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S. GONÇALO DE LAGOS: HAGIOGRAFIA DOS SÉC.

XVI-XVII
(DOCUMENTOS)

JORGE GONÇALVES GUIMARÃES

1
I - INTRODUÇÃO

1 - SANTIDADE E IDENTIDADES LOCAIS

A organização cultural de identidades locais ou regionais é quase sempre


um processo longo e compósito que reúne diferentes estratégias políticas e
simbólicas convocando muitas vezes as figuras referenciais de santos com as
suas atracções cultuais e devocionais. Inúmeros são os casos em que
hagiografias e cultos organizam uma conexão entre santidade e território
projectando dessa forma a afirmação daquelas identidades. O caso de S.
Gonçalo de Lagos, um beato da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho
desempenha essa função nas cidades de Lagos e Torres Vedras.
A descoberta de nova documentação e a frequência da moderna metodologia
da história religiosa, isto é, afastando as chamadas “razões de fé” e categorizando a
religião como forma de representação e produção de factos culturais e sociais
vazados já em crença e frequência devota já em estratégias simbólicas sociais e
políticas, justifica a reconstrução da hagiografia gonçalina, procurando
compreender as suas funções sociais e culturais na definição de estruturas
identitárias daquelas cidades, destacando desta forma que os processos em torno
dos quais se organizam e identificam os nossos espaços locais dependem tanto de
estratégias políticas como de “invenções” 1 de santidade.
O documento mais antigo que se conhece relativo a Frei Gonçalo de
Lagos é um contrato de emprazamento celebrado entre o Convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa e um Diogo Lopes 2 . Datado de 21 de Maio de 1404,
informa que nessa data o religioso agostinho era prior daquele convento,
demonstrando-se assim a existência histórica de Frei Gonçalo e do seu priorado
no convento que era então “cabeça” de Província. Entre 1489 e 1510 foram
feitos, perante autoridade secular, uns instrumentos de autenticação de milagres
cujas cópias seriam mais tarde integradas num dos processos com vista à

1
O conceito de invenção aqui utilizado deve ser entendido no seu sentido latino e retórico.
2
I.A.N./T.T., Livro 1 do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, fl. 162v.

2
beatificação e canonização 3 . Quanto à hagiografia gonçalina 4 , essa nascerá nos
finais de quinhentos, sendo no essencial concluída em meados da centúria
seguinte. Percorramos primeiro, topicamente, os dados biográficos fornecidos
pelas diversas representações hagiográficas.
Natural de Lagos, desconhecem os hagiógrafos a data de nascimento 5 ,
embora assegurem origem humilde e a vocação desde tenra idade para os
rigores da vida religiosa. Cerca de 1380, terá ingressado na Ordem dos Eremitas
de Santo Agostinho, naquele convento de Lisboa. Pelo ano de 1394 torna-se
prior do Convento de S. Lourenço, na Lourinhã. No ano de 1404 encontrámo-lo
no exercício do mesmo cargo no convento de Lisboa, estando depois assinalado,
em 1408, o desempenho de semelhantes funções em Santarém. Finalmente,
assume, desde 1412, o priorado do Convento de Nossa Senhora da Graça em
Torres Vedras, aí permanecendo até à morte, estabelecida, sem unanimidade,
em 15 de Outubro de 1422.
Beneficiando durante três séculos de uma canonização vox populi, ainda
que assegurada pela eclesiologia, como é atestado pela solenidade das

3
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 198v – 216v. Entre as datas referidas, os
instrumentos de autenticação de milagres, que mais não são que relatos feitos pelos beneficiados, todos
eles feitos a requerimento ou por iniciativa dos priores do convento, distribuem-se da seguinte forma:
onze em 1489, três em 1490, um em 1491 e dois em 1510.
4
Entendemos aqui por hagiografia colecção de textos que, ultrapassando a dimensão tópica ou
de simples notícia, fornecem elementos biográficos relevantes para uma definição da fama de santidade,
quer pelo retrato penitencial e ascético quer pelo relato de milagres.
5
Em 1778, Frei Pedro de Souza, fornece a «era de 1360» como ano do seu nascimento e a Igreja
de Santa Maria como local de baptismo. A isto acrescenta ainda que, em Lagos, foi morador na Rua de
Santa Bárbara. Refira-se no entanto que o ano de nascimento foi retirado das peças testemunhais do
Processo da Fama de Santidade, Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de Lagos da Ordem
de S.to Agostinho. Concluido por Authoridade Ordinaria em o anno de 1760, altura em que surge pela
primeira vez e sempre com grande imprecisão, pois em todos os casos as expressões utilizadas são «pelos
anos de... » ou outras similares (Cf. Frei Pedro de Souza, Compendio da prodigiosa vida, exemplares
virtudes, e portentosos milagres do Proto-Santo de todo o reino do Algarve, e novo Thaumaturgo
de Portugal, o glorioso S. Gonçalo de Lagos, Lisboa, Regia Officina Typoggrafica, 1778. fl. 2;
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 49 – 185v ). Os restantes dados foram colhidos das
conclusões, também elas algo imprecisas, do Processo da Fama de Santidade e Culto dado a huma
Reliquia de São Gonçalo de Lagos da Ordem de Santo Agostinho feito nesta Cidade de Lagos.
Authoritate Ordinaria, por Delegação do Ex.mo, e R.mo Snor. Arcebispo Bispo do Reyno do Algarve no
anno de 1760 (Cf. Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3337, fl. 142).

3
sucessivas trasladações das relíquias efectuadas em 1492, 1559, 1580 e 1640,
altura em que é convocado pela celebração religiosa da Restauração política,
mereceria, entre 1759 e 1760, a elaboração de processos de fama de santidade,
milagres e culto que conduziriam à beatificação em 27 de Maio de 1778, muito
embora a devoção popular de Lagos e Torres Vedras lhe confira ainda hoje
honras de santidade.

2 – HAGIOGRAFIAS DOS SÉC. XVI E XVII

Acompanhando o movimento das observâncias iniciado no século XV, a


segunda metade da centúria de quinhentos conhecia, associado também à
recepção das determinações tridentinas 6, um renovado sentimento religioso e da
espiritualidade propício ao registo, manuscrito ou impresso 7, das vidas de
religiosos notáveis pelo seu exemplo ou santidade.
Reflectindo as orientações da “reconquista” tridentina, a hagiografia
gonçalina é tardia e essencialmente barroca, concorrendo mesmo para o
movimento que, ao longo dos séculos XVI e XVII, procura sedimentar uma cultura
e praxiologia de uma santidade portuguesa, estendendo-se da recuperação de
vetustos santos da antiga Lusitânia romana à divulgação de outros, restaurados ou
descobertos a partir de memórias tardo-medievais mais ou menos populares e
locais. Procurava-se desta forma enaltecer o país apresentando-o como uma
“pátria” de santos 8. A isto, acrescente-se ainda o esforço de elevação que as
6
Na Sessão XXV do grande concílio da contra-reforma católica, reunida em 13 de Dezembro de
1563, é confirmada uma forma tradicional de piedade que, condenando as posições dos reformistas,
reafirma o culto dos santos, das relíquias e o uso das imagens. Neste contexto o género hagiográfico
constitui, por um lado, o meio por excelência para permitir aos fiéis um contacto com o maravilhoso
divino que se manifestava através de milagres e aparições e, por outro, um veículo de difusão dos
princípios tridentinos.
7
Sobre o movimento editorial de obras religiosas ou de espiritualidade no nosso país durante este
período pode consultar-se importante estudo de Ivo Carneiro de Sousa: «Algumas hipóteses de
investigação quantitativa acerca da Bibliografia Cronológica da Literatura de Espiritualidade em Portugal
(1501 – 1700)», in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas., vol. V:
Espiritualidade e Evangelização, pp. 115 – 138.
8
Significativo exemplo desse movimento é a obra fundamental de Jorge Cardoso, o
célebre Agiológio Lusitano, cuja publicação se iniciou 1652, mas foi, em 1629, com o Officio

4
diversas ordens e institutos religiosos fizeram através do investimento cronístico e
da divulgação das vidas de religiosos notáveis, criando ambiente propício para a
beatificação e canonização daqueles que se notabilizaram pelas suas virtudes e
fama de santidade. Finalmente, factores locais - mobilizando elites em busca de
estratégias sociais de prestígio e municípios na afirmação de uma prioridade
regional - convocam a antiguidade e poder dos seus santuários.
Não considerando um conjunto de obras onde se podem encontrar
referências essencialmente tópicas 9, por não fornecerem mais que a naturalidade,
local de morte e respectiva sepultura, assinala-se, entre o final do século XVI e
meados de seiscentos, da autoria de João de França de Brito, Frei Aleixo de
Menezes e Frei António da Purificação, uma colecção de três memórias
hagiográficas fundamentais para o estudo de S. Gonçalo de Lagos 10. Tentemos pois

Menor dos Sanctos de Portugal, precedida de um primeiro esforço de apresentação de uma


significatica “santidade nacional” que enaltecesse o país . Elucidativa desta preocupação
cardosiana, embora sublinhando também a acusação do pouco cuidado com que o país tratava os
seus santos, é o excerto: «Inclue este officio. 62. Sãctos em numero, sem fazer menção de
muitos outros, de que se puderão compor mais officios, que em vida forão conhecidos e
venerados por insignes em santidade, os quaes antes, e depois da morte honrou Deos com
milagres, em tanto que se Portugal não ouvera faltado à devoção, solicitude, e diligencia, que
para os qualificar, com o testemunho irrefragavel da Igreja se requere, puderão estar já
canonizados...» (CARDOSO, Jorge, Officio Menor dos Sanctos de Portugal. Tirado de
Breviarios e memorias deste Reino, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629, fl. 28).
Sobre a obra de Jorge Cardoso poderá consultar-se estudo de Maria de Lurdes Correia
Fernandes: «História, santidade e identidade. O Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu
contexto», in Via Spiritus, n.º 3, 1996, pp. 25-68.
9
OROSCO, Alfonso, Chronica del glorioso padre y doctor dela yglesia sant Augustin: y de los
sanctos y beatos: y de los doctores de su ordẽ. Nuevamente ordenada por um padre de la misma ordẽ,
Sevilha, en Casa del Maestro Gregório dela Torre, 1551, fl. 40; JOSÉ, Frei João de São, Corografia do
Reyno do Algarve dividida em quatro liuros pera mor declaraçaõ da obra, fl. 27 v. Além destes autores
poderiam ainda citar-se aqueles que Frei António da Purificação convoca na abertura da «Vida do
Bemaventurado Padre Frey Gonçalo de Lagos» (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da
Antiquissima Provincia de Portugal da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho de Hipponia, &
Principal Doutor da Igreja, II Parte, Lisboa, Domingos Lopes Rosa, 1656, fls. 266v. – 267). Acerca
destes textos reunidos e apresentados pelo cronista como fontes da história da histáoria da vida de S.
Gonçalo de Lagos poderá consultar-se o nosso trabalho S. Gonçalo de Lagos: hagiografia, culto e
memória. Séc. XVI-XVII, Torres Vedras, Câmara Municipal, 2004, p. 30.
10
A este conjunto poderia ainda acrescentar-se uma biografia gonçalina que Frei Duarte Pacheco
incluiu em Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas de Villa Nova Arcebispo de Valença,

5
perseguir, a par de alguns dados biográficos destes autores, os contextos que
envolveram estas produções.

2.1 - JOÃO DE FRANÇA DE BRITO

Referido pelos outros dois autores como o mais antigo escritor dos
prodígios gonçalinos, embora acerca dele não nos seja fornecida qualquer outra
informação além do facto de integrar a elite urbana da actual cidade da
Estremadura oestina, a nebulosa envolvendo este devoto autor apenas pôde ser
ligeiramente dissipada depois de compulsados os manuscritos do processo de
beatificação produzidos entre 1759 e 1760 11. Foi no decorrer destas diligências
que, apresentado por Frei Agostinho da Silva 12, o texto apareceu pela primeira vez.
Não se sabendo com exactidão em que data foi escrito, a cronologia nele
assinalada permite fixar a sua produção como posterior a 1585 13 .

Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem nosso Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da
Vida do venerauel P. Frey Luis de Montoya, Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso
S. Prior delle; & assi mais de algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia sendo
Prelado della, Lisboa, Pedro Craesbeck, 1629, fls. 171–179v. Contudo este texto nada acrescenta ao de
Frei Aleixo de Menezes nem assume a monumentalidade e rigor perseguidos pelo cronista oficial da
Ordem uma vez que se integra num elogio ao reformador da Ordem como é ilustrado na passagem:
«Pareceome que não fazia o que devia a filho desta santa Prouincia, tendo tratado dos seruos de Deos que
deu á Igreja o santo Padre Frei Luis de Montoia, sendo mestre dos nouiços do conuento de nosso Padre
Sãto Agostinho de Salamanca, no mesmo tempo, em que era Prior delle o glorioso Padre santo Thomas de
Villa nova, se agora não fizesse hũa breve relação de algũs dos muitos seruos de Deos, e augmento de sua
igreja.» (PACHECO, Frei Duarte, ob. cit., fl. 151).
11
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335: Processo da Fama de Santidade Virtudes, e
Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de Lagos da Ordem de S.to Agostinho. Concluido por
Authoridade Ordinaria em o anno de 1760.
12
Frei Agostinho da Silva desempenhou no processo referido a função de Procurador da Ordem,
isto é, aquele a quem cabia a apresentação das provas de culto imemorial e fama de santidade.
13
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fl. 393v. A comparação deste texto com o
códice n.º 436, cujo texto original se atribui a Frei Aleixo de Menezes, leva-nos a admitir a hipótese de
considerar como limite cronológico superior os anos de 1588 ou 1590, datas correspondendo ao priorado
daquele religioso no Convento de Nossa Senhora da Graça em Torres Vedras. Foi durante esse período
que Frei Aleixo de Menezes, contactando com um registo de milagres feito por João de França, organizou
a narrativa da vida de S. Gonçalo.

6
Os peritos do então Real Arquivo da Torre do Tombo que, na altura,
verificaram a autenticidade do caderno original composto por oito meias folhas
apresentado por Frei Agostinho da Silva, consideraram que estava escrito com
letra de quinhentos, muito embora tenham também esclarecido que o título,
atribuindo a sua autoria a João de França de Brito, havia sido escrito
posteriormente 14 .
Uma vez que João de França de Brito conheceu uns instrumentos de
autenticação de alguns milagres feitos perante autoridade secular 15 , dos quais
foi feito em 25 de Outubro de 1553, a pedido do então prior do convento, Frei
António dos Anjos, uma cópia autêntica pelo Escrivão da Provedoria de Torres
Vedras, João de França 16 , é de admitir a hipótese de João de França de Brito ser,
se não aquele escrivão, pelo menos seu parente, facto que legitima a hipótese
explicativa de uma apropriação ou envolvimento familiar na divulgação do
culto.
Da simples leitura, resulta que o relato dos milagres 17 é bem mais
sumário que o vazado nos textos posteriores. Além disso, sobressai uma
significativa imprecisão ou mesmo desconhecimento da cronologia relativa a
factos fundamentais da vida de Frei Gonçalo: a data de nascimento não é
assinalada e, relativamente à data da morte, apenas informa que «averá como
cento e vinte e dous anos pouco mais ou menos no mês doutubro meado» 18 .

14
«Proque esta letra [...] segundo a sua formatura, sendo também antiga, hé certamente mais
moderna, que o carácter da letra, com que se achaõ escritas as referidas outo meyas folhas, em o que naõ
pode haver duvidas» (Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, ob. cit., fl. 402).
15
Destes instrumentos o que se conhece são as cópias que integram o Processo da Fama de
Santidade... entre as folhas 198v e 216v feitas a partir de uma outra que em 1553 havia sido requerida a
João de França, Escrivão da Provedoria
16
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 216v – 217.
17
Nos treze milagres descritos são identificados os seguintes beneficiados: Frei André Toscano
(Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 393v-394); Joana Góis (ibidem, fl. 394); Isabel
Henriques (ibidem, fls. 394-394v) escravo de Frei Gaspar Cão (ibidem, fls. 394v- 395) ; o autor (ibidem,
fls. 395-396); desconhecido (ibidem, fls. 396- 396v); dois escravos do autor (ibidem, fl. 396); autor
(ibidem, fl. 396v); uma escritura relativa a uma propriedade do convento de Santarém (ibidem, fls. 396v-
397); ao autor (ibidem, fl. 397); Maria Fernandes (ibidem, fls. 398-398v); Catarina Serrão (ibidem, fl.
399).
18
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fl. 393.

7
Outro aspecto relevante fornecido por este documento, reside na
denúncia de uma retracção do culto e práticas devocionais assinaláveis nos anos
oitenta da centúria de quinhentos 19 . São elucidativas, quer quanto a estes
aspectos, quer quanto à intencionalidade hagiográfica, as afirmações em que o
autor descreve o quão esquecida estava a veneração a Frei Gonçalo, situação
traduzida no abandono de um sepulcro de pedra que havia sido talhado em 1518
e onde os devotos recolhiam terra, relíquia que ao longo dos séculos XVI e
XVII especializa a taumaturgia do santo e organiza as práticas devocionais. De
igual forma, a preocupação em recuperar a memória de uma devoção esquecida
é visível na afirmação: «gastou o tempo memoria disto, e ainda dos muitos
milagres [...] e malgrado de tal perda, ajuntei estes poucos estormentos, e a
elles alguns milagres, dos que sei e vy» 20 .
Os dois principais hagiógrafos gonçalinos, Frei Aleixo de Menezes e Frei
António da Purificação, referem este devoto autor baseando-se nele para
organizarem o retrato ascético de Frei Gonçalo e a descrição de parte dos
milagres. Já o mesmo não se pode dizer no que toca aos dados biográficos, da
espiritualidade ou, como veremos, da ligação ao poder político através do
patronato da vila de Torres Vedras, assinalando-se já uma crescente projecção
da espiritualidade dos autores já um complexo processo de inventio
hagiográfica

2.2 - FREI ALEIXO DE MENEZES

Filho de D. Aleixo de Menezes e de D. Luísa de Noronha, nasceu em


Lisboa em 25 de Janeiro de 1559. A 24 Fevereiro de 1574 entrou como noviço
no Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, professando no dia 27 de
Fevereiro do ano seguinte, altura em que tomou o sobrenome de Jesus.

19
Esta denúncia é reforçada pelo facto de numa colecção de testamentos torrienses do último
quartel do século XVI, recentemente descoberta, não termos surpreendido qualquer legado pio associado
ao culto de S. Gonçalo.
20
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fl. 391v.

8
No Capítulo celebrado em Lisboa em 1588, foi eleito Prior do Convento
de Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras. No de 1590, reunido no mesmo
local, recebeu o priorado do Convento de Santarém, que ocupou até que, no
Capítulo realizado em Vila Viçosa em 1592, foi designado para desempenhar o
mesmo cargo no Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa até que, cerca
de dois anos mais tarde, no Capítulo de 1594, foi nomeado Terceiro Definidor
da Província. Depois de alguma hesitação, aceita o arcebispado de Goa onde
chega em Setembro de 1595. Entre 1612 e 1617 desempenha as mesmas funções
em Braga e cumulativamente, entre 1614 e 1615, a de vice-rei. Morreu em
Madrid a 2 de Maio de 1617 sendo depois sepultado no Convento de Nossa
Senhora do Povo, em Braga. 21
Terá sido durante a sua permanência em Torres Vedras que contactou
com as memórias escritas e a tradição oral relativas a S. Gonçalo de Lagos,
coligindo-as numa biografia que seria depois vazada no códice n.º 436 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Consta de trinta folhas onde,
depois de uma curta mas esclarecedora introdução 22 , elucidativa da
intencionalidade do autor e das condições em que foi produzido, são narrados
com diferentes graus de desenvolvimento, num estilo em que maravilhoso e real
comunicam, dados sobre vários religiosos agostinhos 23 .

21
A narrativa biográfica deste religioso agostinho pode encontrar-se, com bastantes detalhes, em:
CUNHA, Dom Rodrigo da, Historia Eclesiástica dos Arcebispos de Braga, e dos Santos Varoens
illustres, que floreceraõ neste Arcebispado, II Parte, Braga, Off. de Manoel Cardozo, 1635, pp. 421-451;
SANTO ANTÓNIO, Frei José de, Flos Sanctorum Augustiniano, II Parte, Lisboa, Off. da Musica, 1723,
pp. 544-616. Mais recentemente, o historiador agostinho Carlos Alonso deu à estampa um estudo
monográfico relativo ao arcebispado de Goa: Alejo de Menezes, O.S.A. Arzobispo de Goa (1595-1612).
Estudo biográfico, Valladolid, Ed. Estudio Agustiniano, 1992.
22
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fls. 1-2.
23
Beato Tadeu de Camparia (ibidem, fls. 2-2v), Beato Gonçalo de Lagos (ibidem, fls.
2v-11v), Frei Martim de Santarém e Rodrigo de Santa Cruz ( ibidem, fls. 15-15v), Frei Álvaro
Monteiro (ibidem, fls. 15v-18), Frei Ubertino Enneo (ibidem, fls. 18-20v), Frei Francisco de
Villafranca (ibidem, fl. 20v), Frei Cipriano Perestrello (ibidem, fls. 21-22), Frei Gonçalo de
Almeida (ibidem, fls. 22-23), Frei Luís de Montoya (ibidem, fl. 23), Frei Aleixo de Penafirme
(ibidem, fls. 23v-24), uns parcos dados sobre uns agostinhos anónimos mortos em França
(ibidem, fls. 24-24v), Frei Afonso de Allos Vedros (ibidem, fls. 24v-25), Frei Paulo Barletta
(ibidem, fls. 25v-26), Frei Agostinho do Rosário ( ibidem, fls. 26-26v), Soror Margarida Nunes
(ibidem, fls. 26v-29) e Beatriz Vaz de Oliveira ( ibidem, fl. 29). No final do documento

9
Embora a identidade do autor não seja revelada, pode ler-se naquele
espaço textual 24 , um esclarecimento que o identifica como tendo sido prior no
convento de Nossa Senhora da Graça, em Torres Vedras, altura em que
contactou com um «livro» onde se encontrava a biografia de S. Gonçalo. Para
além da grande semelhança entre este texto e os de Frei Duarte Pacheco 25 e Frei
António da Purificação 26 , ambos reveladores de uma colagem daquele bem ao
jeito da imitatio barroca, o facto de as informações fornecidas naquela
introdução sublinharem que do volume original seriam realizadas cópias quer
para a província de Portugal dos agostinhos quer para a sua congregação da
Índia, local onde o texto original foi indubitavelmente escrito 27, vem igualmente
corroborar a dimensão autoral assinalada.
A análise dos aditamentos das folhas 29 a 30v do códice apontam para
que a sua elaboração tenha ocorrido entre 1599 e 1609, permitindo inferir-se
que, dado o original ter sido escrito na Índia, a sua produção terá naturalmente
ocorrido entre Setembro de 1595, altura em que o seu autor chegou àquele
continente, e 1598.

2.3 - FREI ANTÓNIO DA PURIFICAÇÃO

encontram-se ainda, provavelmente da autoria de quem fez a cópia, breves referências


biográficas relativas àqueles que foram bispos, a servidores áulicos e a lentes universitários da
província (ibidem, fls. 29-30v). Esta última parte terá ainda sido, com duas letras diferentes,
acrescentada para referir três lentes da Universidade de Coimbra ( ibidem, fl. 30v). Este
aditamento, dado que se trata de uma referência a Frei Francisco da Fonseca, lente de Escoto, e
Frei Manuel Lacerda, lente de Durando, terá sido feito necessariamente depois de 1617 (Cf.
FERREIRA, Francisco Leitão, Alphabeto dos Lentes da Insigne Universidade de Coimbra desde 1537
em diante, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1937, p. 25 e p. 42).
24
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fl. 2v.
25
PACHECO, Frei Duarte, ob. cit., fls. 171 – 179v.
26
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal da
Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho de Hipponia, & Principal Doutor da Igreja, II Parte,
Lisboa, Domingos Lopes Rosa, 1656, fls. 266v - 293v.
27
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fl. 2.

10
Natural do Porto, professou no convento de Évora em 1617 tendo ganho
notoriedade devido à sua dedicação à história da Província portuguesa dos
Eremitas de Santo Agostinho. Morreu em 19 de Abril de 1658, sendo pároco da
Igreja de S. João da Foz, no Porto.
Incumbido em 1633 de compor uma crónica da Província de Portugal 28 , o
projecto inicial previa a existência de quatro tomos: o primeiro desde a
fundação da Província até ao ano de 870; o segundo, contemplando a história da
reforma executada por Frei Luís de Montoya, abrangeria o período
compreendido entre aquela data e o ano de 1569; o terceiro iria até ao ano de
1636, debruçando-se larga e criticamente sobre as implicações da decisão de
Urbamo VIII relativas à periodicidade das eleições da Província; o último
trataria apenas da presença da Ordem na «Índia Oriental», desde a fundação da
Congregação em 1572 até à época da elaboração da crónica 29 . Contudo a obra
ficaria incompleta, pelo que apenas passaram pelos caracteres tipográficos as
duas primeiras partes, não ultrapassando desta forma o ano de 1422. Purificação
escreveu ainda a terceira parte que, na forma manuscrita, terá alimentado a
investigação desenvolvida por Jorge Cardoso na produção do seu Agiologio 30
sem que, por não ter chegado até ao nosso tempo, se possa afirmar ter
conhecido uma redacção completa.
No Título VII do Livro VII da segunda parte da Chronica... 31
encontramos aquele que é sem dúvida o mais notável monumento hagiográfico
de Frei Gonçalo de Lagos. Na introdução dessse espaço textual, parte que
especializa o presente estudo, o cronista, numa forma que depois de frequentada
a obra se verifica não ir além de um exercício retórico, convoca, como
argumento de autoridade, além da documentação do Cartório do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras 32 , um extenso rol de autores
consagrados. Contudo esses textos denotam ora um notável desconhecimento
28
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal da
Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho de Hipponia, & Principal Doutor da Igreja, I Parte,
Lisboa, Manoel da Sylva, 1642, fl.20v.
29
Idem, ibidem, fl. 22.
30
Cf. CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano...Tomo III, Lisboa, Off. de Antonio Craesbeeck de
Mello, 1666, p.54.
31
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit.,II, fls. 266v. – 293v.
32
Idem, ibidem, fls. 266v - 267.

11
acerca da vida de Frei Gonçalo ora, como é o caso de Frei Duarte Pacheco, uma
filiação relativamente ao de Frei Aleixo de Menezes. Assim, as fontes que
fundamentalmente organizam esta memória hagiografica descobrem-se no
decurso do texto, subsumindo-se no essencial aos documentos de autenticação
dos milagres e aos escritos de Frei Aleixo de Menezes e João de França de Brito
que, desta forma, são os principais inspiradores do texto cronístico de
Purificação que aqui se apresenta. Apesar de serem apenas referidos pelo
cronista no interior do próprio texto, a estrutura da narrativa e a semelhança dos
elementos descritivos evidenciam a grande proximidade relativamente aqueles
escritos. Salvaguarde-se, todavia, a possibilidade de essa estreita “inspiração”,
quase uma imitatio ao gosto barroco, ter sido igualmente bebida em Frei Duarte
Pacheco ou num manuscrito de Frei Jerónimo Román 33 , facto que obriga a filiar
as notícias sobre Frei Gonçalo na obra na obra do Arcebispo de Goa 34 .
Percorrendo os principais investimentos organizados por Frei António da
Purificação na construção da hagiografia exemplar de S. Gonçalo de Lagos,
detecta-se que, para além de enriquecer a sua vida com a apresentação de novos
milagres – a alguns dos quais esteve aliás associado – e de nele projectar
elementos da ascética e espiritualidade barrocas, a Chronica revela
originalmente o facto de o santo ter sido, em 13 de Outubro de 1495, por
decisão do Senado da Câmara, eleito padroeiro de Torres Vedras. Segundo o
cronista, esteve na origem desta eleição uma carta de D. João II escrita no
Algarve à Câmara daquela vila em 26 de Setembro de 1495, louvando-a por ser
possuidora de tão importantes relíquias. Assim consta, diz o cronista, de «hum

33
Este texto de Frei Jerónimo Román apenas conheceu a forma manuscrita e dele apenas
conhecemos uma cópia do séc. XVIII (Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 247v –
264). Todavia foi convocado por Frei António da Purificação (od. cit., fl. 279) e por Jorge Cardoso
(Agiologio Lusitano..., Tomo I, Lisboa, Off. Craesbeekiana, 1652, p.61). Sobre este texto veja-se
publicação citada da nossa autoria (vide nota 9), p. 23 e p. 38, nota 34.
34
Ao referirmos neste contexto a obra de Frei Aleixo de Menezes, não estamos necessariamente
a assinalar o códice coimbrão. Como se viu, este é uma cópia, sendo igualmente de admitir que Frei
António da Purificação tenha frequentado a primeira versão daquele texto. Não deixe de se recordar que,
de acordo com o testemunho cronístico, Aleixo de Menezes informa que, depois de ter dado a história da
vida de S. Gonçalo de Lagos a Jerónimo Román, temendo pela sua perda, decidiu escrever “de memória”
um segunda versão do original.

