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I PARTE

CRONÍSTICA E MEMÓRIAS HAGIOGRÁFICAS


DE S. GONÇALO DE LAGOS

1
1 - AMBIENTE BIBLIOGRÁFICO DO BARROCO

O estudo da colecção de memórias, crónicas e documentos que interessa


para se compreender a história de S. Gonçalo de Lagos, da representação
hagiográfica da sua vida à produção social da sua santidade, remete para um
período que, entre finais do século XV e princípios do século XVIII, vai
construindo novos ritmos sociais e culturais da história religiosa portuguesa.
Comece por se recordar que, ao longo do século XV e no início do século XVI, o
chamado movimento das observâncias, no qual se integra a reforma das ordens,
malgrado o seu carácter essencialmente disciplinar e de organização interna,
contribuiria para uma renovação do sentimento religioso e da espiritualidade.
Acompanhado pelo incentivo à publicação e leitura de obras de espiritualidade e
formação de círculos devotos que integravam religiosos, clérigos e leigos, este
período gera personagens que, na sua maioria pertencentes a ordens religiosas, se
tornam notáveis pelo seu exemplo, pelas práticas espirituais ou pelos seus escritos.
Como assinala Ivo Carneiro de Sousa1 para o caso português, a partir de
1536 entra-se num período em que, todos os anos, ininterruptamente, se publicam
obras religiosas e de espiritualidade, movimento editorial que aumenta em meados
do século, conhecendo - provavelmente associado à recepção dos decretos
tridentinos e ao sucesso da imprensa nacional - uma notória consolidação na
década de 1560 e um acréscimo a partir dos anos oitenta, seguido de um demorado
declínio da actividade dos prelos portugueses permitindo destacar que o nosso país
foi afectado pelo esplendor cultural que caracterizou as cidades do Império
Espanhol no século XVII. Assim, das obras inventariadas na referencial

1
SOUSA, Ivo Carneiro de, «Algumas hipóteses de investigação quantitativa acerca da
Bibliografia Cronológica da Literatura de Espiritualidade em Portugal (1501 – 1700)»,
Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas., vol. V: Espiritualidade e
Evangelização, pp. 117 – 120.

2
Bibliografia Cronológica da Literatura de Espiritualidade2, encontramos apenas
cinco hagiografias no século XVI, aumentando esse número para o dobro na
centúria seguinte3, certamente em comunicação com uma nova orientação social e
cultural no consumo da vida e exemplos de santidade, sobretudo portugueses.
Para além daquele movimento reformador renascentista, João Francisco
Marques sublinha que do Concílio de Trento resultaria a reafirmação de Cristo
como único salvador e redentor dos homens e um fundo incentivo ao valimento
dos santos para obtenção do favor divino4. Na Sessão XXV do grande concílio da
contra-reforma católica é confirmada uma forma tradicional de piedade que,
condenando as posições dos reformistas, reafirma o culto dos santos, das relíquias
e o uso das imagens, sendo aqueles apresentados como intermediários que
oferecem a Deus as suas orações em benefício dos homens. Neste contexto o
género hagiográfico constitui, por um lado, o meio por excelência para permitir
aos fiéis um contacto com o maravilhoso divino que se manifestava através de
milagres e aparições e, por outro, um veículo de difusão dos princípios tridentinos
a que não são alheias - através do aparecimento de santos contemporâneos
praticantes desses princípios, fazedores de portentosos milagres através dos quais
Deus demonstra o seu beneplácito 5 - a defesa da legitimidade romana, do culto e
do dogma.
Esta santidade é apresentada através de sinais divinos que ocorrem durante
a juventude, vida e morte, registando-se mesmo um padrão que contempla sinais
durante a primeira idade, práticas penitenciais e ascéticas purificadoras durante a
vida religiosa e, finalmente, portentos que ocorrem imediatamente após a morte,

2
CARVALHO, José Adriano de Freitas (dir. de), Bibliografia Cronológica da
Literatura de Espiritualidade em Portugal. 1501 –1700, Porto, Faculdade de Letras do
Porto/Instituto de Cultura Portuguesa, 1988.
3
SOUSA, Ivo Carneiro de, ob. cit., pp. 120 – 121.
4
MARQUES, João Francisco, «A tutela do sagrado: a protecção sobrenatural dos santos
padroeiros no período da Restauração», Francisco Bethencourt, Diogo Ramada Curto (Org. de),
A Memória da Nação, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1991, p. 275.
5
LORA, José L. Sanchez, Mujeres, Conventos y Formas de la Religiosidad Barroca,
Madrid, Fundación Universitaria Española, 1988, p. 378.

3
destacando-se aqui os milagres e aparições a que se associam romarias e
peregrinações, a tentativa de obtenção de relíquias e outras práticas devocionais
relacionadas com o seu culto, merecendo particular destaque as trasladações.
A maior parte das ordens contou com os seus próprios hagiógrafos que, para
além de biografarem os respectivos santos, chamavam já a atenção, num esforço
para criar ambiente propício para a beatificação e canonização, daqueles que, não
se incluindo nestas categorias, se notabilizaram pelas suas virtudes e gozavam
fama de santidade. Nem mesmo as restrições de Urbano VIII, em 1625 e 1634,
proibindo o culto prévio de candidatos à santidade – os muito populares fenómenos
de «santidade viva» – afastaram estas personagens dos textos cronísticos e
hagiográficos, como bem o demonstram no século XVII as advertências do nosso
famoso Agiológio Lusitano, da autoria de Jorge Cardoso6 ou, entre outros textos,
da Chronica agostiniana de Frei António da Purificação7, obra de fundamental
visita nas estratégias barrocas da hagiografia dos padres de S. Agostinho.
Desta forma, a hagiografia barroca, para além de ir ao encontro das
necessidades da Contra-Reforma, serviu também para promover o
engrandecimento das ordens que frequentes vezes é feito com recurso à “criação”
de origens históricas peregrinas ou referências da passagem pela instituição de
religiosos notáveis de outras ordens, registando-se mesmo, como assinalaremos,
verdadeiras disputas pela apropriação dessas personalidades e da sua projecção
cultual e social.

6
CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano dos Sanctos e Varoens Illustres em Virtude do
reino de Portugal, e suas Conquistas. ..., I, Lisboa, Of. Craesbeeckiana, 1652, II, Lisboa, Of.
Henrique Valente de Oliveira, 1657, III, Lisboa, Of. António Craesbeeck de Melo, 1966, IV,
Lisboa, Of. Sylviana, 1744.
7
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal da
Ordem dos Eremitas de S. Agostinho Bispo de Hippôna, & principal Doutor da Igreja, Parte I,
Lisboa, por manoel da Sylva, 1642; idem, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal da
Ordem dos Eremitas de S. Agostinho Bispo de Hippôna, & principal Doutor da Igreja. Com uma
adição no cabo: na qual se responde aos principaes lugares da Benedictina Lusitana, Parte II,
Lisboa por Domingos Lopes Roza, 1656.

4
Ao longo do período filipino, estendendo-se mesmo demoradamente por
todo o século XVII, a hagiografia portuguesa é fonte de elementos para a formação
de uma consciência colectiva quase «nacionalista», concorrendo com a «invenção»
de santos nacionais para prefigurar, na longa duração, essa estruturação identitária
cruzando heroicidade política e santidade católica. De facto, já desde o exemplar
Officio Menor dos Santos de Portugal8 que o licenciado Jorge Cardoso apresentava
o país como berço de inúmeras personagens santas ou merecedoras dessa
qualidade, edificando um verdadeiro jardim de virtudes e santidades. Um
movimento de santificação de Portugal que se pode igualmente frequentar, entre
muitos outros autores, nas obras de Frei Luís dos Anjos, no seu Jardim de
Portugal 9, noutros trabalhos de Jorge Cardoso ou na cronística especializada de
Frei António da Purificação, investimentos histórico-hagiográficos fixando
semelhantes preocupações identitárias10 às quais não é estranho o esforço para
apresentar o país como uma pátria de santos, assegurando desta forma a
institucionalização, da ordem canónica ao discurso político oficial, de uma
santidade nacional.

2 – A HAGIOGRAFIA GONÇALINA

É neste contexto «forte» de edificação especializada de uma identidade


portuguesa que convoca elementos importantes de santidade católica que se deve

8
CARDOSO, Jorge, Officio Menor dos Sanctos de Portugal. Tirado de Breviarios &
memorias deste Reino, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629.
9
ANJOS, Frei Luís dos, Jardim de Portugal, em que se da noticia de algũas Sanctas, &
outras molheres illustres em virtude, as quais nascerão, ou viuerão, ou estão sepultadas neste
reino, & suas cônquistas, Coimbra, Nicolao Carualho, 1626.
10
Este tipo de peocupações não toca apenas os géneros cronístico e hagiográfico. No
contexto da política centralista do Conde-Duque de Olivares que afastou na prática o que havia
sido estabelecido nas Cortes de Tomar, surgem várias obras que reforçam a individualidade de
Portugal. Em 1631, António de Sousa Macedo publicaria as Flores de España Excelencias de
Portugal, texto engrandecendo as riquezas naturais do país e uma panóplia de qualidades dos
nacionais, potenciando uma identidade nacional distinta da espanhola.

5
também inserir tanto a história como a hagiografia de S. Gonçalo de Lagos.
Tratemos de entender por “hagiografia gonçalina” aqueles textos que,
ultrapassando a dimensão da simples notícia, fornecem elementos biográficos e
definidores de uma fama de santidade, não só pelo retrato penitencial e ascético,
como pelo relato de milagres. Estes dois aspectos, bem como a reflexão sobre o
contexto ou intencionalidade destas produções, serão tratados no capítulo relativo
à construção da imagem de santidade, sendo conveniente começar por reconstruir
rigorosamente a ordem cronológica das obras e textos que nos legaram a memória
exemplar da história da vida de S. Gonçalo de Lagos.

2.1 - AS PRIMEIRAS OBRAS

Não considerando imediatamente os instrumentos de autenticação dos


milagres feitos por autoridade judicial e que são inquestionavelmente as mais
remotas fontes da hagiografia gonçalina - pese o facto de deles só termos
conhecimento através das cópias insertas do Processo de Fama de Santidade...11 –
entre as mais antigas obras chegadas até nós, a primeira em que aparece uma
referência a Frei Gonçalo de Lagos é a Chronica del glorioso padre y doctor dela
yglesia sant Augustin, de Alfonso Orozco12. No final do capítulo intitulado «Van
por su ordem las vidas de los beatos: que em nuestra religion han biuido: y hecho
milagros: ansi en vida como em muerte. Hunque no estan canonizados», depois de
declarar que «Ay muchos beatos de quen no se hallan hystorias: por tãnto haremos
aqui una summa breue de ellos»13, o cronista incluiu em escassas linhas, que em
nenhum dos casos chegam a preencher uma coluna completa, alguns dados

11
Proceso da Fama de Santidade Virtudes, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de
Lagos da Ordem de S.to Agostinho. Concluido por Authoridade Ordnaria em o anno de 1760,
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 197v – 216v.
12
OROZCO, Alfonso, Chronica del glorioso padre y doctor dela yglesia sant Augustin:
y de los sanctos y beatos: y de los doctores de su ordẽ. Nuevamente ordenada por um padre de
la misma ordẽ, Sevilha, en Casa del Maestro Gregório dela Torre, 1551.[B. N. L., RES. 203 A]
13
OROZCO, Alfonso, ob. cit. f. 39v.

6
relativos a personagens que, sendo na sua maioria religiosos, comparecem
apresentados como beatos, conquanto pouco mais se possa ler do que o país de
origem. Para o caso do beato agostinho português pode encontrar-se esta breve
notícia:

«Beato Gonçalo de Lagos fue natural de Portugal. Han se visto


muchos milagros en su sepulchro. Está sepultado en nuestro
conuento de Torres vedras»14.

Cronologicamente a seguir, na importante Corografia do Reyno do Algarve


de Frei João de São José15, obra datada de 1577, que chegou até nós apenas em
cópia manuscrita com letra do século XVIII, nas catorze páginas destinadas à
cidade de Lagos, apenas se lê:

«Desta cidade de Lagos foy natural o Bem aventurado Pe. Fr.


Gonçalo (chamado de Lagos) Religioso da Ordem dos Eremitas do
P. S. Agostinho, cujo corpo se guarda na Villa de Torres Vedras, e
he tido em grande reuerencia, por cujos merecimentos N. Sor. tem
feyto, e faz hoje em dia muitos Milagres, que no mesmo mosteyro
desta Ordem são guardados, e se acharão na historia de sua vida, que
com a dos outros santos e Beatos desta Ordem e Prouincia sedo
Sahhirão a lume com o fauor diuino»16.

14
OROZCO, Alfonso, ob. cit. f. 40.
15
Natural de Tentúgal, ingressou na ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em 1544
tendo sido Subprior do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa e Prior do Convento de
Tavira onde faleceu em 1580 (Cf. MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana Historica
Critica e Cronnologica, Tomo II, Lisboa, Inácio Rodrigues, 1747, p. 675 – 676).
16
Corografia do Reyno do Algarve dividida em quatro liuros pera mor declaração da
obra. Escrita pello R. P. Fr. João de São Jozé da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho da
Prouincia de Portugal no anno de 1557., f. 27 v.

7
Numa primeira aproximação, a pouca informação que daqui se pode colher
não deixa de suscitar alguma estranheza porquanto, como adiante se referirá, Frei
Duarte Pacheco17 aponta como uma das fontes utilizada para a biografia deste
beato, um livro deste autor cujo título ou forma, manuscrita ou impressa, não
especifica18. Se uma corografia, além de prosseguir objectivos de informação
relativamente a uma região, está também associada a necessidades de propaganda,
não seria de esperar que frequentassem esta obra mais dados que, enaltecendo a
figura a figura de Frei Gonçalo, permitissem o acréscimo de visibilidade regional
desejado? Terá Frei João de S. José produzido alguma obra mais visível que não
chegou até nós? À falta de uma resposta para esta questão resta-nos recorrer a
alguns indícios e informações que, acerca do autor da Corografia, nos são
fornecidas por outros seus contemporâneos.
Um desses autores é Frei Aleixo de Menezes. No traslado de uma obra da
sua autoria19, à qual dedicaremos futura atenção, apenas é referido que Frei João de
S. José tinha em sua posse documentos relativos à história da Província. Frei
António da Purificação20 informa que este religioso colaborou com Frei Jerónimo
Roman na recolha de documentos nos diversos conventos da ordem destinados à
elaboração da sua crónica, não tendo dado ao prelo mais que, no ano de 1565, um
livro sob o título de Familia Augustiniana, contemplando a regra e os privilégios
da Ordem do Eremitas de Santo Agostinho21. Barbosa Machado apenas nos
esclarece indicativamente de mais duas obras que, apesar de aparentemente se
terem perdido, nada indicia que fossem frequentadas por uma vida de S. Gonçalo

17
PACHECO, Frei Duarte, Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas de
Villa Nova Arcebispo de Valença, Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem nosso
Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da Vida do venerauel P. Frey Luis de Montoya,
Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso S. Prior delle; & assi mais de
algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia sendo Prelado della,
Lisboa, Pedro Craesbeck, 1629, fls. 171 – 179v.
18
PACHECO, Frei Duarte, ob.cit., f. 151.
19
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 1.
20
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal
da Ordem dos Eremitas de S. Agostinho..., I, Lisboa, Manoel da Sylua, 1642, f. 19v.
21
MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana Historica Critica e Cronnologica,
Tomo I, Lisboa, António Isidoro da Fonseca, pp. 675 – 676.

