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Rubenilson B. Teixeira E3.

A4 – Os usos e a sedimentação do espaço urbano

E3.A4 – OS USOS E A SEDIMENTAÇÃO DO ESPAÇO


URBANO: NATAL NO SÉCULO XVIII

 Esta aula tem por objetivo demonstrar o processo de sedimentação de uma


cidade através dos usos que ocorrem no seu espaço urbano, ainda na primeira
metade do século XVIII. Embora as aglomerações urbanas do período sejam
poucas e precárias, há elementos que demonstram que elas se firmavam pouco a
pouco como centros urbanos definitivos, que vieram para ficar. O caso mais
evidente deste processo, é talvez, o da capital da capitania, a cidade do Natal. A
escolha da análise desta cidade ocorre, porém, não porque este processo de
sedimentação fosse o mais intenso da época. Há indícios que demonstram que
localidades como Assu e Extremóz eram, pelo menos em termos populacionais,
mais importantes do que Natal. No entanto, a escolha da capital ocorre em função
da disponibilidade dos dados, maior do que para as aglomerações mencionadas. A
apresentação enfatiza o aspecto religioso do uso do espaço urbano da capital
potiguar.
 Para o período analisado, os relatos disponíveis sobre os usos do espaço urbano
de Natal e de outros centros urbanos são raros. A maioria dos rituais, das
celebrações e dos costumes freqüentes são observados somente de modo
indireto, em documentos destinados a outros fins. Contudo, sua leitura nos permite
afirmar que a teatralidade religiosa no uso do espaço urbano estava
profundamente presente. É certo que uma aglomeração muito pequena não podia
se permitir espetáculos faustuosos como os de vila Rica, por exemplo, que se
encontrava em pleno desenvolvimento econômico em meados do século XVIII 1. O
testemunho do governador Maia Gama que, vindo do Maranhão, chegou em Natal
no dia 9 de abril de 1729, atesta a simplicidade da vida religiosa da capital do Rio
Grande. Referindo-se à missa, ele nos fornece, no entanto, uma idéia do que
poderiam ser as celebrações no espaço urbano da aglomeração na época:

“Assisti aos ofícios divinos da Semana Santa e Sermões, e tive


uma grande consolação de que naquela pobreza se fizesse tudo
com muita devoção e piedade, e com muita modéstia; e também
tive notícia e certeza do singular procedimento do vigário e
coadjutor e dois clérigos mais, ali assistentes; e todos, por voz geral
e comua, sem nota no seu procedimento, o que foi singularidade
para mim”2

 O governador consegue apreender bem a autenticidade da devoção local e sua


simplicidade. Seu espanto diante da pobreza das celebrações se explica pelo fato
de que ele vinha de uma região que, sem estar em florescimento nesse período,
era certamente mais desenvolvida. Ele estava, portanto, habituado ao fasto das
celebrações religiosas.

1 Germain Bazin, descrevendo as festas religiosas em Vila Rica em meados do século XVIII, concluiu
da maneira seguinte : “… nossas pobres procissões modernas do Santíssimo Sacramento são bastante
indigentes perto desta prodigiosa exibição de riquezas, feita para a glória de Deus por Vila Rica, no
tempo em que o ouro se difundia nas mãos dos pioneiros. Este 'Triunfo eucarístico', ao qual, fazendo
apelo a alegorias complicadas, caras ao clero desta época, colabora o universo inteiro, prova que, se
os brasileiros não conheceram a ópera, esta forma essencial do Barroco, pelo menos eles fizeram
profundamente uso de tais espetáculos ao ar livre : cortejos históricos, mitológicos, alegóricos e
teológicos que compraziam a época e dos quais o carnaval de hoje, conservado em Veneza e Rio,
pode apenas conferir uma pequena idéia". BAZIN, Germain. L’Architecture religieuse baroque au Brésil.
Paris : Librairie Plon,1956 pp. 16-17.
2 LEITE, Serafim. História …, Tomo V, op. cit., pp. 523-524.
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 As procissões constituem então as grandes manifestações públicas em Natal,


como em toda outra aglomeração. Eram eventos habituais, semanais, mensais ou
anuais. Tendo por cenário o espaço urbano, eles revelam o caráter teatral de sua
utilização. Podemos medir a sua importância analisando as ordens e as
recomendações freqüentes dos altos dignitários da Igreja sobre o tema. As igrejas
do Rio Grande, subordinadas desde 1676 à diocese de Olinda, recebiam
ocasionalmente representantes oficiais da Igreja, visitadores que iam às paróquias
pertencentes à diocese para realizar inspeções, cumprindo as diretivas do bispo.
Para elas se deslocavam igualmente para promover a disciplina, apresentar
recomendações, críticas ou admoestações ao pároco local e a seus fregueses. Os
registros que eles nos legaram fornecem uma idéia das principais manifestações
públicas da primeira metade do século XVIII.
 Em 1725, uma carta pastoral do bispo de Pernambuco apresenta várias
advertências contra “abusos” cometidos, alguns dos quais são passíveis de
excomunhão. Entre outras admoestações, inclusive direcionadas a padres sem
escrúpulos, o bispo declara:

“mandamos sob pena de excomunhão maior, se não façam


procissões fora de qualquer igreja ou capela sem especial licença
nossa ... quando permitirmos se façam de noite, o que serão
poucas as vezes, não vão pessoas do sexo feminino".