12
assento da mesma Câmara [...] que se intitula Real Extravagante: a folhas
39» 35 .
O facto de grande parte da documentação relativa aos dois últimos anos do
reinado do Príncipe Perfeito ter desaparecido impede que se conheça, caso alguma
vez tenha existido, com exactidão o teor desta carta que, não sem anacronismo,
remete para uma organização do arquivo camarário que não se afigura típica dos
finais de Quatrocentos (como esse «livro» intitulado «Real Extravagante»). Sabe-
se, no entanto, que em Setembro daquele ano o rei estava em Alcáçovas de onde
partiu em direcção ao Algarve apenas no início do mês seguinte 36, tendo chegado
ao Alvor apenas no dia 17 de Outubro 37. Por outro lado, da presença do rei no
Algarve por essa altura 38, não se encontra nos trabalhos cronísticos de Garcia de
Resende ou Rui de Pina, malgrado sejam abundantes as referências a Lagos,
qualquer alusão a S. Gonçalo. Recuando no tempo cerca de quatro anos, algum
tempo depois do acidente que vitimou o príncipe D. Afonso, encontramos D. João
II e D. Leonor no Varatojo, sem que exista qualquer referência documental
indiciando uma passagem pelo Convento de Nossa Senhora da Graça 39, visita que
teria sido obrigatória caso fosse tão notável a fama de santidade de S. Gonçalo de
Lagos, impondo a frequência do seu culto por um «casal» régio em dramática
perseguição da expiação pela morte do príncipe que iria unir toda a Península sob a
coroa de um monarca português. Significativo é também o facto de cerca de dois
anos antes da arranjada carta joanina, em 1493, estando o monarca doente em
Torres Vedras, onde aliás passou larga temporada, tenha feito promessa de ir a pé
ao mosteiro de Santo António da Castanheira, da ordem de S. Francisco 40, não se
35
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., II, fl. 278v.
36
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Itinerários de El-Rei D. João II (1481 – 1595), Lisboa,
Academia Portuguesa de História, 1993, p. 569; Rui de Pina, Crónica de D. João II, Lisboa, Publicações
Alfa, 1989, p.147; Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1991, edição fac-similada da nona edição conforme a de 1798, p. 276.
37
PINA, Rui de, ob. cit., p. 148; RESENDE, Garcia de, ob. cit,, p. 277.
38
PINA, Rui de, ob. cit., p. 147 - 152; RESENDE, Garcia de, ob. cit., pp. 277-283.
39
PINA, Rui de, ob. cit., p.111; RESENDE, Garcia de, ob. cit,, p. 205; SANTÍSSIMA, Manuel
de Maria, Historia do Convento e Seminario do Varatojo..., B.N., Cód. n.º 1422, p. 83; SERRÃO,
Joaquim Veríssimo, ob. cit., p. 442 (Nesta obra o autor assinala a presença dos monarcas no convento
entre os dias 21 e 23 de Setembro).
40
RESENDE, Garcia de, ob. cit., p. 246. Esta estadia é descrita por Frei Manuel de Maria
Santíssima numa passagem que ilustra bem a forte ligação aos Observantes acima referida: «O Senhor

13
descobrindo qualquer referência documental de uma visita ao santo agostinho de
Lagos.
Destaque-se ainda que à medida que à medida que se percorrem os três
textos se vai consolidando uma imagem de santidade denotando mesmo uma
projecção da espiritualidade vivida nas respectivas épocas. Se em João de França
de Brito encontramos apenas predicados tópicos e normativos, como sejam a
caridade, a castidade ou a pregação, com Frei Aleixo de Menezes e, finalmente,
com Frei António da Purificação vaza-se já uma espiritualidade claramente
barroca.
Finalmente afigura-se como relevante o estabelecimento da morte de Frei
Gonçalo a 15 de Outubro de 1422. Recorde-se que até 1656, ano em que foi dada à
estampa esta segunda parte da Chronica todos os autores 41, na esteira do que foi
fixado por Frei Aleixo de Menezes, assinalam o ano de 1445.

3 - CONCLUSÃO

Pela leitura dos textos que a seguir se apresentam, detecta-se uma


preocupação crescente com a edificação não de uma imagem fantástica e irreal,
ligada a uma concepção medieval de santidade, mas sim de uma figuração assente
num relato o mais próximo possível da realidade da representação da vida de Frei
Gonçalo de Lagos. A riqueza de pormenores destas exaltações hagiográficas, que
se querem factuais e documentadas, conduz-nos a um modelo muito mais próximo
da tradição cronística religiosa barroca, fundamentalmente contra-reformista, do
que ao legado das vidas de santos que, no mundo medieval, se propaga através dos

Rei D. João segundo que com o reino herdou a piedade e affecto de seu pai a Varatojo, favoreceu,
protegeo e visitou este convento na occasião da sua maior afflição. Achava-se vivamente magoadom este
Monarca, e a Rainha sua esposa pelo desastre do Principe D. Affõso seu filho, de pouco casado, e morto
infelismente da queda de hũ cavalo nos cãpos de Santarem, elle e a Rainha para mitigarem a sua dor
barcarão logo o sagrado retiro de Varatojo, onde assistindo por alguns dias com os Religiosos lhes
pedirão oraçoẽs para acertado governo dos seus vassalos, e pela alma de seu filho, socorrendo liberais e
piedosos as necessidades do convẽto» (SANTÍSSIMA, Manuel de Maria, ob. cit., pp. 83-84).
41
Constitui excepção o caso de Sebastião Portilho que, em 1651, antecipa a cronologia oferecida
por Purificação (Cf. Arq. Sec. Do Vaticano, Cong. Riti, Proc. nº 3335, fl. 306v).

14
Flos Sanctorum. Com uma linguagem cuidada, perseguindo estratégias
historiográficas, a narrativa da vida, das virtudes e acções prodigiosas de Frei
Gonçalo vai nos diversos autores conhecendo uma ampliação pautada pelo recurso
a fontes que, fornecendo argumentos de autoridade, títulos ou documentação,
tentam afastar o elemento irreal, melhor, a sombra da suspeição, da superstição e,
sobretudo, do inverosímil. A influência da representação organizada por estes
textos hagiográficos mostra-se de tal forma significativa que, nos anos de 1759 –
1760, descobrimos mesmo diversas testemunhas dos processos com vista à
beatificação e canonização a convocarem expressamente a ajuda destas obras e
tradições hagiográficas 42. Não é, assim, paradoxalmente o testemunho que
consolida o hagiográfico, mas é a colecção hagiográfica que estrutura os próprios
testemunhos, organizando um processo de santidade em que a história real se
encontra obrigada a desaguar na taumaturgia e na prioridade do milagre.

42
Arq. Sec. Do Vaticano, Cong. Riti, Proc. nº 3335, ob. cit., fls. 49-185v.

15
II - DOCUMENTOS

1 - Critérios de transcrição

Na transcrição dos textos procurou seguir-se a lição dos originais


adoptando os seguintes critérios:

 Desdobramento de algumas abreviaturas mantendo a ortografia do autor;


 No texto do códice nº 436 da B.G.U.C., dada a sua quase inexistência,
introduziu-se ou modernizou-se a pontuação por forma a tornar o texto
mais inteligível. Nos restantes não se procedeu a qualquer alteração;
 No texto da Chronica... de Frei António da Purificação, assinalam-se em
nota de fim de página, em itálico, as anotações que no original se
encontram nas margens;
 Separação das palavras proclíticas sempre que a boa compreensão do texto
assim o justificava;
 Manutenção das consoantes geminadas no meio das palavras, suprimindo-
as apenas no seu início ou no fim das mesmas;

16
 Manutenção do fonema |g| junto das vogais |e| e |i|, reconhecendo que
aquele, nos período moderno não necessitava da vogal |u| para assumir o
valor que actualmente recebe quando associado a esta vogal;
 Substituição da consoante |ç| por |c| junto das vogais |e| e |i|;
 Substituição do fonema |y| por |i|;
 Colocação em itálico das palavras e expressões em latim;
 Uso de parêntesis rectos [?] para assinalar partes em que a leitura se
mostrava impossível, reconstituições textuais, ou o número dos fólios:
[fl.1].

17
2 - JOÃO DE FRANÇA DE BRITO 43

[fl. 391] O escritor destes milagres se chamava João de França de Britto


homem nobre de Torres Vedras.
IHS

Os milagres do bemaventurado São Gonçalo de Laguos, forão muitos, com


que o Senhor quis engrandecer o Seu Santo, florecerão nos tempos que elle
faleceo, como dos estormentos mais antiguos se colige, em o qual tempo a
devação do glorioso Sancto era tanta, e a frequencia das pessoas, que a elle
vinhão em Romaria, huns a dar graças das merces, que delle tinhão recebidas, e
outras abuscar remedio a suas infermidades, que se ajuntavão tantas em hum dos
dias do mês doutubro, que he certo, e como affirmarão pessoas antiguas, e dinas
de fé, que do muito concursso da gente que vinha desde legoas ao redor e fazia,
como huma grande feira com as [?] , em que vinhão.
Guastou o tempo a memoria disto, e ainda dos muitos milagres que o santo
fazia alguns estormentos, que se disso tirárão por ma guarda se perderão somente

43
Apud Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, Processo da Fama de
Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de Lagos da Ordem de S.to Agostinho.
Concluido por Authoridade Ordinaria em o anno de 1760, fls.391 - 399.

18
ficarão estes poucos dos muitos, que eu vi, e de que sou lembrado e malguardo de
tal perda, ajuntei estes poucos estormentos, e a elles alguns milagres, dos que sei,
e vi, que o glorioso santo fez, em que tomo ao mesmo Senhor por testemunha,
que os por elle obrou, que nem a mui particular devação, que tenho neste glorioso
Santo, nem doutro nenhum respeito me farão escrever couza alguma, em que
pareça, que falo afeiçoado, nem com que core o que disso somente a verdade
limpa e singela confiado em o Senhor por cujo respeito o faço, que ainda, que em
mim não aja nada, que imitar, trara algum devoto do Santo que vá escrevendo os
milagres, que não vierem á minha noticia ou acontecerem despois, para que com
a memória, e devação deste Santo, tenha sempre esta terra que mereceo ter tal
Padroeiro os bens, que o senhor da aos que o servem na terra, pera com elles
merecerem os do ceo, onde temos o glorioso santo por avoguado, e valedor pera
todas nossas necessidades.
[fl. 392] Foi este glorioso santo natural do Reino do Algarve da cidade de
Laguos nacido de padres humildes, mas cristãos, e tementes a Deos, a quem
sempre teve diante em todas suas couzas, até que tomou o habito do gloriosso
Santo Agostinho, e tanto aproveitou nelle ; e o illustrou com vertudes, que era a
todos hum maravilhoso espelho e nas mais insines cazas da hordem deste reino
foi prior; nem isso o alterava, nem a gravidade dos carguos demenuhia nelle nada
da humildade, que nelle avia porque assim emxercitava esta vertude, que todos os
officios da caza fazia ainda que baixos; se faltava o mantimento, como muitas
vezes acontecia, porque os padres arão pobres, e vivião a maior parte do tempo
desmollas, tomava o Santo os Alforges , e hum cabas no braço com huma
almotolia pera azeite pera a lampada, e hia pedir pella villa. Muitos dias as tardes
despois, que o santo vaguava da oração, e officios da caza se assentava á porta do
mosteiro rezando por humas contas, e a todos os trabalhadores que se recolhião
de seos trabalhos, que passavão por ali por ser estrada, dava a benção, e doutrina,
para nelles louvarem o Senhor, e a muitos mininos, que se cheguavão ao redor
delle, e como travessos lhe puchavão pello capello, e ábito, dava o Santo [392v]

19
do que tinha nas manguas, e a todos rindo lançava a benção, e dizia, Deos te faça
hum grande santo.
Resplandecião tantas vertudes no Santo Prior neste mosteiro, que não
podendo o Demonio sofrer, incitou humas molheres pera tentarem o Santo, e
fazerem esperiencia de sua vertude, e estas mandárao huma moça á porta do
mosteiro huma noite de chuva, e frio, insinada do que avia de fazer, a qual
batendo á campainha da portaria, como o Santo servia todos os officios das cazas
acodio como porteiro á porta e achando a moça, que com lagrimas fingidas lhe
pedio guazalhado, dizendo, que sua ama a deitara fora aquellas oras, e não sabia
onde se fosse.
O Santo ardendo todo em caridade, e amor de Deos, e do proximo, a
recolheo, e levou á sua cella, e lhe deo seu manto, com que se cobrisse, e elle se
veio deitar fora no chão; como foi menham, dandolhe doutrina, e dalmoçar,
amoestou, e mandou, a qual moça tornandosse ás que a mandarão a isso, e
contando com quanta santidade fora aguazalhada, e tratada do Santo, todas
conjuras, e com lagrimas, forão pidir perdão ao Santo, que as perdoou, e
amoestou com as entranhas de [fl. 393] caridade que nelle avia , isto lhe
aconteceo sendo Prior nesta caza de Torres Vedras, aonde o Santo faleceo, e jás
nelle sepultado no chão com hum moimento alto sobre a sepultura, e na
cabeçeira do moimento tem hum buraco grande por onde se tira a terra da
sepultura, e donde muitos enfermos com devação, que tem no Santo, metem aas
cabeças , mãos, ou pés, que tem doentes, e os tirão sãos.
As reliquias do Santo estão metidas na parede do cruzeiro dentro em hum
cofre ao de dentro de humas grades, fechadas com dous cadeados.
Faleceo o glorioso Santo averá como cento e vinte e dous annos, pouco
mais, ou menos no mês doutubro meado, segundo se via antiguamente na muita
gente, que se então aqui ajuntava em romaria, como fica dito atrás.
Sendo prior deste moesteiro que então estava situado no cabo da villa
junto da Varzea grande, donde por as cheas do Inverno o alaguarem muitas vezes
se mudou pera a Irmida de Santo André, que servia de guafaria, que lhe deo o

20
catholico Rei Dom João o 3º, que aja gloria o anno de 1550, e então foi
trasladadas as reliquias do Santo á mesma caza, mas a sua sepultura [fl. 393v]
ficou aonde estava, e foi a igreja antigua naquelles edificios, que se derrubarão
para se passarem ao mosteiro novo athé o anno de 1572, que foi mandado tirar
por Dom Guaspar Cão Bispo de Sam Tomé, que fora frade da mesma Ordem em
cuja mudada, ou tresladação acontecerão alguns milagres, como direi adiante: na
caza de Santo André estiverão as reliquias, e sepultura do Santo athe o anno de
1585, em que se mudou tudo juntamente ao moesteiro, onde ora estão, e onde
cada dia o Senhor obra milagres pelo seu Santo.

IHS Maria
Ora pro nobis Beati Gonçalo
Mediante a graça e favor divino, pera gloria do Senhor, e louvor de seu
Santo, contarei alguns milagres dos muitos, que vi, e sei.
No anno de 56 estando o moesteiro antiguo, aonde tenho dito, a meu
requerimento querendo o prior, e padres tirar as reliquias do Santo, donde estavão
quazi esquecidas, e mostrálas ao Povo hordenarão fazer isto hum Dominguo, e
consertandosse pera isto a igreja hum dia antes pela sesta andando armando,
subiosse por huma escada de mão hum religioso da Caza per nome [fl. 394] Frei
Andrè Toscano, ao arco da capella mór, que era muito alto, e o pé da escada
ficava afirmandose no muimento do Santo, estando este padre em cima
preguando hum preguo sobre o arco do cruzeiro, cahio de cima com a cabeça pera
baixo, acudimos os que estavamos na igreja ao padre, que estava na escada
pendurado por hum pé, e a cabeça pera baixo na borda do moimento do Santo , e
o tirámos sem lhe fazer nenhum danno, e tornou loguo a subir à escada como
estava, dando graças ao senhor, que pello seu Santo fizera o milagre.
Logo pouco tempo depois, estando nesta villa huma Donna illustre, que
depois foi aia del Rei Sebastião per nome Joanna de Goios, lhe naceo em hum
peito hum inchaço a que chamão cancro, e andando muito atrebulada, e chea de

21
dores, se foi hum dia áo moesteiro, e na sepultura do Santo se encomendou a elle,
e loguo foi saã, como que nunqua tivéra náda.
Depois que se derrubou o moesteiro velho, e se passou a pedra áo novo,
ficou o moimento do Santo antre a caliça, e assi cuberto della; neste tempo huma
molher nobre desta villa per nome Isabel Anriques [fl. 394v] tinha huma hunha
no dedo poleguar do pé direito, a qual hunha lhe crecia em tanta maneira por
dentro da carne, que lhe furava o dedo até sair da parte de baixo por duas partes,
e sofria muitas dores mormente, quando lha arancavão pera a curar,
encomendouse áo Santo, e eu a levei áo seu moimento, que estava a onde diguo, e
meteo o pé no buraco do moimento, e loguo cobrou saude, e nunca mais teve
aquelle mal.
Na peste grande, que foi o anno de 76 saindosse El Rei da Corte de
Lisboa, veio ter a esta villa fogindo della o Bispo de Sam Tomé, que fora frade
da mesma hordem, e o dia, que cheguou áo moesteiro, que então estava na
guafaria, foisse com o prior a ver os edificios derrubados, onde fora o moesteiro
velho, e se elle criára, e andandoos vendo, achou o moimento do Santo antre a
caliça, e não o podendo sofrer, pela devação, que tinha no Santo mandou loguo
buscar pedreiros e gente, e no mesmo dia o fes mudar á capella mór de Santo
Andre, onde estava o moesteiro; trazia o Bispo hum escravo ladino, homem de
confiança por nome Pero Cão, que lhe tinha cuidado de sua caza, o qual vinha
ferido de peste, com hum inchaço grande, e ardendo[fl. 395] em febre, e o Bispo
não sabia, nem os de Caza por sómente viãono vir abraziado com a febre e
cahindo, cheguando o Bispo áo moesteiro deitouse o escravo; e quando o Bispo
mandou buscar gente para mudar o moimento do Santo, chamarão o escravo, que
por se encobrir foi lá; e pondo as mãos nas pedras do moimento, que se
arancavão pera se mudarem, supritamente se achou são, sem febre, nem inchaço;
perguntou então áos companheiros, cuja era aquella sepultura, disséraolhe, que
era de hum homem santo, deo graças a Deos, e calouse; no mesmo dia
caminhando o Bispo pera Obidos, e vendo o escravo hir são, e alegre lhe
perguntou, que ouvéra aquella menham, que assim hia caindo, e elle lho contou

22
então como vinha ferido de peste, e como recebera saude tocando o moimento do
Samto, com o que o Bispo louvou muito a Deos, e chegando a Obidos o escreveo
ao prior, e padres ao outro dia.
No mesmo tempo se vio claramente, que nenhuma pessoa, que trouvesse
terra, ou reliquias do Santo, fosse ferida de peste, ardendo esta villa nella, e o
termo.
No mesmo tempo da peste estando eu na minha quinta fugido com [fl.
395v] parte da minha caza, nos luguares ao redor morrião muitas pessoas disso,
do que eu andava assás assombrádo, e detreminando de me hir pera borda do
maar, huma ante manham estando cázi acordado, me apareceo o Santo, e me
disse, não fujas, nem ajas medo: tua molher, tem São Nicolao, e tua mai, tem São
Sebastião, e tu, bom pinhor tens contiguo, e por isso não temas, e abrindo os
olhos , não vi quem me dera tál esforsso; trazia eu huma reliquia do Santo
comiguo, e com ella me fes o Senhor merce, que me livrou sempre que andando,
e converssando com pessoas feridas do mal, nunca me empéceo.
Encomendavame cada dia ao Santo, e como homem de pouca fé, por os
rebates ameudarem nos vizinhos, detremineime hum dia de me hir pela menham
fogindo a borda do mar, e ante menham me tornou aparecer, o que me fallára, que
eu creo ser o Santo, e assi irado, me disse, porque desconfias? ou para onde
foges? não sabes, que onde fores levas a morte contiguo, não ajas medo, e
quietate; pelo que dando graças ao Senhor, entendendo, que era o Santo, o que
me fazia merce me quietei, e sempre estive são pella bondade do senhor, e
merecimentos [fl. 396] do Santo, curando, e converssando com pessoas feridas do
mal.
Tinha eu dous escravos mancebos, e vindo de Lisboa aqui, quando tornei,
achei hum delles falecido do outro dia de hum prioris e o outro achei na cama
com huma postema no peito, com que estava já em artiguo de morte e hum fizico,
que os curou, me disse, que o escravo acabaria dahi a huma ora com a maré,
tomei huma reliquia, que sempre traguo comiguo do Santo, e deia a minha mai
com quem pousáva, que a partisse, e deitasse hua pequena ao pescoço do

23
escravo, e disse, que eu confiava em Nosso Senhor, que pelo seu Santo me fazia
merce de dar saude ao escravo pera que viesse trabalhar nas obras do moesteiro
trinta dias lançada a reliquia ao pescoço do enfermo abrio os olhos, e se assentou,
e falou comiguo, e disse, que queria vir comiguo a trabalhar nas obras do
moesteiro, e com isto lhe arebentou a postema pela boca, e encheo a caza de
sangue podre, que deitou, e loguo foi são, e em breves tres dias se alevantou são
e veio trabalhar trinta dias nas obras do moesteiro, como prometi áo Santo.
Hum enfermo fui hum dia ver, que estava muito mal, porque lançava
sangue [fl. 396v] pela boca, disselhe, que se encomendásse áo Santo, e com huma
reliquia sua, que lhe dei lhe estancou o sangue loguo.
Huma postema me naceo em hua perna abaixo da virilha, que lançou
muitos raios, e com que estive quazi desconfiado do medico, tomei a medida da
perna com huma candea, que mandei por a cera na sepultura do Santo, estava a
este tempo o medico comiguo, e outros homens pera me abrirem a postema, que
temia abrir por não cortar algum nervo, por estar em lugar muito periguoso, e
estando com estes temores, puzerão a candea na sepultura do Santo, e logo me
arebentou a postema, donde o medico dispois tirava os raios da postema tão
compridos, e grossos, como tripas, e hindo á sepultura do Santo dahi a poucos
dias acabei de ser são de todo.
O moesteiro de Santerem desta hordem trazia huma demanda com El-rei
sobre a Ocharia, que hé huma granja, que os padres tem áo longuo dálpnassa, que
lhe rende muito, e donde trazem muita criação de vacas, e porcos, e a demanda
era sobre El-rei dizer, que era coutada sua; não podião os padres achar couza,
com que limássem de [fl. 397] a perderem, e estando o feito nestes periguosos
terrenos, saindo hum dia dous padres da caza por detrás do muro, onde estão huns
munturos acharam hum moço pequeno lendo hum purgaminho velho, e mostrouo
áos padres, dizendo, que o achara ali, tomou hum dos padres o purgaminho, e
lendoo achou, que era huma doação, que fizéra hum conde da mesma ocharia áo
moesteiro, sendo Frei Gonçalo de Laguos prior delle; pella qual escriptura, ficou
a Ocharia confirmada áos padres, e se crê, que o mesmo Santo, a quem a Uharia

24
foi dotada, foi o que trouve ali a escritura pera que se não perdesse o que lhe fora
dado.
No Inverno andando eu e D. Diogo Sotto Maior à caça despinguarda das
ades, fomos ter áo Moesteiro de Penna Firme, e hum espinguardeiro, que vinha
com nosco se passou da outra parte da alaguoa per atirár a huns gualheiroens, que
andavão nella, e eu, e D. Diogo, e o Prior, e o outro padre da caza ficámos ao de
dentro de hum vallado, que estava junto das espedarias de fora, e os nossos
moços ficarão da parte de fora do vallado com os nossos cavallos; o
espinguardeiro, levava huma espinguarda minha grande, que levou per ante mim
com duas [fl. 397v] carguas de perdiguotos grossos, como grãos de comer,
pondosse da outra parte pera fazer tiro me afastei dos cumpanheiros e brádei áo
que queria tirar, que se desviasse por nos não ficar de fronte, a este tempo
abaixou elle a espinguarda, que tomou foguo no ar, e a mor parte da monição
veio dar aonde nós estavamos, e me cingio, e dous perdiguotos passárão por cima
do vallado, e dos cavallos, que os espantarão, e fugirão áos negros, e forão dar
dar estes dous perdiguotos por baixo das jenellas das sellas que estão sobre a
porta da igreja, donde arrancarão cada perdiguoto seu pedaço de caliça.
Acudiraome os companheiros, e prior, e me derão por morto, e acharanme
hum pouci turvádo fedendo a chamusco, e ardendome os olhos, e perguntáraome
se estava ferido, diselhe, que me não sentia ferido, e dezencostandome do
vallado, onde estava com as costas, achamos no vallado seis, ou sete buracos de
perdiguotos, que estavão metidos nelle, sem poderem entender, por onde estes
perdiguotos passarão, que me não fizerão mal, nem somente hum guabão grande,
que tinha vestido me furarão, sahidos dali para o moesteiro, o prior olhava [fl.
398] pera mim, e ainda a este tempo levava fala da cor perdida, e assim turvado
me disse, ainda não em mim, porque vos vi morto, respondilhe, eu traguo hum
peito de prova, per onde estava seguro, que inda, que me déra hum pelouro de
bombarda, me não fizera dano, com o dezacordo, que o prior levava, remeteo a
mim, e apalpoume os peitos, e disse eu vos [?] o peito, que dizeis, e lhe respondi
rindo, traguo huma reliquia do Bemaventurado São Gonçalo de Laguos nos

25
peitos, com que não temo nenhum periguo, a isto alevantou elle as mão, e deo
graças ao Senhor, dizendo, que não sabia, que trazia tal reliquia comiguo, pella
qual o Senhor fizera tamanho milagre, como fazia outros muitos pello seu Santo.
Maria Fernandes molher de Pero Gomes tanoeiro da praça andando muito
doente de maleitas, e muito desconfiada da sua saude, topou hum dia duas filhas
minhas, que avendo dó della, lhe dissérão, que fosse á sepultura do bem
aventurado Santo, e tomásse a terra sua, e a deitásse áo pescoço, e ella
respondeo, que tinha feito muitas romarias, e que a não quizéra Deos ouvir, e [fl.
398v] como com tudo, porque lho ellas pidirão foi á sepultura do Santo donde
veio sam, e dahi a poucos dias me disse: bem vos tirou o Santo o rosto de
vergonha, e então me contou o milagre.
A muitos outros doentes de febres fis encomendar áo Santo, por cujos
merecimentos o Senhor lhe concedeo saude, que não conto pelo meudo por não
fazer grande volume.
Neste anno de 83 andando nesta villa andásso de bexiguas, com que
morrerão muitos mininos. Sirqueiro morreolhe hum filho dellas, e outro filho
ficou dellas tão no cabo, que desconfiava delle, e estando assim atribulado
cheguei eu e lhe perguntei pello minino, e elle me disse, como estáva no cabo, e
o que mais sintia, era huma minina de colo, que temia enxersse de bexiguas,
diselhe eu, que tomásse a midida dos mininos em candeas, e que as levásse a
sepultura do Santo, e que lhos encomendasse, e que lhe deitasse a terra da
sepultura do Santo áo pescoço, e eu ficava por fiador, que o doente tivesse saude,
e a minina não tivesse bexiguas, fes elle isto depressa, e deitada a terra áos
meninos, o doente foi são, e a menina não teve bexiguas [fl. 399] donde este
devoto tomou particular devação áo Santo, contando a todos o milagre.
Neste mesmo tempo outras pessoas forão á sepultura do Santo buscar a
terra pera os mininos, que tinhão doentes deste mal de bexiguas, os quaes loguo
cobravão saude, e os sãos que lá levavão a oferecer não adoecião do mal, e
porque são muitos, os não diguo em particular, mas darei os nomes delles por

26
escrito, avendosse, que he necessario tiralos por testemunhas pera gloria do
Senhor.
Catherina Serã mulher de Lopo Carvalho pessoas nobres estando de parto,
e mui atrebulada de dores, alguns dias, mandou o marido buscar huma reliquia do
Santo, que lhe levarão em hum relicário, que lançou áo pescoço da molher, e em
lho lançando supitamente se lhe tirárão as dores, e no mesmo instante pario huma
filha, que hoje tem viva.

27
3 - BIBLIOTECA GERAL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, CÓDICE N.º
436 44
(FREI ALEIXO DE MENEZES)

[fl. 1] Da antiguidade da Provincia de Portugal nem do tempo em que


nossos religiosos entrarão naquelle reino não temos serteza algua. So estou
advertido que li nos papeis, que com muita verdade tinha junto o padre frei João
de São Josef, que em tempo DelRei Dom Afonsso Anriques primeiro rei de
Portugual vierão nossos religiosos de França cuido ou doutra parte que alli
nomeia. E ElRei lhe[s] quis dar o Mosteiro de São Vicente de Fora, que então de
novo tinha edificado, e elles o não quizerão aseitar por serem irmitãos e nem lhe
servir o modo de edificio a pobreza e humildade em que vivião. Mas com licença
sua se forão ao monte junto do mesmo mosteiro, e ahi edificarão hua ermida com
cellas ao redor do monte pera os religiosos, em que se puzerão e viuerão. E proua
isto de capitullos da Cronica do mesmo rei Dom Afonsso que sera facil ver nella
e nos mesmos papeis se forem vivos e nos do Padre Romano, se os levou pera
44
O excerto do códice que aqui se apresenta foi transcrito pela primeira vez por Carlos Alonso e
parcialmente publicado em Archivo Augustiniano (1988), pp. 277-296. Contudo, a inexistência desta
publicação nas bibliotecas por nós frequentadas, impôs, na altura da nossa investigação, o contacto
directo com o manuscrito, do qual fizemos a transcrição aqui apresentada, incluindo os fólios 1 e 2, até
agora inéditos, dada a sua importância para a compreensão do contexto da produção textual.