8
de Lagos22. Para além de todos estes factos acresce que, malgrado Frei Jerónimo
Román tenha contado com a colaboração deste autor, só depois da recolha
documental por ele efectuada - na qual terá contado com a colaboração de Frei
Aleixo de Menezes, que lhe forneceu diversos manuscritos - apresenta uma
biografia de Frei Gonçalo de Lagos cujos dados são coincidentes com os do
manuscrito da autoria daquele autor. O próprio Arcebispo de Goa, ao assinalar a
documentação de que Frei João de São José era possuidor e que Román terá
levado, não refere qualquer elemento acerca de S. Gonçalo23.
Assim, uma vez que todas as biografias seguem fundamentalmente o texto
do Códice 436 e a crónica de Purificação, é de admitir que Frei João de São José
não estivesse na posse de dados significativos. Recorde-se que, à boa maneira da
época, uma simples referência biográfica, ainda que imprecisa, era suficiente para
ser convocada e fornecer argumento de autoridade. Disso é exemplo
paradigmático, no presente estudo, o caso da referência a diversos autores feita
pelo esforço cronístico de Purificação sem que, todavia, esclareça a diminuta
relevância do respectivo contributo da maior parte deles.
Da leitura destes textos, aos quais poderíamos acrescentar os de José
Pamphilo, Juan Marieta, Jerónimo Román, Simpliciano de Tirrinis e Pedro Calvo,
sobre os quais teceremos algumas considerações quando nos debruçarmos sobre a
obra de Frei António da Purificação, fica-se com a sensação que estes autores
pouco mais conheciam da vida de Frei Gonçalo de Lagos que a sua naturalidade,
local de morte e respectiva sepultura. O autor da Corografia ainda afirma a

22
Familia dos Aboins historiada e Processo, e verdadeira relação do que se passou
acerca das precedências da Ordem dos Herimitas do Gloriosos N. P. e Doctor da Igreja S.
Agostinho, e do glorioso Padre S. Domingos nesta Cidade de Lisboa, Evora e Santarem do
reyno de Portugal em cumprimento do Motu, e Constituição do Papa Gregorio XIII. Passou em
favor dos Ordinarios contra Regulares o anno de 1573. feito por ho Padre Ioham de São Jozé
subprior do Convento de Lisboa em cujo tempo se isto começou, e moveo. (Cf. MACHADO,
Diogo Barbosa, ob. cit., Tomo I, p. 676).
23
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 1v. Desta recolha documental feita por Román também nos
dá notícia Frei António da Purificação que assinala ter encontrado no Convento de Nossa
Senhora da Graça de Torres Vedras um recibo assinado por ele. (PURIFICAÇÃO, Frei António
da, ob. cit., II, Lisboa por Domingos Lopes Roza, 1656, f. 279).

9
existência de um registo de milagres que servirá para uma história dos beatos da
província de Portugal. Como veremos, esse registo, cujo autor não é identificado,
poderá referir-se ao conjunto de instrumentos de autenticação de milagres24, ou o
que Frei Aleixo de Menezes25 e Frei António da Purificação26 atribuíram a João de
França de Brito e que aparecerá no decurso da instrução do Processo de Fama e
Santidade..., altura em que o procurador da ordem, Frei Agostinho da Silva, o
apresenta já em fase superveniente à apresentação dos documentos biográficos,
impressos e manuscritos, por só nessa altura ter sido encontrado no Convento de
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras.27

2.2 - OS HAGIÓGRAFOS DOS SÉCULOS XVI E XVII

2.2.1 - JOÃO DE FRANÇA DE BRITO

O documento apresentado por Frei Agostinho da Silva, cujo traslado se


encontra no Processo da Fama de Santidade...28, constitui o primeiro texto
hagiográfico significativo acerca da vida santa de S. Gonçalo de lagos. Não
sabemos com exactidão a data, ou entre que datas, terá sido escrito este texto. A
algo imprecisa cronologia nele assinalada aponta para que não tenha sido escrito
antes de 158529. Os peritos do então Real Arquivo da Torre do Tombo que, na
altura, verificaram a autenticidade do caderno original composto por oito meias
folhas apresentado por Frei Agostinho da Silva, procurador da Ordem dos Eremitas

24
Cf. nota 11
25
Cód. n.º 436, B.G.U.C., f. 11v
26
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 292.
27
Processo da Fama de Santidade Virtudes , e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo
de Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em o anno de
1760., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 386v e 391 – 399v.
28
Ver, em anexo, reprodução das fls. 391 – 399v do Processo da Fama de Santidade...
29
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 393v (em Anexo).

10
de Santo Agostinho neste processo, consideraram que estava escrito com letra de
quinhentos, muito embora tenham também esclarecido que o título, atribuindo a
sua autoria a João de França de Brito, foi escrito posteriormente30. Uma vez que
João de França de Brito conheceu os instrumentos de autenticação de alguns
milagres, dos quais foi feito, em 25 de Outubro de 1553, a pedido do então Prior
do convento, uma cópia autêntica pelos escrivães da Provedoria de Torres Vedras,
João de França e Gonçalo Serrão31, é de admitir a hipótese de João de França de
Brito ser, se não precisamente aquele escrivão, pelo menos seu parente, facto que
legitima a hipótese explicativa de uma apropriação ou envolvimento familiar na
divulgação do culto do beato agostinho.
Estudando este texto vetusto copiado para o processo de beatificação de S.
Gonçalo de Lagos, uma simples leitura imediatamente destaca que o relato dos
milagres apresentado é bem mais sumário do que aquele que se pode frequentar em
textos posteriores32. Além disso, na esteira do grande desconhecimento por parte
de diversos autores e crónicas acerca de dados biográficos fundamentais da vida de
Frei Gonçalo, também aqui deparamos com uma significativa imprecisão: a data de
nascimento não é assinalada e, relativamente à da morte, apenas nos é dito que
«auerá como cento e vinte e dous anos pouco mais ou menos no mês doutubro
meado»33. Outro aspecto relevante fornecido por este documento, reside na

30
«Porque esta letra [...] segundo a sua formatura , sendo também antiga, hé certamente
mais moderna, que o carácter da letra, com que se achão escritas as referidas outo meyas folhas,
em o que não pode haver duvidas» (Cf. Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335,
f. 402). Infelizmente o documento original nunca foi encontrado. Talvez a análise paleográfica
permitisse, dado que conhecemos bem as letras de Fei Aleixo de Menezes e de Frei António da
Purificação, atribuir, o título a um desses autores uma vez que o perito refere tratar-se de letra
antiga. De qualquer forma, essa hipótese não nos parece de desprezar porquanto estes dois
autores afirmam ter conhecido o documento original.
31
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 216v - 217
32
Nos treze milagres descritos são identificados os seguintes beneficiados: Frei André
Toscano (fls. 393v-394); Joana Góis (f. 394); Isabel Henriques (fls. 394-394v); escravo de Frei
Gaspar Cão (fls. 394v- 395) ; o autor (fls. 395-396); desconhecido (fls. 396- 396v); dois
escravos do autor (f. 396); autor (f. 396v); uma escritura relativa a uma propriedade do convento
de Santarém (fls. 396v-397); o autor (f. 397); Maria Fernandes (fls. 398-398v); Catarina Serrão
(f. 399).
33
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 393

11
informação respeitante à efectiva dimensão do culto e práticas devocionais nos
anos oitenta da centúria de quinhentos. São elucidativas, quer quanto a estes
aspectos, quer quanto à intencionalidade hagiográfica, as afirmações em que o
autor descreve quanto esquecida estava a veneração a Frei Gonçalo, situação que
se traduz, para assinalar apenas um ilustrativo, no abandono de um sepulcro de
pedra onde os devotos recolhiam terra acreditando no seu valor taumaturlógico34.
De igual forma, a preocupação em recuperar a memória de uma devoção esquecida
é visível na afirmação sublinhando que «gastou o tempo memoria disto, e ainda
dos muitos milagres [...] e malgrado de tal perda, ajuntei estes poucos estormentos,
e a elles alguns milagres, dos que sei e vy»35.
Os principais hagiógrafos gonçalinos, Frei Aleixo de Menezes e Frei
António da Purificação, referem a existência desta antiga documentação e, na
descrição que fazem de alguns milagres, baseiam-se mesmo na sua breve economia
textual. Se alguns aspectos que caracterizam o retrato ascético de Frei Gonçalo são
convocados por esses autores a partir deste tipo de «provas» vetustas, já o mesmo
não se pode dizer no que toca aos dados biográficos, de espiritualidade ou, como
veremos, da ligação ao poder político através do patronato da vila de Torres
Vedras, temas progressivamente fundamentais na construção da fama de santidade
e na divulgação cultual de S. Gonçalo de Lagos, nomeadamente nos espaços
torrejanos e lacrobigenses. A dependência histórico-hagiográfica do beato
agostinho destes autores maiores da sua Ordem é mais do que evidente, obrigando
a que se estude com alguma atenção e rigor o edifício hagiográfico que sai da
prosa destes autores.

34
Veremos em capítulo relativo às relíquias que este elemento estava, durante os
séculos XVI e XVII, associado a grande parte das práticas devocionais gonçalinas. Na centúria
seguinte, a dimensão espiritual substitui o peso da relíquia.
35
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 391v.

12
2.2.2 - FREI ALEIXO DE MENEZES

O texto do Códice nº 436 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra


tem sido apresentado como sendo a mais antiga biografia36 conhecida do beato em
estudo, tendo, o próprio ou outro idêntico, servido de base, como veremos, às
produções hagiográficas que lhe sucedem. Se esta prioridade conhece alteração
pelo nosso contacto com o documento atrás referido, já o mesmo não acontece no
que diz respeito à sua relevância hagiográfica.
Escrito quase todo ele com a mesma letra, inequivocamente do século XVII,
consta de trinta folhas em que, depois de uma breve introdução justificativa das
condições da sua produção e intencionalidade, podemos encontrar, num estilo onde
o real e o maravilhoso por vezes se confundem, com níveis de desenvolvimentos
díspares que nem sempre correspondem à actual notoriedade dos biografados,
dados sobre os seguintes Eremitas de Santo Agostinho: Beato Tadeu de Camparia,
Beato Gonçalo de Lagos, Frei Martim de Santarém e Rodrigo de Santa Cruz, Frei
Álvaro Monteiro, Frei Ubertino Enneo, Frei Francisco de Villafranca, Frei
Cipriano Perestrello, Frei Gonçalo de Almeida, Frei Luís de Montoya, Frei Aleixo
de Penafirme, uns parcos dados sobre uns agostinhos anónimos mortos em França,
Frei Afonso de Allos Vedros, Frei Paulo Barletta, Frei Agostinho do Rosário,

36
Na mesma biblioteca, sob o n.º 112, encontra-se o título Treslado da portentosa vida
de São Gonçalo de lagos da Ordẽ de Santo Agostinho da Provincia de Portugal Escrita pelo
Ex.mo, e R.mo Snr. Arcebispo Primaz do Oriente e das Hespanhas Dom Fr. Aleixo de Menezes
da mesma Ordem de Santo Agostinho. No Anno de 1604, um texto que é cópia quase integral das
folhas 2 a 11v do Cód. n.º 436 onde está inserta a vida de Frei Gonçalo.
No verso da segunda folha de guarda pode ler-se, em letra contemporânea atribuída por
Alberto Iria ao bibliotecário Simões de Castro (cf. IRIA, Alberto, Treslado da Portentosa Vida
de S. Gonçalo de Lagos, Lagos, 1964, p. 29.), a nota: «Acaso será este o livro (ou a sua cópia?)
escrito por D. Fr. Aleixo de Menezes , mencionado na Bibliotheca Lusitana, tomo 1.º, pag. 91,
com o titulo Vidas de Religiosos modernos que na Religião de Santo Agostinho da Provincia de
Portugal florecerão em virtudes e vida religiosa?» Na margem esquerda da primeira destas
folhas lê-se a nota manuscrita com letra e tinta semelhantes às que acima referimos: «Esta Vida
do beato Gonçalo de Lagos pode ver-se em melhor letra, com algumas variantes, no Ms. n.º 112
da Biblioth. da U.de Coimbra».

13
Soror Margarida Nunes e Beatriz Vaz de Oliveira. No final do documento37
descobrem-se ainda, provavelmente da autoria do copista38, breves referências
biográficas relativas àqueles agostinhos que foram bispos, servidores áulicos e
docentes universitários. Esta última parte terá ainda sido, com duas letras
diferentes39, acrescentada para referir três professores da Universidade de
Coimbra. Este aditamento, dado referenciar Frei Francisco da Fonseca40, lente de
Escoto, e Frei Manuel Lacerda, lente de Durando, permite concluir que o
manuscrito foi acrescentado necessariamente depois de 161741.
O único elemento «interno» identificador claro da autoria deste manuscrito
esclarece ter sido escrito na Índia por um “cronista” desconhecido que foi prior do
Convento de Nossa Senhora da Graça, em Torres Vedras, como se pode ler na folha 2v.:
um espaço textual em que o próprio copista, utilizando a primeira pessoa42, descreve, na
altura em que foi feito prior daquele convento, a qualidade e o estado de conservação
em que se encontrava um livro contendo a vida de São Gonçalo43. Contudo, tudo leva a
crer, secundando aliás o que, a propósito do mesmo códice, foi defendido por Alberto
Iria quando publicou a transcrição do códice 112 da B.G.U.C.44, tratar-se de um texto da
autoria de Frei Aleixo de Menezes que foi precisamente prior do Convento de Nossa

37
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fls. 29 – 30v.
38
O facto de aparecerem nesta parte refências a Frei Aleixo de Menezes na terceira
pessoa (fls. 29v e 30) permite-nos tirar esta conclusão. Repare-se que, como se pode ver na
transcrição em anexo, o autor do texto original utiliza sempre a primeira pessoa.
39
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f.30.
40
Cf. FERREIRA, Francisco Leitão, Alphabeto dos Lentes da Insigne Universidade de
Coimbra desde 1537 em diante, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1937, p. 25.
41
Cf. FERREIRA, Francisco Leitão, ob. cit., Coimbra, Universidade de Coimbra, 1937,
p. 42.
42
Esta referência à utilização da primeira pessoa parece importante porquanto na folha
29 v. as referências a Fr. Aleixo de Menezes aparecem na terceira pessoa, indicando que «foi
pregador de Filipe I de Portugal e ultimamente Arcebispo de Goa», sintaxe que, por apontar
para o facto de Frei Aleixo de Menezes ocupar ainda, à data da inserção deste acrescento ao
texto original, o cargo de Arcebispo de Goa, constitui mais um elemento que vai ao encontro da
datação da feitura deste códice por nós defendida pelos motivos que adiante referiremos.
43
Ver transcrição em anexo.
44
IRIA, Alberto, Treslado da Portentosa Vida de S. Gonçalo de Lagos, Lagos, 1964, p.
29.