 A questão da participação das mulheres que, como os padres, eram as pessoas


mais vigiadas da sociedade da época, aparece em muitos documentos 3. Tais
recomendações estavam prescritas nas constituições eclesiásticas, que legislavam
sobre os mais variados aspectos da vida social, como veremos posteriormente.
 O visitador Lino Gomes Correia enuncia igualmente prescrições sobre as
procissões, em seu relatório de 27 de novembro de 1741. Ele solicita a todos
padres que se encontram na localidade às segundas-feiras para participar da
estação e procissão das Santas Almas. Eles deveriam tomar parte também das
“conferências da moral”, segundo o preceito da obediência. Eles seriam ipso facto
suspensos de suas ordens por três dias, todo mês, em caso de desobediência. O
visitador impõe obrigações semelhantes à irmandade das Santas Almas. Os
membros desta irmandade devem selecionar entre si 3 irmãos, todo mês, para
assistir à procissão que “se faz habitualmente às segundas-feiras” ou nelas se
fazer representar por outros. Nessa ocasião, eles devem carregar tochas e luzes,
para que não incorram ipso facto em excomunhão maior4. Quando de sua visita de
inspeção que teve lugar em fins dos anos 1750, o visitador Mario Soares de
Oliveira transmite várias ordens do bispo Francisco Xavier Aranha. Por exemplo,
todos os padres que não participam das estações das Almas e da conferência da
moral serão obrigados a pagar uma multa pecuniária de 2 patacas5. O dinheiro
será utilizado para a manutenção da igreja matriz. O relatório lembra a obrigação
de serem observadas as Constituições da diocese 6.
 As ordens citadas demonstram, primeiramente, que havia uma procissão semanal,
para o repouso da alma dos defuntos, a qual contava com uma irmandade que lhe
era dedicada, a das Santas Almas. Os documentos consultados revelam
igualmente o caráter legal, oficial, assim como a preocupação da Igreja em
controlar e em organizar esta procissão, cuja participação era obrigatória para os

3 Um exemplo nos é dado quando da visita pastoral do doutor visitador Lino Gomes Correia, em nome
do bispo de Pernambuco, Dom Luís de Santa Tereza. Ele ordena que nas capelas da paróquia onde
não há confessionário, os padres sejam proibidos de ouvir a confissão de mulheres, sob pena de uma
suspensão de um mês. Os padres não devem jamais confessar mulheres sem o intermédio do
confessionário, salvo os doentes em seu domicílio. O relatório foi registrado em 27 de novembro de
1741. AN. Livro de tombo, n° 1, Nossa Senhora da Apresentação, pp. 5, 13-14.
4 AN. Livro de tombo, n° 1, ibid.
5 A pataca constituía uma moeda cujo valor correspondia a 750 réis, no século XVIII. BLUTEAU, de

Raphael, op. cit., p. 313.


6 AN. Livro de tombo, n° 1, op. cit., p. 42.

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padres e para as irmandades. Todavia, a obrigação de participar nas procissões e


na missa se aplicava igualmente a toda a população, como aparece, por exemplo,
nas recomendações do prelado de Pernambuco, em sua visita de 1727. Ele afirma:

“recomendamos ao reverendo pároco e ao reverendo coadjutor


tenham especial cuidado de que à missa conventual não faltem as
pessoas que sejam obrigadas, e que regulassem neste particular
pelas disposições da Constituição, que mandamos observar”7

 O caráter inclusivo das ordens citadas aparece quanto aos senhores dos
escravos, que devem ser diligentes ...

“...do bem espiritual e temporal de seus escravos, que pelo não


serem salvos experimentem o castigo do céu, mas recomendamos
que pela alma de cada um dos escravos mandem ao menos dizer
uma missa de corpo presente, o que esperamos de sua piedade".