28
Castella como cuido. E depois pelo tempo adiante huma Dona Suzana que jaz na
Igreja de Santa Marinha de Lisboa nos dotou aquelle campo do monte que oje
posuimos, que por ventura no arquivo de Santa Marinha se podera achar quem he
esta Dona Suzana e em que tempo foi. Depois muitos annos noutra escritura que
estaua no convento de Lisboa, e em que dizia que se ajuntavão o Alg[?]oazil, e
homens bons nas alpendoradas da Se e ali propuzerão se darião aos frades do
Erimitorio de São Gens o Campo dal mo[?]do, que he aonde agora está edificado
o convento junto à porta que chamão de Santo Augustinho, que he o postiguo que
vai pera o monte, e lhe fizerão doação della quoando se pera ali passarão
constrangidos pollo bispo de Lisboa quando se passou o breve que viessemos
viver a cidades. Estas são as lembranças que do Convento de Lisboa tenho que
importara muito aclararense antes que com o tempo se acabe de perder tudo,
porque como o Padre Romano colhia todos estes papeis pera a istoria geral que
não acabou. [fl. 1v] E elle morreo e de seus papeis se fara na sua provincia mui
pouco caso como se fazia delle; tudo deve ser perdido.
E os papeis tocantes a provincia se devião pedir e arecadar e tresladar ate
vir alguem que tome a seu carguo entender nestas cousas, que muitos tem por
muito escuzadas, e eu por muito necessarias para honrar da religiao e ensitarmos
a servir mais a Nosso Senhor com o exemplo de nossos maiores do Convento de
Penafirme, que parece o segundo na antiguidade, e não o primeiro como alguns
cuidão.
A escritura mais antigua he a quel nelle está do Campo do [?] da perroquia
de São Jullião, que agora he huma pequena capellimha de pedras toscas quasi
junto do mar, pera onde chamão Santa Crus, porque o mais he comido do mar. Na
qual se andem advertir duas cousas. A primeira que não he aquela doação da
instituição do mosteiro, porque diz que dotarão aquelle campo aos frades que ali
moravão, que parece já antes avia ali frades de muito atras a quem foi feita a
doação. O segundo que o nome do prior não he Frei Guazitimo como
commumente dizem, senão Frei Guilelmo que assi diz, e por se ler mal disserão
Frei Guazitimo. Mas eu vi de vagar a escritura feita a Frei Guillelmo e seus

29
frades, donde cuido que alguns antigos pouco sabidos nas historias, pollo nome
de Frei Guilelmo vierão a dizer que fora o mosteiro fundado por São Guilelmo,
não vindo elle a Espanha em tempo que pudesse edificar mosteiros nem os
edificando senão para Alemanha, França e outras partes com fins a esta.
Entre os papeis do padre Frei João de São Josef estava a vida de São
Guilelmo, tirada dos annais de França escritos em lingoa francesa, que elle e o
padre Frei Miguel dos Santos, tirarão com algumas curiosidades em que se
soltavão claramente duvidas que tras a vida de São Guilelme, em especial o que
alguns autores francezes dele referem da vinda que fez a Santiago da Gualiza, o
que se ouvera de ver que se não perdesem, pois erão de autores graves e curiozos.
E tudo cuido que avia de ter levado Romano.
[fl. 2] Dos beatos e servos de Deus da nossa provincia e nação há mui
pouca memoria e menos curiosidade antee nos de saber delles, e oje me parece
que não avera delles nada porque Romano colhia tudo que agora deve ser
perdido. E entendo eu que avia de morrer sem fazer nada. Lhe ouve as mãos os
papeis que elle tinha do que tocava aos santos que levava da provincia, e os
tresladei e trouxe comiguo por se não perderem de todo, dando lhe tãobem alguns
que tinha achado. E agora me pareceo necessario tresladalos e mandalos a
provincia pera que la os ponhão em algum livro aonde de todo se não perquão,
ate Deos prover de quem queira tomar a seu carguo ocuparse nestas cousas e
pollas em ordem. E asi os mandei tresladar pera as casas desta Congregação da
India pera que em qualquer parte que se perdese se achase na outra.

[...] 45

[fl. 2v] Do beato Gonçalo de Lagos.

45
Suprimiu-se parte do texto correspondente a cerca de metade da f. 2 e início da 2v, por nele se
tratar do Beato Tadeu da Camparia.

30
A vida do glorioso São Gonçalo de Lagos andava tão curta e mal escrita
em livro tão roto e esfarrapado no Convento de Torres Vedras quando me fizerão
prior delle que me pareceo necessario, do que ali e noutras partes achei, e da
tradição de muitas peçoas fidedignas e da muita idade do que communmente
ouvião contar a seus pais, e papeis que daquelle tempo dam lembranças de cousas
notaveis que sempre homens curiosos fazem que alguns tinhão. Do que tudo
junto compus a vida do Santo que dei ao Padre Romano. E por me parecer que
tudo sera perdido a torno a por aqui na forma em que então ordenei sem ter
tempo pera a consertar melhor.

Prologo da vida do Santo Padre Beato Gonçalo de Lagos.

A vida do glorioso padre São Gonçalo de Lagos se perdeo há muitos annos


com os mais dos seus milagres e estromentos publicos que delles avia por
negligencia e descuido dos padres antiguos, os quais ocupandosse mais em fazer
cousas que outros pudessem escrever que hanotar as que os paçados tinhão feito,
deixarão perder cousa de que a Deos nosso Senhor vinha tanta gloria, que nas
vidas de seus sanctos he glorificado e honrrado como fonte de todos seus bens e
principio donde ha origem toda sua virtude e santidade e a nossa sagrada religião
nesta provincia de Portugal tanta honrra e proveito para os religiosos della, pera
esforçados com tão sanctos exemplos levarão por diante com mais perfeição seus
sanctos intentos se exercitarão a servir a Deos com maior perfeição. E depois de
se perder este primeiro livro, outro que tãobem continha alguas cousas da vida do
sancto com outros milagres mais modernos, sendo leuado a hum enfermo que
desejava de os ouvir não ha muitos annos nunca mais apareceo. Pollo qual se não
poderão ver nesta vida exemplos de sua grande santidade e religião como os
muitos milagres que o Senhor por seus merecimentos tem obrado, e
continuamente obra, mostrão que ella foi. As cousas que com tudo aqui vão
apontadas são tiradas de papeis autentiquos que pera a istoria geral da Ordem
estavão juntos a memorias fidedignas que peçoas particulares tinhão da vida do

31
Santo e da tradição commum da terra a peçoas della erdada com fidelidade de
pais a filhos que na istoria he mais verdadeira escritura e de mais credito que
todas.

[fl. 3] Capitulo 1.º


Da primeira idade do Beato Gonçalo e de como tomou o abito de nosso Padre
Santo Augustinho.

Foi o glorioso São Gonçalo natural do reino do Algarve da villa de Lagos


que agora he cidade principal delle, da qual tomou o apelido na Ordem
chamandosse Frei Gonçalo de Lagos. Não sabemos os nomes a seu pai e mai, mas
sabemos que, sendo de gente comum da terra em sangue, erão dos mais
principais em christandade e virtude verdadeira na igreja dos christãos, os quais
como tais criarão o filho em temor a Deos e tiverão cuidado de o ensinar as artes
que na primeira idade se costumão aprender, nas quaes todas saio no serviço de
Deos tão eminente, principalmente no escrever, que de pois de religioso escreveo
a muitas partes livros pera o serviço do choro como adiante se vera.
Foi crecendo o moço em idade e juntamente em bons costumes e piedade
christam, os quais se arreigarão mais em seu coração polla natural singeleza de
que o Senhor o dotou que foi o primeiro alicerse sobre que se alevantou o
edificio esperitual que nelle fundou. Não sofria o demonio tão bons principios, e
receando os fins que poderião dar solicitou outros moços de sua idade a
conversão que com praticas dasconcertadas amizades e tratos e recreaçoins
diverticem o santo moço de seus boms principios. E assi combatendo elle per si
sua alma interiormente com pensamentos desconcertados e [exteriormente] 46 por

46
No original encontra-se escrita a palavra «interiormente».

32
seus menistros, com pratiquas descompostas e persuaziçoins deabolicas,
pretendia por todas as vias venser sua pureza e castidade enredalo nos laços da
deshonestidade, destruição de todos os bons intentos desta idade. Mas como em
vão se deite a rede diante dos olhos daquelles a quem Deos os abre para enxergar
o perigo della e lhe dá penas e azas pera voar alto e escapar delle, abria o santo
mancebo as azas de seu coração a Deos pedindolhe com freventes oraçoins
remedio e forças pera venser seus pensamentos interiores, exercitandosselhe
cada vez mais nellas as penas pera se alevantar e fogir as occasi[oens] interiores,
ia guardando e conservando interior mente a exterior pureza e limpeza que no
santo bautismo recebera. E asssi presseverou nella todos os dias de sua vida
vivendo sempre com ho recato que pera tão sobida determinação se requeria. E
vendo que sobre este estimauel tizouro da castidade e pureza chovem continua
mente milhares de ladroins e saltiadores que o menor discuido danão huma alma
pobre e despojada da mais rica peça que se pode desejar com dano mais
irreparavel que a mesma morte, andava o santo mancebo mui sobre avizo de
todas as conversaçoins e amizades que se lhe offerecião saindose dellas e
dandolhe de mão pello milhor modo que podia.
Mas entendendo quão difficultoza empreza tomava para quem vive [fl.3v]
no mundo enformado de si proprio como prudente andava em accasioins sem cair
nellas, detreminou dar no laço de todo e recolherse em alguma religião aonde não
tendo ocazioins de males vivesse seguro de quedas e tendo muitas de virtudes se
esforsasse aproveitar nellas. Detreminando em tão santos prepositos comessousse
a exercitar de novo em obras mais sobidas de virtudes e dandosse a jejuns,
oraçoins e disciplinas pedia com muita instancia a Deos guiasse seus intentos e
abrisse caminho a seus desejos aonde e como Elle fosse mais servido.
Não forão em vão suas oraçoins por que o Senhor, que suavemente
dispoem todas as cousas, ordenou que nesta conjunção alguns amigos e parentes
seus detreminasse vir a serto neguocio a cidade de Lisboa. Pareceolhe ao santo
mancebo que ali se lhe abria boa occasião pera seus desejos e assi se resolveo em
se vir com elles a Lisboa pera que ali, como tinha noticia que avia muitos

33
mosteiros e mui religiosos, escolhesse entre elles o que achasse mais conforme a
seus intentos e lhe parecesse mais acomodado aos desejos de sua perfeição.
Chegado a cidade e vendo as casas dos religiosos della e encomendando em todas
a Deos sua pertenção, poslhe o Espirito Santo em o seu coração que na religião
sagrada do glorioso padre Santo Augustinho poderia aproveitar muito na virtude
e de baixo do amparo e protexção da sacratisima Virgem Maria Nosa Senhora, a
quem o mosteiro dessa ordem naquela cidade he dedicado, levaria avante seus
intentos e perfeiçoaria com seu favor ainda a obra que tanto desejava começar. E
asi obedecendo conforme ao concelho de que fazia as vezes de Deos que
interiormente lhe falava, se foi ao mosteiro de Nossa Senhora da Graça da ordem
de nosso padre Santo Augustinho e sendo recebido dos religiosos delle, que em
suas praticas penetraram seus intentos, tomou o abito naquelle religioso convento
e logo começou a dar mostras de qual avia de ser ao diante, porque acabando seus
bons desejos muitas oraçoins na religião para as pôr por obra, em breve creceo
tanto sua virtude que em poucos dias foi notado e conhecido por toda a provincia
e estimado de todos como seu exemplo santidade merecia.
Passarãosse alguns annos de sua primeira idade na religião athe ser
sacerdote nos quais assi se exercitou a servir a Deos em exercicios de humildade
e spirito que em ambas as virtudes saio eminente. Feito sacerdote acrecentou
outra nova obrigação, novos exercicios, alembrado de ver que a quem maiores
cousas se dão mais estreitas contas se pedem, por onde depois de sacerdote se
dava continuamente a oração e contemplação apurandosse sempre cada ves mais
sua alma pera [fl. 4] celebrar tão altos misterios. E assi o celebrava com tanta
devoção e spirito e affeito que mais parecia no tempo do sacrificio estar entre
anjos no ceo que viver ainda como homem mortal na terra.
Sua cama desd’aquelle tempo ate sua morte nunca foi outra senão humas
poucas de vides no canto da cela, de que sempre a provia no tempo dellas, em
que algum espaço se encostava sem outra alguma cubertura nem traviceiro e
ainda palhas por serem mais brandas achou sempre seu spirito demaziado mimo
para sua reguroza penitencia. O mais do tempo do dia guastava no choro na

34
oração e noutros espirituais exercicios, ao que delles lhe restava empregava em
escrever livros para o choro, obediencia em que os perlados o ocupavão pello elle
fazer estremadissimamente. Alegravasse o Servo de Deos muito com esta
ocupação e faziao com muito espirito e devoção indo sempre escrevendo no
coração de dentro com entendimento e sentido das palavras que com a mão no
purgaminho escrevia de fora não com [tinta] 47 naturalmente como dis o apostolo
mas com o espirito de Deos vivo. E vendo que fazia conta que se avião de cantar
louvores ao Senhor era sua alma cheia de grande Consolação do seu exercicio, e
dezia que pois elle não prestava para as louvar a Deos, ao menos se alegrava
muito de se occupar em cousa com que os outros o louvasem.
Antre outros livros que o servo de Deos neste tempo escreveo foi hum
commum dos Santos pera a casa de Lisboa o qual, servindo muito tempo depois
da morte do servo de Deos, foi furtado do choro e por varios sucessos foi visto
em Salamanca por pessoas que o conhecião e o titolo que tinha. Aconteceo que
andando os religiosos buscando por muitas partes pella falta que lhe fazia e
vendo que não aparecia, o encomendarão muito ao mesmo santo que o fizera que
fosse seruido de alcansar de Deos tornasse o seu livro para o convento para onde
ofizera pois nelle fazia muita falta. Com isto foi achado hum dia no choro antre
os outros livros quasi no mesmo tempo em que foi visto em Salamanca sem se
saber quem o ali pudesse trazer, por onde conhecendo os religiosos a maravilha
de Deos lhe derão muitas graças por acudir a sua nececidade e ao bem aventurado
São Guonçallo que o delle alcanssara.
O mesmo se vio noutro livro no Convento de Santarem, tãobem escrito
pello servo de Deos, que desaparecendo e sendo levado a Lisboa e visto la, foi
achado no choro de Santarem e sem se saber o como ali fora tornado, crendo os
religiosos que pellos merecimentos do glorioso São Gonçalo que pera aquella
casa o escrevera lhe fora restituido.
Neste exercicio gastava o Servo de Deos a parte do dia que lhe restava da
oração mas as noites [dos] dias que os outros esperão pera descanssar do trabalho

47
No original encontra-se «tinha»

35
do dia, tinha elle mais particularmente dedicadas a oração e contemplação dos [fl.
4v] misterios divinos, dizendo com o psalmista que a noite dava luz a sua alma
nas delicias de sua contemplação. E assi tirando hum breve espaço que repouzava
as horas das matinas, todo o mais resto da noite a gastava em oração, lagrimas,
suspiros e diciplinas, pezandolhe mais da nececidade da natureza que o forçava a
descansar hum pouco que do trabalho que tinha em vigiar tanto. A isto ajuntava
hum aspero silicio de que por dentro andava vestido o qual nem na infermidade
tirava, sendo o vestido de fora pobre mas comum com o dos outros. Com as quais
cousas todas se fazia o servo de Deos hum vivo exemplo da verdadeira penitencia
e humildade.

Capitulo 2.º
De como fizerão o servo de Deos São Gonçalo prior dalgumas casasda provincia
e como se avia no provimento e governo dellas.

Com estes e outros exercicios de virtudes se exercitava continuamente o


Servo de Deos São Gonçalo, ia crecendo a fama de sua santidade cada ves mais e
assi se ouve a provincia de aproveitar delle em officios do governo, porque na
verdade este he o estado que as almas proprias pera governar outras e em que
farão muito proveito com seu governo quando já em si estão prefeitas e o edificio
espiritual esta nellas em estado que ajudadas com o do favor nenhuma occupação
o pode derubar, e a alma tem já aquiridas tantas forças na virtude que a tudo
podera resistir, a tudo pode vencer a tanta liberdade de spirito que todas as
cousas pode tratar sem em nada se embaraçar, e a todos os negocios pode acudir
sem o [?] de nenhum delles se lhe apagar. E asi lhe encomendarão o governo das
melhores casas que na quelle tempo tinha a provincia, porque as em que por
escrituras e memorias achamos que foi prior, a fora outras de que nos não consta,
forão no Convento de Santarem e o de Lisboa e depois muitos anos o de Torres
Vedras onde sendo prior morreo.

36
A maneira de que sendo perlado se avia o servo de Deos era notavel
porque, alembrandosse do que Jesu Christo senhor e mestre nosso disse a seus
dissipulos que não viera ao mundo sendo senhor e rei delle a ser servido senão a
servir, todos os officios baixos e humildes do convento fazia por si sendo muitas
vezes cozinheiro e porteiro e sempre infrimeiro polla muita caridade que tinha
com os enfermos. Elle avia de lavar os pes aos ospedes quando vinhão de fora,
elle avia de aquentar a agoa e aparelhar o mais necessario, ele avia de varrer as
casas alimpar as oficinas, elle avia de fazer a cama aos enfermos e alimpalos e
servilos, não como seu perlado mas como escravo de todos e não so das portas
adentro [fl. 5] mas tão bem fora da casa.
Como neste tempo os conventos da provincia erão muito pobres e padecião
muitas necessidades elle por si procurava de aremedear tomando os alforges as
costas e pedindo nas terras em que estava pellos lugares a roda, com que
sustentava seus frades, e não sofria que outros fossem a esmola sem elle ir a sua
companhia, avendo de ir mais de hum, e não sendo necessario mais que hum soo
elle avia de ser porque se tinha por de tão pouco proveito que dezia que pois não
prestava para fazer maiores serviços a Deos e hera necessario que servisse nestes
officios aos outros para lhes deixar a elles mais lugar para se darem a oração e
recolhimento da contemplação pois se aproveitavão milhor destas cousas e
gastavão milhor o tempo que elle.
Ao que lhe dava a esmola recebia com huma humildade profundissima
tendosse por indigno de receber aquelle pequenino bem, e com tanta singeleza e
alegria festejava os pedaços de pão que lhe davão, que com mui poucos delles se
vinha tão contente para o mosteiro como se nelles trouxera todas as riquezas do
mundo. E assi aconteceo que sendo prior de Torres Vedras e avendose de selebrar
o capitullo provincial no seu convento vendo elle a pobreza da casa e falta que
tinha de tudo o necessario para a sostentação dos religiosos que avião de vir ao
capitullo, foise a Lisboa a pedir para isso esmola ao arcebispo daquella cidade,
que elle de muitos annos o conhecia, e mandando o arcebispo que lhe dessem
liberalmente tudo o que elle quizesse e pedisse, contentousse o servo de Deos

37
com os pais que pode levar nos alforges que trazia as costas e encheu huma
pequenina almotolia dazeite e huma borracha de vinho, couzas todas com que elle
podia caminhar. Carregado com tão grossa esmola se voltou pera Torres Vedras
que são 7 legoas de caminho aspero e fragozo, muito alegre e contente vindo
cantando louvores a Deos pello caminho e dandolhe muitas graças que não falta
as necessidades de seus pobres servos quando o servem com fidelidade e amor
poem nelle sua confiança e pertençoins, parecendolhe ali trazia de sobejo para
todas as necessidades que se lhe no capitullo offeressesse e provimento para
todos os que nelle se a juntassem. Mas o arcebispo que de muitos annos
reverenciava e estimava ao servo de Deos como sua santidade merecia, pasmado
de ver hum spirito tão humilde e singello que alargando os desejos so aos bens do
ceo com tão pouco dos da terra se satisfazia, deixou o levar seus pobres alforges
polla reverencia que lhe tinha e por não molestar sua singilleza, mas mandou
depos elle muitas azemolas carregadas de pão vinho, azeite, carnes e todas as
mais cousas necessarias pera o capitulo, offerecendosse com muita liberalidade a
fazer todos os gastos delle e encomendandosse nas oraçoins dos religiosos em
especial nas do seu devoto Frei Gonçallo.
[fl. 5v] Nacia neste contentarse com tão pouco ao servo de Deos da grande
affeição que tinha a santa pobreza e da experiencia de quão larga he a mão do
Senhor aos que o amão e para socorrer as nece[ssida]des dos seus servos quando
elles com coração prefeito o servem desaforrados do mundo e de seus bens poem
nelle toda sua lembrança e cuidado, como muitas vezes e em muitos casos
consiguo e com seus frades tinha principalmente experimentado.
Não soo em vida mas tãobem depois de morto acodio o glorioso São
Gonçalo algumas as vezes as necessidades dos relligiosos como se vio no
convento de Santarem aonde, sendo elle prior, tomou posse d[uma] erdade do que
principalmente pende agora a sustentação temporal delle. Socedeo depois muitos
anos que pondo serta peçoa de manda sobre ella aos religiosos, foi neceçario
mostrarem a doação e posse que della o servo de Deos tinha tomado. E
buscandosse no convento e não se achando, não tinhão os religiosos com que se

38
defender da injusticia que lhe pretendião fazer. Andando o negocio na maiior
força socedeo sahir hum dia o procurador fora ao mesmo negocio. Em indo per
fora da villa vio num monturo estar hum menino lendo per huma escritura grande
de purgaminho antiguo. Per coriozidade de ver o que era e per lhe parecer que
seria cousa que importasse a alguem, pedio ao menino que lha mostrasse e em a
começando a ler achou que era a escritura da posse e doação da erdade que o
servo de Deos São Gonçallo tinha tomado asinada por elle sendo prior daquelle
convento, com o qual dando graças ao Senhor que por tão novo modo acudira a
nececidade de seus servos, ao glorioso São Gonçallo a quem os religiosos por
certeza tinhão encomendado o negocio. Levou a escritura e aprezentoua em juizo
com que logo seçou a demanda e se concluio a causa em favor dos religiosos.

Capitulo 3.º
Do exercicio de ensinar os trabalhadores que o servo de Deos Frei Gonçalo
sendo prior de Torres Vedras e dum notavel caso que neste tempo lhe aconteceo.

No principal exercicio em que o servo de Deos Frei Gonçalo neste tempo


se ocupava era como temos dito a quietação da oração e brando sono da
contemplação, o qual o fazia andar assi por fora como por casa tão absorto em
Deos e ardendo em tão vivas chamas d’amor dum Senhor, em que cada ves mais
razoins enxergava pera ser amado, que lhe dava grande pena e tormento ver que
não caião todos na clareza destas razoins, nem pregavão todo seu amor nelle
como elle merecia a todos. E daqui lhe resultava na alma hum ardentisssimo
desejo de o ver amado e servido de todos e de ninguem offendido, antes cada
hum a seu modo com responder a obrigação d’amor em que a todos juntamente
consiguo achava. E pera isto todo seu cuidado era persuadir e exercitar a todos a

39
que Servissem e amassem muito a Deos e se apartassem de offensas suas. E
conciderando com siguo como [fl. 6] poderia fazer isto com mais proveito
inventou huma maneira de pregação no povo de Torres Vedras aonde estava por
prior, tanto mais proveitosa tanto mais continua mais particular e familiar a cada
hum dos que della tinha nececidade, a qual era por todos dias de serviço desde
acabado as completas no choro antes do sol posto ate a hora da noite, asentado a
porta da igreja do mosteiro velho, que estava na estrada mais corrente do serviço
da villa e por onde passavão todos os trabalhadores e peçoas homens e molheres
que vinhão de seos servissos em[sic] que por outra occasião se vinhão recolher ao
lugar, e ali chamava a todos os que passavão e os amoestava a cada hum em
particular com grande fruito e charidade a que servissem e amassem muito o
Senhor e tratava com elles tudo o que importava a sua salvação e de suas
conciencias de que lhe muitos davão conta. As vezes se ajuntavão tantos a ouvir
suas amoestaçoins que fiquava sendo hum concurso de gente [?] grande e huma
cotidiana e mui proveitosa pregação. Com isto trazia a terra toda e em especial a
gente de serviço e plebea tão reformada, que mais parecia seu trato de religiosos
recolhidos que de gente que professavão differentes obrigaçoins. Alli o achavão
sempre a aquellas horas aos desconsolados pera os consolar, aos atribulados e
necessitados de conselho e os pobres pera lhe[s] cobrir suas nececidades, e a
todos remedeava como podia. Isto mesmo que cada dia fazia a porta de seu
mosteiro fazia tãobem muitas vezes pellas casas particulares dos moradores da
villa e pellas aldeias aonde pedia esmola, asentandosse as portas das casas e
pregando e dando bons comselhos aos moradores della e a todos os que o querião
ouvir, e era tão ordinario isto nelle que ainda oje tem muitas peçoas em muita
estima pedras que tem as portas das casas por lhe dizerem seus pais que ali nellas
se asentava o servo de Deos muitas vezes a lhes pregar e falar de Deos. E a porta
da igreja velha tem muitos muita devoção por esta mesma rezão e por ser o
asento ordinario do santo pera este efeito.
Deste ardente desejo que tinha da salvação das almas e desta sede com que
sempre andava de aproveitar a todos, lhe nacia tãobem andar ajuntando os

40
meninos, travar com elles pera lhes ensinar a doutrina christãa e bons costumes e
darlhe bons exemplos, e fazialhes a todos outra mui devota pregação e mais
familiar e acomodada a suas idades. E como pera elles toda a cousa de sizo he
desgostosa, pera que não fugissem delle, trazia as mangas do abito cheias de
pedaços de pão e de fruitas e outras cousas com que os meninos folgavão, e
aonde os via chamavaos e davalhes o que trazia ensinandolhes primeiro oraçoins
e devoçoins e que fogissem de travessuras e que fossem muito devotos e
obedientes a seus pais e a todos os mais concelhos que os podião aproveitar e
criar em temor de Deos, e depois com as mãos sobre suas cabeças alevantava os
olhos ao ceo e pedia com grande effeito a Deos os fizesse seus servos e não
premetisse que o offendessem e os puzesse no numero dos seus escolhidos. Com
esta familiaridade e com alegria [fl. 6v] com que se comunicava aos meninos
pera os affeiçoar a Deos lhe erão todos tão familiares que o não vião na rua que
lhe não fossem logo apalpar as mangas a ver o que lhes trazia, e se juntavão
muitas vezes a brincar com elle como se fora outro de sua idade, e ajuntavão
muitos ao redor delle tirandolhe huns polas mangas do abito, outros pella correia,
outros pello capello, fazendolhe travessuras as quaes todas consentia o servo de
Deos com grande alegria respondendo a cada qual dos que lhas fazião: Deos te
faça grande santo, e repetindo isto tantas vezes e com tão grande effeito e espirito
que a todos moveu a deuoção, sofrendo todas estas menenicias aos meninos a
conta de lhes sofrerem sua doutrina e ensino, gardando a doutrina do apostolo
que dis de si que em todas as cousas se fazia com todos pera que asi a todos
aproveitasse e ganhasse. E se alguma peçoa queria estrovar os meninos ou
pelejava com elles, por isto elle o [não] consentia mais, e abrasandosse e
alegrandosse com elles dezia as palavras de Christo nosso Senhor: deixar chegar
os meninos a mi não nos estroveis por que delles he o reino dos ceos.
Não sofria o demonio tanto proveito nas almas assi dos meninos de que se
receava que tal criação e tais concelhos e exemplos bebidos naquella idade
resultassem ao diante noutra maior e grandes perdas suas e proveitos de quem
com elles se criava, como tãobem nas dos maiores que por conselhos e

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exortaçoins do servo de Deos se apartavão de suas culpas e se guardavão doutras
esforçandosse a amar e servir a Nosso Senhor. Vendo a cruel guerra que nestas
cousas ao inferno todo fazia por toda aquella comarca aonde era conhecido,
detreminou de ver se podia derrubar aquela fortaleza tão fortificada por Deos,
pera com sua queda a dar a muitos que se governavão por elle, e se podia render
por algua via a quem tantas vitorias cada dia delle alcançasse. Pera isto
pareceolhe bom conselho valerse de suas antiguas armas, de huma desatinada e
deshonesta molher pera ver se lhe socedia tãobem a batalha com o servo de Deos
dentro no seu mosteiro como lhe socedera com o primeiro no paraizo terreal.
Com este desenho persuadio humas molheres perdidas e do seu bando infernal
que sintião muito ver por quantas vias o Servo de Deos cortava seus intentos e
reprendia seus desatinos e deshonestidades. Tecerão entre si humas das maiores
maldades que lhe no mundo puderão cometer pera desacreditarem o Servo de
Deos, a qual foi escolherão entre todas huma moça desenvolta e aparelhada para
qualquer atrevimento a que instruirão no que avia de fazer pera entrar de noite na
cella do Servo de Deos e o venser, pera que aproveitandosse da grande charidade
singileza e compaixão dos trabalhos e angustias do prior que conhecião, levarão a
deshonesta moça huma noite de grande chuiva e tempestade ja mais tarde a
portaria do mosteiro aonde começou a chorar com muita lastima e bater a porta
com grandes vozes e gemidos de fingimento como de quem estava em [fl. 7]
grande aflição e nececeidade. O Servo de Deos aquelas oras estava no milhor de
sua oração e quietação em ouvindo as vozes queixas, vendo as horas que erão e
tempestade que fazia, foi seu coração trepaçado de compaixão da nececidade de
quem asi chorava, e asezo de todo em caridade deixando a Deos em si e em sua
qietação e em seus gostos pera o achar mais copiosa tem no remedio da
nececidade e serviço do proximo, levantouse da oração e deixando as amorosas e
quietas oraçoins de Rachel se foi com muita presteza a portaria buscar a
sensualidade de Lia e ver quem batia e chorava e a causa de suas lagrimas e
gemidos. Em abrindo a porta deitasselhe a enganadora moça aos pees toda
molhada e lastimosa pedindolhe que lhe acodisse a sua honrra, ouvida a

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nececidade em que estava pera que o vinha buscar, que hera huma moça donzela
estrangeira na terra que estava em casa de huma senhora recolhida a qual por
paixão que della tivera a deitara a aquelas e com aquela tempestade fora de casa e
que na terra não conhecia ninguem; por isso se viera a portaria do mosteiro bater
pera que lhe desse algum canto em que se recolhesse aquela noite, por não
perigar sua honra se assi fosse achada pellas ruas e que sendo manhã a poria elle
em algua casa ate se remedear. O Servo de Deos que por huma parte tinha a
sigeleza de pomba, pella outra o ardor do fogo da caridade e compaixão do caso,
consumio o que podia atentar e advertir da prudentia da serpente, ordenando asi
principalmente o Senhor pera que pellos mesmos meios per onde o pretendião
desacreditar, fiquasse mais acreditada sua virtude e mais conhecida sua
santidade, compadecido della e de seu trabalho vendo que não erão oras pera lhe
dar por então outro remedio recolheua da porta adentro, e por lhe dar milhor
guazalhado nem dar turbação a ninguem, foisse com a serpente em figura de
molher a levou a sua cella e dandolhe com estrema caridade de comer por como
naquella oportunidade de tempo pode, foilhe buscar foguo a cozinha pera se
aquentar e ennxuguar, fezlhe a cama a hua parte da cella e aguazelhandoa com
muita singeleza e honestidade, a cobrio com seu pobre manto e sse apartou a
outra parte e postos os joelhos em terra tornou a continuar sua oração com o
mesmo affeito e quietação com que dantes estava. Não bastou tão raro exemplo
de limpeza pera dobrar e compungir o coração da perversa molher aseza por
huma parte no fogo da deshonestidade que o demonio nella atisava pera abrasar a
santidade do servo de Deos e pela outra outro fogo não menor da cobiça do que
se o vensesse lhe tinhão prometido. Em tangendo as matinas que se elle apartou e
ergueu da oração pera ir a ellas, não advertindo que elle [ fl. 7 v.] tivesse forças
pera vensser outras maiores tentaçoins que aquella, comessou a fazer tais gestos e
tão deshonestos e a descomporsse de feição que compadecido elle do mal que lhe
podia fazer descobrirse em noite tão fria e de tanto vento, sem em seu
singelissimo coração se reprezentar sospeita alguma de mal, de que huma
purissima alma estava tão longe, e se foi a ella e a cobrio dizendo: não te

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descubras filha que faz grande frio e fartea muito nojo. E deixandoa cuberta se
saio da cella e se foi ao choro. Vindo de matinas depois das horas que costumava
ficar no choro e tornandosse a recolher a cella e vendo na moça os mesmos
desconcertos a tornou a cobrir outra vez dandolhe o mesmo conselho. Com isto se
encostou e repouzou hum pedaço ate ser manhã clara, aonde a deshonesta moça
estava ja corrida e arrependida do seu atrevimento. Alevantousse o Servo de Deos
e levando a moça consiguo se saio da cella tão puro e limpo e vencedor e sem
lezão alguma do fogo da deshonestidade como os tres santos mancebos do foguo
da fornalha de babilonia, e desejozo do remedio da moça se foi com ella fora do
mosteiro pedir a senhora que ella disia a tornasse a recolher e olhasse por sua
honestidade. Não erão bem saidos ambos fora da porta da portaria quando ella
comessou a rir e zombar delle dizendolhe que a deixasse que não queria nada
delle nem tinha nececidade de sua intrecessão pera cousa alguma. Sabido o caso e
sucesso delle pellas outras que tinhão ordido a maldade e que já estavão
esperando as novas da vitoria pera as publicarem e desacreditarem o Servo de
Deos, ficarão confuzas e envergonhadas e conhecendo a maldade e arependidas
della, e apregoando a santidade do Santo Frei Gonçallo se lhe forão deitar aos pés
a pedir perdao, as quais o Servo de Deos recebeo com muita brandura e charidade
aconselhandolhes o que lhe cumpria a sua saluação e prometendolhes sua ajuda e
favor diante de Deos. Com que ellas mudadas noutras do que dantes erão, viverão
dahi por diante em honestidade e serviço de Deos, que tais são as pagas que os
santos dão aos que os perseguem e as vinganças que tomão dos que os mal tratão.
Diulgousse loguo este caso por toda terra e com elle creceo mais a opinião da
santidade do servo de Deos Frei Gonçallo.