14
Senhora da Graça de Torres Vedras entre 1588 e 1590.45 No entanto, a comparação da
letra deste códice coimbrão com textos da autoria comprovada de Frei Aleixo de
Menezes permite-nos, com segurança, afirmar não se tratar de um autógrafo seu. Trata-
se de uma dimensão autoral corroborada pelas informações fornecidas pela introdução
do manuscrito, sublinhando que do volume original seriam realizadas cópias quer para a
província de Portugal dos agostinhos quer para a sua congregação da Índia, local onde o
texto original foi indubitavelmente escrito46.
Não sabemos rigorosamente se este códice, ou o seu original, corresponde
ao que na Bibliotheca Lusitana aparece referenciado com o título de Vidas dos
Religiosos modernos que floreceram nesta provincia47 e que, tendo provavelmente
integrado a biblioteca de Jorge Cardoso inserto nos dois tomos de Santos da
Ordem eremitica de S. Agostinho48, o Agiologio refere como «trattado, que nos
deixou dos varões em santidade da Eremitica familia Augustiniana49», ou «Catal.
Dos Sanctos da Ordem»50. Contudo, várias citações de autores que convocam os
escritos do Arcebispo de Goa alimentam a dúvida quanto à possibilidade de este
texto não corresponder ao que acima referimos. Dado que, como se referiu, não
estamos perante o original, temos, pelos motivos a seguir assinalados, que
considerar a possibilidade do códice manuscrito de Coimbra poder ser uma cópia
imperfeita que viajou desde a Índia para a Província dos agostinhos portugueses ou
que se copiou integralmente em ambiente de escrivania metropolitana.
D. Rodrigo da Cunha, na segunda parte da Historia Ecclesiastica dos
Arcebispos de Braga, e dos Santos, e Varoens illustres, que florecerão neste
Arcebispado, assinala que Frei Aleixo de Menezes num «liuro [manuscrito] das

45
ALONSO, Carlos, Alejo de Menezes, O.S.A. (1559-1617). Arzobispo de Goa (1595-
1612). Estudio biográfico, Valladolid, Estudio Augustiniano, 1992, p. 18.
46
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 2
47
MACHADO, Diogo Barboza, ob. cit., I, p. 91.
48
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, A biblioteca de Jorge Cardoso (1669), autor
do Agiologio Lusitano. Cultura, erudição e sentimento religioso no Portugal Moderno, Porto,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000, p. 232.
49
CARDOSO, Jorge, ob. cit., I, p.144.
50
Ibidem, p. 176.

15
vidas dos Religiosos modernos, que na Religiaõ de S. Agostinho da Prouincia de
Portugal florecerão em virtudes, e vida religiosa [fala de] Frei Rafael da Madre de
Deos, natural de Vila do Conde, que em Goa tomou o habito, e foi morto pella sua
fè na Sunda em 3. de Outubro de 1605»51. Apesar de não sabermos se se trata do
mesmo manuscrito, o certo é que no códice 436 não consta o nome deste religioso.
Paralelamente, alguns dados fixados por Jorge Cardoso relativamente às
fontes que utilizou para escrever as vidas de alguns religiosos agostinhos suscitam-
nos algumas dúvidas para as quais, à falta de nova documentação, ainda não temos
resposta. Assim, na notícia que o Agiológio Lusitano dedica a Frei Agostinho da
Graça, Jorge Cardoso refere que as suas acções se encontram escritas «no livro m.
s. que [Al. Men.] deixou dos varões santos desta Província»52. Ora no ms. 436
apenas constam pouco mais de duas linhas acerca de Frei Agostinho da Graça53 e
encontram-se precisamente na parte que se supõe não ser, como atrás referimos, da
autoria do Arcebispo de Goa. Outro caso que nos conduz a conclusões semelhantes
descobre-se quando novamente o Agiologio Lusitano afirma que a vida de Frei
Gaspar das Chagas mereceu «ter por cronista de suas prerogatiuas, i excellencias o
illustrissimo Primaz D. Fr. Alexo de Menezes da mesma Ordẽ»54. Ora, no códice
436 nada consta deste religioso agostinho.
Se estas discrepâncias poderiam, à partida, levar-nos a pôr em causa a
autoria do seu original, são precisamente os textos que Frei Duarte Pacheco55 e
Frei António da Purificação56 dedicam à vida de S. Gonçalo de Lagos onde é de
sublinhar a estreita dependência devida ao de Aleixo de Menezes, que ainda mais
reforçam a atribuição defendida57.

51
Dom Rodrigo da Cunha, Historia Eclesiástica dos Arcebispos de Braga. Reprodução
fac-similada com nota de apresentação de José Marques, Vol. II, Braga, [s.n.], 1989, p. 447.
52
CARDOSO, Jorge, ob. cit., I, p. 381.
53
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 30.
54
CARDOSO, Jorge, ob. cit., II, pp. 419-420; 426e.
55
PACHECO, Duarte, ob. cit. , f. 186v.
56
PURIFICAÇÃO, Frei António, ob. cit., II, f.277.
57
Estas aparentes discrepâncias permitem-nos conhecer algo acerca da “economia” da
produçao heurística do próprio Agiológio, sendo esta ideia alicerçada pelo facto de Jorge
Cardoso, nas diversas referências que faz ao texto manuscrito do Arcebispo de Goa, utilizar

16
Considerando que os aditamentos encontrados entre as folhas 29 a 30v não
são, como atrás referimos, da autoria de Frei Aleixo de Menezes e tendo em conta
os dados relativos aos religiosos nelas referidos, podemos concluir que a
elaboração do códice ocorreu sem qualquer dúvida entre 1599 e 1609. A data de
1599 é apresentada como limite inferior dado o facto de ser na f. 29v assinalado
Frei Jorge Queimado como Bispo de Fez (1599 – 1618). Na mesma folha também
se pode ler que Frei Agostinho de Castro «foi ultimamente arcebispo de Braga
primas de Espanha», cargo que sabemos ter sido por ele ocupado entre 1589 e
1609. Infere-se, assim, que o original, dado ter sido escrito na Índia, terá
naturalmente sido escrito entre Setembro de 1595, altura em que o seu autor
chegou àquele continente58, e 1598.
De todos os biografados neste importante códice manuscrito, Frei Gonçalo
é, sem dúvida, apesar do seu segundo lugar, o religioso agostinho que merece
maior atenção do autor ocupando a sua notícia cerca de seis folhas divididas em
sete capítulos de nítido ressaibo hagiográfico:

- «Da primejra jdade do beato gonçalo e de como tomou oabito de


nosso pe santo Augostinho»;
- «De como fizerão oseruo de deos São gonçalo prior ddalguas
Casas da prouincia e Como Se auia no prouimento e gouerno
dellas»;
- «Do Exerçiçio de ensinar os trabalhadores que o Seruo de deus frej
gonçalo Sendo prior de Torres uedras e dũ notauel Caso que nesse
tempo lhe a Conteçeo»;
- «De hũa molher Segua aquẽ o seruo de deus São gonçalo deu uista
e da sua gloriosa morte»;

diversas designações, isto apesar de o mesmo ter feito parte da sua biblioteca (cf.
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, ob. cit., p. 232.
58
ALONSO, Carlos, Alejo de Menezes, O.S.A.. Arzobispo de Goa (1595 – 1612).
Estudio biográfico, Valladolid, Estudio Augustiniano, 1992, p. 29.

17
- «Das uezes que foj tresladado o Corpo de São gonçalo e do
milagre que fez quando se treladou o Seu Sepulcro»;
- «De como Saõ g.lo apareceo depois de Sua morte a muitas peçoas
que se lhe encomendarão acodindo a Suas neçeçidades»,
- «Doutros milagres do glorioso São gonçalo».

Por sua vez, o códice manuscrito 112 da Biblioteca Geral da Universidade de


Coimbra, a que atrás aludimos, foi transcrito e, pela primeira vez publicado, no Jornal
de Lagos por Alberto Iria59. Desconhecendo na altura da publicação do seu trabalho, a
existência do códice 436 da B.G.U.C., o erudito Mário Martins60 referencia-o como
sendo a principal e mais antiga hagiografia de São Gonçalo. Trata-se, porém, de uma
cópia não datada nem autografada, com letra do século XVIII, que tem como título
Treslado Da protentosa vida de São Gonçalo de Lagos da Ordẽ de Santo Agostinho da
Provincia de Portugal Escrita Pelo Ex.mo, e R.mo Snr. Arcebispo Primaz do Oriente e
das Hespanhas Dom Fr Aleixo de Menezes da mesma ordem de Santo Agostinho de
Portugal. No Anno de 1604. Na margem esquerda da primeira folha deste manuscrito
pode ler-se, com letra semelhante à que se encontra na segunda folha de guarda do
códice nº 436, atribuída por Alberto Iria ao bibliotecário Simões de Castro61, o seguinte
apontamento: «Pode ver-se em letra mais antiga, e com algumas variantes, no vol. ms.
n.º 436 da Bibliothª da Unide. de Coimbra». De facto as semelhanças entre um e outro
manuscritos são notáveis, permitindo com toda segurança afirmar que um é cópia quase
integral do texto identificado com o título «Do beato gonsalo de Lagos» que se encontra
naquele códice entre as folhas 2 v. e 11 v.
Quando atrás nos debruçámos sobre o códice nº 436, datamos a sua produção
entre os anos 1599 e 1609. Referimos também que a encadernação e as folhas de guarda

59
Em 1964, na sequência das comemorações gonçalinas que se realizaram em Lagos na
abertura da década, seria novamente publicado com o título: Treslado da Portentosa Vida de S.
Gonçalo de Lagos por D. Frei Aleixo de Menezes. Com um Comentário de Alberto Iria, Lagos,
Comissão Executiva das Comemorações do VI Centenário de S. Gonçalo de Lagos, 1964.
60
MARTINS, Mário, Peregrinações e Livros de Milagres na Nossa Idade Média,
Lisboa, Edições “Brotéria”, 1957, p. 26.
61
Cf. nota 36.

18
não são da época, pelo que seria de considerar a possibilidade de não estar completo. O
título do códice 112 refere que o original foi escrito no ano de 1604. Ora, caso o original
tenha sido o códice 436, ou outro texto semelhante, nada, pelas razões já apontadas,
autoriza que se considere aquela data62, levantando-se desta forma a hipótese de o
traslado ter sido feito a partir de um outro documento muito idêntico ao códice nº 436,
de que este seria inevitavelmente cópia. Esta ideia não parece ser de desprezar dadas
algumas discrepâncias cronológicas entre os dois códices. A primeira, embora possa
tratar-se de mero lapso do copista, diz respeito ao dia da morte do santo: apesar de no
manuscrito seiscentista estar indicado por extenso o dia quinze de Outubro63, a cópia do
século XVIII referencia o dia dezasseis64. Outro caso, talvez mais significativo,
relaciona-se com um milagre em que são beneficiados os mareantes de uma caravela em
Lagos, sublinhando-se uma evidente disparidade: o códice 11265 situa-o no ano de 1508
ao passo que no 43666 o mesmo milagre é datado de 1570. Ora, estando esta última data
escrita por extenso, parece-nos razoável afastar a possível explicação de erro de leitura.
Acresce que se Duarte Pacheco67 segue a data que se encontra no códice 436, já Frei
António da Purificação na Chronica68 situa o mesmo milagre no ano de 1508, podendo
daqui inferir-se também a possibilidade de o autor do traslado do século XVIII, caso
tenha utilizado o códice referido, ter procedido à sua correcção com base no trabalho
cronístico de Purificação, hipótese que nos parece mais provável dado que no Processo
da Fama de Santidade... se encontra uma cópia integral do texto do códice nº 11269.

62
Esta ideia seria, depois do nosso contacto com os dois códices, consolidada pela
consulta do Processo da Fama de Santidade... onde se encontram sólidas referências epistolares
relativas ao facto de o texto original ter sido enviado para a Província de Portugal em 1604. (Cf.
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 239).
63
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 8v.
64
B.G.U.C., Cód. n.º 112, f. 22v.
65
Ibidem, f. 30.
66
B.G.U.C., Cód n.º 436, f. 10 v.
67
PACHECO, Frei Duarte, ob. cit., f. 178.
68
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 285v.
69
Acerca das datas aqui apresentadas, tudo indica que por parte dos seus autores poderá
ter havido uma confusão entre o milagre referido e um outro que, num contexto semelhante,
envolve um sobrinho de Frei Gonçalo, Diogo Rodrigues. O instrumento de autenticação do
milagre em que foram beneficiados os mareantes de Lagos data de 1489, tendo o relator, Frei
Lionel, afirmado que havia ocorrido havia cerca de vinte anos (Cf. Processo da Fama de

19
Independentemente destes aspectos, confirmando a preocupação, desde o século XVII,
com o estabelecimento de uma biografia o mais rigorosa possível, importa para o
presente estudo enquadrar a produção deste traslado num movimento de confirmação
devocional, contemporânea, ainda que sem dados precisos que nos informem da sua
periodização e contextos rigorosos.

