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A Inquisição Portuguesa nasceu no coração do Renascimento português (MARCOCCI e PAIVA,

2013) em 1536 e terminaria apenas em 1821, aquando a revolução liberal portuguesa. Criada
pelo papa, no século XIII, reformada e reconstituída uniformemente, o Santo Ofício marcou
profundamente a vivência na cidade de Coimbra na Época Moderna. Este tribunal eclesiástico
fazia parte da constelação de poderes judiciais que coexistiram durante o Antigo Regime e
contava com o apoio da Coroa e o trabalho acirrado de bispos e inquisidores, que permitiram a
sua solidez e infabilidade.

A Inquisição esteve firmada e alicerçada em todo o país, inclusivamente nos territórios


ultramarinos, penetrando a consciência e a sociabilidade dos indivíduos. Em Coimbra, o
primeiro auto da fé foi em 5 de outubro de 1567, com a presença do bispo D. Frei João Soares.
Foram abertos 10 388 processos, num total nacional de 45 317. Nesta cidade, a maior parte
dos punidos eram cristãos-novos (8653), acusados de “judaizar a população. Destaca-se ainda
a ocultação ou perturbação do trabalho da Inquisição (393). Para além destes crimes,
islamizantes, luteranos, calvinistas, feiticeiros, bruxas, bígamos, aqueles que atentavam contra
o valor sagrado do matrimónio ou os dogmas da Igreja, eram sujeitos à intervenção da
Inquisição.

O auto da fé era o ritual supremo da Inquisição, personificando a santidade e o zelo do


Tribunal. Destinava-se à leitura das sentenças e à reconciliação da Igreja com os penitenciados
considerados arrependidos, através do relaxamento do réu à justiça secular, isto é, aos oficiais
do rei que lhe aplicavam a pena prevista na lei que era, para hereges e apóstatas, a morte pelo
fogo.

Em Coimbra, este acontecimento de purgação comunitária acontecia na Praça do Comércio,


mais tarde na Igreja de Santa Cruz até 1691, recolhendo-se para o Pátio de São Miguel quando
as ideias iluministas proliferavam pela Europa e condenavam veementemente estas ações.

Os autos em Coimbra e no resto do país celebravam-se ao domingo e eram revestidos de


grande teatralidade e encenação. Começavam sempre com uma procissão com o corpo
inquisitorial no fim. A separá-los dos penitentes um conjunto de familiares montados a cavalo,
o meirinho da Inquisição com a sua vara alçada, os notários, o promotor, deputados e
inquisidores em cima de mulas. Se o inquisidor-geral estivesse presente, seguia no fecho,
montado num cavalo branco.

Os penitentes iam descalços, com uma vela na mão, vestidos com casacos negros sem mangas.
Sobre os casacos endossavam os sambenitos de linho amarelo, nos quais, dependendo do
estatuto de cada um, podia haver cruzes pintadas a vermelho, diabos, chamas de fogo e nos
relaxados, a sua própria imagem mandada executar por pintores dias antes.

Os penitentes desfilavam acompanhados por familiares, numa hierarquia que respeitava a


gravidade do caso. Homens e mulheres iam separados e os primeiros eram os absolvidos,
seguidos dos que pecaram levemente. Depois vinha o capelão do cárcere da penitência da
Inquisição com um crucifixo, acompanhado por familiares ou clérigos com tochas acesas, para
iluminar o grupo seguinte: os relaxados, acompanhados por jesuítas e padres.

De seguida, o auto continuava no cadafalso, grande estrutura de madeira que podia comportar
até 300 pessoas. A cerimónia prosseguia com um sermão, marcado por linguagem ríspida e
ofensiva, atacando visceralmente os cristãos-novos e exaltando a importância do Santo Ofício
na manutenção da ordem cristã. Após o sermão, que podia durar entre 30 minutos e 1 hora,
um padre subia ao púlpito para ler o édito da fé e iniciar a leitura individual das sentenças.
Era aqui que se atingia o pico da cerimónia e do espetáculo. O Santo Ofício congratulava-se
com o sucesso da sua ação pacificadora de almas; para os réus, o sentimento era amargo,
marcado pela vergonha e arrependimento. Após a leitura das sentenças dos réus
reconciliados, era-lhes absolvida a excomunhão pelo inquisidor mais velho.

De seguida, era a vez dos relaxados. Confiados à justiça secular, retiravam-se do estrado,
depois de acorrentados e esperavam a aplicação da pena de morte. Em Coimbra, a execução
dava-se próximo da ponte de Santa Clara, em barracas de madeira erguidas nos areais do rio
Mondego.

Após a sua morte, existiam mecanismos de relembrar a sua memória: através de listas com os
nomes, crimes e penas dos condenados. Eram-lhe também retirados os sambenitos e
pendurados no interior das igrejas.

Por fim, pode concluir-se que a Inquisição, enquanto ritual de punição, era também uma
cerimónia marcada pela teatralidade e simbolismo. A comunidade via este acontecimento com
êxtase e no fim sentia-se imaculada, pois o Santo Ofício havia punido aqueles que
transgrediam os dogmas cristãos. Para além disso, os sermões, as procissões, a violência das
punições e a disposição dos nomes e crimes nas igrejas, tinham a função de dissuadir a
comunidade de praticar tais heresias e confirmar o poder supremo de Deus.

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