Capitulo 4.º

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De huma molher segua a que o Seruo de Deos São Gonçalo deo vista e da sua
golriosa morte.

Não so por obras e exemplos, que he o principal, era conhecida e


reverenciada a santidade do servo de Deos São Gonçallo, mas tãobem por muitas
marvilhas e milagres que Deos por sua intercessão obrava, que todos em
particular com mais de sua vida he perdido [fl. 8] como asima dissemos.
Entre elles he mais celebrada a memoria que ainda oje na tradição de todos
os da villa de Torres Vedras dura dum caso maravilhoso que lhe aconteceo com
huma velha pobre que avia annos servia no mosteiro da sua igreja, a qual por
infermidades que teve veio a ceguar dambos os olhos e avia annos que padecia
este mal e era cegua. Esta vendo as maravilhas que o Servo de Deos fazia noutras
peçoas lhe disse hum dia como aqueixandosse delle: Padre Frei Gonçallo com
todos os que vos pedem fazeis m[aravilha]s, a todos curais, a todos remediais; so
a mim que sou velha e pobre e sirvo aqui tanto tempo em vossa casa não me
quereis acodir nem dar saude, nem me quereis por as mãos nestes olhos e darme
vista nelles. Compadecendosse o santo da nececidade e queixa da pobre sega,
mas cheio duma profunda humildade, lhe respondeo: irmã estais enganada, eu
não faço marvilha alguma das que vos dizeis nem as posso fazer; sou servo sem
proveito e maior pecador que todos; Deos he o que faz os milagres aquelles que
tem fe viva e verdadeira e com coração contrito e humilde e confiado se unem a
elle; não està a conta em vos eu por as mãos nos olhos que minhas mãos são
mãos de pecador nem são poderosas para bem algum; mas se vos tiverdes fe viva
e verdadeira e confiardes em Deos ainda que laveis os olhos com agoa de
sardinhas com isso sarareis e abrirsevos-ão e vereis. E a boa velha que cada
palavra do servo lhe parecia hum oracolo e se lhe reprezentavão ditas por hum
anjo de ceo qual elle era na vida, esquecendosse de quão encontrada meizinha
aquella era pera a infirmidade de seos olhos que pera isso lha elle apontara pera
emxerguar a força da fe ao que Deos com ella obra, vaisse com muita pressa a
casa e deitando humas poucas de sardinhas salgadas na agoa lavou com muita

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devoção os olhos com ella como lhe o santo dissera, pedindo com grande
singileza ao Senhor que pellos merecimentos de seu servo Frei Gonçalo, que lhe
aconselhara aquella devoção e meizinha, fosse servido darlhe com ella saude e
vista nos seus olhos. Foi cousa do ceo que supostamente se lhe abrirão e vio
perfeitamente, ficando dando graças a Deos polla merce que lhe fizera e ao seu
servo Frei Gonçalo por cujos merecimtos e intercessão lha concedera
Estas e outras marauilhas obrava Deos por seu servo, as quais todas, elle
com grande humildade atribuia as virtudes e fe daquelles a quem Deos as fazia.
Mas sendo já de muita idade, cansado de trabalhos e consumido de disciplinas e
mortificaçoins, era tempo de descansar e alcansar de Deos o premio de seus
serviços. E asi na era de mil e quoatro centos e quorenta e sinco ao principio do
mes de outubro, cajo doente dua grave infrimidade da qual entendendo [fl. 8 v]
ser a derradeira, alegravasse seu espirito de ver chegada a hora pera a qual tinha
ordenada toda a vida e sofrido com tantos gostos tantos traballhos, porque se ha
vida dos justos cansada e trabalhosa não tivera o bem escondido na morte, não
fora sofrivel de levar, mas como dis o Espirito Santo morrem em vida cem mil
vezes assi e a seus gostos por cheguar no cabo della a aquelle derradeiro ponto de
seus desgostos na morte pera nella se começar os verdadeiros gostos na gloria.
No qual transe vendosse oseruo de Deos com muita reverencia e contrição, pedio
e recebeo o santissimo sacramento da eucharistia e apos elle o da unção com tão
grande jubillo do espirito que parecia ja começar a gozar na terra da gloria que
da hi apouco avia de receber no ceo. Apos isto despedindosse de todos os
religiosos encomendando a todos o amor de Deos e guarda da sua regra e de sua
profissão lhes deitou sua benção como bom pai e perlado seu e começou a rezar
com elles o officio da encomendação e oraçoins que se na ordem costumavão a
dizer aos que estão naquela rigurosa hora, e com todo seu juizo perfeito e
sentidos interiores, encostado nas vides que de cama toda a vida lhe tinhão
servido, que nem naquella ultima infermidade se pode acabar com elle tomasse
outra e a frouxasse hum ponto do rigor de sua penitencia, antre os versos e
salmos que os religiosos ao redor delle estavão rezando, deixandoos com as

46
palavras na boca, com muita quietação a quinze do mesmo mez de outubro se foi
a gozar do Senhor a que com tanta fidelidade e amor tinha servido.
Como se soube na villa da morte do servo de Deos acodio todo povo com
grande sentimento as exequias de seu bom pai e todos choravão de se ver faltos
de sua doutrina e exemplo e procuravão aver algua cousa sua ou parte do habito
pera com sigo goardarem por reliquia em veneração de sua santidade. A qual
como era tão notoria a provincia e sua vida e milagres tão grande[s] tivese
cuidado de lhe darem sepultura particular apartada dos outros religiosos e em
lugar dessente na capella mor do mosteiro mas no chão. E polla mesma rezão de
sua santidade se teve o cuidado que ninguem mais pouzasse na sua cella
avendosse todos por indignos de habitarsse em tantas virtudes e exercicios lugar
que tão santificado delles ficava. E assi esteve muito tempo sem ninguem ouzar
demor[ar] nella, mas como hum religioso temerario e liviano com alguma
presumpção julgasse por suprestição não morarem outros na cella do servo de
deos e quis ser o primeiro que com pouca reverencia se atrevesse a isso, sentio
sobre si o castiguo de sua temeridade tão aspero, caindo naquella noite nhuma
enfirmidade tão grande que lhe veio a ser incuravel ate que arrependido bem de
sua culpa della morreo. Com que ninguem mais se atreveo a outro tanto e dahi
por diante ficou deputada a cella do servo de Deos pera casa de oração dos
religiosos: mostrando nisso [fl. 9] o Senhor quanto quer que honremos os lugares
em que seus servos com particulares exercicios o servem e quão santificado tinha
o tarbenaculo aonde tantos sacrificios de si lhe tinha feito seu grande servo São
Gonçalo.

Capitulo 5.º
Das vezes que foi tresladado o corpo de São Gonçalo e do milagre que fez quando se
tresladou o seu sepulchro.

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Tanto que o corpo 48 de Deos foi enterrado e que se devulgou sua morte
por toda aquella comarca logo começarão a cudir a sua sepultura asi das que o
tinhão conhecido na vida como das que ouvirão a fama de seus milagres e cada
hum acodia a elle pedindo remedio de sua nesecidade, e assi começou o Senhor
a obrar por elle muitos milagres assi nas peçoas que vinhão vesitar seu
sepulchro como as que levavão terra e reliquias delle. E como o concurso da
gente era muito pareceo aos religiosos que era pouca desencia estar o corpo do
servo de Deos em lugar tão baixo e no chão e assi na era de mil e quatro centos
e noventa e dous o tresladarão em hum arco que se fez no lado do Evangelho da
mesma capella mor metendo sua Santa reliquias nhuma caxa fixada com chave e
humas grades de ferro postas no arco de fora fechadas com duas chaves. E como
concorria muita gente a buscar terra da sepultura em que estivera enterrado foi
posto poucos annos depois na era de mil e quinhentos e dezoito no mesmo
luguar hum sepulchro de pedra pequeno com a imagem e figura do santo
esculpida nella com um braço pera a mesma sepultura por onde pudessem os
enfermos meter a cabeça, braços e mãos e tirar della terra pera suas
infermidades, no qual sepulchro faz o Senhor tantos milagres pellos
merecimentos do seu servo que se fez huma confraria.
No dia em que elle morreo vinhão muitos em romaria com muitas
offertas assi de toda aquella comarca como do reino do Algarve aonde assi por
ser delle natural como pellos milagres e aparecimentos que naquellas partes faz
como ao diante se verá era muito celebrada a fama de seus milagres. E no
mesmo dia se fazia uma grande feira no terreiro defronte do mosteiro como se
acha nas memorias antiguas asi da villa de Torres Vedras como do convento.
O que depois se foi esfriando assi pello tempo que tudo passa como pello
pouco cuidado que se teve de se zellar a devação do santo e apregoar as
maravilhas que o Senhor continua muito per seus [fl. 9v] merecimentos obrava
principalmente por se não fazerem estas cousas com autoridade do Summo
Pontifice nem estarem ainda aprovadas pela Santa Igreja Romana cuja licença e

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Tem sobrescrito com letra diferente «o servo».

48
aprovação por sertas semelhanças na neceçaria o que naquelles primeiros annos
parece que não advertio a simplicidade e singileza dos que nelles vivião.
Mas posto que esta confraria e concurso de gente cessasse não cessou a
devoção do povo até oje nem a continuação dos milagres no sepulchro do santo
e aos que se a elle encomendão. E assi detreminando os religiosos deixar o sitio
do mosteiro antiguo por ser muito enfermo e alagadisso e passarsse pera outro
mais acommodado junto do Ospital de Santo André cujas rendas ElRei Dom
João o terceiro aplicou ao mesmo mosteiro, e avendosse de servir da igreja do
ospital em quanto se fazia a nova, tresladarão os religiosos o corpo do gloriozo
São Gonçalo em huma prossição mui solemne dia de Nossa Senhora das Neves
a sinco d’Aguosto da era de mil e quinhentos e sincoenta e nove, concorrendo a
solemnidade assi os mais graves padres da Provincia como todo o povo e
clerezia do luguar, e foi posto na capella mor da mesma maneira que no
mosteiro velho avia estado.
Ao tempo que se fez esta tresladação não trouxerão os religiosos o
sepulchro de marmore que sobre a sepultura antigua do servo de Deos estava,
antes a deixarão antre as ruinas da igreja velha quazi cuberto de terra, mas povo
ainda alli oje o busca para fazer nelle sua devoção e tirar terra como costume.
E aconteceo que huma molher nobre da villa de Torres Vedras por nome
Maria Anrriques, tendo huma unha no dedo polegar do pe direito a qual lhe
crecia em tanta maneira por dentro da carne que lhe furava o dedo todo e lhe
sahia pella banda de baixo per duas partes, em que padecia grandissimas dores
em especial quando a curavão, e vendo ir o mal por diante afligida delle foisse a
sepultura antigua do servo de Deos que estava nas ruinas da igreja e com muita
devação pedindo ao santo que a socorresse a sua nececidade e meteo o pe no
buraco que pera isso estava nella, e loguo se sentio sem dores e sem outras
meizinhas cobrou perfeita saude do mal que tanto a atromentava e em tanto
pouco a tinha posto.
Pouco depois disto na era de mil e quinhentos e setenta e nove socedeo
que paçando por Torres Vedras o reverendissimo Dom Guaspar com bispo de

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Santo Thome religioso da Ordem, vindosse retirando da peste grande de Lisboa
e indo vizitar as reliquias do santo, preguntou pello sepulchro antiguo a que elle
sendo morador daquelle convento tinha muita devação e sabendo ainda estava e
que obrava ainda Deos nelle muitos milagres o foi vizitar. E vendo o quão
pouco dessente estava ajuntou sua familia com muita veneração e devoção elle e
os seus trouxerão o sepulchro do santo com muita terra de sua sepultura pera o
luguar em que as reliquias estavão. E aconteceu que hum dos criados do bispo
chamado Paio Chão, viera de Lisboa ferido da pestia com hum inchasso numa
virilha ao qual em chegando a Torres Vedras lhe sobreveio huma grande febre.
E ao tempo que o bispo [fl. 10] chamou todos os de sua familia pera trazer o
sepulchro do santo, elle, por dissimular e incobrir o mal que tinha pello não
evitarem, se levantou da cama em que jazia e como pode se foi com os outros e
junto com elles pegou no sepulchro dando mostras de o querer ajudar não nas
tendo elle nem pera se poder ter em pee. E em lhe pondo as mãos sentio em si
tantas forças que com facilidade o pode fazer, e ajudando a trazer o sepulchro
sentio-se sem fadigua alguma nem febre, e indosse depressa ver não achou o
inchasso e ficou tão são e bem disposto que não se tornou a cama donde se
alevantara, e pasmado do que em si vira perguntou cuja era aquella sepultura
que o bispo mandara levar e achando ser do glorioso São Gonçalo deu muitas
graças ao Senhor pella merce que lhe fizera, e ao santo per cujos merecimentos
em paguo de pequenino serviço que lhe fizera fora livre de tão grande mal. E
caminhando o mesmo dia com o bispo, chegando ao bispo lhe deu conta de tudo
o que passara e o milagre que o santo na paçagem do sepulchro por elle fizera, e
o bispo averigoando com elle e com os que o virão com febre, posto que não
sabião nem que o que passara, e escreveo na mesma noite huma carta ao
convento em que deu conta aos religiozos do caso e mandou os testemunhos do
milagre, e encomendando-lhes que dessem graças a Nosso Senhor e ao glorioso
Sam Gonçalo per cujos merecimentos elle e todo o convento forão livres do mal
da peste que dentro tinhão curando miraculosamente o enfermo que a padecia.
Trazido o sepulchro do santo a igreja do Ospital de Santo Andre. esteve junto

50
de suas reliquias ate o anno de mil e quinhentos e oitenta em que a dezoito de
Dezembro dia da Ezpectação de Nossa Senhora forão trazidas as relíquias ao
sepulchro com procissão solemne ao mosteiro novo aonde estão depozitadas
com a devida veneração, obrando o senhor cada dia por ellas muitas maravilhas
e milagres como ao diante se vera.

Capitulo 6.º
De como São Gonçalo apareceo depois de sua morte a muitas peçoas que se lhe
encomendarão acodindo a suas nececidades.

A caridade e compaixão dos trabalhos e nececidades dos proximos que o


Servo de Deos São Gonçalo avia tido na vida se enxergou ainda nelle depois de
morto acodindo a muitas peçoas que em tranzes de seus trabalhos chamarão por
elle e com fe viva e verdadeira confiança se lhe encomendarão.
Poucos annos depois que faleceo, aconteceo que sertos homens do reino
do Algarve, naturaes de Lagos, propria patria do servo de Deos, se embarcarão
num navio a levar mercadorias a outra parte, entre os quais hia um sobrinho
seu, filho de seu irmão. Engolfados no mar, levantousse tão grande tempestade
que deu com o navio a costa nhuns penedos, aonde se fes pedaços com morte de
todos os que nelle hião, tirando dous que lançarão mão huma taboa a que se
pegarão. Mas como o impeto das mares e furia [fl. 10v] das hondas os levasse
aos penedos, a madeira do navio que pello mar andava os feria tão cruelmente e
com taes pancadas que faltou a hum delles as forças e desapegousse da taboa e
se foi ao fundo. Ficou o outro a que tãobem ja as forças hião desfalecendo, o
qual era o sobrinho do santo e vendosse já pello caminho dos outros posto
naquella angustia começou a chamar por Deos e encomendarse aos santos que
lhe valessem estando neste transe lhe lembrou que ouvira contar a seu pai
muitas vezes que tivera hum irmão em Portugual frade de cujos merecimentos
Nosso Senhor em vida e emmorte fizera muitos milagres. Começou então o

51
mancebo com novo esforço a chamar pello santo seu tio que lhe socorresse
naquelle ultimo trabalho. Nesta conjunção vio na praia defronte donde elle
andava, lidando com as ondas e com os penedos, hum frade de Santo
Augustinho que o esforçava e lhe dizia que não temesse que viesse pera elle; o
mancebo em ouvindo isto gritou que estava tão sem força que nem menear se
podia nem estava a largar a taboa por se não fogar e ir ao fundo. Entrou então o
frade pellas ondas e o tomou polla mão e o tirou a praia e lhe disse que elle era
o tio por que chamava e a quem se encomendara, e se chamava São Gonçalo de
Laguos, e que se fosse ao ospital da terra ate cobrar forças pera poder caminhar,
e que tanto que estivesse, dali se partisse para Portugual a villa de Torres
Vedras, ao Mosteiro de Santo Augustinho, acharia seu corpo sepultado e
alcançaria saude perfeita das chagas e firidas que recebera no naofragio. Fez o
assi o mancebo e chegando a sepultura do santo pos da terra de seu sepulchro
sobre as firidas que ainda trazia mal tratadas, e dromindo aquella primeira noite
ao pê do sepulchro, acordou pella menham de todo são e sen sinal algum das
feridas que tivera, com grande admiração de todos que o dia atras o tinhão visto
ferido e mal tratado, pello qual dando graças a Deos e a seu servo São Gonçallo
contou a todos o que passara, que tudo com o que da saude das feridas se tinha
visto ficou por publico instrumento autentico no convento de Torres Vedras,
com o que tãobem creceo muito a devoção do santo em todo o reino do Algarve
aonde o mancebo firido que la era tido por morto o contou.
Alguns annos depois deste milagre na era de mil e quinhentos e setenta
aconteceo que andando nhuma caravella certos mareantes da mesma cidade de
Laguos, se levantou subitamente tal tempestade que levava a caravella ao fundo.
Vendo os que dentro ia neste periguo comessarão a chamar com muita instância
por Deos que ouvesse mizericordia delles e pello glorioso São Gonçalo que lhe
acodisse. Estando neste aperto virão no meio das ondas junto da caravella hum
frade de Santo Augustinho com hum cajado na mão que os esforçava dizendo-
lhes que não tivessem medo que chamassem por Nossa Senhora da Graça que
ella como avogada dos pescadores lhe acoreria e socorrerria. E dizendo isto

52
cessou loguo a tempestade, ficarão fora de periguo e perguntandolhes quem era,
respondeo que era Frei Gonçalo de Laguos, natural da sua terra por quem elles
chamavão; que Deos ali mandara pera os remedear; que se fossem loguo ao
reino de Portugual a villa de Torres Vedras e que ali achariam seu corpo
sepultado no Mosteiro de Nossa Senhora da Graça da Ordem do Santo
Augustinho, aonde lhe dessem os aguardessimentos do beneficio que fizera [fl.
11] e publicassem ao povo o que receberão. E fazendo elles assi vierão ao
mosteiro de Torres Vedras tres homens e hum moço e fazendo sua romaria
contarão a todos o que passara, e testemunharão o milagre que o santo por elles
fizera como consta pello instrumento que deste milagre está no Archivo do
Convento.
Hum religiozo de muita virtude e santidade no convento de Lisboa
chamado frei Alvaro Monteiro era atormentado com grandes dores de mal de
guota e sentindosse hum dia com maiores dores, que se não pode alevantar da
cama e he que não estando o infirmeiro advertido de seu mal, lhe não levou de
comer, de modo que caio em fraqueza estando em trabalho assi do mal que
padecia como da fraqueza de não comer. Vio entrar pella cella dous religiozos
que a encherão de claridade e conhecendo hum delles que ainda alcanssara na
Ordem sendo moço, beato João d’Estremos, o outro lhe disse que era o gloriozo
São Gonçalo de Laguos. Os quais ambos assentandosse junto delle o consolarão
e exortarão a paciencia de suas dores, e estendendo huma toalha lhe puzerão
pão e huns peseguos de que ho bom velho comeo e cobrou forças por estar
desfalecido, e depois lhe tomarão a mão e braço em que vinha o mal e deitando-
lhe o glorioso São Gonçalo huma benção, ficou logo são delle e ambos o
advertirão que se aparelhasse que sedo seria seu companheiro na gloria. E asi
foi que dahi a poucos dias faleceo e se foi gozar da gloria conforme aos
serviços que tinha feito a Deos na terra como em sua istoria particularmente se
poderá ver.
Hum homem dos nobres de Torres Vedras chamado João de França de
Brito, grande devoto do Santo avendo peste na villa se foi pera huma quinta sua

53
fugindo do mal. Começarão a dar rebates do mesmo mal nas partes junto a
mesma quinta, com o que detreminando elle de mudar o posto, e confiando na
devoção que no santo tinha e reliquia sua que com siguo trazia que o livraria,
fazendo elle o divido por fugir do mal, a menhã antes de se partir e estando
cercado na cama e imaginando na ida, adormeceo levemente e vio que vinha a
elle o gloriozo São Gonçalo e lhe dizia: por que te inquietas a ti e toda a tua
casa? Está seguro, que tua molher tem por avogado São Nicolao de Tollentino
tua mãi São Sebastião e tu mesmo a mim. Não ajas medo que nos te livraremos.
Quietosse com isto o devoto, mas continuando mais os rebates, apertado do
medo, detreminou outra ves de se ir, não fazendo tanto caso do sonho com que
o santo dissera nelle. Entre menhã estando esperto houviu huma vos como de
reprehensão sem ver quem a dizia: porque tens pouca fee? Aonde te vás?
Porque desconfias das merces do Senhor e das minhas promessas? Não sabes
que aonde quer que fores poderas escapar da mão de Deos? Não ajas medo que
eu tenho a carguo a tua casa. Com o que se segurou o devoto de todo e não
ousou de se bolir do luguar em que estava, e assi nem elle nem cousa sua foi
tocado do mal estando no meio delle e conversando com muitos novissos e
enfermos do mesmo mal, o que tudo atribuia aos merecimentos do glorioso São
Gonçalo que o livrara.

Capitulo Ultimo
Doutros milagres do glorioso São Gonçalo.

Deste capitulo não tinha escrito cousa alguma mas do livro que anda na
arca do deposito de Torres Vedras se podem tirar todos os que ali [fl. 11v] há
assi apontados, como de instrumentos em publica forma, posto que pella justiça
secular, que por descuido dos padres antiguos se não aprovarão pello ordinario
senão pellos escrivãis e peçoas seculares que perguntavão as testemunhas e lhes
davão juramento. E João de França se he vivo ou seus erdeiros darão hum
caderno em que tem muitos apontados.

54
55
4 - FREI ANTÓNIO DA PURIFICAÇÃO, CHRONICA DA
ANTIQUISSIMA PROVINCIA DE PORTUGAL DA ORDEM DOS EREMITAS
DE S. AGOSTINHO DE HIPPÔNI, E PRINCIPAL DOUTOR DA IGREJA. COM
UMA ADIÇAÕ NO CABO DA QUAL SE RESPONDE AOS PRINCIPAES
LUGARES DA BENEDICTINA LLUSITANA. PARTE II, LISBOA, DOMINGOS
LOPES ROSA, 1656, fls. 266V-293V.

[fl. 266v] TITULO VII


Da vida do bemaventurado Padre Frei Gonçalo de Lagos, Padroeiro da
Villa de Torres Vedras.

ANNO DE CHRISTO NOSSO REDEMPTOR


1422 da Ordem 1032 e desta Provincia 1029.

56
Do bemaventurado Padre Fr. Gonçalo de Lagos escrevem diversos autores
fazendo dele menção, huns com titulo de Beato, outros de Sancto, e milagroso, e
são os seguintes Fr. Ieronimo Romã na Centuria 12 da nossa Ordem, e em outras
obras suas; o Bispo Signino, Dom Ioseph Pamphilo na sua Crónica Latina, no
Catálogo dos Beatos; Frei Ioão Morieta na História Eclesiástica de Espanha no
livro 18 capítulo 30. Os Mestres Fr. Pedro Caluo na segunda parte da Defensão
das Religioens capitulo 12. Frei Duarte de Lisboa no seu Epítome capitulo 17 e
18. E Frei Pero Ramires no Catalogo, que fez dos Santos da nossa Ordem. Frei
Simpliciano Turrinino na sua História da Correa; Marco Antonio, e Paulo
Vadouita no seu Teatro Augostiniano; Jorge Cardoso no Officio menor dos
Santos de Portugal, e outros muito além dos Cartorios desta Provincia, que no
discurso citaremos. Destes autores, e arquivos tiraremos fielmente o que
dissermos: posto que sempre será a menor parte do muito, que pudéramos dizer:
porque se perderam alguns dos mais antigos memoriais autênticos da vida, e
milagres deste Santo, como adiante em seu lugar notaremos.

PARAGRAPHO I
Do nacimento do Bemaventurado Padre Frei Gonçalo, e de sua primeira
idade atè tomar o habito de nosso Padre Sancto Agostinho.

O quarto Rei, que Hespanha 49 teve despois do diluvio universal, segundo


se acha nos Historiadores daquella antiguidade, foi hum excellente, e industrioso
Principe chamado Brigo, bisneto de Tubal I. rei della, pellos annos da criação do
Mundo 1801 e 145 despois do diluvio: que são antes do nacimento de Christo
nosso Redemptor 2161. Este grande Principe, com animo de ennobrecer aos
Lusitanos, a quem, por serem leaes, e generosos, tinha particular amor, lhes
edificou alguns castellos, e povoaçoens, que do nome de seu fundador se
chamarão Brigas. Huma destas foi a nobre villa do Algarve por nome Briga, que
despois em tempo dos Carthaginenses, mudada por elles a outro sitio, da Bahia
[fl. 267v] ou lago do mar, que banha seus muros, se chamou Lacobriga 50 ; e hoje,
perdendo o primeiro apellido, com pouca corupção do segundo se chama Lagos.
E he huma das principaes respublicas daquelle reino, authorizada já com os foros,
49
Setephan de Urbibus: Venerus in Enchirid. Nicol de Oliva, et ali
50
Fundator Lacobricae fuit Bohodes Dux Carthaginen. an ante Christ. 349.

