Você está na página 1de 11

1

AS INVENÇÕES DE UMA MULHER:


MARIA DA ROSA E A CRIAÇÃO HISTORIOGRÁFICA – SÉCULO XVI

João Azevedo Fernandes


Departamento de História – UFPB

Uma das principais características daquilo que poderíamos chamar como


“historiografia tradicional” - ao lado da fixação na história política e o apego extremado à
documentação oficial, entre outras – é a relativa invisibilidade das mulheres, isto é, o fato
de que as mulheres e, por extensão, toda a questão de gênero ter sido vista, quando muito,
como um apêndice das narrativas acerca daquelas atividades e esferas sociais que realmente
contavam, quais sejam as ligadas à esfera pública e militar, das quais as mulheres estavam
tradicionalmente afastadas (PERROT, 2007: pp. 16-17).
Quando se pretende estudar o lugar social das mulheres no Brasil Colonial, àquela
invisibilidade unem-se as dificuldades intrínsecas à história indígena, dado o fato de que a
maior parte das mulheres nos primeiros tempos da colonização era de origem nativa ou
mestiça, as mamelucas. Como procurei demonstrar em um trabalho anterior
(FERNANDES, 2003), tais mulheres tiveram um papel desproporcional à reduzida atenção
que obtiveram da historiografia e antropologia clássicas.
É claro que houve um extraordinário desenvolvimento, nas últimas décadas, tanto
no que diz respeito à história das mulheres quanto à história indígena. Ambos os campos
tem sido objetos de teses e livros que continuam a explorar as imensas oportunidades de
compreensão e interpretação do passado colonial a partir de um olhar sobre estes grupos e
esferas invisíveis à reflexão historiográfica tradicional. Contudo, ainda existem muitas
zonas de sombra, nas quais as dificuldades e ausências documentais contribuem para a
manutenção de algumas idéias preconcebidas, e equivocadas.
2

Os historiadores interessados na questão indígena, notadamente aqueles que


trabalham com o período colonial, muitas vezes abordam em seus trabalhos as vicissitudes
e agruras por que passaram os povos nativos colhidos pelas primeiras fases da expansão
européia no território que se tornaria o Brasil. Quando se interessam por trajetórias
individuais, frequentemente abordam aquelas personagens que se caracterizaram por um
comportamento contestatório, quer fosse esta contestação voluntária ou não. É o caso, por
exemplo, dos indivíduos de etnia indígena colhidos nas malhas da inquisição, por
praticarem seus ritos ancestrais, ou por introduzirem, de forma herética, aspectos destes
ritos na sistemática religiosa cristã.
Neste trabalho, escolhi abordar a questão do contato interétnico, e dos discursos
historiográficos construídos acerca do contato, através de um prisma diferente. Trato de
uma personagem que se não se caracteriza por uma postura de contestação à dominação
européia, antes pelo contrário. Maria da Rosa foi uma das mulheres mais ricas e influentes
da Olinda do século XVI, tendo sido considerada, ademais, como um modelo em matéria
de piedade e de zelo religioso. Encontramo-la, em fins do século, envolvida em doações de
igrejas e casas para o estabelecimento de ordens religiosas, e na fundação de um
Recolhimento de moças e viúvas, uma das instituições do gênero mais importantes do
período colonial.
Contudo, o que é mais relevante na trajetória desta mulher rica da Olinda seiscentista é
menos sua fortuna do que sua origem étnica. Defendo a tese que Maria da Rosa era uma
“mulher da terra”, uma índia ou, com menor probabilidade, uma mameluca. As primeiras
menções a Maria da Rosa são um tanto nebulosas, já que seu nome jamais é citado. Tudo
indica, porém, que ela fazia parte do grupo de “índias traydas de las aldeas por los blancos
para las tener por mancebas”, e que se casaram com estes quando da chegada dos jesuítas
em Pernambuco, em 1551. Maria sacramentou neste ano sua união com o Capitão Pedro
Leitão, homem dos mais importantes da terra, e que gozava de grande prestígio entre os
jesuítas, tanto que se tornou o primeiro mamposteiro – indivíduo encarregado de arrecadar
esmolas para a remissão dos cativos – depois que esta função foi regulamentada, no Brasil,
em 1560 (VARNHAGEN, 1854 (v. I), p. 189).
3

Maria da Rosa logo se tornou pessoa de confiança dos jesuítas. O missionário Antonio
Pires refere-se a ela ao relatar a situação das concubinas dos brancos de Pernambuco:

Ay entre ellas una muy antigua entre los blancos, a la qual todas las otras
obedecen, porque anda con una vara en la mano, y tiene cuydado de las
ayuntar a la doctrina. Esta se levantó una madrugada dos o tres horas
antes del día, y con grandes bozes pregonava nuestra venida, animando las
otras, diziendo que ya el día era llegado, que hasta aquí siempre avían
tenido noche, que saliessen de sus males e pecados, y fuessen buenas y
christianas, dizendo mal de sus custumbres, y loando los nuestros (Carta
do P. António Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco,
02/08/1551, in LEITE, 1954 [v. I]: p. 263).

A “vara en la mano” mostrava claramente que Maria da Rosa ocupava uma posição
de liderança, de “meirinha”, entre as índias. Os jesuítas logo se aproveitaram deste prestígio
e fizeram-na fundar uma casa para as índias livres, que se tornaria o embrião do
Recolhimento de Moças de Olinda. Vejamos o relato de Manuel da Nóbrega, onde se torna
clara o caráter disciplinador do Recolhimento e da função de Maria:

As indias forras, que ha muyto que andão com os christãos em peccado,


trabalhamos por remediar por nom se irem ao sertão já que são christãas, e
lhes ordenamos huma casa à custa dos que as tinhão para nella as recolher
e dalí casarão com alguns homens trabalhadores pouco a pouco. Todas
andão com grande fervor e querem emendar-se de seus peccados e se
confessão já as mais entendidas e sabem[-se] muy bem acusar. Com se
ganharem estas se ganha muyto, porque são mais de 40 soo nesta
povoação, afora muytas outras que estão pollas outras povoaçõis, e
accarretão outras do sertão asi já christãas como ainda gentias. Algumas
destas mais antigas pregão às outras. Temos feito uma delas meirinha, a
4

qual hé tam diligente em chamar à doctrina, que hé para louvar a N.


Senhor. Estas, depois de mais arreigadas no amor e conhecimento de
Deus, ey-de ordenar que vão pregar pollas Aldeias de seus parentes, e
certo que em algumas vejo claramente obrar a virtude (Carta do P. Manuel
da Nóbrega aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco, 15/09/1551, in
LEITE, 1954 [v. I]: p. 286).

Um ano depois Maria da Rosa, casada e poderosa, já era tratada com respeito bem
maior por parte dos jesuítas:

Depois que lhes digo missa, à tarde ensino-lhes a doctrina e às vezes lhes
prego. Ho interprete hé huma molher casada, das mais honrradas da terra
e das [mais ricas. E nã]o vos spanteis, Irmãos, em vos dizer as condições,
porque com ser tal parece andar bebada daquelle mosto de que os
Apostolos se embebedarão, pois faz o que muytos homens linguas se não
atrevarão fazer polla mortificação que nisso sentião. (...) Com esta molher
[confesso algumas indias christãs] e creo que hé melhor confessora que
e[u, porque hé muy virtuosa]. Encomenday-a muyto a N. S[enhor] (Carta
do P. António Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra, Pernambuco,
04/06/1552, in LEITE, 1954 [v. I]: p. 326).

Não se sabe quando Maria tornou-se viúva, mas sabe-se – a partir das informações
contidas na documentação da Visitação inquisitorial a Pernambuco em fins do século - que
construiu, por volta de 1570, em terrenos próprios, uma capela dedicada a Nossa Senhora
das Neves e um recolhimento de moças e viúvas. Aparentemente, seu sonho era
transformar estas instalações em Convento Franciscano, tornando-se, ela própria, freira. No
final da década os superiores da Ordem frustraram esta expectativa, o que é mais um
elemento a apontar a origem indígena da personagem.
Após a decepção, Maria voltou a se dedicar a seu recolhimento de moças, o qual já
havia se distanciado bastante do primitivo estabelecimento voltado à catequese das índias.
5