 O prelado lembra a necessidade de se observarem as prescrições concernentes


às pessoas que são sepultadas fora do recinto da igreja matriz. Ele acrescenta que
“não se leve coisa alguma … cova, e o mesmo se entenderá com as pessoas
miseráveis …” que eram enterradas igualmente fora da igreja. Aparentemente - o
texto é dificilmente legível - o bispo não queria que nenhuma taxa fosse imputada
neste caso.
 As instruções do visitador, e, por conseguinte da Igreja, são de um grande alcance
social. Os padres, do mesmo modo que pessoas simples, os senhores de
escravos, as irmandades, toda a sociedade é obrigada a observá-las. Em seu
esforço de englobar todos em suas prescrições, nem mesmo os escravos ficavam
isentos. As diretivas impostas às irmandades não se limitam à conduta de seus
membros nas procissões. Elas tratam de questões relativas à organização
administrativa e às finanças. No relatório de visita pastoral de 1725, citada acima, o
padre visitador lembra que os diretores das irmandades não devem ser reeleitos
várias vezes. Uma segunda nominação somente será possível sob autorização do
bispo ou quando não houver outra pessoa para ocupar esta função. No relatório de
visita pastoral de 1727, igualmente citado, o visitador fornece várias instruções
sobre as finanças das irmandades locais.
 As orientações da visita de 1727 fazem referência, como muitos outros
documentos, aliás, à Constituição. Trata-se das Constituições do Arcebispado da
Bahia,8 escritas em 1707 como resultado de um sínodo da Igreja, sob a direção de
Sebastião Monteiro de Vide, arcebispo de Bahia. O sínodo tinha por objetivo definir
o papel da Igreja católica do Brasil e de organizar a sua ação. Este documento
essencial concerne praticamente todos aspectos da vida social da sociedade
colonial. É, em poucas palavras, a visão da Igreja sobre o ideal de sociedade,
construído sobre uma concepção evidentemente cristã do mundo, segundo a
compreensão da época. Compostas de cinco tomos, as Constituições
estabeleciam normas as mais diversas. As que concernem o uso do espaço
urbano tratam da organização das procissões, as penas e multas contra os
infratores, entre inúmeras outras orientações. As prescrições relativas à forma
urbana, ainda que indiretas e menos numerosas do que as destinadas aos
comportamentos, estão igualmente presentes. É o caso da manutenção e da
ornamentação das ruas para as procissões e as festas religiosas e da localização
privilegiada das igrejas no sítio urbano. As Constituições permanecerão em vigor
durante todo o período colonial e do Império, e somente serão abolidas após o
advento da República.

7 AN.Livro de tombo, n° 1, ibid., p. 1.


8Constituições Primeiras do Arcebispadoda Bahia/ sob a direção de VIDE, D. Sebastião Monteiro da.
São Paulo : Typ. 2 de Dezembro, 1853.

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 A influência da legislação eclesiástica parece ser ainda mais importante quando


se considera que as prescrições do Estado relativas aos usos e à forma dos
espaços urbanos são geralmente muito vagas 9. Ao contrário da colonização
espanhola do Novo mundo, as compilações das leis do reino português eram
destinadas a todo o reino. Eram elas as Ordenações Afonsinas, seguidas das
Manuelinas e das Filipinas 10.
 As orientações eclesiásticas, tais quais estabelecidas nas Constituições,
possuíam um caráter normativo e deviam ser observadas. Contudo, é certo que os
fregueses e mesmo os padres nem sempre as observavam, e a Igreja teve, em
determinadas ocasiões, de se submeter à realidade dos fatos 11. A instituição em
questão possuía igualmente seus instrumentos de repressão para impor sua
vontade, dos quais o mais conhecido era o Santo Ofício da Inquisição, que
funcionou igualmente no Rio Grande do Norte, através da rede de colaboradores e
de visitadores12. A Igreja possuía, certamente, outros instrumentos de controle um
pouco menos tenebrosos sobre as almas, como a Mesa da Consciência, que
tratava e regulamentava, sobretudo, de questões de ordem religiosa. Da mesma
maneira, o vigário de vara consistia numa função eclesiástica com prerrogativas
judiciais. Ele estava autorizado, por exemplo, a impor multas àqueles que
trabalhavam no domingo e nos dias santos13. Para o período considerado, nós
reunimos muito poucas acusações de insubmissão às obrigações religiosas e
morais no Rio Grande, acusações que são, em alguns casos, motivadas por outras
intenções.
 Um outro aspecto importante ligado ao uso sagrado do espaço urbano da capital,
visível igualmente no período que nos interessa, é a significação política dos
eventos religiosos que nele ocorrem. Os oficiais da câmara e as outras autoridades
ocupavam um lugar de prestígio nas procissões do Corpus Christi, dos Passos e
da padroeira. Os “homens bons” do senado da câmara, os diretores das

9 Estas formulações foram tiradas de MARX, Murillo. Cidade no …, op. cit., pp. 54-57.
10 O nome de cada compilação faz referência ao soberano sob o reino do qual ela foi organizada. As
leis dispersas do reino português foram agrupadas pela primeira vez pelo rei D. João, em 1425. Esta
compilação foi publicada somente sob Dom Afonso, em 1446. Ela foi organizada em 5 livros, que
dispunham sobre a administração da justiça, a jurisdição da Igreja, os princípios do processo civil, penal
e de outros aspectos relativos ao campo jurídico. As Ordenações Afonsinas foram revisadas sob Dom
Manuel I. Os cinco livros foram então publicados entre 1512 e 1521. As Ordenações Manuelinas foram
por sua vez revisadas sob o rei Filipe I (II da Espanha), e publicadas, com algumas modificações, sob o
reino de seu filho, Filipe II (III de Espanha), e confirmadas sob Filipe III (IV da Espanha). As
Ordenações Filipinas constituem as Ordenações do Reino, uma espécie de Constituição do Estado que
somente será abolida em 1824, quando da primeira constituição do país independente. FLORES,
Moacyr. Dicionário de História do Brasil. Porto Alegre : EDIPUCRS, 1996, p. 374.
11 O casamento, por exemplo, instituição que sempre foi preconizada pela Igreja, exigiu da parte desta

uma grande indulgência face à realidade da colônia. As Constituições tiveram de se resignar face à
força de certos costumes, como a concubinagem associada à escravidão. As Constituições a admitem
implicitamente. VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas : deleites sexuais e linguagem erótica na
sociedade escravista. In : História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida... op. cit., pp. 235-236.
12 O Tribunal da Santa Inquisição operou de 1536 a 1810, ano de sua abolição. Os principais tipos de