57
e titulo de cidade por merce Del Rei Dom Sebastião, quando se achou nella
poucos annos antes da infelice jornada, que fez a Africa 51 , contra a barbara gente
de Masoma.
Desta cidade pois foi natuaral o bemaventurado Padre Frei Gonçalo, que
despois na religião se chamou Frei Gonçalo de Lagos, tomando o sobrenome da
patria, segundo o costume daquelles tempos. Seus pais foram no sangue, e bens
da fortuna , gente humilde daquelle povo: mas muinobres na pureza dos
costumes, e temor a Deos, que he a verdadeira nobreza, de que principalmente se
deve prezar todo o Christão. E como taes criarão seu filho com grande zelo, e
cuidado, para que saisse mui perfeito em todo o genero de virtudes, e como o
mandassem aprender as artes, que na primeira idade se costumaõ estudar, sahio
nellas consumado, e principalmente na de escrever, e na noticia da lingua latina.
Donde veio, que despois sendo Religioso, escreveo com particular perfeição em
varios conventos desta Provincia alguns livros em pergaminho para o uso do
choro, como adiante veremos.
Foi crecendo o moço em idade, e juntamente em temor a Deos, e piedade
Christã: e principalmente resplandecia em humildade de coração pela natural
pureza, e singeleza, de que o senhor o dotàra. E este foi o principal alicersse, que
Deos fundou em seu peito, para levantar sobre elle, como levantou, o alto edificio
de virtudes, em que sahio esmerado, no discurso se verá. Não sofria o inimigo do
genero humano como no innocente moço taõ bons principios, e adivinhando o
fim sancto, a que o levavão, solicitou outros moços da sua idade, a que com
pratticas perversas, conversaçoens, e trattos deshonestos o divertissem dos
sanctos exercicios de virtude, em que se occupava. E ajudando a esta guerra
exterior a interior, e mais importuna de pensamentos deshonestos, pretendia
vencer sua pureza, e castidade, e enredallo nos laços da desho[fl. 268]nestidade,
destruição de todos os bons intentos daquella idade.
Mas como em vão se deita a rede (segundo diz o sabio) 52 a vista daquelles,
a quem Deos dá olhos para considerarem o perigo della, e azas da vontade recta
para voarem ao alto, e fugirem dos laços da morte: abria o sancto mancebo as de
seu coração a Deos, pedindolhe com afervoradas oraçoens remedio, e forças para
vencer os inimigos de sua alma, que tanto o combatião. E perseverando sem
51
Anno scilicet 1574
52
Proverb

58
intermissão em continuas oraçoens ao Ceo, que lhe valesse, acrecentando duras
penetencias, soube com a divina graça conservar por então, e em todo o discurso
da vida, a limpeza, e pureza d’alma, que no baptismo recebera: em tanto que os
mais graves escritores de sua vida afirmão, que viveo, e morreo virgem 53 . E
vendo que sobre este inestimavel thesouro da pureza chovem continuamente
ladroens, e salteadores, que ao menor descuido de hum filho de Adam, lhe
deixam a alma pobre, e despojada da melhor, e mais rica joia, que se pode
desejar: andava mui sobre aviso em todas as conversaçoens, e amisades, que se
lhe offerecião, desviandose dellas, e dandolhe demão pelo melhor modo, que
podia.
Porem entendendo quam dificultosa empresa tomava para quem vive no
mundo, receoso de si mesmo, como prudente assentou consigo recolherse em
huma Religião, aonde livre dos embaraços, e perturbaçoens seculares, pudesse
mais seguramente ir avante no caminho das virtudes. Mas lembrado de exemplo
de Christo nosso Redemptor, em seu Evangelho 54 , do que começou a edificar
huma torre, e a não pode acabar, quiz primeiro fazer a experiencia de suas forças,
para ver se podia despois de frade com as difficuldades, e rigores da vida
Religiosa. E assi se começou a exercitar de novo em obras mais subidas de
virtudes, dandose com mais affectos, e frequencia a jejuns, oraçoens, e
disciplinas. Pedia com muita instancia a Deos, guiasse seus intentos, e abrisse
caminho a seus desejos aonde, e como elle fosse mais servido.
Não forão em vão suas oraçoens; porque o senhor, que efficaz, e
suavemente dispoem todas as cousas, ordenou, que nesta conjunção huns parentes
seus [fl. 268v] se determinasem a vir sobre certo negocio a Lisboa. Pareceolhe ao
virtuoso mancebo, que nisto se lhe abria boa occasião para seus intentos. E assi
sem dar conta delles aos parentes, se lhes offereceo para os acompanhar, e servir
naquella jornada, e negocio. Elles, conhecião bem a singular virtude do sancto
mancebo, aceitarão de boa mente o offerecimento, dandose com tal companheiro
por livres, e seguros de todo o mao sucesso, assi no caminho, como na sustancia
do negocio, que hião. Foise com elles, e chegados todos a Lisboa, na volta do
negocio, em que os ajudava, como podia, andava, com titulo de curiosidade,
visitando os mosteiros da cidade, contemplando o modo de viver de cada hum
53
Menezius L1 c.1 §. 2 et Roman in Histor Gener Hispan. Centur 15 an. 1422.
54
Luc. 14.

59
delles, para se recolher no que lhe parecesse mais acomodado a seus intentos, ou
mais lhe quadrasse pelas circunstancias, e meios, que a divina providencia
costuma applicar em semelhantes occasioens, para repartir, como reparte, com
todas as Religioens sogeitos abalizados, que as honrão ,e authorizão.
Não tinha gastado o sancto moço muitos dias, quando huma vez estando
em oração na igreja do nosso convento, lhe poz o Espirito Sancto em seu coração,
que na Sagrada Ordem do Glorioso Patriarcha S. Agostinho poderia aproveitar na
virtude: e que debaixo do emparo, e protecção da sacratissima Virgem Nossa
Senhora, a quem este Mosteiro, já de muitos anos atraz, era dedicado, levaria
avante seus intentos, e aperfeiçoaria com seu favor, e ajuda, a obra, que tanto
desejava começar. E assi se foi logo ter com o padre prior, e religiosos do
convento, pedindo com muita humildade o quisessem receber em sua companhia.
O que elles lhe concederão dentro de breves dias: porque nelles alcançarão de
suas patticas, que era mancebo de boas partes, e de grandes esperanças de vir a
ser hum varão sancto, e eminente em todo o genero de virtudes.

PARAGRAPHO II
De como o servo de Deos tomou o habito de nossa Sagrada Religião Eremitica, e
do muito, que aproveitou na virtude, e letras até ordenado Sacerdote.

Não se sabe ao certo o anno , e dia, em que o servo de Deos Frei Gonçalo
tomou o habito de nossa Sagrada Religião, ou professou nella. Porem achase
nas memorias desta Provincia, que era elle noviço no Convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa, sendo prior delle, e juntamente Provincial de
toda, a Provincia, o Padre Frei João de Famon, que teve o governo della dous
annos de 1380 e 1381 em que era Summo Pontifice Urbano VI e Rei de Portugal
Dom Fernando, e Geral de toda a Religião Augustiniana o Beato Frei
Boaventura Patavino, a quem o mesmo Urbano VI no anno de 1385 fez Cardeal
da Igreja Romana do titulo de Sancta Cecilia.
Livre já do mundo o novo soldado de Christo Frei Gonçalo, andava
contentissimo de se ver morar na casa de Deos, sabendo bem quanto melhor lhe

60
era ser desprezado nella, que viver (como diz o Psalmista 55 ) e morar no
tabernaculo dos pecadores. Por isso lhe parecia mais Ceo, que terra, o mosteiro,
em que vivia, e os religiosos anjos, ou serafins occupados em servir, e amar a
seu Deos. Com esta consideração apurando mais o rigor das penitencias, e
suavidade da oração, crecia nos annos o servo de Deos, crecendo juntamente
nas virtudes: de maneira, que a todos era hum raro exemplo de perfeição
Religiosa, e desprezo do mundo.
Estava naquelle tempo em Lisboa, aonde hoje chamão Escolas Gerais, a
Universidade que do tempo del Rei Dom João o III a esta parte florece em
Coimbra, e erão Reitores della, pella maior parte, os Priores do Convento de
Nossa Senhora da Graça, ou outros religiosos delle, que erão nella lentes de
Canones, e Theologia. Aqui estudou o Sancto Frei Gonçalo Artes, e Theologia,
em que sahio tão consummado, que o convidarão os prelados da Ordem, a que
se graduasse, e for[fl. 269v]masse doutor theologo. Mas com ser esta cerimonia
naqueles tempos tão uzada entre nòs (pella muita entrada que tinhamos
naquellas escholas) que não avia convento nosso neste reino, em que se não
achassem tres, quatro, e mais doutores, fòra muitos Bachareis, como me constou
, correndo os cartorios da Provincia, não lhe pode com tudo consentir ao sancto
sua humildade, que passasse de estudante raso, com o titulo ordinario de
prègador: officio, que começou logo a exercitar com tanto fervor de espirito, e
desejo da salvação das almas, que muitos, com suas prègaçoens, deixavão o
mau estado, em que vivião, e alguns se mettião religiosos, e outros se escondião
pellos mattos, e brenhas, para fazerem penitencia de suas culpas; que tanta força
tem a doutrina Evangelica na boca do Prègador, que à imitação de Christo faz o
que ensina 56 . Não era por este tempo o servo de Deos ainda presbitero, quando
já, por ocasião do pulpito, voava por todo o Reino a fama de suas virtudes, e
letras. Porem despois que se vio ordenado sacerdote, resplandecendo mais com
o novo estado em sanctidade, fez naquelle seculo seu nome celebre em todo o
mundo.

55
Ps. 83.
56
Act. 1.

61
PARAGRAPHO III

Das penitencias, e occupaçoens da vida activa, e contemplativa, em que


o Servo de Deos se exercitava despois de Sacerdote. E de como por sua
intercessão forão restituidos dous livros do choro, que se havião furtado hum
do Convento de Lisboa, outro do de Santarem.

Ordenado sacerdote o Servo de Christo, acrecentou á nova obrigação


novos exercicios, considerando com S. Gregorio, que a quem maiores merces
recebe, mais estreitas contas se lhe pedem 57 . Pelo que se entregou dahi por
diante mais á oração, e meditação, apparelhando sempre cada dia mais sua alma
para celebrar tão altos misterios. E assi dizia missa com tanta devoção, e fervor
de espirito, que os que lhe assistião, de admirados o reverenciavão, como se
fosse um anjo encarnado. A sua cama desde aquelle tempo, até a mor[fl.270]te
nunca foi outra cousa senão humas poucas de vides secas no canto da cella, as
quais cada ano renovava, no tempo da novidade. Aqui se encostava vestido,
quando repousava, sem outra alguma cobertura , e sem cabeceira. O mais do dia
gastava em oração no choro, e em outros exercicios espirituaes.
O tempo, que lhe restava empregava em escrever livros para o choro,
obediencia, em que os prelados o occupavão, pelo elle fazer com esmerada
perfeição. E alegravase muito o servo de Deos com esta occupação, vendo que
os livros, que fazia erão para Deos ser louvado, e venerado, e dizia, que, pois
elle não prestava para louvar ao Senhor, folgava muito em se occupar em cousa,
com que ajudava aos outros a que o louvassem.
Entre outros livros, que neste tempo escreveo, foi hum do Commum dos
Sanctos para a casa de Lisboa. O qual dahi a muitos annos, despois de sua
morte, foi furtado do choro, e levado a Salamanca, aonde foi visto por pessoas,
que o conhecerão, não somente pella letra, e enquadernação, mas
principalmente pelo titulo, que tinha de quem o escrevera. E aconteceo que
andandoo os Religiosos buscando por muitas partes, pela falta, que lhes fazia, e
vendo, que não apparecia, encommendarão a restituição delle ao mesmo Sancto,
que o fizera pedindolhe fosse servido alcançar de Deos, que tornasse o seu livro
para o Convento, para onde fora feito, pois nelle era tão necessario. E foi Deos
57
Homil. 9 in Evang.

62
servido, pela intercessão deste seu servo, que fosse o livro achado dahi a poucos
dias no choro, no mesmo tempo, em que fora visto em Salamanca. E vendo os
religiosos tão grande maravilha, derão muitas graças a Deos, e a seu servo Fr.
Gonçalo.
A mesma boa fortuna teve outro livro escrito tambem por elle mesmo
para o Convento de Santarem; o qual desaparecendo, e sendo levado a Lisboa,
sem se saber o como fora ali tornado, crendo os Religiosos, que pelos
mereciimentos do Sancto lhe fizera Deos esta merce: pois como a seu servo, e
author delle, lho tinhão encomendado.
Neste exercicio gastava a [fl. 270v] parte do dia, que lhe restava da
oração, e mais observancias regulares. Mas as noites todas, que os outros
esperão para descançar do trabalho do dia, tinha elle mais particularmente
dedicadas à oração, e meditação dos mistérios divinos, dizendo com o
Psalmista 58 , que a noite dava luz a sua alma nas delicias de sua contemplação. E
assi tirando o espaço, que repousava antes das Matinas (que nunca passava de
tres horas) todo o mais resto da noite gastava em oração, lagrimas, suspiros, e
rigurosos açoutes: pezandolhe mais da necessidade da natureza, que o forçava a
descansar hum pouco, que do trabalho, que tinha em vigiar tanto. A isto
ajuntava hum grande, e aspero cilicio, o qual nem nas enfermidades tirava de
sobre a carne, que já pelo uso, na velhice estava quasi tão aspera, como elle.
Nos habitos, e mais vestidos mostrou sempre a pobreza humilde da Religião:
mas não com demasia, por se ajustar com o preceito da Sancta Regra, que
professara; com as quaes cousas se fazia o servo de deos hum vivo exemplo de
verdadeira penitencia, e humildade.

PARAGRAPHO IV
De como o Servo de Deos foi prior em algumas casas da Provincia

Com estes, e outros exercicios de virtude em que continuamente se


exercitava o Sancto Frei Gonçalo, hia crecendo mais a fama de sua sanctidade,
em que de todos era tido por consumado. E assi se ouve a Provincia de
aproveitar delle em officio de governo. Porque na verdade este he o estado , em
que fazem semelhantes almas muito proveito nos subditos, sem abaterem hum
58
Ps. 138.

63
ponto da perfeição acquirida: a qual em outros menos perfeitos, com as
perturbaçoens dos negocios, e lides, que consigo trazem as prelazias, se
costuma muitas vezes desfrutar, e empoar de maneira, que talvez perde o ser, e
o parecer.
A primeira casa, em que o achamos prior, foi huma que tivemos junto da
villa da Lourinham no Arcebispado de Lisboa, que se intitulava de S. Lourenço,
a qual extinguiu o vene[fl. 271]ravel Padre Frei Luis de Montoia, no anno de
1555 sendo Vigairo Geral desta Provincia, e rei deste reino Dom João
Terceiro 59 . E ficou somente dela a Igreja, que hoje he huma parochia do mesmo
titulo. Esta casa governou o sancto varão pellos annos do senhor de 1394 (que
são pouco mais, ou menos 550 despois de sua primeira fundação) e nos dous
seguintes.
A outra casa, que por ventura não seria a segunda , he a de nossa
ssenhora da Graça de Lisboa, da qual em algumas escrituras se acha Prelado no
anno de 1404. era então Geral da Ordem o Reverendissimo Padre Mestre Frei
Nicolao de Cassia. O qual pela noticia, que tinha de seus grandes merecementos
lhe deu este priorado, por quanto estava naquelles tempos este convento
immediatamente debaixo da protecção dos Padres Gerais, como ainda hoje estão
muitos de outras Provincias, principalmente das de Italia: nos quais por isso não
tem jurisdição alguma os padres provinciais, em que elles estão; e se chamão
Conventos do Geral, porque por sua conta corre o provimento, e disposição
delles assi no espiritual, como no temporal. E neste de Lisboa, como já então de
tempos immemoraveis fosse sempre o mais grave da Provincia, não punhão os
padres reverendissimos por priores, senão os mais dignos, e authorizados,
religiosos della: em tanto, que algumas vezes erão os Priores delle os mesmos
padres provinciais da Provincia: e outras vezes os padres priores erão
juntamente Vigarios geraes sobre toda a Provincia, ou sobre alguns Conventos
menos observantes, pera os reduzirem à reformação, e observancia regular, de
que estavão descaidos todos os mosteiros de Europa, por occasião daquella
lamentavel peste geral, que abrazou o Mundo todo do Oriente atè o Occidente
pellos anos de Christo nosso Salvador de mil trezentos e quarenta e oito donde
teve principio a relaxação, e claustra das Religioens, como advitimos em seu
lugar. Pelo que se me faz mui provavel que o sancto Fei Gonçalo, quando aqui
59
Lib. 3. tit 6. §.7.

64
foi prior, fosse tambem vigario geral, e reformador da Provincia: pois o forão
antes, e despois delle outros de bem menos [fl. 271v] merecimentos pera isso.
Do que he não leve indicio o vermos, que elle foi o que introduzio nesta
Provincia a ceremonia de genuflexão, quando no himno Te Deum laudamus, se
diz o verso te ergo quae sumus etc. como se avia determinado por difinição do
Capitulo Geral do anno de 1400 60 .
A terceira casa em que achamos prior ao nosso sancto, he a de Santarem,
pellos annos de Christo nosso Redemptor de 1408, que erão 32 despois de sua
fundação. Em seu tempo se acabou de aperfeiçoar o edificio deste Convento
com os rendimentos da nova herdade da Ocharia, que lhe acreceo, de que o
Sancto Prior tomou posse no anno seguinte de 1409 sendo provincial o Doutor
Frei Lourenço de Beja. A quarta, e ultima casa foi a de Torres-Vedras aonde
morreo sanctamente aos 15 de Outuboro do anno de 1422 avendo largos dez
annos, que era Prior della, que são 156 desde sua primeira fundação. O modo
admiravel, com que se ouve no governo, e provimento dellas, diremos
separadamente no capitulo seguinte.

PARAGRAPHO V
Do modo com que o Sancto Padre Frei Gonçalo se avia no governo, e
proviemento dos conventos, em que foi prior

Era notavel o modo, com que, sendo Prelado, se avia no governo dos
conventos. Porque lembrandose do que Christo nosso Redemptor dissera a seus
discipulos 61 , que não viera ao mundo, sendo senhor, e rei delle, a ser servido;
senão a servir, todos os officios baixos, e humildes do convento fazia por si,
sendo muitas vezes cosinheiro, e porteiro, e sempre enfermeiro, pela grande
charidade que tinha com os doentes, e compaixão de suas enfermidades. Elle lhe
fazia as camas, e os alimpava, e servia em tudo com alegre, e humilde rosto.
Elle aquentava a agua pera levar ao pès aos hospedes quando vinhão de fora, e
lhos lavava. Elle lhe concertava as cellas; elle varria as casas, e alimpava as
officinas [fl. 272] do convento, e servia a todos em tudo o que as forças de seu

60
Difinit. 2. Cap. Gen. Aquilae celebrati anno. 1400.
61
Mat. 20.

65
cançado corpo podião chegar, com tanata humildade, e prontidão, como se fosse
hum escravo do Convento.
E não só das portas a dentro, mas tambem por fòra de casa se ocupava no
serviço, e emparo dos seus subditos, como verdadeiro pastor. E porque os
conventos da Lourinhã, e de Torres-Vedras erão muito pobres, e vivião de
esmolas, e padecião ás vezes por isso muitas necessidades, elle por si mesmo
procurava remedialas tomando os alforges às costas, e pedindo nas terras em
que estava, e nos lugares visinhos. E das charidades, que os fieis lhe fazião,
sustentava seus frades; e não sofria que outros fossem à esmola sem elle, salvo
se a necessidade dos enfermos o obrigava a assistirlhes. O que lhe davão de
esmola recebia com huma humildade profundissima, tendose por indigno de
receber ainda aquelle pequeno bem. E com tanta singeleza, e alegria festejava
os pedaços de pão, que com muito pouco delles se vinha às vezes pera o
mosteiro tão contente, como se trouxera todas as riquezas do mundo.
E assi lhe aconteceo, que sendo prior de Torres-Vedras, avendose de
celebrar Capitulo Provincial no seu convento (que foi no anno de Jesu Christo
de 1413 em que sahio eleito em Provincial o Mestre Frei Agostinho) vendo elle
a pobreza da casa, e a falta, que tinha de tudo o necessario pera a sustentação
dos religiosos que avião de ir a Capitulo: foise a Lisboa a pedir pera isso
esmola ao Arcebispo daquella cidade, que elle de muitos annos conhecia, e de
quem noutro tempo avia sido mestre das primeiras letras. E mandando o
Arcebispo, que lhe dessem liberalmente tudo o que elle quisesse, e pedisse
contentouse o Servo de Deos com os pães, que pode levar nos alforges, que
trasia às costas e encheo huma pequena almotolia de azeite, e huma borracha de
vinho, cousas todas com que elle podia caminhar. E carregado com tão grossa
esmola, se voltou pera Torres-Vedras a pè (que são sette legoas de caminho
aspero, e fragoso) muito alegre, e contente vindo cantando louvores a Deos
pello caminho, e dandolhe muitas graças, que [fl. 272v] não falta as
necessidades de seus pobres, quando o servem com fidelidade, e amor:
parecendolhe, que trasia consigo provimento de sobejo para todos os padres,
que no capitulo se ajuntassem.
Mas o Arcebispo, que de muitos annos o reverenciava , e estimava, como
sua sanctidade merecia, pasmado de ver hum espirito tam humilde, e singello,
que empregando os desejos so nos bens do Ceo, com tam pouco dos da Terra se

66
satisfazia, deixouo levar seus pobres alforges pela reverencia, que lhe tinha, e
por não molestar sua sigeleza. Mas mandou apos delle muitas azemalas
carregadas de pão, vinho, carnes, pescado, azeite, e todas as mais cousas
necessarias pera o Capitulo, offerecendose com muita liberalidade a fazer,
como em effeito fez, todos os gastos do Capitulo, encommendandose nas
oraçoens dos religiosos, e em especial de seu mestre, e devoto Fr. Gonçalo.
Nacia este contentarse com tam pouco ao servo de Deos, da grande
affeição, que tinha á sancta pobreza, e da experiencia de quam larga he a mão
do Senhor pera todos os que o amão, e pera socorrer às necessidades dos que o
servem de coração: como em muitos casos consigo, e seus frades tinha
experimentado. E assi costumava em occasioens de aperto animalos com lhes
repetir aquelle verso do Psalmista 62 : Jacta super Dominum curam tuam et ipse te
enutriet; e assi em quanto foi prior, nunca os seus frades padecerão
necessidades, que a pobreza religiosa não podesse sopportar. Antes, alem do
grande fruto espiritual que nas casas fazia com seu exemplo , as melhorou
muito em rendas. Essas poucas, e pequenas herdades, que tinha o convento da
Lorinhã (que hoje são do de Torres-Vedras) elle as acquirio no tempo do seu
priorado. A herdade da Ocharia, de que principalmente se sustentava o
Convento de Santarem, em seu tempo se lhe unio: e elle foi o que tomou posse
della.
E não sò em vida lhe foi bom: mas tambem na morte, porque no anno de
1436 (que são catorse despois do seu felice transito) pretendendo el Rei Dom
Duarte tomar ao convento esta herdade, com titulo de coutada sua, como [fl.
273] parecia ser por certas demarcaçoens dos reguengos que ha por aquellas
partes: nós não tinhamos com que provar, que era nossa, por quanto se avia
perdido a escritura da doação, e da posse, que della tinhamos tomado. Mas
confiados nos merecimentos do Sancto, lhe encomendamos o negocio. Eis que
indo hum dia o procurador fòra de casa em busca de testemunhas, que pudessem
suprir a falta de escritura: passando por fòra da villa, vio estar sobre hum
monturo hum minino lendo huma escritura grande de pergaminho. E
parecendolhe , que podia ser cousa que importasse a alguem pedio ao minino
lhe mostrasse o pergaminho, que lia, e em começando a ler, achou que era a
escritura, que no convento falatava da doação, e posse da herdade que el Rei
62
Ps. 54.

67
queria tirar aos padres, assinada pello Sancto Frei Gonçalo. E sem ver mais o
minino (que devia ser algum anjo) se veio para o convento mui contente com
ella; de que todos os religiosos derão muitas graças a Deos, e a seu servo Frei
Gonçalo. E sendo logo presentada em juizo, cessou a demanda, e se concluio a
causa em favor do mosteiro, e da justiça.

PARAGRAPHO VI
Do zelo admiravel, e modo particular, que o Bemaventurado Frei
Gonçalo tinha em ensinar ao povo o caminho da salvação, sendo prior de
Torres-Vedras

O principal exercicio, em que o Sancto varão Frei Gonçalo se ocupava,


era, como temos dito, a quietação da oração, e suave sono da contemplação: o
qual o fazia andar assi por fòra, como por casa, todo absorto em Deos, e
ardendo em tão vivas chamas de amor de hum Senhor, em quem cada vez mais
razoens achava para o amar, que lhe dava grande pena, e tormento ver, que não
cahião todos os homens na clareza dellas, nem empregavão todo o seu amor,
como lhe resultava na alma hum ardentissimo desejo de o ver amado, e servido
de todos, e de ninguem offendido. E para isto todo o seu cuidado era persuadir,
e exhortar a todos os com que [fl. 273v] tratava, a que servissem, e amassem de
todo o coração a Deos, e fugissem com toda a diligencia de suas offensas.
E considerando consigo como poderia fazer isto com mais proveito, e a
mais pessoas, inventou huma maneira de pregação no povo de Torres-Vedras,
aonde estava por prior, tanto mais proveitosa, quanto era mais continua, e mais
familiar aos que della tinhão necessidade. A qual era porse todos os dias de
serviço, desde acabado de cantar Completas no choro antes do sol posto até
huma hora da noite, assentado à porta da igreja do mosteiro velho, que estava
na estrada mais corrente da serventia da villa, e por onde passavão todos os
trabalhadores, e mais pessoas, assi homens, como mulheres, que vinhão de seus
serviços, e occupaçoens, ou que por outra occasião se vinhão recolher ao lugar,
e alli chamava aos que passavão, e os amoestava com grande afecto, e caridade,
que servissem, e amassem muito ao Senhor, e trattava com elles tudo o que
importava a sua salvação, e limpeza de suas consciencias, de que muitos lhe
davão conta.

68
E por esta razão se ajuntavão tantos cada dia a ouvir sua doutrina, que
ficava sendo hum grande concurso de gente, e a pregação mui proveitosa, e com
isto trazia todo aquelle povo, em especial a gente de serviço, e plebeia, tão
reformada, que mais parecia seu tratto de religiosos recolhidos, que de gente
que professava diferentes obrigaçoens. Ali o achavão sempre àquella hora os
afligidos, e atribulados, para os consolar; os necessitados de conselho, e pobres
para lhes acodir em suas necessidades: porque a todos remediava como podia.
Isto mesmo que cada dia fazia à porta do seu Mosteiro, fazia tambem
muitas vezes pelas casas particulares dos moradores da Villa, e pelas aldeas
aonde hia pedir esmola, assentandose às portas das casas, e prègando, e dando
bons conselhos aos moradores dellas, e a todos os que o querião ouvir. E era tão
ordinario neste exercicio, que ainda hoje tem muitas pessoas em grande estima
ao assentos de pedra, que tem às portas de suas casas, por ouvirem dizer a seus
paes, e avòs, que nelles se assentava o Sancto Prior muitas vezes a lhes prègar,
e [fl. 274] falar de Deos. E por esta mesma razão se tem tambem grande
veneração à porta da igreja velha (que ainda hoje se ve com a imagem de Sancto
Agostinho pintada sobre o arco para memoria do que ha sido) por quanto nella
se assentava de ordinario o Servo de Deos a prègar aos passageiros, como temos
ditto.
Deste ardente desejo, que tinha da salvação das almas, lhe nacia tabem
andar ajuntando os mininos pelas ruas, para lhes ensinar a doutrina Christã, e
darlhes bons exemplos. E como os tinha juntos, fazia-lhes a todos outra mui
devota prègação, accomodada às suas idades; e despois lhes fazia dizer a
doutrina christãa. E como para aquella idade pueril todas as cousas de sizo são
desgostosas; para que não fugissem delle, trazia sempre as mangas cheas de
pedaços de pão, e de fruta, de veronicas, contas, e registros de sanctos, que elle
mesmo como grande escrivão, que era de livros, debuxava, e illuminava para
este fim. E nisto aproveitava os retalhos de pergaminho, que lhe sobejavão das
folhas, que cortava para os livros que fazia.
Com estas, e outras prendas, que mininos estimão, os atrahia asi de
maneira, que lhe erão todos tão familiares, que o não vião na rua , sem que se
fossem logo a elle a apalparlhe as mangas, a ver o que lhes trazia. E muitas
vezes se ajuntavão a brincar com elle, como se fosse outro de sua idade. O que
tudo consentia o servo de Deos com grande alegria, e devoto affecto, soffrendo

69
todas estas mininices aos mininos a troco de que elles lhe soffressem seus sizos,
e o ensino, que lhes dava , guardando a doutrina do Apostolo 63 , que diz de si,
que todas as cousas se fazia com todos, para que assi aproveitasse a todos. E se
alguma pessoa queria estorvar aos mininos, que o não rodeassem tanto, elle o
não consentia; antes acodia com as palavras de Christo nosso Redemptor 64 :
deixai chegar os mininos a mim, não os estorveis, porque destes he o Reino do
Ceos. E punha-lhes as mãos sobre as cabeças, e levantando os olhos ao Ceo
pedia com grande espirito ao Senhor, os fizesse seus servos, e não permitisse,
que o offendessem, banhado de ordinario de lagrimas de devoção.

[fl. 274v] PARAGRAPHO VII


De hum caso notavel, que aconteceo ao Bemaventurado Padre Frei
Gonçalo, sendo prior do Convento de Torres-Vedras, em testemunho de sua
pureza, e castidade.