2.2.3 - FREI ANTÓNIO DA PURIFICAÇÃO

Catorze anos antes de ser publicada a segunda parte da sua grande


Chronica70dos agostinhos portugueses, Frei António da Purificação na sua não
menos importante Chronologia, na parte respeitante ao décimo quinto dia do mês
de Outubro, contrastando com o que naquela obra nos é oferecido, fixava-nos a
seguinte informação sobre S. Gonçalo de Lagos:

«Ad Turres Veteras in monasterio eremitarum Sancti augustini depositio


beati Gondiçali, Lacobricae, quae vulgò Lagos, in Algarbio nati,
eiusdem Monasterii quondam Proris, gratiâ miraculorum olim insignis, e
Algarbiensibus nauigantium aduogati: quem oppidani ab anno 1452. in
suum Patronum ex Solemni Senatus consulto, e Lixbomensis Ordinaii
consensu adhibuerunt: cuius proindè natalis dies singulis annis festiua
erat, e nundinaria. Qauae tamen deuotio diuinis prodigiis aliquoties
comprobata, à lamentabili Sebastiani Regis clade frigescens, breuì post
omninò cessauit. Eius corpus in Ecclesia sui Coenobii in loco publico, e

Santidde..., Cong. Riti, Proc. n.º 3335, fls. 199). O milagre que envolveu Diogo Rodrigues,
também numa situação de naufrágio, foi autenticado em 1510 tendo sido declarado pelo próprio
que havia ocorrido cerca de dois meses antes (Cf. Processo da Fama de Santidde..., Cong. Riti,
Proc. n.º 3335, fls. 212v – 214). Assim, poderá configurar-se a hipótese de por parte do cronista
ter havido uma má leitura da expressão «dois meses».
70
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal
da Ordem dos Eremitas... com uma adição no cabo na qual se responde aos principaes lugares
da Benedictina Lusitana, Parte II, Lisboa, Domingos Lopes Roza, 1656.

20
eminenti veneranter asseruatur sub tribus clauibus, quarum primam
habet eiusdem Monasterii Prior, secundam Sacrista, tertiam verò
antiquior oppidi Senatur, Ad eius inuocationem variis morbis grauati
sospitatem recipiunt.»71.

Alargando esta breve notícia, o mais informado monumento hagiográfico da


vida de Frei Gonçalo de Lagos encontra-se, sem dúvida, no Título VII do Livro VII
da segunda parte da grande Chronica72 de Frei António da Purificação. Como é
afirmado pelo próprio autor, a empresa de compor uma crónica da Província dos
Eremitas de Santo Agostinho de Portugal foi-lhe encomendada em 1633 73. O
projecto inicial previa a existência de quatro tomos: o primeiro, desde a fundação
da Província até ao ano de 870; o segundo, contemplando a história da reforma
executada por Frei Luís de Montoya, abrangeria o período compreendido entre
aquela data e o ano de 1569; o terceiro estender-se-ia até ao ano de 1636, altura em
que, por decisão de Urbano VIII , as eleições da Província passaram de bienais a
trienais, alteração merecedora da crítica do cronista que procurava discutir o tema,
limitando, por isso, esta parte cronística a apenas 67 anos; o último volume trataria
da presença da Ordem na «India Oriental», desde a fundação da Congregação em
1572 até à época da eleboração da crónica74. Contudo, este plano acabaria por não
ser integralmente respeitado e a obra ficaria incompleta, tendo apenas passado
pelos caracteres tipográficos as duas primeiras partes, não ultrapassando a crónica
desta forma o ano de 1422. Purificação escreveu ainda uma terceira parte que, na
sua forma autógrafa manuscrita, terá alimentado a investigação hagiográfica de
Jorge Cardoso, nomeadamente para poder relatar a história «maravilhosa» de um

71
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronologia Monastica Lusitana, in qua omnes
Sancti, & Beati, ac etiam venerabiles Personae Regulares, quae in Lusitanie Regnis, eiusque
Ditinibus natae, aut sepultae esse perhibentur quoad fieri potuit fidelissimè, ac breuissimè
referuntur, Lisboa, Ex Officina Laurentii de Anveres, 1642, pp. 101 – 102.
72
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., II, fls. 266v. – 293v.
73
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., I, f.20v.
74
Ibidem, f. 22.

21
sacrário com uma relíquia do Santo Lenho existente no Mosteiro de Cete75. A ter
existido, em redacção completa ou em apontamentos dispersos, esta terceira parte
da crónica dos agostinhos não parece ter conseguido chegar até nós76. Uma
situação que, apesar dos limites cronológicos medievais, não invalida o trabalho
monumental de Frei António da Purificação, absolutamente pioneiro e original no
espaço cultural de uma Ordem que, até à sua produção cronística, tinha conhecido
vários religiosos que haviam procedido à recolha de documentos espalhados pelas
diversos conventos, mas compilando apenas trabalhos sobretudo de natureza
biográfica sem que deles saísse uma crónica geral relativa à Província Portuguesa
do Eremitas de Santo Agostinho.
Na introdução da biografia de Frei Gonçalo, o cronista, de uma forma que
depois de frequentada a obra se verifica ir pouco além de um exercício retórico,
convoca, em jeito de argumento de autoridade, um rol significativo de autores
consagrados da época, a que se somam os arquivos que pressupomos serem
fundamentalmente os do Cartório do Convento de Nossa Senhora da Graça de
Torres Vedras:

«Do Bem Aventurado Padre Fr. Gonçalo de Lagos escrevem


diversos Autores fazendo dele menção, uns com titulo de Beato,
outros de Santo, e milagroso, e são os seguintes Fr. Ieronymo Romã
na Centúria 12 da nossa Ordem, e em outras obras suas; o Bispo
Signino, Dom Ioseph Pamphilo na sua Crónica Latina, no Catálogo
dos Beatos; Frei Ioão Morieta na História Eclesiástica de Espanha
no livro 18 capítulo 30. Os Mestres Fr. Pedro Caluo na segunda
parte da defensão das Religiões capítulo 12. Frei Duarte de Lisboa

75
CARDOSO, Jorge, ob.cit., III, p.54.
76
Além dos dados fornecidos pelo próprio Frei António da Purificação no «Prologo...»
da primeira parte da Chronica que atrás referimos, a referência cardosiana foi a única
frequentada por nós. Nem Barbosa Machado nem Inocêncio lhe fazem qualquer alusão. Por
outro lado, no trabalho de Maria de Lurdes Correia Fernandes acerca da biblioteca do autor do
Agiologio apenas são referenciadas as partes publicadas (Cf. FERNANDES, Maria de Lurdes
Correia, ob. cit., p. 113).

22
no seu Epítome capítulo 17 e 18. E Frei Pero Ramires no Catálogo,
que fez dos Santos da nossa Ordem. Frei Simpliciano Turrinino na
sua História da Correa; Marco Antonio, e Paulo Vadouita no seu
Teatro Augostiniano; Iorge Cardoso no Ofício menor dos Santos de
Portugal, e outros muito além dos Cartórios desta Província, que no
discurso citaremos. Destes Autores, e Arquivos tiraremos fielmente
o que dissermos: posto que sempre será a menor parte do muito,
que pudéramos dizer: porque se perderam alguns dos mais antigos
memoriais autênticos da vida, e milagres deste Santo, como adiante
em seu lugar notaremos. Destes Authores, e Archivos tiraremos
fielmente o que dissermos: posto que sempresenta a menor parte do
muyto, que puderamos dizer: porque se perderão algũs dos mais
antigos memoriaes authenticos [...]»77.

Apesar de não indicar aqui alguns textos cujas referências surgirão só no


decurso da obra, é notória a preocupação do cronista quando, para além dos
autores citados, afirma que recorrerá a «outros [... e deles tirará] fielmente». Essas
fontes que apenas se descobrem no interior da biografia são, como veremos, os
documentos de autenticação dos milagres, os textos atribuídos a João de França de
Brito e Aleixo de Menezes. Impõe-se pois que, atendendo à ordem cronológica,
nos detenhamos na análise dos textos que o cronista reúne como fontes da história
da vida de S. Gonçalo de lagos.
Provavelmente ainda antes da sua vinda ao nosso país, Frei Jerónimo
Román78 na obra que, por estar dividida em centúrias, passou a ser conhecida e,

77
Frei António da Purificação, ob. cit., fls. 266v. – 267.
78
Depois de uma presença no nosso país em 1568, Frei Jerónimo Román dá à estampa,
em 1569, a obra que aqui citamos e ficou conhecida pelo nome de Centurias. Em 1572 sairia a
público a Primeira parte de la historia de la orden de los frayles hermitaños de Sant Augustin,
obra que, no mesmo volume inclui um Defensorio da antiguidade da ordem. A forte ligação à
província de Portugal é atestada pelo facto de aquela ser dedicada a Frei Gaspar do Casal, Bispo
de Leiria, e esta a frei João Soares, Bispo de Coimbra. Para além das Republicas do Mundo, em
1575, e da Historia de Frei Luis de Montoya, publicaria ainda, no ano 1595, servindo-se dos

23
frequentes vezes, citada por essa designação, oferece na «Centúria 12» da sua
grande Chronica... uma curta e imperfeita notícia de S. Gonçalo:

«En este tiempo resplãdecio por vida y milagros el sancto varon fray
Gonçalo de Lagos, em la prouincia de Portugal. Fue natural de un
lugar llamado Lagos en el Algarue. Fue varõ de gran penitencia, y
sinceridad: Por lo qual merescio ser amigo de Dios. Hizo muchos
milagros em vida y muerte, como parecen por el registo que esta en
el conuento de Torres Vedras, authorizado com todas las
circũstancias que pide el derecho. Murrio en el año. 1519. como
paresce por el letrero que esta en su sepulcro. Su vida es
marauillosa, y fue me dada toda entera por el muy religioso padre
fray Ioan de sancto Ioseph, el qual tãbiẽ escribe una chronica de la
ordẽ en la lẽgua Portuguesa»79

Frei António da Purificação chama a atenção para o facto de a data da morte


de Gonçalo de Lagos estar errada, acrescentando que o cronista espanhol corrigiu o
lapso na «sua Historia dos Sanctos de Hespanha na Centúria quinze»80, escrita
depois de ter vindo a Portugal81, altura em que terá levado de Torres Vedras «hũa

trabalhos de Frei Jerónimo Ramos e Frei Nicolau Dias, a Historia de los religiosos Infantes de
Portugal onde são exaltadas as vidas da irmã de D. Afonso V e do Infante D. Fernando (Cf.
PINTO, Augusto Cardoso, Frei JerónimoRomán e os seus Inéditos Sobre História Portuguesa,
Lisboa, [s.n.], 1938, pp. 7-9.). Gregorio Santiago Vela, no Ensayo de una Biblioteca ibero-
americana de la Orden de San Agustin, Vol. VI, pp. 660 e seg.) refere ainda, relativamente ao
nosso país, as seguintes obras: De las tres ordenes militares de Portugal (Cristo, Avis e
Santiago); Historia de la Real Casa y Manasterio de Santa Cruz de Coimbra; Historia de
Braga; Historia do Convento de Alcobaça; Historia de la Serenissima Casa de Braganza.
79
ROMAN, Fray Hieronymo, Chronica de la orden de los Ermitanos del Glorios Padre
Sancto Augustin, Diuidida en Doze Cẽturias, Salamanca, Casa de Ioan Baptista de Terra Noua,
1569, f. 105.[B.N.: RES 2615 V.] O erro do cronista explica-se pelo facto de ter confundido a
data da feitura do sepulcro com a da morte, muito embora essa construção tenha sido feita em
1518.
80
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 279.
81
Provavelmente em 1568 (Cf. PINTO, Augusto Cardoso, Frei JerónimoRomán e os
seus Inéditos Sobre História Portuguesa, Lisboa, [s.n.], 1938, p. 7).

24
historia authentica da vida, e milagres deste Bemauenturado Sancto, com outros
papeis pertencentes às Chronicas da Ordẽ [...] como consta de hũa cedula sua, que
está no ditto Cartorio»82. A fazer fé nas palavras deste autor terá sido essa “vida”
que informa o texto manuscrito de Román que, no Processo de Fama de
Santidade..., é referenciado sob o título de Parte Segunda de la Catholica Historia
de los Santos de Espanha, ordenada por Hieronimo Roman Fraile professo de la
83
orden de los Ermitanos de San Augustin, y su chronista general onde se
encontra, na «Centuria Quinze», um capítulo com o título: «Comiença la Historia
del Bienaventurado San Gonzalo de Lagos de la Ordem de Sanct.Augustin»84 do
qual o processo acima citado fornece uma cópia integral85.
Acompanhando cronologicamente as outras autoridades visitadas pela crónica de
Purificação encontramos José Pamphilo que, em texto cronístico publicado em 1581, de
acordo com a transcrição que consta do Processo de Fama de Santidade..., refere
apenas a existência de Frei Gonçalo de Lagos sob a designação de Beato sem fornecer

82
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., II, f. 279.
83
Processo da Fama de Santidade Virtude, e Milagres do Servo de Deos Fr. Gonçalo de
Lagos da Ordem De S.to Agostinho. Concluido por Autoridade Ordinaria em o anno de 1760.,
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 241v.
84
Ob. cit., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 241v. Desta obra
manuscrita de Jeronimo Román faz referência, para além de Frei António da Purificação, como
acima assinalámos, Jorge Cardoso no Agiológio Lusitano... a propósito da Madre Margarida de
Jesus: «escreve della F. Hieronimo Romano na 2ª p. da Hist. Dos Sanctos de Hesp. A quem
parece seguirão D. F. Aleixo de Menezes no trattado dos Sanctos da Ordem, e F. Luis dos Anjos
no jardim de Portugal. F. Pedro Caluo nas lagrimas dos justos l. 12. c. 12 F. Antonio da
Natiuidade na Silua de suffragios em varios lugares [...]». (CARDOSO, Jorge, Agiologio
Lusitano ..., I, p. 61). Embora Jorge Cardoso filie o texto de Frei Aleixo de Menezes no de
Jerónimo Romám, os dados de que dispomos e a comparação dos dois textos apontam
precisamente no sentido inverso. O Arcebispo de Goa afirma que forneceu diversos documentos
ao cronista espanhol, provavelmente quando, entre 1588 e 1590, foi Prior do Convento de Nossa
Senhora da Graça de Torres Vedras (B.G.U.C., Cód. n.º 436, fls. 2 – 2v). Ora entre 1587 e 1590
ou 1592 Román esteve no nosso país onde privou durante alguns meses com Frei Agostinho de
Castro que aliás também lhe forneceu numerosos elementos (PINTO, Augusto Cardoso, ob. cit.,
p. 8-9).
85
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 247v – 264.

