular, entendida como melhor posicio-
nada para se submeter inteiramente às regras do Padroado, e consequentemente
do Estado, acompanhou todo o processo de construção de uma política de
missão para África na época contemporânea. Aquilo que fundamentava os
projectos das décadas de 1880 e 1890 (como expresso no famoso discurso de
António Barroso na Sociedade de Geografia de Lisboa[293]), nunca deixou de
ser um objectivo perseguido pelos governos nacionais e pela Igreja portuguesa.
Quando em 1926, o Concílio Plenário Português alinhavou os princípios de
uma Sociedade Missionária Portuguesa, não estava a traçar uma nova estraté-
gia missionária, estava a concretizar um antigo desejo.
A problemática da relação entre Estado e Igreja foi, inevitavelmente, um
dos pontos debatidos de forma transversal neste estudo. Nesse sentido, demons-
trou-se a imprescindibilidade de uma revisão historiográfica desse relaciona-
mento durante o período da I República. Aqui procurou-se analisar a sua
relação com a religião despida das condicionantes de identificação ideológica
ou de justificação sobre os benefícios ou as falhas do republicanismo português.
A necessidade de rever a asserção de um Estado laicizador que objectivamente
pretendia substituir a presença da Igreja, é provada pelo exame da continuidade

(293)  Barroso, «O Congo. Seu passado, presente e futuro», 89-153.

191

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 191 15/01/29 23:31


A MISSÃO DA REPÚBLICA

da postura maleável e permissiva das autoridades face às congregações reli-


giosas, elementos atacados pela retórica ideológica republicana.
Ficou explicada a razão que levou a República “anticongreganista” a per-
mitir a permanência de espiritanos e franciscanos nos territórios coloniais por-
tugueses, mantendo a mesma atitude que a Monarquia havia tido perante
instituições proibidas por lei, e que mais uma vez tem de ser compreendida
numa dimensão imperial e internacional. A aceitação negociada para o estabe-
lecimento de uma congregação religiosa em Moçambique, sem qualquer liga-
ção a portugueses, mostrou que a República conseguira ir mais longe do que
a conivência monárquica admitira. Obviamente que pensar a religião, e em
particular as instituições religiosas, no império é diferente de pensá-las na
metrópole.
No pós-guerra, a República acabaria por reconhecer, na prática, a validade
da função das missões católicas. A evolução dos termos, de “missões religiosas”
a “missões civilizadoras”, existente nas sucessivas normas aprovadas em 1919
mostra a intenção de minimizar os potenciais argumentos ideológicos de opo-
sição à missionação, como simples organismo de divulgação de crença, con-
trapondo-se à ideia essencial de uma missão com fins civilizacionais. O fim da
missão seria civilizar e nacionalizar.
Ora, se ficou afirmada a importância de repensar a postura das autoridades
republicanas, não é menos válido que o entendimento que se tem da actuação
da Igreja e da Santa Sé deve ser revisto. Se é facto que a Lei de Separação do
Estado das Igrejas teve uma recepção extremamente contrária nos meios pon-
tifícios, o mesmo não se pode aplicar às directivas vindas da Cúria em relação
ao Decreto N.º 233 que pretendia aplicar esse sistema ao espaço imperial. As
ordens de Merry del Val a Aloisi Masella foram claras: as missões católicas
deveriam fazer-se reconhecer pelo governo, para beneficiarem dos subsídios.
Como vimos, o diploma permitia a existência de missões no império, sem a
necessidade de se submeterem a todas as exigências aí previstas. Para Roma,
as missões deveriam ser reconhecidas como missões portuguesas. Isto contesta
a ideia simplificada da Santa Sé contra o Estado republicano. Além disso, as
declarações expectantes de vários intervenientes religiosos sobre as decisões
políticas portuguesas acerca da missão destabilizam as tradicionais relações
Estado-Igreja durante a República.
A correspondência de Masella, Alves da Cunha ou Lima Vidal mostram
que o entendimento superficial dessa historiografia não permite uma compre-
ensível análise da questão. É certo que a aplicação da legislação de cariz anti-
clerical condicionou o funcionamento da estrutura missionária ultramarina,

192

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 192 15/01/29 23:31


CONCLUSÃO

primeiro pela saída de alguns regulares dos seus postos missionários e depois
com a diminuição da ajuda financeira. Mas a realidade colonial exigiu, desde
logo, uma posição diferenciada por parte das autoridades republicanas em
Lisboa. Durante a República, o debate sobre a atitude a respeito das missões
religiosas circundou em redor de três premissas essenciais: o carácter naciona-
lizador da acção missionária religiosa de matriz portuguesa, a sua necessidade
enquanto opositor aos efeitos desnacionalizadores das missões estrangeiras
(católicas e protestantes) e a política missionária das principais potências colo-
nizadoras como exemplo demonstrativo da utilidade das missões religiosas.
O estudo sobre a questão religiosa no Portugal contemporâneo, em parti-
cular na República, período envolto em numerosas polémicas mais de cariz
ideológico do que de discussão científica, não pode continuar com um discurso
generalista de perfil estritamente metropolitano, sem ter em conta que as exi-
gências particulares do império fragilizam esse tipo de argumentário simplista.
Para se falar da questão religiosa, não se pode esquecer que em Portugal, esse
processo histórico decorreu em contextos com dinâmicas e expectativas dife-
rentes: a metrópole e o império. A realidade da primeira não auxilia a compre-
ender as particularidades do segundo. Por exemplo, a documentação consultada,
nomeadamente, nos arquivos romanos e no Arquivo Histórico-Diplomático,
onde se incluí correspondência trocada entre a Nunciatura, religiosos portu-
gueses e a Secretaria de Estado pontifícia, ajudou a reformular alguns dos
raciocínios tradicionais sobre esta delicada e conflituosa problemática na Repú-
blica. Isto, aliás, revela a importância fulcral de uma investigação histórica
baseada nas fontes documentais hoje já disponíveis, daí o recurso recorrente a
arquivos que se entendeu serem indispensáveis para o estudo da missão no
império, no país e no estrangeiro.
A missão tem de ser compreendida a partir da interacção das diferentes
dimensões que a constituem e dos diferentes actores que nela participaram. Foi
nesse sentido que se sublinhou a dimensão romana, a dimensão protestante, a
dimensão internacional e a inevitável dimensão nacional, na dupla acepção
metropolitana e ultramarina. O estudo da missão inclui-se na interrelação des-
tas dimensões. Também a participação dos agentes é crucial para perceber a
complexidade e explorar as visões multidireccionais que o tema exige. Não
podemos esquecer que cada um dos actores referidos e examinados neste tra-
balho apresentavam concepções por vezes convergentes, outras divergentes,
sobre o papel da missão.
A Missão da República: política, religião e o império colonial português
(1910-1926) procurou inserir o estudo do processo missionário na história do

193

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 193 15/01/29 23:31


A MISSÃO DA REPÚBLICA

período republicano em Portugal, analisando e aprofundando os níveis de inte-


racção entre diferentes actores, sublinhando a complexidade e as visões mul-
tidireccionais que o tema implica, recusando uma explicação facilitista e
unidireccional da missão na República.

194

A MISSAO DA REPUBLICA.indd 194 15/01/29 23:31

Você também pode gostar