Não podia sofrer o demonio tanto proveito nas almas assi dos mininos
(de que receava, que tal criação, e taes conselhos, e exemplos naquella idade,
redundassem ao diante em grande perda sua, e proveito de quem com elles se
criava) como tambem nas dos maiores, que por conselhos, e exhortaçoens do
Servo de Deos se apartavão de suas culpas. E considerando a cruel guerra, que o
inferno fazia por toda aquella comarca: determinou de ver se podia derrubar
aquella fortaleza tão fortificada por Deos, para com isso render aos muitos, que
se governavão por elle, e vencer, a quem tantas vitorias cada dia delle
alcançava.
Para isto lhe pareceo bom meio valerse de suas antigas armas de huma
desatinada mulher, para ver se lhe socedia tambem a batalha com o servo de
Deos dentro no seu mosteiro, como lhe socedera com o primeiro homem dentro
do Paraiso Terreal 65 . Com este intento persuadio a humas mulheres perdidas, e
do seu bando infernal, que sentião muito ver por quantas vias o Servo de Deos
atalhava seus tratos miseraveis, e reprendia seus destinos, e deshonestidade. As
quaes tecerão entre si huma das maiores maldades, que no mundo puderão

63
1. Cor. 9.
64
Marci 10.
65
Gen.3.

70
cometer para descreditarem o servo de Deos. E foi que escolhendo de entre si
huma moça a mais desenvolta, e aparelhada para qualquer atrevimento, a
industriarão no que avia de fazer para entrar de noite na cella do servo de Deos,
e vencer sua pureza: avendo que a tão forçoso combate, como este se lhes
representava, ninguem poderia resisitir.
Levarão para isto a deshonesta moça huma noite de grande chuva, e
tempestade à porta do mosteiro, aonde a deixarão para que executasse a traça
que lhe tinhão dado. Começou ella logo a chorar com muita lastima, e a bater à
portaria [fl. 275] com grandes vozes, e gemidos de fingimento, como de quem
estava em grande afflicção, e necessidade. O sancto varão que áquellas horas
estava no melhor de sua oração, e quietação, ouvindo as queixas, e vozes
lastimosas, vendo as horas que erão, e a chuva que fazia, ficou trespassado de
compaixão da necessidade de quem ali chorava. E aceso em charidade,
levantouse da oração, e se foi à portaria a ver quem batia, e chorava. Em
abrindo a porta deitaselhe a enganadora moça aos pés toda molhada, e
lastimosa, pedindolhe que lhe acodisse a sua honra pela necessidade em que
estava: que era huma moça donzella estrangeira na terra, que estava em casa de
huma senhora recolhida, a qual por paixão que della tivera, a deitara áquellas
horas, e com tal tempestade, fòra de casa, e que na terra não conhecia ninguem:
e por isso viera bater á portaria, para que lhe dessem hum canto, em que se
recolhesse aquella noite, para não perigar sua honra, se assi fosse achada pelas
ruas: e sendo menhã a poria elle em alguma casa até se remediar.
O servo de deos, que por huma parte tinha a singelleza de pomba, e por
outra se desfasia com compaixão do caso, que a enganosa moça lhe
representava, cosumindolhe o fogo da charidade o que pudera attentar, e
advertir da prudencia da serpente, ordenandoo assi o senhor para gloria sua,
honra de seu servo, e confusam de quem o pretendia desacreditar: compadecido
della, e de seu trabalho, vendo que não erão horas para lhe buscar por então
outro refugio, a recolheo para dentro da portaria. E por lhe dar melhor
gasalhado, e não interromper a quietação, e silencio do mosteiro, a levou
consigo para sua cella, como outro S. Machario a serpente em figura de
mulher 66 . E dandolhe com singular charidade de comer o que naquella
opportunidade de tempo pode achar na dispensa , foilhe buscar à cosinha hum
66
Vitas PP. P.1. in vita S. Mach em prop. finem.

71
fugareiro: e ferindo logo fogo, lho acendeo, para que ella se aquentasse, e
enxugasse. E fezlhe a cama a huma parte da cella: e agasalhandoa com muita
singelleza, e honestidade, a cobrio com o seu proprio manto, e postos os joelhos
em terra, tornou a [fl. 275v] continuar sua oração com o mesmo affecto, e
quietação, como de antes estava.
Não bastou tam raro exemplo de limpeza para dobrar, e compungir o
coração da perversa mulher: porque estava abrasada em dous fogos infernaes,
hum da sensualidade, e outro da cobiça do que, se saisse com vittoria, lhe
tinhão as outras promettido. Acabada a oração, querendosse sahir da cella pera
tomar algum repouso em outra parte, começou a atrevida mulher a descobrirse
tão descompostamente que compadecido elle do mal, que lhe poderia fazer o
estar assi em noite tão fria, e de tanto vento, sem se lhe representar apparencia
alguma de malicia, de que sua purissima alma estava tão longe, se foi a ella,
dizendolhe: não vos descubrais filha, que faz grande frio, e farvosha muito
nojo, e cobrindoa de novo, se sahio da cella; e tornandose despois a recolher a
ella perto já da madrugada, e vendo na moça os mesmos desconcertos que
dantes, a tornou a cobrir por duas vezes, dandolhe de ambas o mesmo conselho.
Fazendose manhã, estando a deshonrada moça já corrida de seu
attrevimento, e frustração de seu preverso intento, se sahio com ella o Servo de
Deos da cella; tanto sem lezão, e tão vencedor do fogo da sensualidade, como
os tres mancebos sahiraõ do da fornalha de Babilonia 67 . E dezejoso de seu
remedio, a quis acompanhar atè a casa de sua senhora, para lhe pedir a
recolhesse. Mas como tudo o que a moça avia contado ao servo de Deos era
falsidade, em se vendo fora da portaria começou a rirse, e zombar, dizendolhe
que a deixasse ir, que não queria nada delle pois era sancto, nem avia materia
para que fosse necessaria sua intercessão. E ditto isto, se apartou delle com
passo apressado, deixandoo espantado, e attonito: porque atè então não tinha
entrado naquelle singelissimo coração sospeita de mal algum. Mas colhendo
daqui qual podia ser sua tenção sem ainda acabar de a crer, se voltou para o
convento dizendo; Deos te perdoe alma christã, se alguma maldade pretendeste.
Sabido o caso, e successo pelas outras, que tinhão urdido o estratagema
infernal, e que já estavaão esperando as novas da vittoria, para desacreditarem o
[fl. 276] servo de Deos, ficarão confusas, e envergonhadas. E conhcendo sua
67
Dan. 3.

72
maldade, arrependidas della, e pregoando a sanctidade do sancto Frei Gonçalo,
se lhe vierão deitar aos pès a pedir perdão da preversidade que avião intentado.
As quais o servo de Deos recebeo com muita brandura, e charidade,
aconselhandolhes o que lhes cumpria para sua salvação, e prometendolhes sua
ajuda, e favor diante de Deos. Com esta tão religiosa resposta ficarão mais
confirmadas em seu arrependimento: e mudadas em outras do que dantes erão
viverão dahi por diante honestamente, em serviço de Deos; que taes são as
pagas, que os sanctos dão aos que os perseguem, e taes as vinganças que
costumão tomar dos que os maltratão. Divulgouse logo este caso por toda a
terra, e com elle creceo mais a opinião da sanctidade do servo de Deos Frei
Gonçalo.

PARAGRAPHO VIII
De como o Bemaventurado Fr. Gonçalo deu vista a huma mulher cega de
Torres-Vedras

Não sò por obras, e exemplos, que he o principal era conhecida, e


reverenciada a sanctidade do Servo de Deos o Beato Frei Gonçalo de Lagos,
mas tambem por muitas maravilhas, e prodigios que o Senhor por sua
intercessão obrava. Entre os quais he muito celebrada a memoria (que ainda
hoje dura na tradição dos moradores da Villa de Torres-Vedras) de hum caso
maravilhoso, que lhe aconteceo com huma velha pobre, que tinha servido
muitos annos na igreja do seu convento. A qual por infirmidade que teve sobre
muita idade veio a cegar de ambos os olhos: e avia annos que padecia este mal.
Esta considerando as maravilhas que o Sancto Varão fazia em outras pessoas,
lhe disse hum dia, como queixandose delle; Padre Frei Gonçalo, vos a todos os
que vos pedem fazeis merces; a todos [fl. 276v] dais saude, a todos remediais:
so a mim que sou velha, e pobre, e tenho servido aqui tanto tempo em vossa
casa, não me quereis acodir, e darme vista nestes olhos, que o podeis fazer sò
com me pordes as mãos nelles, como fazeis a tantos doentes, que menos volo
merecem, que eu.
Compadeceose o Sancto da necessidade, e queixa da pobre cega; mas
cheo de huma profunda humildade, que em todas as suas acçoens o

73
acompanhava, lhe respondeo: irmã estais enganada comigo: eu não faço
maravilha alguma das que vós dizeis, nem a posso fazer: sou servo sem
proveito, e maior pecador de todos. Deos he que faz os milagres naquelles que
tem fé viva, e verdadeira, e com coração contrito, humilde, e confiado, o
buscam. Não està o ponto em vos eu por as mãos nos olhos, que as minhas mãos
são mãos de peccador, nem são poderosas pera bem algum. Mas se vós tiverdes
fè viva, e verdadeira, e confiardes em Deos, ainda que laveis os olhos com agua
de sardinhas, sarareis, abrirsevoshão os olhos, e vereis.
A boa velha, que cada palavra das do Servo de Deos tinha por hum
oraculo, e se lhe representavão dittas por hum Anjo do Ceo, qual elle era na
vida, esquecendose de quam encontrada mesinha aquella era pera a enfermidade
de seus olhos (que por isso elle lha apontàra pera exagerar a força da fè, e o que
Deos por ella obra) vaise muito depressa a sua casa, e deitando humas poucas
de sardinhas salgadas em agua, despois de as mexer bem, lavou com ella os
olhos com muita fè, e devoção, como o sancto lhe dissera, pedindo com grande
singelleza ao Senhor, que pelos merecimentos de seu servo Frei Gonçalo, que
lhe aconselhara aquella mesinha, fosse servido darlhe com ella saude, e vista
nos seus olhos. Foi cousa maravilhosa que subitamente se abrirão, e vio
perfeitamente ficando dando graças a Deos pella merce que lhe fizera, e a seu
servo Frei Gonçalo por cujos merecimentos, e intercessão lha concedera.
Esta, e outras maravilhas obrou Deos por seo servo, das quais humas por
descuido dos escrittores se não notarão em sua vida, ficando sò na tradição do
povo tão confusas, que me não [fl. 277] atrevo a fazer aqui menção dellas.
Outras, estando processadas em forma juridica, se perderão nas mãos dos
religiosos, que com indiscreta curiosidade de as ler não reparavão em ver, que
com isto se rompião, e esperdiçavão, como em effeito esperdiçarão. Do que
amargamente se queixa, alem de outros, o reverendo Arcebispo Primaz Dom
Aleixo de Menezes no Capitulo I de sua vida; aonde particularmente faz menção
de hum caderno de milagres seus aprovados, que sendo levado a huma doente,
que desejava ouvilos ler, nos não foi mais restituido, por desazo dos Padres, que
se não lembrarão de o pedir, antes que a devoção dos que souberão delle,
tivesse lugar de o sumir.

PARAGRAPHO IX

74
Da gloriosa morte do Sancto Varão Fr. Gonçalo, e de sua sepultura.

Querendo Deos dar a seu servo o premio dos muitos serviços, que lhe
tinha feito, tendo já seu corpo consumido com jejuns, e outras penitencias, veio
a cahir enfermo em dous do mês de Outubro do anno da redempção do mundo
de 1422. E entendendo ser aquella a ultima enfermidade, alegravase seu espirito
de ver chegada a hora, para que tantos annos se avia aparelhado. Porque se a
vida dos justos cansada, e trabalhosa, não tivera o bem escondido na morte, não
fora sofrivel de levar. Mas como todas suas esperanças estão no morrer, como
diz o Espirito Sancto 68 , morrem em vida mil vezes asi, e aos falsos gostos della,
por chegarem na morte a entrar pelos verdadeiros da gloria.
Vendose pois o servo de Deos neste trance, pedio, e recebeo com muita
reverencia, e contrição os Sacramentos da Igreja. E ficando com elles mais
confortado, com tão grande alegria e jubileos dalma esperou a morte, que
parecia começar já a gozar na terra a gloria, que dahi a pouco avia de receber no
Ceo. E despedindose dos religiosos, e encomendando a todos o amor de Deos, e
guarda da sua Regra, e profissão, lhes deitou sua benção, como bom pai, e
prelado seu. E começou a rezar com elles o [fl. 277v] officio da
encommendação dalma, e oraçoens que na Ordem se costumão dizer pelos que
estão naquella hora. E acabado elle encostado nas vides, que toda a vida lhe
tinhão servido de cama (que nem naquella ultima enfermidade se pode acabar
com elle tomasse outra) entre os versos, e Psalmos, que os religiosos ao redor
delle estavão rezando, deu seu espirito ao senhor com muita quietação, e
repouso, e se foi a gozar de Deos, a quem com tanta fidelidade, e amor tinha
servido, aos 15 de Outubro do anno de 1422 sendo Martinho V. Summo
Pontifice, Rei de Portugal D. João I. Geral da Ordem o Reverendissimo Padre
M. Fr. Agostinho Romano.
Tanto que na villa se soube da morte do Servo de Deos, acodio logo todo
o povo com grande sentimento ás exequias de seu bom pai chorando todos o
verense faltos de sua doutrina, e exemplo. E procuravão aver alguma cousa sua
para a guardarem por reliquia em veneração de sua sanctidade. E por ella ser tão
notoria na Ordem, e no reino, e serem tão grandes os milagres, que fez em vida,
se teve cuidado de lhe darem sepultura particular, apartada da dos outros
68
Ps. 15.

75
religiosos. E assi foi sepultado na capella mor da igreja do convento no chão do
presbiterio do altar mòr à parte do Evangelho. Tambem pella mesma rezão da
reverencia, que selhe devia, se teve cuidado, que ninguem mais morasse , nem
se agazalhasse na sua cella: avendose todos por indignos de habitar sem tantas
vitudes, e tão sanctos exercicios, lugar que delles ficara tão sanctificado. E assi
esteve muitos annos sem ouzar alguem a morar nella.
E como hum frade leviano com temeraria presumpção julgasse por cousa
supersticiosa o não morarem os religiosos naquella cella, e quizesse ser o
primeiro, que com pouca reverencia se atrevesse a isso, sentio sobre si o castigo
de sua temeridade tão aspero, que na mesma noite , em que nella entrou, cahio
em huma grande enfermidade, de que (posto que arrependido de sua ouzadia, e
mudado logo para outra cella) veio a morrer, o que notando os religiosos
ninguem mais se atreveo a outro tanto. E dahi por diante ficou deputada para
casa de oração dos religiosos, mostrando nisto N. Senhor quanto quer que [fl.
278] honremos os lugares, em que seus servos com particulares exercicios o
servem, e quanto sanctificado tinha o tabernaculo, aonde tantos sacrificios de si
lhe tinha feito seu grande servo Frei Gonçalo.

PARAGRAPHO X
Da primeira tresladação do corpo do Beato Padre Sam Gonçalo de LAgos, e da
causa della. E de como a Villa de Torres-Vedras o tomou por seu padroeiro, e
se lhe instituiu huma confraria.

Tanto que a morte do Servo de Deos se divulgou por toda aquella


comarca, logo começarão a acodir a sua sepultura muitas pessoas assi das que o
tinhão conhecido em vida, como dos que ouvião a fama de seus milagres,
pedindo por sua intercessão remedio a Deos pera suas necessidades. E assi
começou o Senhor a obrar por elle muitos milagres não só nas pessoas que
vinhão visitar seu sepulchro, mas tambem nas que levavão terra, e reliquias
delle, como adiante veremos. Pello que se lhe instituiu da nobreza da terra huma
confraria, que celebrava sua festa com grande solemnidade, e avia naquelle dia
huma feira muito celebre, a que acodião de muitas partes do Reino; e do
Algarve vinhão muitos devotos com suas offertas. E como o concurso ordinario
da gente fosse muito, e o presbiterio, em que o corpo do Sancto estava , de

76
pouca capacidade; acontecia muitas vezes, que ao tempo da missa do dia não
tinhão os ministros lugar livre pera celebrarem com a quietação, e decencia
devida. Pello que foi forçado tiraremno fora do presbiterio. E pera maior
veneração sua o colocarão dentro de hum arco, que se fez no lado da mesma
capella, da propria parte do Evangelho, em hum rico cofre fechado com duas
chaves, das quaes tinha huma o prior, outra o sanchristão do convento por
mandado expresso do Padre Mestre Frei João da Magdalena Provincial, que
então era segunda vez desta Provincia, e Lente de Prima da Universidade, que
depois se passou para Coimbra. Foi feita esta tresladação no anno de nosso
Redemptor Jesu Christo de mil e quatrocentos, [fl. 278v] e noventa e dous. Com
muita solennidade á custa de sua confraria, a qual era liberalissima em fazer
gastos na veneração deste grande servo de Deos.
Depois estando el Rei Dom João o segundo no Algarve pellos annos de
nosso Redemptor Jesu Christo de mil quatrocen[tos] e noventa e cinco. E
ouvindo a fama, que lá corria dos milagres deste sancto, e os que fazia nos
naturaes daquelle Reino, em que elle nacera, escreveo huma carta em vinte e
seis de Settembro à Camara de Torres-Vedras, chea de louvores do sancto,
chamandolhe povo venturoso, pois gozava o corpo de hum sancto milagroso. E
desta carta tomou a villa motivo para logo o eleger por seu padroeiro, e
defensor. Assi consta de hum assento da mesma Camara lançado no livro que se
intitula Real extravagante: a folhas 39 e então se poz terceira fechadura no
cofre das sanctas reliquias, de cuja chave se entregou o vereador mais antigo
daquella villa. E a primeira vez que depois se abrio, foi dahi a muitos annos,
para se tirar huma reliquia, que à instancia da Camara de Lagos se mandou para
aquella cidade, e se collocou na Igreja do Corpo Sancto aonde he juntamente,
com o Bemaventurado Sam Pedro Gonçalves, invocado dos Maroantes, em cujo
favor tem Deos por elle obrado grandes maravilhas; algumas das quaes
referiremos adiante. E por isso se achava em alguns conventos da Provincia a
sua imagem pintada com huma nào na mão direita.
Não ficou o presbiterio com esta mudança do corpo do Sancto Frei
Gonçalo menos impedido, para os ministerios do altar: porque com a mesma
frequencia , que dantes, concorria gente a elle para tirar terra do lugar aonde
estivera sepultado. Pello que para satisfazer à devoção dos fieis, sem discomodo
dos religiosos, foi forçado tirarse tambem para fora do presbiterio aquella terra.

77
Para este fim se fez hum custoso sepulchro de marmore pequeno, com hum
buraco em hum dos topos, para os devotos tirarem terra, e meterem por elle os
pès, e braços enfermos com piedoza esperança de alcançarem saude, como em
effeito alguns alcançarão, segundo adiante se verá. Nesta sepultura se depositou
a terra do lugar aonde [fl. 279] o Sancto fora sepultado. E para se conhecer que
era sua (alem de se collocar ao pè do arco, aonde estava o cofre de seus
veneraveis ossos) no tampão della , que he de tres faces paralelas, se esculpio
na primeira (que responde à parte do diante) a imagem do Santo com meio
relevo com diadema: e na segunda (que he a de media entre as duas extremas)
se entalhou hum letreiro que diz desta maneira: Esta sepultura he do
Bemaventurado Frei Gonçalo de Lagos: feita no anno do Senhor 1518.
Desta sepultura, e letreiro teve noticia o Padre Frei Jeronimo Roman
quando trasia entre mãos as Chronicas da Ordem, que despois imprimio em
Salamanca no anno de 1569. Mas como a alcançasse por escrito de quem lha
mandou desmparada das circunstancias concernentes á verdade da materia;
enganouse com ella 69 , crendo que nesta sepultura fora posto o corpo do nosso
Sancto logo que morreo, e que o anno de seu transito fora o que nelle se aponta
de 1518 ou mil quinhentos e desanove, como elle (creio que por imperfeição
dos characteres da informação que lhe foi) affirma na Centuria 12. anno de
nosso Senhor Jesu Christo 1499. dizendo assi: En este tiempo resplandecio por
vida, e milagros el Sancto varon Frai Gonçalo de Lagos en la Provincia de
Portugal, etc. Hizo nuchos milagros en vida, e muerte, com parecen por el
registro, que está en el Convento de Torres-Vedras autorisado en todas las
circunstancias, que pide el derecho. Murio en el año 1519. como parece por el
letrero, que està en su sepulcro etc.
Porem do discurso desta historia, que atè aqui temos tecido, e de diversas
memorias do archivo de Torres-Vedras consta que o sancto morreo no anno já
ditto de 1422. E confessou despois o mesmo Roman 70 naquella sua Historia dos
Sanctos de Hespanha na Centuria quimze, obra que escreveu quando já tinha
vindo a Portugal, e revolvido os cartorios dos conventos desta Provincia. Donde
levou do de Torres-Vedras huma historia authentica da vida, e milagres deste
Bemaventurado Sancto, com outros papeis pertencentes às Chronicas da Ordem
69
Engano do P. Roman.
70
O P. Roman se retrata.

78
que determinava fazer, como consta de huma cedula sua, que està no ditto
cartório; e tudo se perdeo em Castella com a sua morte [fl. 279v] apressada,
sem se lograr cousa alguma, como já choramos em outra parte 71 .
Nem obsta o acharemse em alguns conventos da Provincia algumas
escrituras com era mais moderna que o anno de 1422 assinadas por Frei
Gonçalo de Lagos. Porque destas as que estão assinadas pello Sancto de que
falamos (que são as mais antigas das de que se duvida) trasem a era de Cezar, e
não os annos do nacimento de Christo nosso Redemptor, que ainda naquelle
tempo se costumava: posto que já não com tanta generalidade como os annos
atraz. Descontemlhe 38 annos em que a Era de Cesar excede ao anno do
Nacimento de Christo, e acharseha que foram feitas, e assinadas pello sancto
Frei Gonçalo de Lagos antes do anno de 1422 em que elle morreo. As outras
mais modernas são assinadas por hum de dous religiosos que ouve nesta
Provincia do mesmo nome do Sancto hum dos quaes era seu parente, e outro,
que foi o ultimo, tam devoto seu, pellos milagres, que delle ouvia, que
chamandose em noviço Frei Gonçalo de Beja, se chamou na profissão Frei
Gonçalo de Lagos. E se o Padre Roman pudera esquadrinhar as memorias desta
Provincia assi de tradição, como de escritos, atè o ultimo, e menor papel, como
nòs fizemos, escusaranos da digressão com que agora nos fomos divertindo.

PARAGRAPHO XI
De como o Mosteiro de Nossa Senhora da Graça de Torres-Vedras se mudou
pera outro sitio: e da segunda trealadação do corpo do B. S. Gonçalo, e de
como era venerado naquelles tempos antigos.

Despois, correndo os annos de 1544 que são 278 da fundação do


Convento de Torres-Vedras 72 : como elle estivesse em hum sitio baixo, a que
chamão a Varzea Grande, e viesse no discurso de tanto tempo a ser alagadisso
pelo inverno; doeose do descommodo dos Religiosos o piissimo Rei Dom João
o III e vendo quam accomodado era o do Hospital de S. Andre, e quam
trabalhosamente erão curados nelle os enfermos, quando os avia: porque [fl.
278] como os não avia sempre, com cada qual que de novo entrava, sobrevinhão
71
P. I, cap. 8 prolog.
72
Vide lib. 6. tit. 5. § 6, 7.

79
novas difficuldades; e que já por isso naquelle tempo todos se hião curar a
Lisboa: deu aos padres este hospital, a que chamavão Gafaria, precedendo pera
isso licença, e autoridade do Summo Pontifice Paulo III que então governava a
Igreja de Deos por breve seu passado aos oito de Julho do anno nono de seu
Pontificado, que foi o de Christo de 1543.
Pera aqui se mudarão os padres logo no anno seguinte já ditto de 1544
em trinta do mês de Novembro, que he o dia do Apostolo S. Andre padroeiro do
mesmo hospital, de cuja igreja se servirão em quanto a nova se foi fazendo. E
como fossem derrubando o mosteiro velho pera se aproveitarem dos materiais
delle: correndo o anno de 1559 em que a igreja delle se começou a derrubar,
antes de a destelharem se tresladarão della pera a do hospital os veneraveis
ossos do Sancto Padre Frei Gonçalo de Lagos com grandes festas, pomposa
procissão, missa cantada, e sermão; para a qual solemnidade concorreo toda a
cleresia da villa, e do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa muitos
Religiosos, com os quaes se achou presente o Sancto Varão Frei Luis de
Montoia approvado tambem por milagres que fez em vida, e em morte, Vigario
Geral perpetuo, que então era desta Provincia.
Foi feita esta segunda tresladação aos cinco de Agosto, que he dia de
Nossa Senhora das Neves, cuja sagrada imagem tambem se tresladou na mesma
occasião. Concedeu o Reverendisssimo Arcebispo de Lisboa Dom Fernando
todas as indulgencias, e graças que podia ( que conforme a direito são quarenrta
dias de indulgencia) aos que se achassem presentes a esta tresladação, como se
vé pello Alvará seguinte 73 .
Dom Fernando Arcebispo de Lisboa, etc. Fazemos saber aos que este
nosso Alvarà virem como os Padres de Nossa Senhora da Graça desta cidade
nos enviarão dizer, que querião com muita solemnidade mudar a imagem de
Nossa senhora da Graça, e o corpo de São Gonçalo de Lagos da igreja velha
do Mosteiro de Torres Vedras pera a Igreja de Santo Andre da Gafaria,
pedindonos para [fl. 280v] isso licença. E visto sua devoção, avemos por bem
de lhe darmos. E por este concedemos todos os perdoens que em direito
podemos, aos que se acharem presentes quando se mudar a ditta imagem de
Nossa Senhora, e corpo de do Bemaventurado S. Gonçalo como ditto he. E no
dia, em que se fizer a ditta festa de mudança, damos licença que se possa dizer
73
Cap. cũ ex co: et cap. Nostro : de paeni et remiss.

80
missa de todos os Sanctos em louvor de S. Gonçalo. E assi se cumprirá
inteiramente sem duvida, nem embargo algum. Dado em Lisboa sob o nosso
sinal, e sello aos seis dias do mês de julho de 1559. Felippe Tavares a fez
escrever.
Dom Fernando Arcebispo de Lisboa.

Porém advirto ao pio leitor que por rezão daquellas palavras deste alvarà:
damos licença, que se possa dizer missa de todos os Santos em louvor de S.
Gonçalo, não deve entender, que então se disse a primeira vez missa em louvor
do Santo, ou que sò então se disse. Porque sempre se uzou dizerse desdo tempo,
em que se lhe instituhio a confraria, que já perseverava com grande devoção
avia mais de cem annos, e perseverou despois atè morte del Rei Dom Sebastião:
em cujo tempo se extinguio, como adiante veremos. Antes se pòde entender ,
que a missa, que em seu louvor se dizia, não era da festa de Todos os Sanctos,
como a que neste alvarà aponta o Arcebispo, mas do commum de hum confessor
não Pontífice: ao que persuado por duas razoens, a primeira, porque no livro
segundo dos milagres deste Sancto às folhas vinte, se acha particular oração,
secreta, e post communhão para a sua missa, e são as seguintes.

Oratio.
Domine Sancte Pater Omnipotens aeterna Deus, qui de nihilo secisti qui te
rogarent, meritis Beati Gondiçali confidentes, te humiliter deprecamur, ut per
unigeniti Filii tui passionem, Spiritus Sancti nobis dona concedas. Qui vivis, et
regnas in unitate eiusdem Filii et Spiritus Sancti Deus per omnia secula etc.

Secreta.
Suscipe clementissime Deus, hoc sasacrificium in honorem Beati Gondiçali
maiestati tua oblatum, ut eius intercedentibus meritis gloriam consequamur
aeternam. Per Dominum etc.

[fl. 281] Post communio


Quaesumus Omnipotens Deus, ut per haec Sacramenta, quae sumpsimos,
intercessione Beati Gondiçali, et tuae gratiae prasenti, et gloriae in futuro,
participes esse mereamur. Per Dominum etc.

81
A segunda razão he porque esta confraria tinha ornamentos de cor verde
para a celebridade deste sancto. A qual cor era a de que a Igreja Romana
naquelles tempos uzava nas festas dos confessores, e não na de todos os
Sanctos: na qual uzou sempre, e ainda uza de cor branca, avendo respeito a
terem nella tão principal parte a Virgem Senhora Nossa, e os Sanctos Anjos,
cujas festas se celebrão sempre com ornamentos desta cor.
E ainda hoje se conserva na sanchristia daquelle convento hum pano
daquelles tempos de damasco verde, o qual serve de cobrir a sepultura do
Sancto aos Domingos, e dias de guarda. Porque se bem se acabou a confraria
pella razão que abaixo diremos, nunca com tudo cessou totalmente a devoção
deste Sancto, e veneração de seus ossos, e sepultura. A qual foi sempre
costume, em quanto durou a sua confraria (que foi por espaço de 150 annos)
estar cuberta com hum panno de seda verde nos Domingos, e dias sanctos, e
juntamente rodeada de tochas, ou cirios acesos ao tempo da missa do dia, e nas
vesperas das festas principaes do anno assi da Igreja, como da Ordem.
Acabada a confraria, como o gasto de cera ficasse por conta do convento,
ouve nos primeiros sanchristães algumas vezes intermissão, e descuido no
particular desta cerimonia sancta, atè que acodindo Deos pella honra de seu
servo, e pella posse, em que estava, inspirou nos coraçoens de algumas pessoas
devotas, de poucos annos a esta parte, que fossem visitar a sua sepultura
mandando dizer missas em seu louvor, e offerecendo cera para ellas, e para a
sepultura com mais frequencia, que nos annos atraz. E com estas offertas não
somente ha hoje cera para a conservação continua deste culto mas ainda sobeja
para serviço dos altares.
Sobre o particular da missa que se diz em louvor deste sancto, me
informei dos mais antigos religiosos desta Provincia, que [fl. 281v] forão
moradores naquelle convento, e tambem de alguns clerigos da villa, e em
nenhum achei, que se dissesse outra missa, senão da festa de Todos os Sanctos.
Pelo que parece não sortirão effeito as oraçoens particulares, que acima referi,
ou por serem feitas sem legitima authoridade, ou por outra rezão, com que nòs
agora não sabemos atinar salvo, se dissermos, que atè o tempo do Arcebispo
Dom Fernando se dizião; e que dahi por diante se uzou dizerse a missa da festa
de Todos os Sanctos: qual foi a que elle mandou se dissesse nesta segunda

82
tresladação do Sancto: cujas reliquias forão collocadas na capella mòr da
mesma maneira, que estavão na Igreja velha. Mas como quer que fosse, suposta
tão grande intermissão, não podemos oje venerar este Sancto com propria
missa, ou oraçoens proprias nella, e confraria, sem nova licença da Igreja para
isso.