“crimes” eram os contra a fé e contra a moral. Mais de 40 000 indivíduos da metrópole e do Brasil foram
presos, julgados, espancados, e viram seus bens confiscados. Quase 2 000 pereceram na fogueira. As
atividades do santo ofício eram mais visíveis nas capitanias e aglomerações mais importantes.
Entretanto, a rede de espiões e de colaboradores se estendia por todo o reino português. Somente nos
anos 1747-1780, 127 “homens bons” receberam suas cartas de Familiares e Comissários em Olinda-
Recife, para servir este ofício. Nos lugares onde eles não estavam presentes, como no Rio Grande, os
padres seculares e regulares, os missionários e os visitadores eram encarregados de comunicar a
Lisboa os nomes dos criminosos. Os membros do clero se envolviam freqüentemente em pecados
condenados pela Inquisição, do homossexualismo às relações ilícitas com as mulheres até os pecados
de bruxaria e de superstição. O autor menciona, entre outros, um caso de um padre regular, Inácio de
Jesus, cura em Assu. MOTT, Luiz. A inquisição no Ceará. Revista de Ciências Sociais, 1985/1986, vol.
16-17, n° ½, pp. 93-103. Vide também, do mesmo autor : MOTT, Luiz. Cotidiano e vivëncia religiosa :
entre a capela e o calandu. In : História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida... op. cit., pp. 155-
220.
13 Posto criado em 1676. Sua regulamentação data de 1704. O vigário era o representante do bispo em

sua diocese. FLORES, Moacyr, op. cit., p. 538.

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irmandades e os irmãos carregavam o viático, vestidos em suas roupas de


congregação, durante as manifestações públicas. Os capitães-mores eram
empossados em seus cargos no interior da igreja matriz, diante dos oficiais da
câmara. Este gesto, da mesma forma que as eleições que aconteciam igualmente
no recinto da igreja, supunham conferir a bênção de Deus ao governo e legitimar o
poder. Em todos os eventos patrióticos e cívicos, a missa, o Te-Deum e a bênção
pública do santíssimo sacramento eram uma obrigação14.
 As manifestações religiosas permitiam igualmente glorificar os soberanos, porque
delas faziam parte as celebrações profanas em sua honra. Em 1727, o príncipe D.
José casou-se com a Princesa das Asturias, D. Maria Ana Vitória de Bourbon. Os
vassalos tiveram de celebrar este acontecimento em todo o reino. O capitão-mor
Domingos de Morais Navarro, descreveu, em 10 de maio de 1729, como esta festa
foi festejada em Natal:

“celebrando nove dias sucessivos, com comédias, várias festas de


cavalo, e máscaras, e outros galanteios, com muito fogo de artifício
e salvas de artilharia, missa solenemente cantada com o senhor
exposto e procissão, iluminando-se três noites todas as casas
desta cidade ... com admirável ordem se acendeu mais de oitenta
luzes cada noite no frontispício, sendo toda esta despesa a minha
custa, causando muita alegria a estes vassalos por nunca terem
visto outra semelhante celebridade, especialmente os muitos
índios, tapuias das aldeias desta capitania ficaram admirados,
fazendo mais apreensão da real grandeza de Vossa Majestade e
finalmente da capitania de Pernambuco para as mais do norte se
aventejou esta a todos, na magnificência dos aplausos que nas
outras se fizeram”

 O capitão-mor mede os benefícios de tais celebrações político-religiosas para a


Coroa, por exemplo junto aos silvícolas, que se dão conta, assim, segundo ele, da
“grandeza de Vossa Majestade". Ele sabia que as outras capitanias tinham
recebido arrobas15 de cera para as celebrações e ele também as solicitou ao
provedor da fazenda a fim de poder iluminar sua casa durante três noites, como
um exemplo aos outros vassalos, “no que Vossa Majestade não recebe prejuízo".
No contexto do vínculo existente entre o Estado e a Igreja, as festas e as
celebrações religiosas possuíam, assim, uma significação política, a lealdade ao
poder estabelecido16.
 O fato de não respeitar as manifestações em honra dos soberanos podia ser
percebido como uma falta grave pelos próprios vassalos. O juiz de órfãos Cosme
de Medeiros Furtado escreve ao rei em 12 de setembro de 1754 para se queixar
dos abusos do capitão-mor Pedro de Albuquerque de Melo. Entre outras
acusações, ele cita o caso de um escravo que tinha cometido um delito menor e
que o capitão-mor queria prender. O juiz, confiando na palavra do capitão-mor,
mandou conduzir o escravo à prisão na véspera da festa da Aclamação e do
Coroamento de Sua Majestade, o que não impediu, contudo, Pedro de
Albuquerque de mandar ...