Cada vez mais o Recolhimento de Olinda tornava-se uma instituição reservada às moças e
viúvas da elite da terra. Sabe-se também que Maria da Rosa doou, em 1585, sua Igreja de
Nossa Senhora das Neves aos Franciscanos, recebendo em troca a Igreja de Nossa Senhora
de Conceição, que se tornou o Recolhimento definitivo. Deve ter morrido pouco depois
(ALMEIDA, 2003: pp. 185-216).
Se a vida de Maria da Rosa é interessante, mais ainda é sua trajetória na
historiografia brasileira. No século XIX, o historiador Francisco Augusto Pereira da Costa
não tinha a menor dúvida de que a Maria da Rosa descrita na documentação inquisitorial
como chefe do Recolhimento de Olinda fosse a mesma índia de que nos falam os jesuítas, e
louva a personagem como um exemplo claro da miscigenação fundadora de Pernambuco,
ao lado de outras nativas como D. Maria do Espírito Santo. Por seu turno, Serafim Leite, o
historiador dos jesuítas, viu em Maria da Rosa a prova viva de que os inacianos realizaram
uma catequese benéfica, conseguindo atrair os índios, para o cristianismo, através de uma
ação benfazeja e civilizadora (ALMEIDA, 2003: p. 186).
Nos anos sessenta, período no qual os historiadores brasileiros praticamente não se
interessaram pelos índios, envolvidos nas brumas da “dizimação étnica” e obscurecidos
pela preocupação com a formação do “sistema colonial”, à moda de Caio Prado Jr., o
historiador pernambucano Costa Pôrto, no livro Nos Tempos do Visitador, em que estuda a
vida quotidiana de Olinda com base na documentação inquisitorial, chegou a afirmar que
Maria da Rosa não era índia, e sim portuguesa! (COSTA PÔRTO, 1968: p. 89).
Este historiador não podia compreender que um Recolhimento dedicado às moças e
senhora da elite pernambucana pudesse ter se originado de uma instituição que, em seus
primórdios, estava dedicada à conversão das nativas. Para isso, Costa Pôrto chega a
imaginar que a intérprete mencionada nas cartas jesuíticas pudesse ser uma portuguesa, o
que representaria algo realmente extraordinário, já que seria o primeiro caso registrado de
portuguesa intérprete em toda a documentação acerca do contato interétnico no Brasil. É
importante notar, a propósito da hipótese de que Maria fosse portuguesa, de que o
genealogista Borges da Fonseca, autor da Nobiliarquia Pernambucana, escrita entre 1748 e
1777, na qual traça a origem das famílias pertencentes à “nobreza da terra”, simplesmente
6

ignora a personagem, o que é um silêncio revelador em uma obra tão detalhada (BORGES
DA FONSECA, 1935).
Em outro registro, e em outra época, temos um autor como Roberto Gambini, no
livro, recentemente reeditado, sem maiores alterações, O Espelho Índio. Para ele, a carreira
de Maria da Rosa não passou de uma espécie de “tramóia” jesuítica: “não tardou muito e
eles fabricaram uma líder, chamada Maria da Rosa, que acabou virando freira franciscana e
sabia pregar no estilo recomendado” (GAMBINI, 1988: pp. 149-157). Para este tipo de
visão a respeito do contato interétnico, os índios sempre são objetos passivos do poder do
colonizador, como se este poder fosse monolítico, como se os próprios europeus não
tivessem também sofrido um processo de “aculturação”, e como se alguns indivíduos índios
não pudessem ter assumido parcelas deste poder.
É difícil, para quem vê nos índios as vítimas ou os heróis do romantismo entender
que uma mulher índia “traia” seus iguais unindo-se aos colonizadores. O fato, contudo, é
que índios que se tornavam pombeiros, mulheres nativas que se tornavam senhoras de
escravos e de concubinas de seus maridos ou mesmo mulheres como Maria da Rosa
voluntariamente se apartavam de vários aspectos de sua própria cultura com o intuito de
alcançar um melhor posicionamento naquele contexto tremendamente instável, algumas
vezes com grande sucesso. É de se notar, mais uma vez, que os europeus dependiam
totalmente da existência destes “trânsfugas” culturais, sem os quais o tipo de conquista que
foi realizada no Brasil teria sido completamente diferente. No caso de Maria da Rosa não
apenas interessava aos jesuítas que esta atraísse outras índias para a religião cristã, mas que
também os ajudasse a controlar as leituras nativas da religião cristã, leituras que, como as
santidades, eram completamente diferentes da ortodoxia católica. O entusiasmo das índias
poderia se tornar perigosamente incontrolado:

E huma india destas doutrinadas se alevantou huma noute a preguar por


estas ruas de São Vicente, e com tanto fervor que poos a homens e
molheres em muita confusão. E hé de maneira que algumas destas indias
assi doutrinadas são espelho não tam somente a seus parentes e parentas,
7

mas a muytas das molheres de Portugal que caa há (Carta do Ir. Pero
Correia ao P. Belchior Nunes Barreto, Coimbra, S. Vicente, 08/06/1551,
in LEITE, 1954 [v. I]: p. 222).