25
sobre a sua história qualquer dado.86 Frei Juan Marieta, em 1596, convoca apenas
algumas das notícias fornecidas por Román na «Centúria doze»87, incluindo o erro
respeitante à data da morte. A seguir, em 1600, Frei Simpliciano de Tirrinis faz um
referência a Frei Gonçalo de Lagos. Mas assinalando somente, à semelhança de José
Pamphilo, a sua condição de beato e respectiva nacionalidade88. Continuando a seguir
esta sequência cronológica, descobrimos Fr. Pedro Calvo na Defensam das lagrimas
dos justos... , no capitulo XII, editando uma «Breve summa de algũns Santos e
Santas da Sagrada Religião dos Eremitas do glorioso Padre Santo Augustinho
clarissimo lume da Igreja», informando que

«Os beatificados, ou reputados, e venerados publicamente por Santos,


onde seus corpos estão enterrados, dos quaes algũns tem altar, ou
imagem, ou se reza delles são em grãde numero como se pode ver nas
chronicas da ordem, e memoriaes, dos quaes nomearey algũns. [...] O B.
S. Gonçalo de Lagos portugues que em vida, e Morte resplandeceo cõ
grandes milagres e virtudes, esta sepultado em Torres Vedras he
venerado sua vida está escrita por o Ilustrissimo Señor Dom Aleixo de
Menezes Arcebispo primas. Passou ao Señor anno de 1445, de sua
beatificação se começou a tratar neste Reino por comissão apostólica no
Tẽpo do Arcebispo de Lisboa Dõ Iorge de Almeida.»89.

86
PAMPHILO, Frei Ioseph, Chronica Ordinis Fratum Eremitarum Sancti Augustini,
Roma, Georgii Ferrarii, 1581, p. 134, apud Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 247v.
87
MARIETA, Frei Juan, Historia Ecclesiastica de todos los Santos de Espanha, Cuenca,
en Caza de Pedro del Valle Impressor, 1596, apud Processo da Fama de Santidade..., Arquivo
Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 247v.
88
SIMPLICIANO, Frei, Libro dele Gratie e Indulgenze concesse da N. S. Papa
Gregorio 13, et altri Sommi Pont. alla Compag. de Centuati di S. Agost. ..., 1600, f. 83, apud
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f.
285.
89
CALVO, Fr. Pedro, Defensam das lagrimas dos justos perseguidos e das sagradas
religioens fruto das lagrimas de Christo, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1618, fls. 65 – 65v.
Saliente-se aqui que a obra do dominicano portuense, como assinalou José Adriano de Freitas
Carvalho, terá sido feita de forma algo apressada por necessidade de resposta a Les Misères du
Temps, obra provavelmente de origem reformista, pelo que a intencionalidade de construção

26
Estamos perante mais um autor que, certamente, como se pode ver pela data
atribuída à morte de Frei Gonçalo, seguiu os dados fornecidos pelo Arcebispo de
Goa, constituindo desta forma mais um elemento que comprova a autoria do texto
do códice manuscrito guardado actualmente em Coimbra.
Até à segunda parte da Chronica de Frei António da Purificação, estampada
em 1652, como adiante referiremos, todos os autores concordam em fixar a morte
de S. Gonçalo de Lagos em 1445, na sequência do que foi indicado por Frei Aleixo
de Menezes. Arrola-se uma única excepção quando, em 1651, Sebastian Portilho
escreve que o agostinho português «partió su bendita alma a gozar de Dios á 15 de
Octubre del año de 142290».
Jorge Cardoso, antes ainda da compilação e edição do monumental
Agiológio Lusitano, entendeu incluir na parte final do seu Officio Menor dos
Sanctos de Portugal uma sumária informação relativa a uma série de personagens,
religiosos ou não, merecedores da mesma veneração dos beatificados ou
canonizados91:

«Inclue este officio. 62. Sãctos em numero, sem fazer menção de


muitos outros, de que se puderão compor mais officios, que em vida
forão conhecidos e venerados por insignes em santidade, os quaes

hagiográfica não está nela presente (Cf. CARVALHO, José Adriano de Freitas, «O Portuense
Fr. Pedro Calvo, O. P., e a Polémica sobre as Ordens Religiosas nos Começos do Século XVII»,
Revista de História. Actas do Colóquio “O Porto na Época Moderna”, Vol. III, Porto, Instituto
Nacional de Investigação Científica / Centro de História da Universidade do Porto, 1980, pp. 9 –
10).
90
AGUILLAR, Sebastian Portilho y, Chronica Espiritual Augustiniana, Madrid,
Imprenta del Venerable P. Fray Alonso de Orosco, 1651 apud Processo da Fama de
Santidade..., Arquivo Secreto do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 306v.
91
Nas «Advertencias necessarias» do primeiro tomo do Agiologio..., p. 52, Jorge
Cardoso informa mesmo o leitor que para além dos canonizados e beatificados acrescenta mais
três categorias: a «dos que (posto que não estão Canonizados, nem Beatificados) forao de
esclarecida virtude, e acreditados do ceo com marauilhas; [... a ...] dos que (dado que não
subirão a tanta excellencia) forão de conhecida, i exemplar vida, dignos de se proporẽ para
imitação; [finalmente, a] dos que padecendo pela Fé Catholica, derramarão seu sangue, e derão
a vida por Christo, os quaes vulgarmente se chamão Martyres.»

27
antes, e depois da morte honrou Deos com milagres, em tanto que se
Portugal não ouuera faltado à deuoção, solicitude, e diligencia, que
para os qualificar, com o testemunho irrefragauel da Igreja se
requere, puderão estar já canonizados, commo são os sanctos
Infantes Dom Fernando, que morreo cattivo em Berbere, e Dona
Ioanna filha d’el Rei Dom Affonso V. Freira da Ordem de S.
Domingos, o Beato Frei Bernardo da mesma Ordem, Mestre dos
sanctos meninos de Santarem: o B. Thadeu que por seus milagres he
venerado dos Mouros, e S. Gonçalo de Lagos, ambos Eremitas de S.
August. S. Espinella de Arouca Religiosa de Cister: Frei Pedro
Porteiro de S. Domingos de Euora; e o Sancto e Apostolico prelado
Frei Bartholomeu dos Martyres da mesma Ordem Arcebispo de
Braga: e outros sem numero, que em todas idades, e em conquistas
nossas florecerão, dos quaes com grande gloria deste Reino, muitos
derramaraõ seu sangue pela confissão da Feé Catholica.»92

Repare-se que S. Gonçalo aparece aqui “acompanhado” de uma série de


personagens ilustres que, juntamente com as demais que são tratados no Officio,
deixam já antever a preocupação cardosiana em apresentar Portugal como uma
pátria de santos e veneráveis, ao mesmo tempo este excerto enfatiza a acusação do
pouco cuidado com que o país tratava os seus próprios santos, uma estrtaégia
retórica e justificativa fundamental para a estratégia editorial que se concluíria
com a publicação do monumental Agiológio Lusitano. Como sublinha em trabalho
recente Maria de Lurdes Correia Fernandes93, também não será certamente
estranha à produção e publicação deste Officio o facto de o ano de 1622 ter
conhecido várias canonizações de santos espanhóis e, logo a seguir, em 1625, se

92
CARDOSO, Jorge, Officio Menor dos Sanctos de Portugal. Tirado de Breviarios &
memorias deste Reino, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629, fls. 28-29.
93
FERNANDES, Maria de Lurdes Correia, «História, santidade e identidade. O
Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto», Sep. de Via Spiritus, 3, 1996, p. 27,
nota 12.

28
ter concretizado a canonização da rainha Santa Isabel, mas procurando muitos
textos e autores celebrá-la enquanto santa portuguesa, abrindo, assim, avenidas
para outros processos oficiais de santificação. Este programa também ideológico
sai reforçado com a estratégia hagiográfica vazada no Agiologio Lusitano,
concorrendo para reforçar definitivamente a ideia de que o registo da vida dos
«nossos» santos contribuiria para o engrandecimento da pátria:

«auendo neste Reino, tam abundante de sabios, e doctos varoẽs,


tantos , que com as riquezas de sua sublinhada sciencia, e rara
erudição [...] não ouuesse atè o presente nenhum, que exprofesso a
tomasse de todo à sua conta; sendo por hũa parte assunpto tam
graue, como escrever as vidas dos Sanctos, e preclaros varoẽs em
virtude deste reino de Portugal, e desjado dos zelosos do serviço de
Deos, e da gloria de sua patria, menos acreditada no mundo por esse
respeito: pois a julgão os estrangeiros por esteril de Sanctos, pela
limitada noticia, que de nossas cousas tem, e pela pouca, que nós
delles lhes damos»94.

Ilustrativo deste engrandecimento pátrio e do valor didáctico que, do moral


ao social, passando pelas práticas e hábitos culturais, ressaltava do exemplo
modelar oferecido aos contemporâneos pela colecção de santos, beatos e
veneráveis portugueses encontram-se plasmados no louvor que Fr. Isidoro da Luz
faz a Jorge Cardoso na «Aprovação» do tomo II do seu Agiologio Lusitano que

«resuscitou as memorias de tantos varões illustres em virtude,e


sanctidade, que estauão há tantos seculos sepultados no
esquecimento, com que carecia Portugal, não só da honra, e gloria,
que lhe accresce, por gèrar tam pios, e generosos filhos [...] com que

94
CARDOSO, Jorge, «A Quem Ler», Agiologio Lusitano..., I, Lisboa, na Off.
Craesbeekiana, 1652, p. VI (não numerada).

29
os Portugueses se animem (mediante a graça divina) imitalos porque
se persuadem muito as vidas dos Sanctos estrangeiros, muito mais
persuadem as modernas dos naturaes, e conhecidos»95.

Ainda neste mesmo ano, Frei Duarte Pacheco na Epítome da Vida


Apostólica...96, no final do Livro IIII, «Da vida do Santo Padre Fr. Luis de
Montoya», incluiu, com um claro objectivo de enaltecer o reformador e a
respectiva ordem, biografias de vários agostinhos em que entre Fr. Alvaro
Monteiro, Fr. Ubertino Ennio, Fr. Cipriano Prestello, Fr. Gonçalo Dalmeida, Fr.
Aleixo de Penafirme, Fr. Afonso d’Alhos Vedros e Fr. Paulo Barletta é também
possível encontrar os nomes portugueses de Fr. Gonçalo de Lagos e Fr. João de
Estremóz:

«Pareceome que não fazia o que deuia a filho desta santa Prouincia,
tendo tratado dos seruos de Deos que deu á Igreja o santo Padre
Frey Luis de Montoya, sendo mestre dos nouiços do conuento de
nosso Padre Sãto Agostinho de Salamanca, no mesmo tempo, em
que era Prior delle o glorioso Padre santo Thomas de Villa noua, se
agora não fizesse hũa breue relação de algũs dos muitos seruos de
Deos, e augmento de sua igreja.»97

Estas biografias seguem de perto o texto coimbrão do códice nº 436,


afirmando o autor no final deste Livro IIII não ter feito mais que «epilogalo de
hum livro que deixou escrito o Illustrissimo, e Reuerendissimo senhor Dom Fr.

95
CARDOSO, Jorge, «Licenças», ob. cit., II, p. II (não numerada).
96
PACHECO, Frei Duarte, Epítome da Vida Apostólica, e Milagres de S. Thomas de
Villa Nova Arcebispo de Valença, Exemplo de Prelados, & pay de pobres, da Ordem nosso
Padre Santo Agostinho. Com hum Tratado da Vida do venerauel P. Frey Luis de Montoya,
Mestre que foy dos nouiços em Salamanca, sendo o Glorioso S. Prior delle; & assi mais de
algũs seruos de Deos que deu à Igreja assi là, como nesta Prouincia sendo Prelado della,
Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1629.
97
Ibidem, f. 151 v.

30
Aleixo de Menezes, Arcebispo de Braga [...] e de outro liuro feito pello padre Fr.
Ioão de S. Ioseph, como nele se pode ver mais largamente»98. Trata-se de mais um
testemunho confirmando a autoria do texto original copiado para o referido códice.
Acresce ainda que esta informação sublinha ter sido da autoria de Frei João de São
José a biografia gonçalina mais completa. O desconhecimento, perda ou mesmo a
inexistência de uma obra organizada, como já foi por nós considerado como
provável, não nos permite confirmar a afirmação deste autor. No entanto, dado que
um dos milagres descritos por Frei Duarte Pacheco não frequenta as demais
biografias99, somos obrigados a concluir que, pelo menos, Frei João de São José
estava na posse de algum outro material hagiográfico.

Frei Aleixo de Menezes, tal como João de França de Brito, são, além das
fontes já assinaladas, os principais inspiradores do texto cronístico de Purificação.
Apesar de serem apenas referidos pelo autor no interior do próprio texto, resulta
evidente, pela estrutura da narrativa e pela semelhança dos elementos descritivos,
que o cronista se socorreu essencialmente dos seus escritos. Salvaguarde-se a
possibilidade de essa “inspiração” estreita – quase uma imitatio ao gosto barroco –
ter sido igualmente bebida em Frei Duarte Pacheco ou no texto manuscrito de
Jerónimo Román. O que, como já foi referido quando nos debruçámos sobre estes
textos, obriga incontornavelmente a filiar as suas notícias sobre Frei Gonçalo de
Lagos na obra do Arcebispo de Goa, mas que, na obra de Purificação, apenas é
referido com o propósito de, recorrendo ao seu testemunho, o cronista atestar que
alguns documentos relativos aos milagres do santo se perderam ou destruíram por
incúria dos religiosos do convento, tendo mesmo acontecido que um livro de
milagres depois de ter sido emprestado a uma doente nunca mais haver sido
devolvido100. Embora Purificação, ao assinalar estes factos, refira o cap. I da vida
gonçalina escrita por Aleixo de Menezes, copiada para o cód. nº 436, os eventos

98
Ibidem, f. 186 v.
99
Ibidem, f. 175.
100
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., II, f. 277.

31
assinalados figuram não nesse capítulo, mas no prólogo da vida do santo101. Esta
situação leva-nos naturalmente a considerar que o autor da Chronica não
frequentou este códice coimbrão, conseguindo ter acesso ao manuscrito original ou
uma outra cópia. De admitir parece também a possibilidade de Purificação ter
utilizado a primeira versão do texto do Arcebispo de Goa que, como se sublinhou,
terá sido entregue a Jerónimo Román. Não deixe de se recordar que, de acordo com
testemunho cronístico, Aleixo de Menezes na sua introdução informa que, depois
de ter dado a história da vida de S. Gonçalo de Lagos a Jerónimo Román, temendo
pela sua perda, decidiu escrever de «memória» a sua versão original.102
Investigando com mais atenção os principais investimentos organizados por
Frei António da Purificação na construção da hagiografia exemplar de S. Gonçalo
de Lagos, para além, como adiante se verá, de enriquecer a vida do santo com a
apresentação de novos milagres103, a alguns dos quais esteve, aliás, associado, e de
projectar no santo elementos da ascética e da espiritualidade barrocas, a Chrónica
revela originalmente o facto do beato ter sido, por decisão do Senado da Câmara,
eleito padroeiro de Torres Vedras. Na origem dessa eleição esteve, diz o cronista,
uma carta escrita no Algarve por D. João II, em 26 de Setembro de 1495, à Câmara
daquela vila em que o monarca louvava o santo pelos seus milagres e a vila por ser
possuidora de tão importantes relíquias:104

101
B.G.U.C., Cód, n.º436, f. 2v.
102
Idem, ibidem.
103
De um conjunto de treze iniciais, assinalados no texto de João de França de Brito,
passa-se aqui para quarenta.
104
Não é estranha à época e à espiritualidade de D. Leonor a importância do culto das
relíquias, como o atesta Frei Francisco Santa Maria (Anno Historico, Diário Portuguêz, Noticia
abreviada de pessoas grandes e cousas notaveis de Portugal, Lisboa, Off. de Joseph Lopes
Ferreyra, 1714, tomo III, p. 9) ao relatar a chegada a Portugal do corpo de Santa Auta: «No [dia
3 de Setembro], anno de 1517, entrou pela barra de Lisboa hum thezouro mais precioso, que
quantos tributou o Oriente ao Tejo: Este foi o corpo de Sante Auta , huma das doze mil Virgens,
que a Rainha Dona Leonor, mulher de ElRey D. João II mandara pedir ao Emperaador
Maximiliano I seu primo como irmão: Venera-se o sagrado corpo da Cidade de Colonia, donde o
Emperador o remeteo para Portugal».