“... açoitar o dito escravo rigorosamente, e gritando o dito escravo


que lhe perduasse e lhe valesse Sua Majestade pelo dia de sua
Aclamação então com mais rigoridade o mandava açoitar, tornando

14 MOURA, Pedro, op. cit., p. 158.


15 Unidade de medida de peso equivalente a 14,7 kg aproximadamente.
16 Ele sabe que outros capitães-mores receberam uma gratificação para cobrir as despesas relativas à

cera, e ele requereu a mesma ajuda. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 136. No dia 23 de agosto de 1730,
o rei Dom João, por seu Conselho Ultramarino, solicita o parecer do provedor da fazenda da capitania
de Pernambuco sobre esta petição de perdão de despesas. Estas foram realizadas pelo capitão-mor do
Rio Grande sob as ordens do capitão-mor de Pernambuco. A carta está reproduzida in : ARAUJO, P.
Soares. Cartas régias sobre a capitania do Rio Grande do Norte. RIHGRN,1916, vol. XIV, n° 1 e 2,
pp. 42-43.

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o dito escravo a pedir e a gritar ... clamando o padre Francisco de


Albuquerque logo lhe mandou parar com os açoites no que todo o
povo daquela cidade ficou admirado e confuso porque gritando o
dito escravo pelo dia da Coroação e Aclamação de Vossa
Majestade lhe não valeu, e tanto que gritou pelo filho do dito
capitão-mor logo lhe foi perdoado” 17

 Como no episódio que teve lugar em 1725, implicando a prisão de um outro


escravo pelo capitão José Pereira da Fonseca, foi necessária novamente a
intervenção de um padre para pôr fim à tortura. O amor-próprio do capitão-mor
Pedro de Albuquerque de Melo, revelado através da súplica em nome de seu filho,
contribuiu igualmente para tal.
 Por ocasião das festas em honra da família real, a Coroa impunha freqüentemente
taxas e gratificações aos senados da câmara, “como presente dado
voluntariamente” pelos vassalos aos soberanos. Foi assim nas festas nupciais de
1727. Os membros do senado, escrevendo ao rei em 18 de maio de 1729,
declaram que em razão de uma grande seca, a única riqueza da capitania estava
comprometida. Por este motivo eles solicitam que sejam dispensados da
gratificação que eles deviam pagar pelo casamento da família real 18.
 As manifestações de deferência para com a família real ocorriam igualmente nos
falecimentos. Uma consulta19 do Conselho Ultramarino de 19 de julho de 1740
relata que por ocasião da morte do infante Dom Carlos, o rei havia ordenado que
se vestisse o luto na capitania de Pernambuco, seis meses de luto completo, e seis
meses de meio-luto. O governador de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira, foi
autorizado a utilizar fundos da provedoria da fazenda para comprar tecido negro
para as autoridades políticas da capitania. O capitão-mor do Rio Grande, João de
Freire Barreto e Menezes, sem dispor da referida autorização, solicitou verbas ao
secretário da provedoria da fazenda do Rio Grande para fazer despesas
semelhantes. A soma de 238 000 réis utilizada devia ser reembolsada
posteriormente pelos beneficiários do tecido. No entanto, João de Freire requereu
o perdão desta dívida. O rei solicitou o parecer do novo governador de
Pernambuco, Henrique Luís Pereira Freire, no ano seguinte, em 1739, que se
declarou contrário à dispensa. Ele assinalou que em Pernambuco se portava
freqüentemente o luto pelo falecimento de pessoas reais. Quando não havia ordem
expressa, se observava “as práticas e os estilos segundo o costume". Entretanto,
no Rio Grande não havia “nem ordem nem estilo para isso, e, portanto, o capitão
não deveria ter se metido neste assunto". Como vimos anteriormente, o Conselho
Ultramarino, mais razoável, lembrou ao rei certas dificuldades ligadas a este
reembolso20. Ao falecer em 31 de julho de 1750, o rei Dom João V também
recebeu as devidas honras na longínqua Natal 21.

17 AHU_ACL_CU_018, Cx. 6, D. 378.


18 AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 140. Uma outra carta régia, de 6 de outubro de 1732, requer, sempre
através do Conselho Ultramarino, ao governador de Pernambuco o seu parecer concernente à petição
em questão, apresentada em duas ocasiões. A carta régia menciona 6 anos de seca. Ela está
reproduzida in ARAUJO, P. Soares, Cartas régias … 1916, vol. XIV, op. cit., p. 54.
19 Este termo designava uma reunião de deliberação sobre um assunto ou um pedido de informação.

