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REFLEXÕES Nº 2.

099
06ABR2023

Adm: VM Edson Carlos Boni


Comissão de Ritualística e Desenvolvimento de Estudos e Pesquisas Maçônicas
GOB-SP – Oriente de Sorocaba – ARLS Cavaleiros da Luz, 4048

A QUINTA-FEIRA DE ENDOENÇAS NO SÉCULO XVII

Nelson Veríssimo - 14 abr. 2022

Este artigo foi escrito em português de Portugal.

“Quinta-feira de Endoenças” assim era antigamente denominada a Quin-


ta-feira da Semana
Santa ou da Paixão,
também conhecida
por Quinta-feira
Maior, primeiro dia
do Tríduo Pascal e
celebração assina-
lada do calendário católico em memória da Última Ceia.

A palavra “endoenças”, de raiz latina, pretende, neste contexto, significar


um dia de bondade, moderação ou complacência.

Nos séculos XVII e XVIII, a Misericórdia do Funchal, na Ilha da Madeira, or-


ganizou, nesta cidade, a famosa
Procissão das Endoenças. Pelo
compromisso da Irmandade
funchalense, aprovado por Fili-
pe IV, em 22 de março de 1631,
ficamos a conhecer os seus ob-
jectivos, composição e organização.
Pretendia-se, em primeiro lugar, a realização de um acto de penitência e
de visita a algumas igrejas e se-
pulcros, onde se procedia à ado-
ração do Santíssimo Sacramen-
to. Constituía obrigação estatu-
tária dos irmãos a presença nes-
ta procissão, que saía da Capela
da Misericórdia pelas quatro
horas da tarde da Quinta-feira
de Endoenças e prolongava-se até à noite. Afirmava-se ainda que esta procissão
poderia contribuir para a conversão dos estrangeiros não católicos que se en-
contravam no Funchal.

A procissão abria com a bandeira da Irmandade, rodeada de seis tocheiros


e quatro lanternas, um homem vestido de azul tocando a tabuleta e dois clérigos
cantando a ladainha.

Seguiam-se as 11 bandeiras das insígnias, ladeadas por tocheiros. Atrás da


última bandeira, ia a imagem de Cristo em tamanho natural, debaixo de um pá-
lio de oito varas e de veludo negro, acompanhada de 24 tochas, igual número de
lanternas e a mesma quantidade de tocheiros, capelães e demais padres.

Logo depois figurava o


provedor da Misericórdia, ho-
mem nobre e de prestígio no
conselho. Entre a primeira e a
última bandeira, em filas late-
rais, colocavam-se todos quan-
tos pretendiam integrar o cor-
tejo, fornecendo-lhes a Irmandade a respectiva cera. Os irmãos sem tarefas es-
peciais na procissão, deviam também participar com as suas vestes e círios, mas
sem se misturarem com os demais.
A Misericórdia providenciava ainda alguns mantimentos e vinho para os
penitentes, distribuídos durante a procissão. Pela cidade, fazia também acender
alguns fogaréus a fim de iluminar o longo trajecto do cortejo processional, que
constituía momento grande dos rituais da Paixão, no Funchal.

Na “Quinta-feira de Endoenças”, levantavam-se, em quase todas as igre-


jas, armações ou tabernáculos nos
altares secundários ou capelas late-
rais, para deposição do Santíssimo
Sacramento e, por vezes, recriação
do cenário da Última Ceia. Improvi-
savam-se igualmente sepulcros.

Para a Sé do Funchal foi cons-


truído, nos meados do século XVII, por iniciativa da Confraria do Santíssimo Sa-
cramento, um artístico camarim com uma Ceia do Senhor da autoria do imaginá-
rio Manuel Pereira, hoje no Museu de
Arte Sacra do Funchal.

Na Visitação de 1638 à freguesia


de Ponta Delgada, o cónego Francisco
de Aguiar recomendou que a adoração
do Santíssimo se fizesse sem conver-
sas, nem outras perturbações, e que
os fiéis não dormissem “debaixo do sepulcro”.

De facto, já na quinta-feira se armava o “Santo Sepulcro”, onde, no dia se-


guinte, depois da adoração da Cruz, seria depositado o crucifixo ou o corpo reti-
rado da cruz, envolto num lençol branco. Estas encenações, bem como as res-
peitantes à Ressurreição, constituíam os denominados “Mistérios” da Páscoa.

De registar, por fim, as flagelações com açoites que ocorriam no interior


de algumas igrejas madeirenses, durante as cerimónias litúrgicas da Quinta-feira
de Endoenças.
Na Freguesia de Ponta Delgada, o Visitador proibiu, em finais de julho de
1631, que os disciplinantes se açoitassem na zona do templo reservada às mu-
lheres, pois o sangue atingia-as. Poderiam, no entanto, fazê-lo “abaixo delas”,
desde que não virassem as costas ao Altar.

Sem o aparato e a solenidade de outrora, as procissões da Quinta e Sexta-


feira da Paixão, os camarins e a tradição da adoração continuam presentes em
nossos dias. Contudo, o rito dos açoitamentos, muito comum no século XVII, (fe-
lizmente) desapareceu por completo na nossa Ilha, apesar de se verificar ainda
nalguns países fora do continente europeu, em especial nas Filipinas.

* In Diário de Notícias. Funchal (28 de março 1999).

** Com exceção da primeira imagem, as demais foram inseridas para faci-


litar seu estudo e compreensão.

Artigo disponível em: https://www.freemason.pt/a-quinta-feira-de-


endoencas-no-seculo-
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