PARAGRAFO XII
De como o sepulcro do Sancto foi tresladado para a segunda igreja, e despois,
em companhia de suas reliquias, para a terceira. De algumas maravilhas que
neste tempo Deos obrou por sua intercessão: e da occasião, porque se acabou a
sua confraria.

Ao tempo, em que se fez a segunda tresladação dos ossos do sancto


(como fica ditto no capitulo precedente) não trouxerão os religiosos o sepulchro
de marmore, em que dissemos estava sepultada a terra da sua primeira
sepultura, deixandoo entre as ruinas da igreja velha quasi cuberto de terra, e
caliça. Porem o povo ainda ali o hia buscar para venerar, e tirar delle terra,
como costumava, para remedio de suas necessidades.
Entre os outros casos maravilhosos que neste tempo ali se virão,
aconteceo que huma mulher nobre daquella villa por nome Maria Henriques,
tendo huma [fl. 282] unha no dedo polegar do pè direito tão crecida, e mettida
por dentro da carne, que lhe furava o dedo todo, saindolhe pela banda debaixo
por duas partes, com que padecia intoleraveis dores, em especial quando a
curavão; affligida com este mal se fez levar ao lugar da Igreja velha, aonde
estava a sepultura do Sancto. E pedindolhe com grande fè, que lhe valesse
naquella necessidade, metteo o pè no buraco della (que para semelhantes casos,
e para se tirar terra, estava aberto em huma das cabeceiras) e logo se sentio sem
dores: e sem outra mezinha cobrou perfeita saude. Aconteceo este caso aos 15
de Outubro, que he o dia do transito, e festa deste mesmo Sancto.
Neste lugar esteve tão veneranda sepultura com pouca decencia, atè que
pelos annos de 1570 passando por Torres-Vedras o Reverendissimo Dom Frei
Gaspar Cam Bispo eleito de S. Thomé religioso da Ordem, como fosse visitar as
reliquias do Santo, perguntou pello sepulchro de marmore tão celebrado pelos

83
milagres, que Deos nelle tinha obrado. E sabendo onde estava, e que ainda ali se
obravão maravilhas, o foi tambem visitar com grande devoção. Mas vendo a
indecencia do lugar ajuntou toda a familia, e com muita veneração, e reverencia
elle, e os seus trouxerão o sepulchro com muita honra do lugar, onde o sancto
fora primeiro sepultado.
E aconteceo, que hum dos criados do Bispo chamado Pedro Cão, vindo
ferido de mal de peste (em que então ardia o reino) com hum inchaço em huma
virilha, em chegando a Torres-Vedras cahio em cama com huma grande febre,
sem ouzar a descobrir o mal que tinha, porque o não evitassem, e padecesse por
isso algum desemparo. Mandou o Bispo nesta occasião recado a todos os de sua
familia para traserem o sepulchro. E sabendoo este enfermo, para maior
dissimulação de seu mal, se levantou logo fingindo que a febre já passára, e que
aquelle abalo fora somente cançasso do caminho. E como pode se foi com os
outros, e junto com elles se encostou ao sepulchro, dando mostras de querer
pegar nelle, e ajudar aos companheiros a levalo. Eis que em lhe tocando sentio
em si de repente tantas forças, que com facilidade os ajudou. E achan[fl.
282v]dose muito leve, e sem febre foi logo ver o inchaço: e não achando
vestigio delle, começou muito alegre a apregoar o mal, de que Deos o livrara
pelos merecimentos do Sancto, affirmando que em tocando na sua sepultura
saràra de improviso.
Acrecentouse com este caso no Bispo, e nos mais a devoção ao Sancto, e
tomando todos terra da sua sepultura, se partirão ao outro dia para onde hião:
deixando o Bispo encomendado ao Prior do Convento, que fizesse autenticar
esta maravilha, para pudesse ter lugar entre os mais milagres deste Sancto. Mas
não acho por onde me conste averse feito esta diligencia. Por ventura que se
fizesse, e se perderia o instrumento, como aconteceo a outros muitos.
Trazido o sepulchro do Sancto à igreja do Hospital de Sancto Andrè, foi
collocado decentemente junto das suas reliquias assi como estivera na igreja
velha. E ali esteve atè o anno de 1580 no qual aos 18 de Dezembro dia da
Expectação de Nossa Senhora se mudarão as reliquias e sepulcro pera o
mosteiro novo, onde os padres vivem ( e esta foi a trasladação) com festas, e
solemne procissão, missa cantada, e sermão, que prégou o Padre Mestre Frei
Agostinho da Trindade, Lente que então era da Cadeira de Escoto na
Universidade de Coimbra: e despois o foi de Vespera, e ultimamnete reitor da

84
Universidade de Tolosa em França, pera onde se retirou por fugir do poder del
Rei Felippe o segundo de Castella, cuja entrada em Portugal encontrou o mais
que pode. Ali foi posto este sagrado thesouro em hum nicho na parede do topo
do cruzeiro da Igreja junto ao altar do Sancto Crucifixo: ficando o nicho
fechado com humas grades de ferro douradas, e com outras tres chaves como
antes: e por cima dellas cuberto todo de alto a baixo com humas curiosas
cortinas de tafetà verde: e sobre o arco do nicho a Imagem do Sancto, que
despois no anno de 1628 se mudou para a sanchristia, aonde hoje se conserva.
Ao pè deste nicho mandou a Camara de Torres-Vedras pôr hum letreiro
de letras de ouro em huma taboa bem guarnecida, que dizia desta meneira:
Corpus Beati Gondiçali de Lagos multis, magnisque Miraculis calri: huius
Monasterii quodam Prioris: et huius oppidi post Beatissi [fl. 283]mam Virginem
sanctam Mariam, insignis Patrom, anno 1580. Quer dizer, aqui está o corpo do
Bemaventurado S. Gonçalo de Lagos, claro por muitos e grandes milagres, Prior
antiguamente deste mosteiro, e insigne padroeiro desta villa despois da
Beatissima Virgem Maria, anno de 1580. Gastarãose em poucos annos estas
letras, e toda a pintura da taboa com a muita humidade da parede, e não ouve
curiosidade pera as reformarem mais. O sepulchro por não ter lugar abaixo do
nicho, por causa da porta que ali està pera a claustra, se colocou no corpo da
igreja, junto ao pilar da primeira capella das que ficão da mesma banda.
Jà por este tempo não avia confraria do Sancto a qual se começou a
desfazer com a infelice jornada, e morte de El Rei D. Sebastião. Porque ficando
desde então o reino sem gente, e sem dinheiro povoado de viuvas, e orfans, e
banhado em lagrimas, foi faltando pouco, e pouco quem continuasse com as
obrigaçoens, de huma confraria tão custoza: e assi veio brevemente a se
extinguir de todo: confirmando este desemparo com a nova entrada do Rei
Castelhano Dom Felippe, que por morte do Cardeal Rei Dom Henrique no
mesmo anno de 1580 se introducio industriosamente na sucessam destes Reinos.
Porque ainda que foi recebido dos portuguezes pacificamente com tudo quanto
o fizessem mais tolerandoo, que admitindoo, se dexa bem ver em que estando
em Portugal mais de dous annos, nem quando entrou venturoso, nem quando
esteve magestoso, nem quando se sahio triunfando, se lhe deu hum viva dos
infinitos que a leal Naçam Portugueza costumou sempre dar, e dà hoje a seus

85
legitimos reis. Em consequencia do que, se guardou o mesmo estilo com seu
filho, e seu neto, quando despois vierão a Lisboa no anno de 1619.
Tornando pois ao nosso São Gonçalo de Lagos, aqui estiverão
depositadas suas veneraveis reliquias, e sepulchro por espaço de sessenta annos
justos de dia a dia, como se verà no capitulo seguinte.

[fl. 283v] PARAGRAPHO XIII


Da quarta e ultima tresladaçam do corpo e sepultura de S. Gonçalo, e das
diligencias que se hão feito com a Sè Apostolica sobre sua maior veneraçam; e
da causa porque senam lograrão, e de como sempre foi venerado com legitimo
consentimento da Igreja

Sessenta annos avia que Portugal estava sem rei legitimo debaixo do
governo de Castella. E tantos avia, que as milagrosas reliquias de S. Gonçalo de
Lagos, como de verdadeiro portuguez, estavam como sentidas do desemparo do
reino, sem confraria, sem festas, e sem feira no seu dia; e elle posto como a
hum canto, ouvido escassamente a quem o rogasse, e quasi não avendo já quem
o rogasse: quando chegado já o memoravel, e ditoso anno da liberdade
portugueza de 1640 em que tomou posse destes reinos o serenissimo D. João o
quarto deste nome que Deos guarde por felices annos, quis o Sancto mostrar que
era portuguez movendo o coração do padre prior daquelle convento a que
poucos dias despois de sua acclamaçam (não foram elles mais de 17) tresladasse
como tresladou, as suas reliquias, e sepulchro pera a capella mòr da mesma
igreja; aonde poz huma e outra memoria no lado della em hum fermoso arco
metido no vam da parede. Pera dali como de lugar mais nobre, e em que sempre
estivera no tempo dos reis portuguezes, tornasse a continuar em sseus devotos
com as merces e sinaes maravilhosos de que se tinha tirado em quanto durarão
os reis estranhos. Porque ainda que neste meio tempo obrou Deos por elle
algumas maravilhas, forão ellas com tudo na quantidade, e na qualidade tão
menores, que á vista das passadas, ficão a perder de vista. E não dà fé dellas
senam hum lince de hum chronista, a que nam escapa o menor argueiro, e hum
sanchristam cevado com o interesse das offertas da cera, e esmollas de missas,
que por esta via lhe acodem.

86
Esta foi a quarta , e ultima tresladaçam destas veneraveis reliquias, se
bem celebrada com menos apparato, e solemnidade, [fl. 284] que as precedentes
por ser para lugar tam visinho, e de tam pouca distancia, como ha de hum
cruzeiro de huma igreja, pera a sua capella mor: com tudo muito melhorada pela
curiosidade e conserto do lugar a onde estam collocadas; e acrecentamento de
cortinas, e lumes, com que sam veneradas. De maneira que sem aver confraria,
podemos dizer que se gasta hoje quasi tanta cera em reverencia do Sancto, como
se gastava quando a avia. E esperamos em Deos, que renovandose cada dia mais
a devaçam dos fieis, vinha muito cedo o nobilissimo Senado de Torres-Vedras a
impetrar licença da Sè Apostolica pera que este seu milagroso padroeiro seja
celebrado com festa propria, senam em todo o reino, pelo menos no
Arcebispado de Lisboa em cujo destricto cae a ditta Villa, e na Provincia
Augustiniana de Portugal, cujo filho elle foi.
Jà desta materia tratou muito deveras, e com singular zelo o
Reverendissimo Senhor Dom Frei Agostinho de Castro Arcebispo de Braga
religioso que foi da mesma Provincia. Mas despois de estarem feitas todas as
diligencias necessarias com authoridade, e commissam da Sè Apostolica, e
concluso juridicamente o summario da informaçam dos milagres, e fama de
Sanctidade do servo de Deos, e da posse immemoravel de sua veneraçam,
adoeceo o Arcebispo e morreo em breves dias 74 , ficando tam sancta pretençam
deserta, e os instrumentos perdidos, por incuria do religiosos que assistiram à
sua morte; desgraça que nam sò foi bem sentida de toda a Provincia, mas
juntamente dos senados de Torres-Vedras e da cidade de Lagos, que jà se
tinham offerecidos ao ditto Arcebispo pera o ajudarem nos gastos da
canonizaçam deste bemaventurado servo de Deos.
Pelo mesmo descuido se perdeo tambem de todo o letreiro que no nicho
do cruzeiro de esta igreja o Sancto tinha (de que acima fizemos mençam no
paragrapho precedente) pelo qual constava a todos os que o liam, que elle era
padroeiro de Torres-Vedras, como se vè no assento da Camara desta Villa, que
referimos no Paragrapho dez. E justo fora que este letreiro se re[fl.
284v]novàra. Creio que por se nam saber já delle, se poz agora em seu lugar,
por ordem do Padre Prior daquelle Convento, hum que diz assi.

74
Obiit die 2 Novẽb. an. 1620.

87
Sepultura do Sancto Padre Frei Gonçalo de Lagos prior que foi deste
Convento, que em vida floreceo em virtudes e em morte resplandeceo em
milagres.

Com tudo sempre este celestial thezouro foi estimado, e trattado com
veneração e culto publico confirmando com expresso consentimento dos
Reverendissimos Arcebispos de Lisboa. Porque, quando menos, constanos do de
D. Fernando, como se vé no seu alvarà que assima referimos no paragrapho 14.
E do de Dom Miguel de Castro, que por duas vezes o visitou pessoalmente com
grande devoção, dando de cada huma dellas seis brandoens de cera pera a sua
sepultura, e ultimamente do de Dom Rodrigo da Cunha, que tambem
pessoalmente o visitou, e venerou quando no anno de 1641 foi visitar aquella
Comarca de Torres-Vedras. E falando eu despois , com elle sobre a vida, e
milagres deste sancto me estranhou muito o averem consentido os priores
daquelle convento, e a nobreza da terra, que se perdesse a confraria, e
solennidades, com que dantes era venerada.

PARAGRAPHO XIII
De como o Sancto Frei Gonçalo appareceo despois de sua morte a muitas
pessoas, que se lhe encomendaram, acodindo a suas necessidades.

A charidade e compaixão dos trabalhos, e necessidades dos proximos,


que o Servo de Deos Sam Gonçalo avia tido na vida, se enxergou muito mais
nelle despois de morto, na gloria (aonde a charidade, he sem fezes, e
consummada) acodindo a muitas pessoas, que em seus trabalhos, e atribulaçoens
chamaram por elle, e com fè viva, e verdadeira confiança se lhe encomendavam.
No anno de 1437 que sam quinze despois da sua gloriosa morte,
aconteceo, que certos homens do Reino do Algarve naturaes de Lagos, patria do
[fl. 285] mesmo Sancto se embarcarão pera Lisboa em huma caravela, entre os
quais hia hum sobrinho do mesmo servo de Deos filho de hum seu irmão.
Engolfados no mar, levantouse huma tempestade tam severa que deu com a
embarcaçam à costa, e a fez em pedaços, com morte de todos os que nella hião,
tirando dous que puderam lançar mam ambos a huma taboa, a que se apegarão.
Mas como o impeto da ondas os levasse muitas vezes aos penedos da praia, e os

88
tornase a arrebatar, se ferião e lastimavam gravissimamente, hora com os
penedos, hora com os pedaços da caravella, que com a marizia andavam às
voltas entre as forças a hum delles, lhe fogio a taboa, e se afogou.
Ficou o outro a quem tambem as forças hiam falecendo e este era o
sobrinho do Sancto, e vendose pelo caminho de seus companheiros, posto em
tamanha angustia, começou a chamar por Deos, e por Sam Gonçalo de Lagos,
dizendo: tio sancto, tio sancto, valeime. Eis que neste ponto vio na paria hum
frade Agostinho que o animava, e lhe dezia que nam temesse, e viesse pera elle.
O mancebo em ouvindo isto, respondeo que estava tam cançado que nem
menearse podia: nem ouzava largar a taboa por se nam ir ao fundo, e afogarse.
Entrou entam o frade pelo mar sobre as ondas e tomandoo pela mam, o tirou a
praia, como outro Sam Mauro a S. Placido 75 , e lhe disse: Eu sou o tio por quem
chamastes, e a quem vos encomendastes. Idevos curar atê que cobreis forças
pera poder caminhar. E já que em vida me nam visitastes, fazeio agora. Ide ao
mosteiro de Sam Agostinho de Torres-Vedras aonde meu corpo està sepultado:
e fazei ahi oraçam, e receberis ahi saude perfeita das chagas e feridas, que deste
naufragio recebestes.
Felo assi o mancebo, e chegando ao sepulchro do Sancto pos da sua terra
sobre as feridas, que ainda trazia mal trattadas. E dormindo aquella primeira
noute ao pè da sepultura, acordou pella manham de todo sam sem dor, ou sinal
algum das feridas que recebera, com grande admiraçam de todos os que no dia
precedente o tinhão visto cuberto de [fl. 285v] feridas, e pizaduras. Pelo que
dando graças a Deos, e a seu servo São Gonçalo, contou a todos o que passava:
do que e da repentina cura das feridas, que se tinha visto, se fez hum publico
instrumento authentico em dous originaes, hum dos quaes se lançou no archivo
daquelle convento, e o outro se levou ao Algarve pera gloria de Deos, e maior
veneraçam de seu servo.
Despois pellos annos de 1508 aconteceo tambem, que andando em huma
caravella certos mariantes da mesma cidade de Lagos se levantou de improviso,
tal tempestade que lavava a caravella ao fundo. E vendosse os que dentro hião
neste perigo, começarão a pedir a Deos mesericordia e a São Gonçalo seu
natural que lhes acudisse. Estando neste aperto assi orando, virão sobre as
ondas junto da caravella hum frade de S. Agostinho, com hum cajado na mão,
75
S. Greg. Dial. l, 2.c.

89
que os esforçava dizendolhes que tivessem animo, e que chamassem por Nossa
Senhora da Graça, que ella lhe acuderia. Em dizendo isto, sessou logo a
tempestade, ficando todos fora deste perigo.
Perguntaramlhe quem era; respondeo que era Frei Gonçalo prior que fora
do mosteiro de S. Agostinho de Torres-Vedras seu natural, e por quem elles
chamarão quando se virão perdidos: e que Deos o mandara ali pera os remediar:
que se fossem logo ao Reino de Portugal à villa de Torres-Vedras, e que
naquelle mosteiro acharião seu corpo sepultado; aonde lhes dessem os
agardecimentos do beneficio que lhes fizera por mandado de Deos. Elles mui
agradecidos o fizerão assi, pondosse logo ao caminho pera o ditto convento. E
feita sua romaria, contarão a todos o que passara, e testemunharam a maravilha
que o Sancto por elles fizera, como consta do instrumento authentico, que deste
milagre se fez, o qual està no archivo do ditto convento.
No anno de 1551. Sendo morador no convento de Nossa Senhora da
Graça de Lisboa hum religioso de muita virtude e sanctidade, por nome Frei
Alvaro Monteiro, era gravemente atormentado com dores de gota nas mãos, e
sentindosse mui affligido em huma mão com este mal, huma manhã, dia da
Conceiçam da Nossa Senhora que he a oito de Dezembro, se nam pòde levantar
da cama. E como não [fl. 286] tivesse o infermeiro reccado pera lhe acodir,
aconteceo, que esteva assi todo o dia ás escuras e sem comer, ate algumas horas
da noute; com o que o paciente enfermeiro (que era de mais de oitenta annos de
idade) se sentio com grande fraqueza, acrecentando a muita vehemencia das
dores que padecia.
Estando nesta tribulação sentio a cella chea de claridade, e vio dous
Religiosos da mesma ordem mui resplandecentes, hum dos quaes era o
Bemaventurado Frei João de Estremoz (cujo corpo esta venerado em
Pennafirme) e o outro o Bemaventurado Frei Gonçalo de Lagos. E
assentandosse ambos junto delle, o consolarão, e exhortarão a paciencia de suas
dores. E estendendo huma toalha lhe puzeram sobre ella hum pam; e cinco
pessegos de que o enfermo comeo e cobrou força. E despois lhe tomarão a mão
e o braço em que tinha o mal, e deitandolhe o glorioso S. Gonçalo huma bençam
ficou logo sam delle e ambos o advirtirão que se aparelhace, que cedo seria seu
companheiro na gloria. E assi aconteceo porque dahi a 17 dias, que foi dia de
Natal, morreo santamente, como referem os escritores da sua vida.

90
No anno de 1569 hum homem nobre de Torres-Vedras chamado Joam de
França de Britto grande devoto do glorioso São Gonçalo, avendo peste na villa
se foi pera huma quinta sua fugindo do mal. Mas como elle se fosse ateando por
aquelles arredores: determinou mudar o posto. E nam sabendo para onde se
fosse, encomendouse apertadamente a Sam Gonçalo de Lagos (de quem trazia
consigo huma reliquia) que lhe vallesse, e o ensinasse pera onde lhe convinha
irse. Estando huma noute dormindo, com o fatto já entrouxado pera se partir ao
outro dia pera huma aldea, vio entrar o Sancto pela porta da sua camara dentro
com o rosto e habito muito resplandecente o qual lhe disse: porque te inquietas
a ti, e toda tua caza? Està seguro que tua molher tem por seu avogado São
Nicolau de Tolentino. Tua mãi a S. Sebastião, e tu a mim: não hajas medo que
nós te livraremos.
Quietouse com isto o devoto: mas continuando com mais calor os rebates
da peste, apertado do medo determinou outra vez mudarse dali, nam fazendo
tanto cazo do sonho, e do que o [fl. 286v] o Sancto nelle lhe disera. Mas
estando huma manhã esperto, ouvio humas palavras como de reprenção, sem ver
quem as dezia: Porque tens pouca fé? Aonde te vas? Porque desconfias das
merces do Altissimo, e de minhas promessas? Nam sabes que aonde quer que
fores, nam estas livre das mãos de Deos? Nam ajas medo, que eu tenho a cargo
tua caza. Com esta nova se deo o devoto por seguro de todo. E sem embargo da
peste andar no lugar, e elle senam abalou de caza, e quinta em que estava. E
assi nem elle nem couza sua foi tocada do mal, estando no meio delle e
conversando com muitos feridos, e enfermos daquelle mortal contagio. O que
tudo attribuhia aos merecimentos do glorioso S. Gonçalo de Lagos, affirmando
que elle o livrara.
Algumas outras maravilhas desta laia se sabem do Bemaventurado
Sancto, as quais com tudo aqui nam referimos por nam serem calificadas as
circunstancias, que as fação tam memoraveis. So pera remate deste capitulo
daremos conta de huma bem moderna, que aconteceo no anno passado de 1642 e
he a seguinte. Huma nobre matrona da mesma villa de Torres-vedras chamada
Maria Sarram Borges grande bem feitora da nossa Ordem, trazendo em Lisboa
huma demanda contra certas pessoas poderosas sobre quantidade de dinheiro,
que lhe devião, encommendava a causa a S. Gonçalo de Lagos, pondo na sua
intercessam todo o bom sucesso della. Huma noute, estando dormindo, vio (diz

91
ella) em sonhos ao Sancto com hum papel na mam, que lhe dizia, não te
molestes, eis aqui a tua sentença dada em teu favor, acordou logo a devota
donna, e nam vendo cousa alguma, entendeo que fora aquillo sonho natural
occasionado da devoção que tinha no Sancto, e das esperanças em que andava
de ella a favorecer. E assi fez menos cazo da reprezentaçam que tivera. Na
noute seguinte tornou a ter a mesma representaçam, e acordada logo, achandose
como da primeira vez, também nam fez muito caso do que sentira. Mas
tornando o Sancto terceira vez, e reprendendoa (diz ella) de incredula, entam
entendeo, que sem duvida devia ser aquella representaçam favor do
Bemaventurado Sancto que a quereria consolar com [fl. 287] huma nova de
tanta importancia. E logo no dia seguinte experimentou que a nam enganara o
sonho: porque lhe chegaram novas de como estava dada sentença em seu favor.
Do que deu muitas graças a Deos, e ao Bemaventurado Sancto. E agradecida a
este beneficio offereceo pera ornato da sua sepultura huma esmola concideravel
de seda, e dinheiro.

PARAGRAPHO XV
De alguns milagres authenticos que Deos fez pellos merecimentos do
Bemaventurado Sam Gonçalo de Lagos.

Dos varios instrumentos authenticos, que em diversos tempos se fizeram


sobre os milagres que Deos tem obrado pelos merecimentos de seu grande servo
Sam Gonçalo de Lagos, alguns se conservam ainda no archivo do Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres-Vedras: nos quaes se contem os seguintes
fielmente tirados, e recopilados.
Hum homem por nome Joam Annes morador no termo de Lisboa avia
hum anno que estava entrevado em huma cama padecendo grandes e continuos
tremores de todo o corpo, que lhe impedião poderse bulir de hum lugar pera
outro. E fazendo sua molher huma romaria a Sam Gonçalo de Lagos trouxelhe
terra da sua sepultura: deulha: tomoua elle com muita fè e devoçam, e logo
sarou. E foi dar graças ao Sancto á sua sepultura.
Outro homem por nome Afonso Annes morador na Seiceira avendo hum
anno que trazia maleitas, prometteo huma romaria a Sam Gonçalo de Lagos, e
juntamente poz ao pescoço huma bolsinha de terra da sua sepultura (que lhe

92
dera a molher do ditto Joam Annes) e por nam tardar no comprimento de seu
voto, se pos logo ao caminho em hum dia de cezam. E nam só nam teve aquella
cezam mas nenhuma outra, ficando de todo sam.
Huma molher por nome Maria Rodrigues moradora na Carreira do
Cavalleiros despois de aver anno, e meio, que se nam podia bolir, senam
andando de gatinhas com as mãos e goelhos pelo chão, tanto que se enco[fl.
287v]mendou a este Sancto pondo ao pescoço huma bolsinha de terra da sua
sepultura, logo se endireitou, e ficou saã de todo. Estes tres milagres se
authenticarão aos 23 de julho do anno de 1489.
Hum Joam Gonçalves Pessoa, morador na Villa de Povos avia hum anno
que era mui doente de colica e de pedra, de que tinha acidentes tam crueis, que
de cada qual o davam por morto. Começando hum dia a apertar com elle as
dores, chamou por Sam Gonçalo de Lagos que lhe valesse, pois tantos milagres
fazia em outros. E logo adormeceo, por espaço de meia hora: e acordando se
achou sem vestigio algum de dores, e ficou dahi por diante sam de todo.
Authenticouse este milagre aos 2 de Junho do anno de 1490.
Huma Magdalena Luis molher de Diogo Lopes morador em Vieiros,
como adoecesse de hum parto, que teve trabalhoso ficou tolhida da cintura pera
baixo por espaço de quatro mezes, e com hum inchaso tão grande em hum peito,
que lhe passava por cima do hombro, e lhe chegava à espadoa. Offereceo a hum
irmão seu a S. Gonçalo de Lagos prometendolhe de ir com ella visitar a sua
sepultura com alguma esmola se lhe desse saude e logo sarou, e se levantou da
cama: e o peito tambem logo arrebentou por si, ficando sam sem mezinha
alguma. Qualificouse este milagre aos 7 de Julho do mesmo anno de 1490.
Hum homem velho por nome Pedro de Santiago morador na Azambuja
adoeceo de dores de cabea e de hum estillicido estillicido de humores, que lhe
deciam aos olhos, de maneira, que quasi de todo estava cego. Prometeo ir em
romaria a Torres-Vedras visitar as reliquias do Sancto, e levarlhe de offerta
huna olhos de cera. Fesse levar là, e tanto que entrou na igreja, logo se sentio
sem aquelle impedimento ficando seus olhos mais claros que dantes, e ficou
são. Este milagre se qualificou em 3 de Novembro do ditto anno de 1490.
Huma molher cazada por nome Leanor fernandes moradora em Aldea
Gallega avia muitos mezes que jazia em cama tolhida de todos os membros de
sorte que senam bolia, e pera sua sustentaçam, lhe mettiam o comer na boca.