Ele designava igualmente uma decisão real, freqüentemente comunicada através de seus ministros.
BLUTEAU, de Raphael, op. cit., p. 488.
20 Uma carta de Bento Ferreira Mouzinho, provedor da fazenda ou do Tesouro real do Rio Grande,

datada de 20 de fevereiro de 1738, foi anexada à consulta do Conselho. Ao solicitar a dispensa da


dívida, o documento em questão nos permite entrever a estrutura e a hierarquia do poder na capitania
através da quantidade de tecido que devia receber cada ocupante de cargos públicos. Assim, num total
de 64 côvados, o provedor da fazenda recebeu 30 côvados; o juiz da alfândega recebeu 30; o escrivão
da fazenda, 20; o secretário da alfândega, 20; o almoxarife, 20; o tesoureiro da fazenda real e dos
dízimos, 20 côvados; o meirinho do mar e das exclusões, 12 côvados; o escrivão do senado da
câmara, 12 côvados. Aparentemente, alguns destes postos são ocupados pela mesma pessoa. O
provedor do Tesouro real de Pernambuco distribui igualmente o tecido negro para os funcionários da
Coroa na mesma ocasião. Ele lista alguns postos que são estranhos aos mencionados acima, relativos

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 Os fenômenos naturais podiam igualmente contribuir para manifestações


religiosas no espaço público. Um edital de 1757, registrado na igreja matriz sob as
ordens do muito excelente senhor Dom Francisco Xavier Aranha, bispo coadjutor e
futuro sucessor da diocese de Pernambuco, manda realizar missas para render
graças a Deus por ele ter preservado a vida do rei nos tremores de terra de 1755,
em Lisboa. Na verdade, Dom Francisco transmite as ordens dadas por Sebastião
José de Carvalho Melo, o futuro marquês de Pombal, em 9 de novembro de 1756.
Este obriga as igrejas a organizar uma procissão no sábado anterior ao domingo
do mês de dezembro no qual se celebram as festas do patrocínio de Nossa
Senhora. Suas ordens são as seguintes:

“ordenamos e mandamos ... a todas as pessoas eclesiásticas


obrigadas a rezar ofício divino ... e missa de nosso venerando
protetor e patrono dos terremotos que tanto têm atormentado o
nosso reino de Portugal ... Em ação de graças à mesma senhora
soberana rainha dos Anjos, como protetora nossa, assim no
passado como no futuro, contra os terremotos, e o senado da
câmara destas se obrigam com voto a observar o dito jejum e a
acompanhar as ditas procissões com as mesmas formalidades com
que costuma acompanhar as procissões votivas ... e como foi geral
o benefício, o seja também o agradecimento, me mandou significar
Sua Alteza que será muito do seu real agrado que V. Excelência na
sua catedral, e nas igrejas de sua diocese, mande fazer todos anos
sempre procissão no mesmo domingo de dezembro, e jejuar no
sábado antecedente em ação de graça à Santíssima Virgem
Senhora do Patrocínio, pelos motivos referidos. E Sua Majestade,
pelo seu Conselho Ultramarino, tem mandado expedir ordens
circulares a todas as câmaras deste bispado para acompanhar as
ditas procissões nos seus respectivos distritos, com a mesma
formalidade que costumam praticar ...”

 O bispo de Pernambuco, Dom Francisco Xavier Aranha, transmitiu a ordem do


futuro marquês em 16 de dezembro de 1757. Os párocos da capital e de Nossa
Senhora do Ó receberam uma cópia22. O parecer prova que os membros do poder
político local, o senado da câmara, eram obrigados a participar das procissões
segundo o costume, o que nos leva a supor que, ao menos no nível municipal, o
poder secular estava subordinado ao poder espiritual.
 As ordens oriundas da Coroa expressavam sentimentos bem reais da parte dos
soberanos. A exemplo do que se passava do outro lado do Atlântico, as
motivações verdadeiramente religiosas estão presentes nas autoridades locais, na
mesma época. A resposta dada pelos oficiais da câmara ao edital acima o
demonstra bem:

“Recebemos na presente frota o real decreto de Vossa Majestade


para no domingo de novembro em que se celebrar a festa do
patrocínio de Nossa Senhora se faça uma solene procissão, com
jejum na sua véspera, em ação de graças à soberana Rainha dos
Anjos, implorando o seu mesmo patrocínio para o futuro, o qual
logo o fizemos registrar, e ficamos para em tudo lhe darmos o seu
devido cumprimento. Deus guarde Vossa Real Majestade. Escrita

ao Rio Grande, em sua carta, datada de 13 de dezembro de 1738. Somente o governador recebeu 64
côvados de tecido, isto é, o total distribuído no Rio Grande. AHU_ACL_CU_018, Cx. 4, D. 262.
21 No relatório financeiro da capitania para o ano 1755, Dionisio da Costa Soares, provedor da fazenda

real do Rio Grande do Norte, repertoria as despesas relativas às gratificações concedidas para portar o
luto do rei em questão. AHU_ACL_CU_018, Cx. 6, D. 395.
22 Padroeira de Papari, uma das localidades selecionadas para esta pesquisa. AN. Livro de tombo, n° 1,

op. cit., pp. 30-31.