32
«Depois estando el Rey Dom Ioaõ o segundo no Algarue pellos
annos de nosso Redemptor Iesu Christo de mil quatrocentos e
nouẽnta e cinco. E ouuindo a fama, que la corria dos milagres deste
sancto, e os que fazia nos naturaes daquelle Reyno, em q elle nacera,
escreueo hũa carta em vinte e seis deSettembro à Camara de Torres
Vedras, cheia de louvores do sancto, chamandolhe pouo venturoso,
pois gozaua o corpo de hum sancto milagroso. E desta carta tomou
aquella villa motiuo para logo o eleger por seu Padroeiro, e
defensor. Assi consta de hum assento da mesma Camara lançado no
liuro, que se intitula Real Extravagante: a folhas 39. e se poz
terceira fechadura no cofre das sanctas reliquias, de cuja chaue se
entregou ao Vereador mais antigo daquella Villa.»105

O facto de os documentos da chancelaria relativos aos dois últimos anos do


reinado do Príncipe Perfeito terem desaparecido impede que se conheça, caso
alguma vez tenha existido106, com exactidão o teor desta carta que, não sem
anacronismo, remete para uma organização do arquivo camarário que não se
afigura típica dos finais de Quatrocentos (como esse «livro» intitulado «Real
Extravagante»). Sabe-se, no entanto, que na data apontada o rei estava em
Alcáçovas de onde partiu em direcção ao Algarve apenas no início do mês de
Outubro,107 tendo chegado ao Alvor apenas no dia 17 de Outubro já o dia ia
avançado108. Por outro lado, da presença do rei no Algarve por essa altura109, não

105
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit, II, f. 278v.
106
A invenção de documentação, dando origem aos chamados “falsos históricos” não
seria um caso inédito. Veja-se a título de exemplo, o caso de F. Miguel Contreiras
relativamente à Misericórdia. Cf. SOUSA, Ivo Carneiro de, Da Descoberta da Misericórdia à
Fundação das Misericórdias (1498 – 1525), Porto, Granito, 1999, p. 117 e ss.
107
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Itinerários de El-Rei D. João II (1481 – 1595),
Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1993, p. 569; Rui de Pina, Crónica de D. João II,
Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p.147; Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea,
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, edição fac-similada da nona edição
conforme a de 1798, p. 276.
108
PINA, Rui de, ob. cit., p. 148; RESENDE, Garcia de, ob. cit,, p. 277.
109
PINA, Rui de, ob. cit., p. 147 - 152; RESENDE, Garcia de, ob. cit., pp. 277-283.

33
se encontram nas obras cronísticas de Garcia de Resende ou Rui de Pina, malgrado
sejam abundantes as referências a Lagos, qualquer alusão a S. Gonçalo. Recuando
no tempo cerca de quatro anos, depois do acidente que vitimou o príncipe D.
Afonso, encontramos D. João II e D. Leonor no Varatojo, sem que exista qualquer
referência documental indiciando uma passagem pelo Convento de Nossa Senhora
da Graça.110 Que teria sido obrigatória caso existisse a fama de santidade de S.
Gonçalo de Lagos, impondo a frequência do seu culto por um «casal» régio em
dramática perseguição da expiação pela morte do príncipe que iria unir toda a
Península sob a coroa de um monarca português. Significativo é também o facto de
cerca de dois anos antes da arranjada carta joanina, em 1493, estando o monarca
doente em Torres Vedras, onde aliás passou larga temporada, tenha feito promessa
de ir a pé ao mosteiro de Santo António da Castanheira, da ordem de S.
Francisco111, não se descobrindo qualquer referência documental pela visita ao
santo agostinho de Lagos.
Está também assinalada desde o final da década de oitenta do século XV a
proximidade de D. Leonor aos Observantes franciscanos que forneceram os seus
principais confessores e colaboradores112. Não há mesmo qualquer prova
documental indicadora de qualquer protecção ou devoção especial da rainha aos

110
PINA, Rui de, ob. cit., p.111; RESENDE, Garcia de, ob. cit,, p. 205; SANTÍSSIMA,
Manuel de Maria, Historia do Convento e Seminario do Varatojo..., B.N., Cód. n.º 1422, p. 83;
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, ob. cit., p. 442 (Nesta obra o autor assinala a presença dos
monarcas no convento entre os dias 21 e 23 de Setembro).
111
RESENDE, Garcia de, ob. cit., p. 246. Esta estada é descrita por Frei Manuel de
Maria Santíssima numa passagem que ilustra bem a forte ligação aos Observantes acima
referida: «O Senhor Rei D. João segundo que com o reino herdou a piedade e affecto de seu pai
a Varatojo, favoreceu, protegeo e visitou este convento na occasião da sua maior afflição.
Achava-se vivamente magoadom este Monarca, e a Rainha sua esposa pelo desastre do Principe
D. Affõso seu filho, de pouco casado, e morto infelismente da queda de hũ cavalo nos cãpos de
Santarem, elle e a Rainha para mitigarem a sua dor barcarão logo o sagrado retiro de Varatojo,
onde assistindo por alguns dias com os Religiosos lhes pedirão oraçoẽs para acertado governo
dos seus vassalos, e pela alma de seu filho, socorrendo liberais e piedosos as necessidades do
convẽto» (SANTÍSSIMA, Manuel de Maria, ob. cit., pp. 83-84)
112
SOUSA, Ivo Carneiro de, A Rainha D. Leonor (1458–1525). Poder, Misericórdia,
Religiosidadde e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 662.

34
Eremitas de Santo Agostinho, sendo a sua conhecida ligação a Frei João de
Estremoz principalmente resultado de uma preferência pessoal. A rainha protegeu
dezenas de casas religiosas e religiosos na região da Estremadura, dirigiu a sua
caridade e mecenato para os principais espaços de santidade e peregrinações desta
região, mas na sua documentação e correspondências não se descobre qualquer
atenção ainda que residual por S. Gonçalo de Lagos.
Sobre esta pretensa carta de D. João II, no processo destinado à beatificação
que, em 1760, se iniciou em Lagos incluiu o procurador da Ordem um artigo com o
objectivo de provar a sua existência113. Contudo, das dezasseis testemunhas
inquiridas, apenas uma, o Sargento Manoel Dias Ferreira, declarou «por leer, e
ouvir, que estando neste Reyno El Rey D. João 2º, e vendo os milagres, que obrava
S. Gonçalo de Lagos, escrevera hũa carta á Villa de Torres Vedras, chamando-lhe
povo ditozo por ter tal thezouro»114

2.3 - A HAGIOGRAFIA SETECENTISTA

Ao longo da primeira metade do século XVIII, a literatura hagiográfica não


acrescenta novos materiais e temas à história exemplar de S. Gonçalo de Lagos.
Estdando os várioas traslados reunidos no Processo da Fama de Santidade...,
verifica-se que autores como Manuel de Abranches (1685)115, Agostinho Maria
Arpe (1722)116, Frei José de Santo António (1726)117, Frei José da Assunção
(1739)118, Frei Francisco de Santa Maria119 ou João Baptista de Castro120 (1747)

113
Processo de Fama de Santidade e Culto dado a hũa Reliquiade SãoGonçalo de Lagos
da Ordem de Santo Agostinho feito nesta Cidade de Lagos Autoridade ordinária por Delegação
do Ex.mo, e R.mo Snor. Arcebispo do Reyno do Algarve, No Anno de 1760, f. 14, Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337.
114
Ibidem, f. 56v.
115
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335 f. 244 – 371.
116
Ibidem, fls. 371v – 372.
117
Ibidem, fls. 372 – 373.
118
Ibidem, f. 373.

35
limitam-se a assinalar em textos breves, de forma sumária e nem sempre com
dados tão precisos quanto as produções anteriores tornaram exigível, a existência
de Frei Gonçalo já na qualidade de Beato já elvando-o a Santo. É apenas na
segunda metade da centúria de setecentos que, acompanhando o esforço de
canonização do beato agostinho, saem a público duas obras relevantes, não pela
riqueza de estilo como pela divulgação de elementos factuais, embora se verifique
terem sido extraídos das peças processuais.
A primeira dessas obras é da autoria de Frei Manuel de Figueiredo121. Embora
tenha sido publicada apenas em 1765, as datas das licenças indicam que foi escrita na
altura em que foi feito o referido processo do qual o próprio autor, na qualidade de
testemunha, fez parte, situação que lhe permitiu incluir na obra notícias que frequentam
algumas das peças processuais, destacando-se algumas citações dos relatos de milagres
atribuídos a João de França de Brito, a renovação do voto feito pelo Senado da Câmara
em 1760 e a setença do próprio processo. Em 1778, caberia a Frei Pedro de Souza122
fornecer ao público a última produção hagiográfica gonçalina destinada a preparar a sua
canonização, como o próprio autor declara claramente123, mas avisando o leitor que
nada haveria de escrever que não constasse noutros autores e nos documentos do
processo de beatificação124.
Seguindo de perto a obra de Frei Manuel de Figueiredo, embora com menos
investimentos literários, a relevância do trabalho de Frei Pedro de Souza reside no
facto de, ainda que retirados das peças processuais, apresentar a público dois

119
Ibidem, fls. 373 – 374.
120
Ibidem, fls. 374 – 374v.
121
FIGUEIREDO, Frei Manuel de, Ecco da Santidade, continuado no immemorial culto
do Beato Gonçalo de Lagos da ordem de Santo Agostinho da Provincia de Portugal, Lisboa, na
Offic. de Ignacio Nogueira Xisto, 1765.
122
SOUZA, Frei Pedro de, Compendio da Prodigiosa Vida, Exemplares Virtudes, e
Portentosos Milagres do Proto-Santo de todo o Reino do Algarve, e novo Thaumaturgo de
Portugal, o Glorioso S. Gonçalo de Lagos, da esclarecida Ordem do Grande Patriarca Santo
Agostinho, da antiquissima Provincia de Portugal. Do culto immemorial, e diligencias para a
sua Beatificação, e Canonização, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1778.
123
«[...]agora que, depois de beatificado o Santo, se vai a tratar da sua Canonização
[...]» (SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. IV).
124
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p.V.

36
elementos que não se frequentam a literatura anterior: primeiro, o ano de
nascimento de S. Gonçalo, fixado rigorosamente em 1360125; segundo, à
semelhança do tinha sido feito por autores anteriores, mas completando as
referências de Purificação (f. 278v) à carta joanina de 26 de Setembro de 1495
dirigida à Câmara de Torres Vedras, acrescenta-se um dos documentos que faziam
parte do Processo da Fama de Santidade...126, concretamente uma certidão,
encontrada no Convento da Graça, do assento em que o Senado elegeu o santo
como padroeiro da vila e decidiu a criação da sua confraria. O original, informa o
autor, havia sido queimado juntamente com todos os papéis do Cartório da Câmara
num incêndio127. Assim, desta peça documental vetusta apenas se conhece a
transcrição apresentada nesta obra:

«Anton Martim, Escrivom do munto nobre Senado da munto nobre,


e leal Villa de Torres-Vedras. Certifico, e attesto a todolos, que este
público instrumento de certidão virem, em como no dia treze do mez
de Outubro de mil e quatrocentos e noventa e sinco, do Nascimento
de nosso Senhor Jesus Christo, estando assim bem juntos todolos
Senhores do munto nobre Senado, julgarom, determinarom, e
jurarom de tomar, como tomarom por Advogado diante de nosso
Senhor, dagora para todo o sempre ao Bemaventurado Senhor S.
Gonçalo de Lagos, cujos Santos ossos jazem no Mosteiro de N.
Senhora da Graça desta munto nobre Villa, pelo que promettem elles
Senhores do Senado todolos annos estar ás Vesperas, e missa

125
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 2. Foram várias as testemunhas assinalando que o
nascimento terá ocorrido por volta dos anos de 1360. O próprio Frei Manuel de Figueiredo o fez
muito embora nada tenha escrito na sua obra. Recorde-se que em nenhum dos textos até aqui
estudados se faz qualquer referência, nem sequer relativamente aos factos mais importantes da
sua vida, à idade do santo.
126
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 196 – 196v.
127
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 56. De facto, em 1744, um incêndio na prisão
municipal, situada junto dos Paços do Concelho, provocou a destruição de grande parte dos
documentos aí arquivados.

37
cantada do mesmo Santo, e de serem todos Confrades da Confraria
do mesmo Santo, e ter Juiz para todo o sempre o Vereador mais
velho; e para que conste par todos os vindouros este juramento, se
fez assentamento no livro = Real Estravagante = a folhas trinta e
nove, donde tirei a presente a rogo do Priol, e mais Padres do
Mosteiro de N. Senhora da Graça desta munto nobre Villa, hoje
vinte de Outubro de mil quatrocentos e noventa e cinco annos; e eu
Antom Martim, Escrivom do munto nobre Senado, que a escrevi por
mandado dos Senhores do munto nobre Senado, e com elles me
assinei = Francisco Cabral Presidente = Jeronimo de Torres
Vereador = Antonio Martim Vereador = Gil Lopes Procurador do
Senado = e eu Antom Martim, Escrivom do munto nobre Senado,
que a escrevi, e assinei.=»128.