A crítica, bastante anacrônica, feita por Gambini ao lugar de Maria da Rosa como
intermediária cultural entre os índios e os europeus nos lembra bastante a construção do
papel de “traidora” reservado a Doña Marina, a Malinche, índia Tlaxcala que se tornou
amante e intérprete de Hernán Cortez durante a conquista do México. Assim como não se
percebeu que Marina lutava contra os Astecas, inimigos tradicionais de seu povo,
colocando-se sob dependência do espanhol como uma estratégia de sobrevivência, foi
também olvidado que as índias no Brasil perceberam na adesão ao cristianismo oferecido
pelos jesuítas uma forma de escapar a um cotidiano de risco e violência, em um contexto
marcado por rápida e catastrófica mudança social. Maria da Rosa representa apenas o
exemplo mais bem sucedido de algo que foi praticado por muitas outras mulheres nativas.
De forma até inesperada para os jesuítas, as mulheres mostraram-se as cristãs mais
fervorosas: as cartas jesuíticas estão cheias de referências a atitudes piedosas por parte das
índias. Certamente não era projeto dos jesuítas depender tão profundamente do seu sucesso
junto às nativas, até mesmo por conta da forte misoginia típica da época. Na verdade esta
relação privilegiada entre religiosos e mulheres Tupinambá é muito mais dependente de
uma ação voluntária e consciente das próprias mulheres do que de qualquer decisão
jesuítica.
Para se compreender este ponto é necessário levar em conta que os jesuítas, assim
como os europeus, foram associados pelos Tupinambá aos seus heróis culturais, os mair, e
a seus xamãs itinerantes, os karaiba. Esta identificação foi feita com muito mais força
justamente em relação aos jesuítas, por conta principalmente de seus discursos e de seu
canto, mas também pela identificação dos gestos e sacramentos cristãos com as
performances dos pajés (VIVEIROS DE CASTRO, 1992: pp. 32-5). Desta forma a ligação
com os padres assumia uma dimensão de “honra” que não deixaria de ser aproveitada pelas
mulheres, mas não através do sexo. As palavras de José de Anchieta, além de
8

exemplificarem o processo de disciplinamento desencadeado pelos aldeamentos, revelam


com clareza que o interesse das mulheres em relação aos padres estava intimamente ligado
à imagem de karaiba que estes assumiram (itálicos meus):

Na doutrinação dos Indios guardamos a mesma ordem: duas vezes por dia
são chamados á igreja, pelo toque da campainha, ao qual acodem as
mulheres daqui e dali, e lá recitam as orações no próprio idioma (...).
Algumas se mostram de tal forma dedicadas, que não passam um só dia
sem que vão duas vezes á igreja (...). Certa mulher uma vez se admirou de
que nós não aplicassemos os remedios de que usamos, no curativo de um
indivíduo, atacado de doença contagiosa, que parecia lepra; e tambem
porque não tratavamos de lhe restituir a saúde, nós que ensinavamos que
se devem praticar as obras de misericordia. Para com esta mulher que tais
cousas pensava e desejava, nós nos desculpavamos, dizendo que isso nos
parecia acontecer por culpa dos próprios Indios que, muitas vezes, em
ocasiões de grandes enfermidades e mordeduras de cobras, prometiam
pautar a sua vida pela lei de Deus e pelos costumes cristãos e que,
restituídos á saúde, persistiam nos maus costumes, o que ela julgava que
nos afastava dos curativos desta especie, capacitando-se de que dependia
de nós a restituição á saúde, porque conhecemos e prègamos a Deus. Esta
e uma outra que estava doente eram visitadas por nós e uma delas se
restabeleceu, após alguns dias, e perguntando-lhe a mãe como estava, ela
respondeu que ia mui bem, e que não havia que admirar, visto que o padre
lhe tinha imposto a mão; por isso é que as mulheres nos demonstram
extraordinaria estima (“Trimensal de Maio a Agosto de 1556, de
Piratininga”, in Anchieta, 1988: pp. 97-98).