7
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em câmara pelo escrivão dela em vereação de primeiro de maio de


1757” 23

 Alguns documentos que expressam esta mesma disposição das autoridades


locais mencionam outras festas religiosas, freqüentes na primeira metade do
século XVIII. São as festas dedicadas à São Francisco de Borja24 e a em honra do
patrocínio de Nossa Senhora,25 citada no parecer de 1756. A celebração das duas
festas é ordenada pela Coroa. Não dispomos de outras informações concernentes
ao desenrolar de ambas, que eram certamente realizadas parcial ou totalmente ao
ar livre, como era de costume.
 A ausência ou a indiferença para com assuntos religiosos, notadamente da parte
das autoridades, era considerada um delito grave. As críticas contra os capitães-
mores as incluíam freqüentemente. Em 22 de novembro de 1723, os membros do
senado requerem ao rei a deposição do capitão-mor José Pereira da Fonseca,
considerado incapaz de governar a capitania. Eles o criticam por permanecer o dia
todo em casa, sem contato com ninguém, de ser um “homem sem juízo e sem
temor de Deus". Além do mais, “pouco observa a religião divina: é um inimigo
capital do sacerdócio.”26 Até os nobres locais não ficavam livres de acusações a
respeito de sua vida religiosa ou moral. Os oficiais da câmara se queixam ao rei,
numa carta datada de 6 de janeiro de 1738, da vida dissoluta da família de Manuel
de Melo e Albuquerque, e do apoio que ele recebe do capitão-mor27. Estes
exemplos constituem a prova de que a sociedade da capital não era tão unânime
assim em suas ações e atitudes, quer fossem religiosas ou não, ao longo do
período em questão.
 A acusação de faltas religiosas contra os administradores deve, porém, ser
atenuada. Ao contrário do que afirmam os oficiais da câmara a respeito do capitão-
mor José Pereira da Fonseca, ele era um homem devoto. Como vimos, foi ele que,
em 1725, libertou um escravo sob o conselho de um padre, que o fez “do púlpito".
No mesmo ano, ele foi vítima de um atentado às 5 horas da tarde, enquanto fazia
suas orações na porta da igreja de Nossa Senhora da Apresentação. Isto é, ele
assistia à missa. O hábito dos administradores de todos os níveis de assistirem
aos ofícios divinos é confirmado, no que diz respeito ao capitão-mor em questão,
por um de seus pares alguns anos mais tarde. Este afirma que José Pereira “tinha
o costume” de rezar à porta da igreja matriz, e que ele havia escapado
“miraculosamente” ao atentado28. Obviamente, as alegações de faltas religiosas,
tão importantes quanto qualquer outro tipo de crítica, podiam ser evidenciadas ou
exageradas no intuito de se atingir os fins desejados. De qualquer modo, a piedade
do capitão-mor José Pereira da Fonseca não impedia que ele fosse extremamente
déspota, odiado por todos.
 As inúmeras considerações e exemplos citados até agora são duplamente
importantes. Por um lado, eles nos permitem compreender um tipo de sociedade
cujo estado de espírito e mentalidade são profundamente marcados por valores

23 AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 404.


24 Os oficiais da câmara afirmam : “Recebemos o decreto de Vossa Real Majestade para assistirmos à
festa de São Francisco de Borja, o qual faremos logo registrar, e ficamos de acordo em fazermos
observar como Vossa Majestade nos manda. Deus guarde Vossa Real Majestade por muitos anos.
Escrita em câmara na cidade do Natal pelo escrivão dela em vereação em primeiro de maio de 1757".
AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 403.
25 Uma outra carta do senado, datada de 6 de fevereiro de 1759, menciona as duas festas, a de São

Francisco de Borja, e a do patrocínio de Nossa Senhora. Os oficiais da câmara acrescentam que eles
não têm o direito de fazer despesas para estas solenidades e que eles não devem receber
gratificações. “… o qual (edital) logo mandamos registrar para todo o tempo a observância inteiramente.
Deus guarde a Vossa Majestade fidelíssima. Escrita em câmara pelo escrivão dela Francisco Pinheiro
Pereira nesta cidade do Rio Grande em 6 de fevereiro de 1759". AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D. 414.
26 AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 92.
27 AHU_ACL_CU_018, Cx. 4, D. 240.
28 Carta do capitão-mor João de Freire Barreto e Menezes, de 3 de dezembro de 1739. O atentado foi

maquinado pelo secretário do senado, Bento Ferreira Mouzinho. O bandido não foi preso por causa do
secretário. Ele solicita providências da parte do rei. AHU_ACL_CU_018, Cx. 5, D. 294.

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Rubenilson B. Teixeira E3.A4 – Os usos e a sedimentação do espaço urbano