93
Estando desemparada dos medicos, hum lhe aconselhou, que se encomenda[fl.
288]sse a S. Gonçalo de Lagos que elle lhe alcançaria de Deos saude porque
muitos milagres em todo o genero de enfermos, contandolhe a ella e a seu
marido alguns de que tinha noticia. Tanto que o marido ouvio as maravilhas que
Deos fazia pelos merecimentos de seu servo, logo a fez levar a Torres-Vedras. E
posta ella junto da sepultura do S[ancto] adormeceo, e dahi a pouco espaço
acordou sã de todo. E mandando dizer huma missa em louvor do Sancto se
tornou para sua casa por seus pês, com espanto de todos os que a conheciam.
Foi authenticado este milagre aos 28 do mez de Settembro do anno de 1489.
Huma Catherina Lopes moradora na Villa da Carvoeira tendo na mão
esquerda huma postema com que lhe inchou, e se fez toda negra, com tam
agudas dores, que lhe cauzavam desmaios, e perturbaçam no miolo. E vendo
que lhe hia levando o mal pelo braço, e que já o nam podia bolir; se fez levar ao
sepulchro do Sancto, e querendo metter pelo buraco delle o braço, nam podia
mas sentio que de dentro lhe puxavam por elle, e assi foi mettido dentro. E logo
o tirou sam sem dores nem inchaçam alguma. E pera maior evidencia de como
ficara de todo sam, voltando por sua casa, se poz logo a fiar em huma roca. Foi
authenticado este milagre aos 16 de Outubro do ditto anno de 1489.
Hum carpinteiro por nome Affonso Pires morador no Masial carregando
sobre elle huma trave pezada, e fazendo elle força pera a sustentar, quebrou de
ambas as virilhas, de modo que lhe cahiram as tripas quasi ate os giolhos; e
desconfiaram os medicos de sua vida. Fez se levar à sepultura do Sancto, e
posto junto della cobrou de repente perfeita saude. Foi authenticado este
milagre aos 18 de Novembro do ditto anno de 1489.
Huma menina de peito filha de Daniel Gonçalves morador em Torres-
Vedras como chegasse a estar nove dias continuos sem fala, e sem comer, a
deram os medicos por morta. Mas levandoa huma sua ama, que a criava ao
mosteiro, tomou terra da sepultura do Sancto, e deitandolha por cima do rosto,
logo de improvizo a menina abrio os olhos, e falou, e ficou sam. Foi este
milagre au[fl.288v]thenticado aos vinte do mez de Novembro do ditto anno de
1489.
Huma Leonor Rodriguez moradora em Torres-Vedras padecia hum fluxo
de sangue continuo que a tinha posta as portas da morte de mera fraqueza.
Compadecendose della huma sua visinha por nome Catherina Correa foi pedir

94
ao padre prior do convento lhe desse alguma reliquia do Sancto pera remediar
aquella enferma, que estava perecendo. Levoulhe o padre sanchristam hum
papelinho de terra da sua sepultura. E aspergindo com ella a doente, ficou logo
sam. Foi qualificado este milagre aos 13 de Dezembro do ditto anno de 1489.
Hum homem de Torres-Vedras por nome Diogo Fernandes andando em
Castella, como lhe nacesse no dedo polegar do pè esquerdo huma espongia, e
padecesse com ella grandes dores pormetteo de fazer hum pè de cera, como se
visse em Portugal, e levado a Nossa Senhora da Luz junto a Lisboa, onde agora
vemos hum nobre convento de religiosos da Ordem de Christo. Feito este voto
cessaram as dores. E como se detivesse em Castella 14 annos, esquecido devoto
veio a Lisboa e passou por Nossa Senhora da Luz de caminho pera sua caza sem
o comprir. Chegando a caza, lhe saltou no devoto tam intoleravel dor, que
bradava como homem doudo, e parecia estar morrendo com a vehemencia della.
Acodio a visinhança: e logo o levaram assi gritando a Sam Gonçalo de Lagos, e
lhe metteram no buraco da sua sepultura o pè doente, e logo ficou sem dor
alguma, e a espongia quasi de todo consumida. Foi qualificado este milagre no
mesmo dia, mez, e anno que o precedente.
Huma menina por nome Filippa de tres pera quatro annos de idade, filha
de Affonso Pires e de sua molher Catherina Annes moradores em Fonte Sancta
termo de Lisboa, estando tolhida da boca, e de toda a parte de alto a baixo, foi
por seus pais offerecida a Sam Gonçalo de Lagos, e logo sarou, e a levaram a
Torres-Vedras a dar as graças a Deos, e ao Sancto, e mandaram dizer huma
missa em seu louvor. Foi authenticado este milagre aos 4 de Maio do anno de
1491.
Hum moço por nome Fer[fl. 289]nando morador em Rio Maior estando
hum Domingo de madrugada moendo hum pouco de pam em hum moinho, cahio
desatrada mente no rodizio o qual o despedio de si com tanto impeto que lhe
quebrou ambas as pernas, e lhe deitou hum braço fora de seu lugar, e o
escalavrou todo. Acodiram os de caza ao baque: e vendo hum espectaculo tam
lastimoso, de deram o moço por morto; e como tal o começaram a prantear com
choros, e hais, a que acodio muita gente. Passava acazo por ali hum religioso
por nome Frei Fernando da Cruz procurador que entam era do Convento de
Sancto Agostinho de Santarem. E como ouvisse falar em homem morto, acodio
depressa pera ver se lhe podia valer com o sacramento da penitencia. E vendo o

95
moço sem sentido, nem sinal de vida disse aos da caza, o levassem a Torres-
Vedras a São Gonçallo de Lagos, que , elle o sararia se estava vivo, e lhe daria
vida se estava morto.
Duvidaram os ouvintes do que o religioso dezia. Mas elle com lhe contar
muitos milagres estupendos, que o sancto fazia, e com lhe empenhar sua
palavra, os soube persuadir de maneira, que logo com grande fè prepararão hum
carro com hum colcham pera o levarem a Sam Gonçalo. E indoo buscar pera o
deitarem no carro: elle abrio os olhos muito alegre, e se levantou em pè são das
pernas e braço, e das feridas, sem dor, ou sinal algum de onde as tivera. E
perguntando quem assi o saràra, respondeo, que hum frade de S. Agostinho
muito fermoso lhe untara todo corpo com hum unguento, e que logo se sentira
são. Louvaram todos a Deos, que he admiravel em seus sanctos. E o moço foi
com todos os de caza a Torres-Vedras dar graças ao Sancto por tam grande
merce. Foi authenticado este milagre com grande numero de testemunhas aos 25
de Agosto do anno de 1510.
Muitos outros milagres foi Deos servido fazer por intercessam de seu
servo Frei Gonçalo de Lagos, cujos instrumentos juridicos se lançarão no
cartorio daquelle seu mosteiro, aonde foi Prior, e aonde està sepultado, dos
quaes huns forão feitos em sua vida, outros nos primeiros annos despois de sua
felice morte. Mas todos se perderam [fl. 289v] pellas cauzas que acima
apontamos nos paragraphos 8 e 10.

PARAGRAPHO XVI
De algumas maravilhas que Deos foi servido obrar em varios enfermos, que se
encomendaram a Sam Gonçalo de Lagos.

Alem dos milagres authenticos, que ficam referidos nos dous paragraphos
precedentes, muitos outros cazos memoraveis se contam do nosso Sam Gonçalo,
dos quais aqui daremos conta brevemente em abonaçam de sua sanctidade, e
pera mais excitarmos os fieis à veneraçam de hum servo de Deos tam milagroso.
Porem advertimos ao devoto leitor que nenhum dos cazos que daqui por diante
referirmos, esta qualificado em forma juridica. Pollo que nam tem a relaçam
delles maior authoridade, que a particular dos historiadores, aonde se achão

96
referidos, e a dos zelosos que lançaram a memoria delles no Cartorio daquelle
Convento de Torres-Vedras. E sam os seguintes.
No anno de 1556 aos quatorze de Outubro armandose a igreja daquelle
convento, pera no dia seguinte se celebrar a festa do Bemaventurado S. Gonçalo
de Lagos andava o padre sanchristão por nome Frei Andre Toscano ajudando o
armador. E estando pregando hum prego sobre a chave do arco da capella mòr,
escorregou, e caindo em voltas pelo ar veio dar de cabeça abaixo sobre a
sepultura do Sancto com os pès pera cima. E devendo, segundo a rezam natural,
espedaçar a cabeça no duro marmore, e ficar logo morto: aconteceo, diz a
historia, tanto pelo contrario que sem lezão alguma se pos logo em pé muito
alegre, e de todos os que o viram cair. E entendendo do sucesso, que Deos se
agradava de elle servir ao Sancto, tornou logo a subir a escada, e pregou
seguramente o prego, que lhe tinha sido occasiam daquella venturosa queda.
No anno de 1558 estando em Torres-Vedras Dona Joanna de Goès, que
despois veio a ser aia del Rei Dom Sebastam, lhe naceo no peito hum cancro
muito grande. E como tivesse noticia das maravilhas, que o Sancto obrava nos
que recorriam a elle em suas necessidades, foise à sua Igreja, e com grande [fl.
290] fè se encostou sobre a sua sepultura pedindo a Deos a livrase daquelle mal
pelos merecimentos de seu servo. E diz a historia que de improviso ficou sam
de todo e sem sinal algum do cancro. E em agradecimento de tam assinalada
merce, mandou ao outro dia cantar huma missa em louvor do sancto, ardendo
muitos lumes ao redor da sua sepultura em quanto a missa durou.
Do anno de 1576 em que começou a peste em Torres-Vedras, ate se
acabar de todo, nenhuma pessoa morreo deste mal, das que consigo traziam
terra da sepultura do Sancto, ou alguma outra reliquia sua.
No anno de 1578 hum homem nobre de Torres-Vedras chamado Joam de
França de Brito, chegando de Lisboa a sua casa, achou hum escravo seu em tal
estado, que o medico lhe dava huma so hora de vida. O que elle vendo lhe
deitou com grande fé ao pescosso huma reliquia que consigo trazia de Sam
Gonçalo de Lagos, prometendo-lhe que se lhe dava saude o mandaria trabalhar
nas obras do mosteiro novo trinta dias. E em lha pondo, se conta, que abrio logo
os olhos muito alegre, e se assentou na cama dizendo que se queria erguer, e ir
trabalhar nas obras do mosteiro dos frades. E logo lhe arrebentou a postema de

97
que morria; e em tres dias se levantou sam e valente, e foi trabalhar como seu
amo prometera.
No anno de 1579 visitando o mesmo Joam de França a hum doente que
estava perigoso de sangue que deitava pela boca, lhe pos ao pescosso a reliquia
que trazia de S. Gonçalo. E contasse que logo o sangue estancou. E foi o doente
melhorando, ate cobrar perfeita saude.
No mesmo anno estando o sobredito Joam de França com grandes
tremores de huma postema, que tinha em huma perna, tomou com huma candea
de rolo a medida do comprimento da perna em prezença do ç’urgiam que estava
pera lha abrir com ferro; e mandou por hum criado seu, que a puzesse aceza em
hum dos castiçaes da sepultura do Sancto pera que estivesse ardendo em quanto
o ç’urgiam fazia seu officio. E contam os escritores deste cazo; que no ponto
[fl. 290v] em que a candea foi posta na sepultura do sancto, arrebentou por si, a
postema de improviso, ficando o ç’urgiam pasmado. E sarou em breves dias.
No anno de 1583 morrião em Torres-Vedras muitas crianças do mal de
bexigas. E tendo falecido hum menino, a hum Agostinho Lopes, temia que lhe
morresse outro que já estava com bexigas, e que se apegasse o mal a huma
minina tambem filha sua, e que assi perdesse tres filhos. Compadecendose delle
o ditto João de França, lhe aconselhou que os levasse ambos à sepultura de Sam
Gonçalo, e os encommendase a elle, e pedisse ao sanchristão alguma terra da
sua sepultura, que elles trouxessem consigo, que elle empenhava sua palavra,
que o minino nam morreria de bexigas, e a minina nam adoeceria dellas. Poz o
ettribulado pai em execuçam o sancto conselho. E foi Deos servido que
alcançasse o que dezejava. Porque o minino doente (segundo a historia conta)
pedio logo de comer e em breve tempo sarou; e a minina nam adoeceo daquelle
mal.
Divulgouse logo a saude do minino. E como ouvesse muitos doentes
daquelle mal, levaram de toda a villa, e seus arredores muitos mininos doentes
de bexigas ao Santo e todos escaparam, e contasse que cobravam logo saude. E
tambem se diz, que os que levavão a offerecer antes que adoecessem nam lhes
pegava aquelle mal tam contagioso, e perigozo em crianças; e que somente
adoeceram, ou morreram so filhos daquelles que nam recorreram ao Sancto.

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PARAGRAPHO XVII
De outras maravilhas que tambem se attribuem aos merecimentos do mesmo
S.Gonçalo de Lagos.

Pera este paragrapho reservamos aquellas maravilhas, que do nosso S.


Gonçalo se contam, tambem authenticas, das quais se nam achao anno em que
aconteceram, e sam as seguintes.
Donna Leonor de Menezes, filha do Conde de Monsanto, Senhora de
Villa Verde, molher de Gonçalo de Albuquerque, e mai do grande Affonso de
[fl. 291] Albuquerque conquistador da India Oriental, avia muitos annos, que
[padecia] de huma enfermidade grande que tivera, estava de todo surda de
ambos os ouvidos: no que padecia muita pena, porque tudo o que se lhe avia de
dizer, lhe declaravão por assenos, ou por escrito. E sabendo dos milagres que
Sam Gonlçalo fazia, tomou grande confiança de alcançar por sua intercessam
saude de seu mal; e com ella se foi de Lisboa a Torres-Vedras a fazer huma
novena na sepultura do Sancto. E no primeiro dia que a visitou, como, despois
de feita oraçam, metesse nos ouvidos huns papelinhos de terra della, logo de
repente, se conta, que ficou sam, ouvindo perfeitamente como ouvia antes
daquella doença do que deu muitas graças a Deos, e ao Bemaventurado Sancto.
E acabada a novena, que continuou mui agradecida, se tornou pera sua caza,
deixando huma grossa esmolla ao convento. E despois mandou entregar aos
mordomos da confraria quatro castiçaes de bronze grandes a modo de tocheiras,
e huma duzia de tochas pera a sepultura do Sancto.
Aquelle Joam de França de Brito de quem já por vezes fizemos mençam
no paragrapho precedente, andando hum dia a cassa de adens acompanhado de
dous criados seus na lagoa do mosteiro de Penafirme, que he da mesma Ordem
de Nosso Padre Sancto Agostinho em distancia de [uma ?] legoa e meia de
Torres-Vedras pera a parte do mar, foi livre da morte por intercessam de Sam
Gonçalo pela maneira seguinte. Estando encostado a huma parede junto da
lagoa, disparou da ribeira da outra banda da lagoa hum criado seu huma grande
espingarda, que estava carregada com duas cargas de muita muniçam grossa em
bocando em diametro a espingarda nos peitos do amo, sem advertir nelle por se
lhe irem os olhos apoz de huma adem, que no meio deste diametro se levantou
daquella lagoa.

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Esmorecido o amo, ficou sem se bulir donde estava encostado cheirando
a chamusco, sem dar acordo de si. Sobresaltado o criado com a desgraça,
recorreo com toda a pressa ao mosteiro a pedir confessor pera [fl. 291v] seu
amo, que estava morrendo. Acodio logo o padre prior, e mais religiosos; e
pegando delle, tornou em si. E acharam, que na parede detras das suas costas,
como se acha na relaçam deste cazo, estavão sette perdigotos grossos
amassados nas pedras della, e que elle estava sem lezão alguma. Vendose elle
deste modo, respondeo: como estes perdigotos passaram pera tras de minhas
costas, eu nam sei; sò sei dizer, que elles me nam podiam offender, visto o peito
de prova que comigo trago, que he huma reliquia Sam Gonçalo de Lagos, por
quem chamei no ponto que vi a morte sobre mim. E assi attribuindo todos o
bom sucesso aos merecimentos do Sancto deram muitas graças a Nosso Senhor.
Duas filhas deste mesmo homem vendo huma sua vizinha por nome
Maria Fernandes molher de Pedro Gomes desconfiando da vida com o rigor das
maleitas que avia muito tempo padecia, lhe aconselharam fosse visitar o Sancto,
e trouxesse consigo a terra de sua sepultura e que ellas ficavam por fiadoras de
que elle lhe alcançaria de Deos saude. Foi, e diz a historia do cazo, que no
ponto em que recebeo da mão do sanchristam hum papelinho daquella terra se
achou sã de todo. E agradecida a tamanha merce mandou dizer huma missa em
louvor do Sancto dando juntamente de offerta duas velas de cera pera sua
sepultura.
Catherina Sarrã molher de Lopo Carvalho pessoas nobres de Torres-
Vedras estando por espaço de tres dias ás portas da morte com dores de parto, e
jà desconfiada dos medicos que presumiam estar a criança morta, pedio, lhe
trouxessem huma reliquia de S. Gonçalo. Levaram recado ao convento; e o
padre prior por acodir com mais brevidade a esta pressa tirou, do pescoço hum
relicario em que tinha hum pequeno osso do Sancto, e mandoulho, e contasse
que em lho pondo na cabeça, cessaram logo as dores, e pario immediatamente
huma filha que viveo muitos annos.
Em hum dia foram visitar a sepultura deste Sancto dous homens e huma
molher visinhos de Lisboa: os quaes hiam darlhe as graças de averem alcançado
saude por meio de sua intercessam. Hum delles disse, que avia hum anno se
nam levan[fl. 292]tava de huma cama por causa de huma grande enfermidade
que padecia no estomago, com tremores continuos de todos os membros do

100
corpo. E que ouvindo contar os milagres que Sam Gonçalo fazia, se
encomendou a elle: e lançando ao pescoço hum reliquario da terra da sua
sepultura, logo no mesmo instante cobrara perfeita saude.
O segundo disse que avendo muito tempo que o nam largava huma febre
continua, com que se hia consumindo, como tivesse noticia daquelle reliquiario
milagroso o pedira emprestado, e deitandoo com muita fè ao pescoço, e
promettendo de ir visitar a sepultura do sancto se lhe valesse; logo se sentira
sem febre. A molher tambem referio que avia dezoito mezes estava entrevada e
tolhida de todos os membros. E que huma vez ouvindo contar huns milagres que
S. Gonçalo fizera pedio que lhe puzessem sobre sua cabeça huma bolsinha de
terra da sua sepultura, que certa visinha sua tinha trazido avia poucos dias de
Torres-Vedras. E que no ponto em que lha puzeram se achou sam com perfeita
saude; e pode vir a pé fazer aquella romaria.
A muitos outros doentes de febres acodio Deos com saude pela
intercessam, e merecimentos de S. Gonçalo, a quem os taes se encomendavam.
Como se acha notado no archivo daquelle seu convento de Torres-Vedras, e o
adverte em hum memorial seu, que tambem ali se conserva, o sobreditto seu
devoto Joam de França de Britto, que em quanto viveo nam cessou de inculcar a
devoçam deste Sancto a todos os enfermos, e attribulados, vendo em muitos
delles obrar Deos notaveis maravilhas.

PARAGRAPHO XVIII
De alguns cazos modernos que acontecerão a diversos enfermos que se
encomendaram ao Bemaventurado S. Gonçalo de Lagos.

Entre os cazos maravilhosos nam authtenticados, que se atribuem aos


merecimentos de S. Gonçalo de Lagos; se podem tambem contar alguns favores
modernos, que do Ceo receberam diversas pessoas, as quaes postas em
tribulaçam, chamando por elle com fé viva se [fl. 292v] sentiram livres dos
perigos, e necessidades, em que estavam. E sam os seguintes.
No anno de 1634 aos 15 de Outubro (que he o mesmo dia em que o
Sancto passou desta vida) huma molher nobre de Lisboa que estava muito fraca
de huma doença comprida, com fastio continuo, estando huma vez gentando se
lhe atravessou na garganta hum osso, sem o poder levar pera baixo, nem deitar

101
fora. E como estivesse tam fraca, julgaram todos que nam podia durar com vida
muitas oras: e assi a carpiam os de caza jà como morta, nam se descuidaram
com tudo de lhe procurarem todos os remedios humanos, e deitaramlhe ao
pescoço huma reliquia de S. Bras encomendando a elle com muitas lagrimas: e
mandaram juntamente buscar com toda a pressa confessor, e ç’urgiam; os quaes
ambos chegaram a hum tempo. Fez primeiro brevemente seu officio o confessor
(que era Frei Antonio da Purificação o escritor deste livro) como ministro de
mais importancia; e logo se seguio o ç’urgiam a fazer o seu. Mas este por mais
que trabalhava, nada aproveitava; antes parecia mais matar a enferma, que
aliviala; o que vendo elle, se foi, e a desemparou.
O confessor que prezente estava pera ver o sucesso da cura e pera ver
exercitar seu officio, sendo necessario, como a visse naquelle estado,
inculcoulhe a devoçam de S. Gonçalo de Lagos; contandolhe alguns milagres
dos que Deos tinha por elle obrado em varios enfermos. E fez com que de
palavra os circunstantes, e elle por acenos lhe prometessem huma missa
offertada, e o invocassem naquelle ultimo aperto. Fizeramno todos assi, e o
confessor com elles. Eis que immediatamente a enferma começando a bater nos
peitos ingolio o osso pera baixo com facilidade, e começou a chamar em clara
voz por S. Gonçalo de Lagos, dandolhe as graças do bom sucesso, e
merecimentos como todos os mais, que prezentes estavam, tambem attribuiram.
E logo mandou a Torres-Vedras dar comprimento a Promessa que fizera da
offerta. E o osso posto que lhe deceo ao estomago nam lhe fez por isso danno
algum
No mesmo anno aos 27 de Novembro estando em Lisboa [fl. 293] muito
doente de camaras, e com grandes dores de tripas huma nobre donna por nome
Custodia de Almeida, temendo a morte, pedio confissam; e sucedeo que o
confessor que lhe mandarão, foi o sobredito Frei Antonio. O qual despois de a
confessar, magoandose da angustia em que a via, lhe inculcou os merecimentos
de S. Gonçalo de Lagos e lhe aconselhou, se encomendasse a elle. Fello ella
assi; e acabada sua oração, pararão logo as dores, e as camaras. Esperou o
confessor hum espaço largo pera se segurar na maravilha, e achando que
perseverava, se despedio da nobre matrona, deixandoa com todos os da casa
mui alegres, pella merce que entendião aver recebido por intercessão do Sancto.

102
E mandarão a Torres-Vedras pedir terra da sua sepultura para prevenção, e
remedio de outras enfermidades.
No dia seguinte, que foi ao 28 do ditto mês, do mesmo anno de 1634,
estando em Lisboa muito doente huma donzella por nome Dona Felippa de
Lencastro, filha de Dom João Lobo Baram de Alvitto, como tivesse noticia dos
milagres de S. Gonçalo de Lagos, encomendouse a elle prometendolhe huma
missa com sua offerta de cera pera a sua sepultura, se lhe alcançasse se Deos
saude. E logo começou a melhorar até que sarou de todo. Mas passadas tres
somanas, esquecida de cumprir a promessa que fizera, tornou a adoecer. E
caindo logo no conhecimento de seu descuido, arrependida pedio a Deos
perdam, e ao Sancto, e emendou a falta, e cobrou saude, entendendo, que o
Sancto lha avia tirado em castigo de sua negligencia, e lha restituira depos em
gratificação do comprimento de sua promessa, e oferta. E ficando dahi por
diante mui devota deste Sancto, encomendava aos doentes que se valessem
delle: porem que tivessem, como advirte o Psalmista 76 , cuidado de cumprir o
que prometessem a Deos e a seus sanctos.
No anno de 1635 andando proxima ao parto Donna Maria de Lencastro
filha do sobreditto Baram de Alvito e molher de Dom Alvaro de Abranches
moradores em Lisboa, temendo verse nelle cercada de angustias, que em outros
avia padecido, porque de cada parto chegava a estar desconfiada dos medicos,
tomou a S. Gonçalo de Lagos por seu avogado naquella necessidade fazendolhe
outra promessa como [fl. 293v] a da sobre ditta Donna Filippa sua irmã. E
chegado o dia do parto, que foi aos 25 de Janeiro do ditto anno, pario hum filho
com tanta facilidade, que disse nam sentira dores algumas nelle: sendo o minino
manifestamente maior do que costumam ser as crianças quando nacem. E
acautellada com advertencia da irmâ, satisfez logo a promessa que fizera, e em
breves dias se levantou sam, e valente.
Finalmente no anno passado de 1642 fes o Bemaventurado Sancto hum
grande favor a huma nobre matrona de Torres-Vedras sua devota: o qual aqui
nam referimos, porque vai lançado acima no paragrapho 14 aonde lhe coube
lugar mais proprio.
Isto he o que da vida deste Sancto com brevidade, e fidelidade pudemos,
pela maior parte, colher, e digerir dos cartorios, e autores que allegamos acima.
76
Psal. 75.

103
O que seja pera gloria de Deos, honra de seu Sancto, estimulo dos fieis, e
particularmente de nós Eremitas Agostinhos desta provincia Lusitana, de que
elle foi filho, e em que elle se criou e viveo nos menos conventos, e nas mesmas
cellas, em que nós hoje vivemos. Porque sendo este servo de Deos, como nòs,
filho de Adam, e nacendo por desgraçada herança filho de ira, e de natureza
corrupta, soube com a Divina Graça ser tam perfeito, e tam sancto, sem ter pera
isso maior obrigaçam, do que nòs temos.

104
III - FONTES E BIBLIOGRAFIA

105
1. Fontes manuscritas

Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3335, Processo da Fama de
Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de Lagos da Ordem de
S.to Agostinho. Concluido por Authoridade Ordinaria em o anno de 1760.

Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3337, Processo da Fama de
Santidade e Culto dado a hũa Reliquia de São Gonçalo de Lagos da Ordem de Santo
Agostinho feito nesta Cidade de Lagos. Autoridade Ordinária por Delegação do Ex.mo,
e R.mo Snor. Arcebispo do Reyno do Algarve, No Anno de 1760.

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Cód. n.º 436.

Biblioteca Nacional, Cód. n.º 1422: SANTÍSSIMA, Manuel de Maria, Historia


do Convento e Seminario do Varatojo... [s/d].

Biblioteca Nacional, Cód. n.º 109: Corografia do Reyno do Algarve dividida em


qutro livros pera mor declaração da obra. Escrita pello R. P. Fr. João de São José da
Ordem dos Eremitas de S. Agostinho da Prouincia de Portugal no anno de 1557.

Instituto de Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Livro 1 do Convento de Nossa


Senhora da Graça de Lisboa.

2. Fontes impressas

CALVO, Fr. Pedro, Defensam das lagrimas dos justos perseguidos e das
sagradas religioens fruto das lagrimas de Christo, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1618.

106
CARDOSO, Jorge, Officio Menor dos Sanctos de Portugal. Tirado de breviarios
e memorias deste Reino, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629.

CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano dos Sanctos, e Varoens Illustres em


Virtude do Reino de Portugal, e suas Conquistas, Tomo I, Lisboa, Off. Craesbeekiana,
1652; Tomo II, Lisboa, Off. de Henrique Valente D’Oliveira, 1657; Tomo III, Lisboa,
Off. de Antonio Craesbeeck de Mello, 1666.

CUNHA, Dom Rodrigo da, Historia Eclesiástica dos Arcebispos de Braga, e


dos Santos Varoens illustres, que floreceraõ neste Arcebispado, II Parte, Braga, Off. de
Manoel Cardozo, 1635.

MACHADO, Diogo Barboza, Bibliotheca Lusitana, I, Lisboa, Off. de António


Isidoro da Fonseca, 1741

OROSCO, Alfonso, Chronica del glorioso padre y doctor dela yglesia sant
Augustin: y de los sanctos y beatos: y de los doctores de su ordẽ. Nuevamente ordenada
por um padre de la misma ordẽ, Sevilha, en Casa del Maestro Gregório dela Torre,
1551, fl. 40

PACHECO, Frei Duarte, Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas


de Villa Nova Arcebispo de Valença, Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem
nosso Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da Vida do venerauel P. Frey Luis de
Montoya, Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso S. Prior delle;
& assi mais de algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia
sendo Prelado della, Lisboa, Pedro Craesbeck, 1629.

PINA, Rui, Crónica de D. João II, Lisboa, Publicações Alfa, 1989.

PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de


Portugal da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho de Hipponia, & Principal
Doutor da Igreja, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal da Ordem dos
Eremitas de Santo Agostinho de Hipponia, & Principal Doutor da Igreja, I Parte,
Lisboa, Manoel da Sylva, 1642; II Parte, Lisboa, Domingos Lopes Rosa, 1656

107
RESENDE, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1991, edição fac-similada da nona edição conforme a de
1798.

ROMÁN, Fray Hieronymo, Chronica de la Orden de los Ermitanos del


Glorios Padre Sancto Augustin, Diuidida en Doze Cẽturias, Salamanca, en Casa
de Ioan Baptista de Terra Noua, 1569.

SANTO ANTÓNIO, Frei José de, Flos Sanctorum Augustiniano, II Parte,


Lisboa, Off. da Musica, 1723.

SOUZA, Frei Pedro de, Compendio da prodigiosa vida, exemplares


virtudes, e portentosos milagres do Proto-Santo de todo o reino do Algarve, e novo
Thaumaturgo de Portugal, o glorioso S. Gonçalo de Lagos, Lisboa, Regia Officina
Typoggrafica, 1778.

3. Bibliografia

ALONSO, Carlos, Alejo de Menezes, O.S.A. Arzobispo de Goa (1595-1612).


Estudo biográfico, Valladolid, Ed. Estudio Agustiniano, 1992.

AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir. de), Dicionário de História religiosa de


Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000-2001.

AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir. de), História Religiosa de Portugal,


Lisboa, Círculo de Leitores, 2000-2002.

CARVALHO, José Adriano de Freitas, «O Portuense Fr. Pedro Calvo, O. P., e a


Polémica sobre as Ordens Religiosas nos Começos do Século XVII», Revista de
História. Actas do Colóquio “O Porto na Época Moderna”, Vol. III, Porto, Instituto

108
Nacional de Investigação Científica / Centro de História da Universidade do Porto,
1980.

DIAS, J. S. da Silva, Correntes de Sentimento Religioso em Portugal:


séculos XVI a XVIII, Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1960.

FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, «História, santidade e identidade. O


Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto», Sep. de Via Spiritus, 3, 1996.

PINTO, Augusto Cardoso, Frei Jerónimo Román e os seus Inéditos Sobre


História Portuguesa, Lisboa, [s.n.], 1938

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Itinerários de El-Rei D. João II (1481 – 1595),


Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1993, p. 569.

SOUSA, Ivo Carneiro, «Algumas hipóteses de investigação quantitativa acerca


da Bibliografia Cronológica da Literatura de Espiritualidade em Portugal (1501 –
1700)», in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas., vol. V:
Espiritualidade e Evangelização, pp. 115 – 138.

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ÍNDICE

I – INTRODUÇÃO
1 – Santidade e identidades locais
2 - Hagiografias dos Séc. XVI e XVII
2.1 – João de França de Brito
2.2 – Frei Aleixo de Menezes
2.3 – Frei António da Purificação
3 – Conclusão
II – DOCUMENTOS
1 – Critérios de transcrição
2 - João de França de Brito
3 - Frei Aleixo de Menezes
4 - Frei António da Purificação
III – FONTES E BIBLIOGRAFIA

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