Naturalmente que, até mesmo por conta da progressiva desmoralização sofrida pela
figura do pajé, as mulheres não se ligavam aos jesuítas unicamente em busca de seus
“poderes” de cura. O que as fontes revelam é que a adesão feminina ao cristianismo estava
9

muito relacionada, em primeiro lugar, à busca das mulheres por mecanismos de proteção
contra a violência masculina, processo comum em várias outras situações de fricção
interétnica (COLLIER, 1988). Na sociedade pré-contato estes mecanismos estavam
fortemente ligados ao apoio concedido às mulheres por seus parentes masculinos, além, é
claro, do fato de que a violência contra a mulher era pouco significativa antes da chegada
dos europeus. A situação mudou radicalmente com o contato: a violência contra a mulher,
especialmente a sexual, é uma característica básica das sociedades escravistas, e não foi
diferente para as índias brasileiras. Ao descobrirem a possibilidade de uma ligação com
poderosos karaiba (os jesuítas) sem o recurso às relações sexuais, as mulheres não apenas
“converteram-se”, mas viram nesta conversão, e na proteção dispensada pelos padres, uma
forma de defesa contra as arbitrariedades masculinas, que não eram poucas:

Vêem-se em muitos, maximè nas mulheres assim livres como escravas,


mui manifestos sinais de virtude, principalmente em fugir e detestar a
luxuria (...): sofrem as escravas que seus senhores as maltratem com
bofetadas, punhaladas, açoutes por não consentirem no pecado, outros
desprezando-as, as oferecem aos mancebos deshonestos, a outras por
fôrça querem roubar sua castidade, defendendo-se não sòmente,
repugnando com toda a vontade, mas com clamores, mãos e dentes,
fazendo fugir aos que tentam forçá-las. Uma que foi por um acometida,
perguntada de quem era escrava, respondeu ‘- De Deus sou, Deus o meu
Senhor, a quem te convém falar, se queres alguma cousa de mim’, - e com
estas palavras ficou vencido, confundido, contando a outros com grande
admiração (Carta ao Padre Geral, de São Vicente, a 1 de junho de 1560, in
Anchieta, 1988: pp. 161-162).

Que fique claro, porém, que não estou defendendo a idéia de que as mulheres
Tupinambá tenham “manipulado” os jesuítas; é claro que o verdadeiro poder de controle
nesta relação estava do lado europeu. A principal forma pela qual foi atingido este controle
estava ligada ao processo de disciplinamento baseado no aldeamento e na separação das
10

mulheres, especialmente as mais jovens, de seus parentes e da possibilidade de retornar aos


“maus costumes”. O que estou afirmando é que, mesmo com uma margem de manobra
reduzida, existiam diferentes alternativas de atuação à disposição das mulheres, e algumas
delas alcançaram poder e prestígio tornando-se cristãs e executando funções de controle e
vigilância sobre as outras, bem de acordo com os planos dos padres.
A história de Maria da Rosa é bastante esclarecedora quanto a este ponto, e
exemplifica uma trajetória que, se não foi seguida em toda sua extensão, certamente serviu
como modelo de atuação para as mulheres índias e mamelucas que desejavam, ou melhor,
precisavam adequar-se à norma imposta pelos agentes da colonização. Entre os opostos da
Maria da Rosa “européia” e da “traidora”, é necessário buscar as ações das mulheres reais,
que buscaram se posicionar em uma situação de conflito e alteração social em função de
seus próprios interesses e em torno de estratégias possíveis.

BIBLIOGRAFIA

ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Belo


Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988.
BORGES DA FONSECA, José V. “Nobiliarchia Pernambucana”. Anais da Biblioteca
Nacional, Vols. 47-48, 1935.
COLLIER, Jane F. Marriage and Inequality in Classless Societies. Stanford: Stanford
University Press, 1988.
COSTA PÔRTO, José da. Nos tempos do visitador: subsídio ao estudo da vida colonial
pernambucana, nos fins do século XVI. Recife, Ed. UFPE, 1968.
FERNANDES, João Azevedo. De Cunhã a Mameluca: a mulher tupinambá e o
nascimento do Brasil. João Pessoa: Ed. UFPB, 2003.
GAMBINI, Roberto. O Espelho Índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de
Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
11

LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Coimbra: Tipografia da


Atlântida / Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 3 v. 1954.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo:
Melhoramentos, 5 v. (1ª edição: 1854-1857).
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O Mármore e a Murta: Sobre a Inconstância da
Alma Selvagem”. Revista de Antropologia, 35: 21-74, 1992.

Você também pode gostar