Nos autores destes textos hagiográficos não deixamos de encontrar uma


preocupação comum: edificar não uma imagem fantástica e irreal, se quisermos,
medieval, de Frei Gonçalo de Lagos, mas antes firmar um relato o mais próximo
possível da realidade da representação da sua vida. A riqueza de pormenores que
se querem factuais e documentados destas exaltações hagiográficas conduz-nos, de
facto, a um modelo muito mais próximo da tradição cronística religiosa barroca,
profundamente contra-reformista, do que ao legado das vidas de santos que, no
mundo medieval, se propaga atarvés dos Flos Sanctorum. Com uma linguagem
cuidada, perseguindo estratégias historiográficas, a narrativa da vida, das virtudes
e acções prodigiosas de Frei Gonçalo vai nos diversos autores conhecendo uma
ampliação plasmada pelo recurso a fontes que, fornecendo argumentos de
autoridade, títulos ou documentação, tentam afastar o elemento irreal, melhor, a
sombra da suspeição, da superstição e, sobretudo, do inverosímil. A influência da
representação tecida por estes textos hagiográficos mostra-se de tal forma
significativa que descobrimos mesmo diversas testemunhas dos processos com

128
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., pp. 56-58.

38
vista à beatificação e canonização a convocarem expressamente a ajuda destas
obras e tradições hagiográficas. Não é, asssim, paradoxalmente o testemunho que
consolida o hagiográfico, mas é a colecção hagiográfica que estrutura os próprios
testemunhos organizando um processo de santidade em que a história real se
encontra obrigada a desaguar na taumaturgia e na prioridade do milagre.

39
II PARTE

DOS MILAGRES DE S. GONÇALO DE LAGOS

40
Na relação do Homem com o sagrado, a oração é apenas uma faceta de um
universo comunicacional em que os gestos, mais ou menos ritualizados e imbuídos
de uma importante carga emocional, traduzem a devoção e asseguram o contacto
com o divino. No mundo da cristandade latina, as diferentes formas de piedade
foram destacando produções sociais e cultuais de longa duração, mais do que
plurisseculares, entre as quais se impõem as peregrinações, as romarias e o culto
das relíquias. Manifestações religiosas e cultos progressivamente mais populares
acreditando que Deus, também por intermédio dos santos, se revelava através de
prodígios que, assumindo essas variadas formas estendendo-se das aparições aos
milagres129, proporcionavam tanto protecções como auxílios, expiações como
libertações. A partir do século XIII, porém, os milagres dominam os processos de
130
santidade e de canonização oficiais , porque, como bem esclarece Jacques Le
Goff, era preciso isolar tanto as concorrências de pretensos taumaturgos como de
todos os que, como adivinhos ou feiticeiras, manipulavam um sagrado fora do
controlo eclesial. A Igreja cada vez mais a caminho de, com as cisões protestantes,
se tornar romana alarga canonicamente uma tendência para limitar o poder de
certos santos ao período posterior à sua morte, o que, concomitantemente, terá
conduzido a um relançamento do culto das suas próprias relíquias que, ao serem
tocadas, podiam concretizar o milagre131.
Para muitas das populações e grupos sociais que vivem e trabalham na
Europa Medieval e Moderna, estas maravilhas e prodígios, tantas vezes ligadas a
todos os fenómenos extraordinários que, do natural ao sideral, escapam às suas
categorias tradicionais de entendimento, perspectivam-se frequentemente sob a
atracção do milagre. Por isso, a grande maioria dos milagres ligados à constelação
de santidades oferecida pela Igreja católica incide sobre domínios em que a

129
Milagre, do latim miraculum, deriva do verbo mirari, isto é, admirar ou admirar-se
de qualquer coisa.
130
MUNIER, Fréderic, «Miracles», Claude Gauvard, Alain de Libera, Michel Zink (dir.
de), Dictionnaire du Moyen Âge, Paris, Quadrige/PUF, 2002, p. 927.
131
LE GOFF, Jacques, «O Homem Medieval», LE GOFF, Jacques (dir. de), O Homem
Medieval, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 26.

41
fragilidade do homem é maior, mais vísivel e imediata: o corpo. Os milagres
consistem essencialmente em curas muitas vezes operadas naqueles que são as
vítimas privilegiadas da miséria da época ou da impotência de uma medicina
balançando entre o barbeiro e o sangrador. Fundamentalmente taumatúrgica, a
santidade do milagre revela-se pela sua eficácia, já que, como sublinha André
Vauchez, se o mal do corpo é, à semelhança do pecado, algo de diabólico, a cura
milagrosa só pode ter origem divina, sendo prova bastante para demonstrar que o
intercessor está em contacto com Deus132.
O milagre entendido como manifestação da intercepção divina e condição
de santidade carece de registo e divulgação. As autenticações feitas por autoridade
civil com base em prova testemunhal, os relatos dos cronistas e memorialistas ou a
tradição oral, são os processos mais comuns em que assenta a transmissão dessas
maravilhas que, depois, o poder da Igreja seleccionará, organizará e tentará
transformar canonicamente até se consagrarem em ofícios, orações e imensas
possibilidades de intercessão. Mais do que serem utlizados simplesmente como
exemplo a fornecer aos fiéis para enaltecer aquele que viveu em odores de
santidade, conferindo-lhe dessa forma essa condição, estes relatos de milagres
servem também, ao mesmo tempo que definem uma “especialização” do santo,
para fazer sobressair algumas das suas qualidades que, depois, transformam
espaços, pessoas e memórias.
Ao estudarmos o corpus da cronística e memórias hagiográficas de S.
Gonçalo de Lagos, destacamos essa construção hagiográfica fundamental oferecida
pela Chrónica de Frei António da Purificação que tinha ainda a vantagem de
associar as diversas tradições escritas com a sua própria experiência vivida na sua
condição de religioso. Compilação cronística e experiência religiosa fazem
também deste trabalho cronístico uma fonte prioritária para o estudo da
taumaturgia do beato agostinho. As memórias do cronista serão ainda cruzadas
com os instrumentos públicos cujos traslados se encontram no processo de

132
VAUCHEZ, André, A Espiritualidade da Idade Média Ocidental. Séc. VIII – XIII,
Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 180-181.

42
beatificação e canonização de S. Gonçalo de Lagos133, peças documentais até agora
inéditas no nosso país fixando elementos que clarificam ou, eventualmente,
corrigem os relatos de Frei António da Purificação. Refira-se também que a
colecção de milagres narrada por Purificação encontra em manuscrito seiscentista
resumos e apontamentos similares.134 Estes breves textos manuscritos apresentam
algumas semelhanças formais com o texto do autor agostinho, acrescendo que, na
parte final, com letra diferente, embora também do século XVII, se podem
encontrar duas passagens em que o nome do cronista surge na primeira pessoa,
conquanto mais nada autorize se possa afirmar estarmos perante um autógrafo do
mesmo autor. Seja como for, investigando as informações cronísticas, as peças do
processo de beatificação e alguma outra documentação complementar, torna-se
possível fixar uma série exaustiva de milagres gonçalinos.
Assim, neste conjunto de textos hagiográficos e documentos processuais
regista-se um total redondo de 40 milagres e maravilhas situados cronologicamente
entre o último terço do século XV e meados XVII. Destes milagres, uma parte
considerável (22) está associada directamente ao culto das relíquias gonçalinas135.
Em menor número, encontrámos dez que se relacionam com a invocação do santo,
quatro com a sua aparição e ainda alguns outros de mais difícil tipificação.
Os primeiros milagres que a cronística de Frei António da Purificação
apresenta aos seus devotos leitores têm claramente a função de elevar as
qualidades religiosas de Frei Gonçalo de Lagos na ordem da vida conventual.
Depois de descrever as suas exímias capacidades na escrita de livros de coro, o

133
Destes peças de autenticação judicial o que chegou até nós são os traslados que se
encontram no Processo da Fama de Santidade... entre as fls. 198v e 216v (Arq. Sec. do vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 216v- 217). Estes por sua foram feitos a partir de um outro
datado de 25 de Outubro de 1553 por João de França e Gonçalo Serrão, escrivãos da Provedoria
da vila de Torres Vedras (ob. cit., Arq. Sec. do vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls.
216v- 217) por ordem do Doutor Estêvão de Aguiar do Dezembargo do rei, provedor e contador
da sua fazenda e a requerimento de Frei António dos Anjos, Prior do Convento de Torres Vedras
( Arq. Sec. do vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 197v – 198)
134
IAN/TT, Ms. da Livraria n.º 673.
135
Neste número contam-se três casos em que a referência à terra como relíquia nos é
dada através da utilização das expressões “sepulcro” e “sepultura”.

43
cronista assinala o desvio do convento a que pertenciam, Santarém e Lisboa, de
dois desses livros que, por fazerem grande falta tornaram à casa de origem por
intercepção do santo.136 Testemunhando o zelo com que Frei Gonçalo geria os
conventos de que foi prior, um outro milagre refere-se a uma herdade que, tendo
sido doada ao convento da Lourinhã, foi reclamada, em 1436, pelo rei D. Duarte
por considerar que aqueles terrenos eram da coroa. A perda do documento que
bastaria para provar que aqueles terrenos não integravam o reguengo, fazia prever
que a resolução da contenda fosse desfavorável aos religiosos, até que, na altura
em que o procurador do convento procurava testemunhas da doação, deparou com
«hum minino lendo hũa escritura grande de pergaminho [que era] a escritura que
no conuento faltaua [...] assinada pello Sancto Frey Gonçalo. E sem ver mais o
minino (que deuia ser algum anjo) se veyo para o Conuento»137. Se pelo aumento
dos bens do convento é assinalado o mérito do seu prior, com esta aparição
maravilhosa mais não se pretende que sublinhar a especial protecção divina à
Ordem, incluindo o seu património fundiário, contrariando mesmo os mais altos
poderes do século.
Muitos milagres gonçalinos dirigem-se para o mundo social e devoto
exterior às fronteiras e espaços conventuais. Assim, ilustrativo da preocupação em
apresentar a predestinação de Frei Gonçalo para a condição de santidade, é o
pedido feito por uma mulher de idade avançada que havia cegado: «Padre Fr.
Gonçalo, vos a todos os que vos pedem fazeis merces; a todos dais saude, a todos
remediais: so a mim que sou velha, e pobre [...] não me quereis acodir , e darme
vista nestes olhos , que o podeis fazer sò com me pores as mãos nelles, como
fazeis a tantos doentes...». A este pedido terá o prior respondido que não tinha tais
poderes e que com recurso à fé sararia mesmo que lavasse os olhos com «agua de
sardinhas», conselho que, credulamente seguido pela mulher, resultou em cura138.
Um relato que especializa uma taumaturgia, informando uma tipologia de

136
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 270.
137
Ibidem, fls. 272v – 273; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 419
138
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 276.

44
prodígios que se recupera em muitas outras intercessões milagrosas do santo
agostinho em busca de outras tantas especializações de grupos sociais
transformados em grupos de devoção.
Uns mareantes de Lagos, por exemplo, foram salvos de um naufrágio
depois de invocarem o nome do santo que, em aparição, lhes recomendou que
«chamassem por nossa senhora da Graça [...] e fossem logo ao Reyno de portugal à
villa de Torres-Vedras, e naquelle mosteiro acharião seu corpo sepultado; aonde
lhes dessem os agradecimentos do beneficio que lhes fizera por mandado de
Deos»139. Deste milagre foi feito, em 2 de Agosto de 1489, a requerimento de Frei
Lionel, então prior do convento, instrumento público de autenticação140 perante
Antas Serveira, juiz ordinário local. O requerente declarou «pode ora aver vinte
anos pouco mais ou menos que [compareceram no convento] três homẽs e hum
moço com elles, que erão da villa de lagos [...] os quais vierão em romaria ao dito
Moesteiro [...] notificando a todos ho milagre que o Benaventurado Santo lhes
fizera»141. Foram apresentadas três testemunhas do relato destes mareantes, tendo
explicado Frei Lionel que, à data do sucedido, não tinha sido feito qualquer
memorial deste e doutros milagres por negligência do prior da época.142
Leonor de Menezes, «filha do Conde de Monsanto, Senhora de Vila Verde,
molher de Gonçaalo de Albuquerque, e may do Grãde Affõso de Albuquerque143
conquistador da India Oriental [...] estaua de todo surda de ambos os ouuidos».
Ouvindo falar dos milagres de S. Gonçalo deslocou-se a Torres Vedras para fazer
uma novena junto à sua sepultura. Feita a oração introduziu nos ouvidos uns
«papelinhos de terra della» e recuperou a audição. Deixou «huma grossa esmolla

139
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 284v.
140
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 198V.
141
Ibidem, fls. 198v-199.
142
Ibidem, f. 199.
143
Afonso de Albuquerque foi segundo filho de Gonçalo de Albuquerque, senhor de
Vila Verde dos Francos tendo apontando-se como data provável de nascimento o ano de 1463.
(cf. SANCEAU, Elaine, «Afonso de Albuquerque», in Joel Serrão (dir. de), Dicionário de
História de Portugal, Vol. I, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, p. 74).

45
ao conuento. E depois mandou entregar aos mordomos da confraria quatro
castiçaes de bronze grandes a modo de tocheiras, e huma duzia de tochas pera a
sepultura do sancto»144. O instrumento de autenticação deste milagre esclarece que
foi feito a 12 de Agosto de 1489, em Vila Verde, em casa de Gonçalo de
Albuquerque, membro do Conselho do Rei, na presença do seu ouvidor Ruy
Daguiar (por se achar ausente da terra o juiz de fora) e do tabelião Pero Vas,
escudeiro do rei. Requereu a auenticação Frei Lionel, prior do convento de Torres
Vedras. O milagre, informa Leonor de Menezes, havia ocorrido há cerca de oito
anos atrás, numa sexta-feira vendo nessa altura o então prior do convento, Frei
João Cardona, dar a umas mulheres terra do sepulcro. Fornecendo-se da mesma
relíquia e embrulhando-a nuns paninhos que introduziu nos ouvidos mandou rezar
uma missa dos confessores durante a qual se produziu o milagre. Foram
apresentadas como testemunhas do prodígio o referido Ruy Daguiar, Diogo Varela,
criado de Martim Gonçalves de Atayde, filho de Leonor Menezes e Gonçalo de
Albuquerque.145
João Anes, morador no termo de Lisboa, que «auia hum anno [...] estaua
entreuado em huma cama padecendo grandes e continuos tremores de todo o corpo,
que lhe impediaõ poderse bulir» foi curado depois de a sua mulher ter feito uma
romaria à sepultura gonçalina e lhe ter trazido terra146.
Afonso Anes, morador em Asseiceira «auendo hum anno que trazia
maleitas» prometeu fazer uma romaria e pôs ao pescoço uma bolsinha com terra
de S. Gonçalo que lhe fora dada pela mulher de João Anes, curando-se.147
Maria Rodrigues, moradora na Carreída dos Caualleiros, «despois de auer
hum anno, e meio; que senam podia bolir, senam andando de gatinhas» ficou

144
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290v-291.
145
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 214 – 215v
146
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 416.
147
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f.416.

