Comissão de Ritualística e Desenvolvimento de Estudos e Pesquisas Maçônicas GOB-SP – Oriente de Sorocaba – ARLS Cavaleiros da Luz, 4048
A QUINTA-FEIRA DE ENDOENÇAS NO SÉCULO XVII
Nelson Veríssimo - 14 abr. 2022
Este artigo foi escrito em português de Portugal.
“Quinta-feira de Endoenças” assim era antigamente denominada a Quin-
ta-feira da Semana Santa ou da Paixão, também conhecida por Quinta-feira Maior, primeiro dia do Tríduo Pascal e celebração assina- lada do calendário católico em memória da Última Ceia.
A palavra “endoenças”, de raiz latina, pretende, neste contexto, significar
um dia de bondade, moderação ou complacência.
Nos séculos XVII e XVIII, a Misericórdia do Funchal, na Ilha da Madeira, or-
ganizou, nesta cidade, a famosa Procissão das Endoenças. Pelo compromisso da Irmandade funchalense, aprovado por Fili- pe IV, em 22 de março de 1631, ficamos a conhecer os seus ob- jectivos, composição e organização. Pretendia-se, em primeiro lugar, a realização de um acto de penitência e de visita a algumas igrejas e se- pulcros, onde se procedia à ado- ração do Santíssimo Sacramen- to. Constituía obrigação estatu- tária dos irmãos a presença nes- ta procissão, que saía da Capela da Misericórdia pelas quatro horas da tarde da Quinta-feira de Endoenças e prolongava-se até à noite. Afirmava-se ainda que esta procissão poderia contribuir para a conversão dos estrangeiros não católicos que se en- contravam no Funchal.
A procissão abria com a bandeira da Irmandade, rodeada de seis tocheiros
e quatro lanternas, um homem vestido de azul tocando a tabuleta e dois clérigos cantando a ladainha.
Seguiam-se as 11 bandeiras das insígnias, ladeadas por tocheiros. Atrás da
última bandeira, ia a imagem de Cristo em tamanho natural, debaixo de um pá- lio de oito varas e de veludo negro, acompanhada de 24 tochas, igual número de lanternas e a mesma quantidade de tocheiros, capelães e demais padres.
Logo depois figurava o
provedor da Misericórdia, ho- mem nobre e de prestígio no conselho. Entre a primeira e a última bandeira, em filas late- rais, colocavam-se todos quan- tos pretendiam integrar o cor- tejo, fornecendo-lhes a Irmandade a respectiva cera. Os irmãos sem tarefas es- peciais na procissão, deviam também participar com as suas vestes e círios, mas sem se misturarem com os demais. A Misericórdia providenciava ainda alguns mantimentos e vinho para os penitentes, distribuídos durante a procissão. Pela cidade, fazia também acender alguns fogaréus a fim de iluminar o longo trajecto do cortejo processional, que constituía momento grande dos rituais da Paixão, no Funchal.
Na “Quinta-feira de Endoenças”, levantavam-se, em quase todas as igre-
jas, armações ou tabernáculos nos altares secundários ou capelas late- rais, para deposição do Santíssimo Sacramento e, por vezes, recriação do cenário da Última Ceia. Improvi- savam-se igualmente sepulcros.
Para a Sé do Funchal foi cons-
truído, nos meados do século XVII, por iniciativa da Confraria do Santíssimo Sa- cramento, um artístico camarim com uma Ceia do Senhor da autoria do imaginá- rio Manuel Pereira, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal.
Na Visitação de 1638 à freguesia
de Ponta Delgada, o cónego Francisco de Aguiar recomendou que a adoração do Santíssimo se fizesse sem conver- sas, nem outras perturbações, e que os fiéis não dormissem “debaixo do sepulcro”.
De facto, já na quinta-feira se armava o “Santo Sepulcro”, onde, no dia se-
guinte, depois da adoração da Cruz, seria depositado o crucifixo ou o corpo reti- rado da cruz, envolto num lençol branco. Estas encenações, bem como as res- peitantes à Ressurreição, constituíam os denominados “Mistérios” da Páscoa.
De registar, por fim, as flagelações com açoites que ocorriam no interior
de algumas igrejas madeirenses, durante as cerimónias litúrgicas da Quinta-feira de Endoenças. Na Freguesia de Ponta Delgada, o Visitador proibiu, em finais de julho de 1631, que os disciplinantes se açoitassem na zona do templo reservada às mu- lheres, pois o sangue atingia-as. Poderiam, no entanto, fazê-lo “abaixo delas”, desde que não virassem as costas ao Altar.
Sem o aparato e a solenidade de outrora, as procissões da Quinta e Sexta-
feira da Paixão, os camarins e a tradição da adoração continuam presentes em nossos dias. Contudo, o rito dos açoitamentos, muito comum no século XVII, (fe- lizmente) desapareceu por completo na nossa Ilha, apesar de se verificar ainda nalguns países fora do continente europeu, em especial nas Filipinas.
* In Diário de Notícias. Funchal (28 de março 1999).
** Com exceção da primeira imagem, as demais foram inseridas para faci-