religiosos. Por outro lado, as conseqüências de tal mentalidade se manifestam


necessariamente no uso do espaço urbano. As autoridades políticas participavam
das celebrações religiosas públicas. As procissões eram organizadas para
agradecer a Deus pela preservação da vida do rei. As festas políticas estavam
intrinsecamente ligadas às festas religiosas. Ora, tais manifestações ocorrem
inevitavelmente no espaço urbano do pequeno burgo e de seu entorno, mesmo se
os manuscritos analisados não nos possibilitam localizá-los no espaço.
 A população participava de todas as festas e celebrações públicas mencionadas
até o presente, por exemplo, através das irmandades e das procissões que eram
estritamente controladas e impostas pela Igreja ou pelo Estado. Não obstante,
temos tratado principalmente do uso sagrado, obviamente, como também do
profano, em relação direta com as autoridades estabelecidas. É interessante
considerar algumas manifestações da população, espontâneas ou não. Os
períodos seguintes tratarão igualmente deste aspecto, uma vez que as
manifestações de religiosidade popular se encontram presentes, evidentemente,
em épocas posteriores.
 Uma das festas mais conhecidas da época colonial, certamente em vigor antes de
meados do século XVIII, era a tradição do casamento do rei e da rainha. Festa
pública muito animada, ela era praticada em vários centros urbanos pelos
escravos, que tinham sua própria irmandade. Em Natal, a irmandade do Rosário,
dedicada aos negros, existia pelo menos desde o início do século XVIII. Esta festa,
e outras, realizadas pelos membros da irmandade, ocorriam em torno da capela de
Nossa Senhora do Rosário29.
 A descoberta da estátua da santa Nossa Senhora da Apresentação às margens
do rio Grande, foi uma ocasião única de manifestação do uso sagrado do espaço
urbano. O clero e o senado da câmara convocaram o povo para carregar a estátua
em grande pompa até a igreja matriz, provavelmente em 1753. Uma ata foi escrita
e assinada em comemoração do acontecimento. Ainda que os registros tenham
desaparecido, a tradição confirma o que é, de qualquer modo, evidente: o
acontecimento provocou uma grande manifestação do fervor religioso de cunho
popular no espaço urbano do pequeno burgo 30.
 Como em todo lugar, as festas religiosas estabelecidas pelo calendário cristão,
como o Natal e a Páscoa, ocorriam em Natal. Semelhantemente, as procissões
para enterros ou as dedicadas à padroeira, as missas, os dias sagrados e os
jejuns, completavam a ambiência sagrada no uso do espaço urbano 31. As
procissões eram inúmeras. Uma única dentre elas, a procissão das Santas Almas,
aconteciam todas as segundas-feiras. Através de todas estas manifestações, das
quais participavam os habitantes das proximidades, que se deslocavam à cidade
nestas ocasiões, podemos conceber mais claramente a que ponto o uso do espaço
urbano estava fortemente marcado por um simbolismo teatral de natureza
religiosa. Algumas destas manifestações foram analisadas pelos historiadores do
Rio Grande do Norte,32 mas não foram tratadas neste momento porque optamos
por citar alguns eventos a partir de documentos inéditos. Alguns dos eventos
religiosos citados são provavelmente desconhecidos de trabalhos anteriores. É o
caso da procissão semanal das Santas Almas ou da festa dedicada à São

29 Entretanto, os registros de casamentos dos negros, dos mulatos e dos escravos durante o período de
1727 a 1760 em Natal não fazem aparentemente menção a suas festas nessas ocasiões. As
cerimônias obedecem ainda às deliberações do Concílio de Trento. IHGRN, caixa 5. Assentos de
casamentos dos pretos e pardos escravos de 1727 a 1760.
30 LIMA, Nestor dos Santos. A verdade sobre o bicentenário da imagem de Nossa Senhora do Rosário

venerada como padroeira de Natal. RIHGRN,1953, vol. L, p. 169-175.


31 No início do século XVIII, as maiores aglomerações tinham desenvolvido duas tradições, todas duas

públicas: uma se caracterizava por uma formalização exterior e institucional das manifestações
religiosas; a outra, por uma manifestação pública espontânea, popular. MARX, Murillo. Nosso chão...
op. cit., p. 67. Esta observação se aplica igualmente às manifestações religiosas no espaço urbano de
Natal.
32 POMBO, Rocha, op. cit., pp. 213-217; CASCUDO, Luís, História da cidade …, op. cit., pp. 99-113.;

FILHO, Olavo. Terra … op. cit., pp. 193-194.

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Rubenilson B. Teixeira E3.A4 – Os usos e a sedimentação do espaço urbano

Francisco de Borja. Vimos que o uso do espaço urbano era igualmente profano,
posto que em menor freqüência. Os autores mencionados corroboram esta
afirmação, relatando outras manifestações deste gênero.
 Por fim, é importante ressaltar que, na primeira metade do século XVIII, o tempo
era igualmente sagrado, assim como o uso. As horas se contavam pelo toque dos
sinos da igreja. Por volta de 1700, por exemplo, três toques de sinos marcavam a
hora da Trinidade. A refeição noturna ocorria nesse momento33. No final da tarde,
aconteciam as orações comunitárias, públicas. Era a hora da Ave-Maria34. Foi
provavelmente nesse momento que o capitão-mor José Pereira da Fonseca foi
vítima de um atentado à porta da igreja de Nossa Senhora da Apresentação, pois o
mesmo ocorreu às 5 horas da tarde. Os sinos anunciavam igualmente eventos
importantes, como um falecimento ou a chamada para a missa. Os dias eram
contados de acordo com as festas e as celebrações religiosas, e segundo os dias
santos, que eram numerosos, como demonstram, por exemplo, os decretos do rei
Dom João V a este respeito. Num canto recuado do mundo, como Natal, o tempo
era indubitavelmente sagrado.

33CASCUDO, Luís, História da cidade …, op. cit., p. 56.


34Consultamos documentos que mencionam a hora da Ave-Maria. Eles são, porém, de um período
posterior.

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