46
curada por ter também pendurado ao pescoço uma bolsinha de terra da sepultura de
S. Gonçalo de Lagos148.
Destes três milagres em que foram beneficiados os referidos João Anes,
Afonso Anes e Maria Rodrigues foi feito em 23 de Julho 1489, também a
requerimento do Frei Lionel, prior do convento, perante Diogo de Sequeira, juíz
ordinário, instrumento público em que os três intervenientes relataram as melhoras
recebidas havia cerca de um ano, tendo sido apresentadas como testemunhas quatro
religiosos do convento de Torres Vedras: Frei Pero Callado, Frei João Carniceiro,
Frei Sebastião e Frei Pero de Vila Viçosa149.
João Gonçalves Pessoa, morador em Vila de Povos «auia hũ anno que era
muy doente de colica e de pedra, de que tinha acidentes tam crueis, que de cada
qual o dauam por morto». Numa das crises «chamou por Sam Gonçalo [...] e logo
adormeceo, por espaço de meya hora: e acordado se achou sem vestigio algum de
dores, e ficou da hi por diante sam de todo».150 Desta cura milagrosa foi feito no
convento, perante o juíz ordinário João Devassas instrumento público a 2 de Junho
de 1490 do qual, como nos demais casos, chegou até nós o traslado feito no
processo de fama de santidade. Do relato processual, retira-se que a cura ocorrera
um ano antes e que, como agradecimento, fez o beneficiado romaria ao convento,
tendo o prior Frei Lionel requerido o registo do milagre. As testemunhas referidas
no documento são apenas as que assistiram à sua elaboração: Pero Nunes, Afonso
Pires, Gomes Leitão, Fernao Vas (clérigo beneficiado em Santa Maria) Antao
Martins, Fernao Salvado e João Esteves, todos escudeiros moradores da vila.151
Leonor Fernandes, moradora em Aldeia Galega, «auia nuitos mezes que
jazia em cama tolhida de todos os membros de sorte que se nam bolia». Esgotadas
as possibilidades de cura pela medicina epocal, um médico ter-lhe-á aconselhado o

148
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls 287-287v.
149
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 200 – 201v.
150
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 416.
151
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 202 – 202v.

47
recurso a S. Gonçalo. Levada a Torres Vedras, ficou curada depois de ter
adormecido junto da sepultura, mercê que agradeceu mandando dizer uma missa,
sendo o milagre autenticado a 28 de Setembro de 1489152. O instrumento público,
feito no convento naquela data perante Afonso Pires, escudeiro e vereador do
Senado, a exercer o cargo de juíz por ausência de ordinário. O relato feito pelo
marido da beneficiada, Álvaro Anes, indicou que a cura ocorrera quatro meses
antes e que o médico era o Doutor Gonçalo Fernandes que assistia a uma prima do
rei. No relato então feito consta ainda que, depois da milagrosa cura, o casal se
deslocou a pé até à casa de Pero Mendes, escudeiro, e que a enferma jantou «com
as suas próprias maõs»153.
Catarina Lopes, moradora na Carvoeira, tendo na mão esquerda «huma
postema com que lhe inchou, e se fez toda negra, com tam agudas dores, que lhe
cauzauam desmayos, e perturbaçam no miolo. E uendo que lhe hiaa laurando o mal
pelo braço, e que já o nam podia bolir», fez-se levar ao sepulcro de S. Gonçalo
onde, depois de meter o braço no respectivo buraco, ficou sem qualquer inchaço154.
O traslado da autenticação, feito perante o juiz ordinário Diogo Sequeira,
escudeiro do rei, datado de 16 de Outubro de 1489, não esclarece em que
cronologia ocorreu o milagre. A beneficiada, sobrinha de André Gonçalves, prior
da Carvoeira que, juntamente com Afonso Pires, testemunhou a cura, recorreu às
potencialidades milagrosas da sepultura gonçalina por indicação de um religioso,
Frei Bastião155, que na altura estava presente. Coube a Frei Lionel requerer como
sempre a autenticação156.

152
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 287v-288; I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, f.416v .
153
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 204v – 205.
154
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
fls.416v-417.
155
Este religioso, no ano de 1489, presenciou outro milagre em que foi beneficiada
Leonor Rodrigues, milagre esse que está datado de 25 de Outubro. (Processo da Fama de
Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 209v).
156
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 205v – 206v. O relato e o instrumento de autenticação deste milagre sucitam-nos
alguma perlplexidade. O cronista refere o sepulcro, embora sabendo que o mesmo só havia sido

48
Afonso Pires, morador no Maxial, «carregando sobre elle huma trave
pezada [...] quebrou ambas as virilhas, de modo que lhe cahiram as tripas quasi até
os giolhos; e desconfiaram os medicos de sua Vida». Levado até à sepultura do
santo, recobrou perfeita saúde, sendo o milagre autenticado a 18 de Novembro de
1489157. A autenticação foi feita perante Antão Serveira, escudeiro, juiz ordinário
cerca de dez dias depois do sucedido. Testemunharam o acidente Fernão Anes,
sapateiro, e seu filho, Afonso Esteves, ambos moradores no Maxial. Requereu a
formalização do caso o inevitável Frei Lionel158.
Uma «menina de peito, filha de Daniel Gonçalves, morador em Torres
Vedras, como chegasse a estar noue dias continuos sem fala, e sem comer, a deram
os medicos por morta», foi salva sendo levada até à sepultura de S. Gonçalo onde
lhe foi deitada terra sobre o seu rosto159. Autenticado a 20 de Novembro de 1489, o
instrumento foi feito no convento perante Diogo Serqueira, juíz ordinário, a
petição de Frei Lionel, apresenta a data de 20 de Agosto de 1489. Testemunharam
Leonor Alvres, mulher de Daniel Gonçalves, e sua mãe, Catarina Rodrigues160.
Leonor Rodrigues, moradora em Torres Vedras, «padecia hum fluxo de
sangue continuo que a tinha posta as portas da Morte de mera fraqueza». Pedindo
uma vizinha, Catarina Correa, no convento uma relíquia, levou-lhe o «Padre
Sanchristam hum papelinho de terra [...] e aspergindo com ella a doente, ficou logo

construído em 1518; no instrumento utiliza-se a a expressão «metesse a mão dentro no buraco


da sepultura». O cronista na folha 278v assinala que aquele sepulcro tinha um buraco para os
devotos poderem aceder à terra, descrição que está de acordo com o exame que foi feito em 12
de Janeiro de 1760 pelos peritos do processo que o examinaram (Cf. Processo do Culto
Immemorial...,Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus 3336, f. 288v). Trata-se todavia de
uma imprecisão do cronista que por diversas vezes utiliza indistintamente as palavras
“sepultura” e “sepulcro” (Sobre esta questão nos debruçaremos mais adiante)
157
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288. I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f.417 MF 164-165. PDS 93-94
158
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 207 - 208
159
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 417.
160
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 208 – 209.

49
sam», sendo o milagre qualificado a 13 de Dezembro de 1489161. No instrumento
oficial consta a data de 1 de Novembro de 1489, sendo feito no convento perante
Diogo Sequeira, juiz ordinário. Leonor Rodrigues é identificada enquanto criada
de Catarina Correia. O milagre terá ocorrido a 25 de Outubro estando já a
beneficiada doente há cerca de quatro meses. O religioso que forneceu a relíquia é
identificado como sendo Frei Bastiam. Por devoção e para agradecer a cura foi
dormir junto à sepultura do santo, sendo nessa altura que Frei Lionel tomou
conhecimento do sucedido e requereu que fosse feita autenticação que contou
como testemunhas Catarina Correia e D. Isabel.162
Diogo Fernades, de Torres Vedras, «como lhe nacesse no dedo polegar do
pè esquerdo huma espongia, e padecesse cõ ella grandes dores» fez, para obtenção
de cura, uma promessa a Nossa Senhora da Luz que acabou por não cumprir, facto
que terá ocasionado uma recaída. Foi então levado ao sepulcro de S. Gonçalo onde
introduziu o pé no buraco e ficou «sem dor algũa e a espongia quasi de todo
sumida». O cronista assinala a qualificação a 13 de Dezembro de 1489163. No
instrumento público, requerido por Fei Lionel, data o milagre de 20 de Novembro
daquele ano. Feito no Convento, onde estiveram presentes os juizes ordinários
Antão Serveira e Diogo Sequeira, Diogo Fernades declarou que o milagre tinha
ocorrido na noite de véspera164.
«Huma menina por nome Filippa de tres pera quatro annos» filha de Afonso
Pires e Catarina Anes, moradores no termo de Lisboa, «estando tolhida da boca, e
detoda a parte de alto a baixo, foy por seus pais offerecida a S. Gonçalo de Lagos,
e logo sarou», pelo que a levaram a Torres Vedras e mandaram dizer uma missa

161
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 417.
162
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 209 – 210v. I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f.417-417v.
163
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v.
164
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 210v – 211v.

50
em louvor do santo. Autenticado a 4 de Maio de 1491165, o instrumento lavrou-se
no convento perante Afonso Pires, escudeiro e tabelião da Princesa D. Isabel,
senhora da Vila, a pedido de Frei Lionel, incluindo o relato de Catarina Anes,
sendo datado de 30 de Outubro de 1491, embora não refira a cronologia precisa em
que ocorreu o milagre166.
Madalena Luís, mulher de Diogo Lopes, morador em Vieiros, depois «de
hum parto, que teue trabalhoso ficou tolhida da cintura pera baixo por espaço de
quatro Mezes, e com hum inchasso tão grande em hum peito, que lhe passaua por
cima do hombro, e lhe chegaua à espadoa. Offereceo a hum irmão seu a S. Gonçalo
de lagos prometendolhe de ir cõ ella visitar a sua sepultura com alguma esmola se
lhe desse saude e logo sarou, e se leuantou da cama: e o peitro tambem logo
arrebentou por si, ficando sam sem mezinha alguma». Refere ainda o cronista ter
sido o milagre autenticado a 7 de julho de 1490167.
Pedro Santiago, morador em Azambuja, «adoeceo de dores de cabeça e de
hum estilhcido de humores, que lhe deciam aos olhos, de maneira, que quasi de
todo estaua cego». Prometeu visitar as relíquias do santo e ofertar uns olhos em
cera. Ficou curado assim que entrou na igreja do convento. O milagre foi
qualificado a 3 de Novembro de 1490168.
Destes dois milagres encontra-se no processo traslado do instrumento
conjunto feito perante Diogo Fernandes, juíz ordinário. Todavia, nesta peça são
corrigidas as datas fornecidas pelo cronista para 5 de Junho de 1490. De destacar
que no relato então feito a cura de Madalena Luis levou cerca de oito dias, muito
embora em toda a vila tivesse sido por todos notada. Quanto a Pedro Santiago a
descrição da cura milagrosa fixada pelo cronista é corrigida por outra menos

165
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 288v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 417v.
166
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 216 – 216v.
167
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287v.
168
Idem, ibidem; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 416v.

51
fantástica: «taõto, que fora dentro nesta sua Caza, logo vira, e que já guora via
rezoadamente»169 A iniciativa da autenticação de novo coube a Frei Lionel.170
Um sobrinho de S. Gonçalo, natural de Lagos, tendo sofrido um naufrágio,
foi o único sobrevivente graças à invocação e consequente aparição do santo que
lhe terá ordenado que se deslocasse a Torres Vedras onde poderia curar as feridas
resultantes do acidente, facto que aconteceu depois de, chegado ao convento, as
cobrir com terra e ter dormido ao pé da sepultura gonçalina171. O cronista salienta
o facto de ter sido feito «instrumento authentico em dous originais, hum dos quaes
se lançou no arquiuo daquelle conuento, e outro se leuou ao Algarue pera glória de
Deos, e mayor veneraçam de seu seruo»172. O instrumento de autenticação
requerido a 20 de Agosto de 1510 pelo Prior Frei Gabriel, feito na presença de
Antão de Oliveira, juiz ordinário, para além de um maior rigor descritivo nos
factos que emolduram esta aparição e milagre, sublinha significativa dissonância
na cronologia. O beneficiado é Diogo Rodrigues, natural de Lagos, que a rogo de
seu pai fez uma viagem para descobrir onde se encontrava sepultado um parente
seu que era santo e frade de Santa Maria da Graça. Iniciada em Leça, a viagem
seria interrompida ao anoitecer no porto de S. João da Foz, onde o navio naufragou
por ter embatido nuns rochedos, tendo o náufrago permanecido agarrado a uma
tábua «até outro dia a oras de vespora», altura em que lhe apareceu um frade que,
puxando-o para terra o salvou e lhe disse para, em Torres Vedras, perguntar por ele
no convento de Santo Agostinho, altura em que recobraria saúde. De acordo com o
testemunho de Diogo Rodrigues, estes factos aconteceram cerca de dois meses
antes da elaboração do documento de autenticação173.

169
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 203v.
170
Ibidem, fls. 203 - 203v.
171
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 284v - 285v.
172
Ibidem, f. 285v.
173
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 212v – 214. Do documento de autenticação deste milagre, foi, segundo Purificação,
enviada uma cópia para o Algarve «pera gloria de Deos, e mayor veneraçam de seu seruo»
(PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 285v).

52
Um tal Fernando, morador em Rio Maior, depois de ter sido ferido pelo
rodízio de um moínho que se soltou e lhe fracturou as pernas, deslocou um braço e
o «escalaurou todo» foi dado como morto pelos que o acudiram. Frei Fernando da
Cruz, procurador do convento de Santo Agostinho de Santarém, que por ali
passava, persuadiu os presentes que «o leuassem a Torres-Vedras a São Gonçalo
de Lagos, que elle o sararia se estaua viuo; e lhe daria Vida se estaua mõrto».
Iniciados os preparativos para a viagem, o enfermo «abrio os olhos muyto alegre, e
se leuantou em pè saõ das pernas e braço, e das feridas, sem dor, ou sinal algum de
onde as tiuera. E perguntado quem assi o saràra, respondeo que hum frade de S.
Agostinho muito fermoso lhe untara todo o corpo com hum unguento, e que logo
se sentira são» facto que terá estado na origem de uma romaria ao convento de
Torres Vedras «com todos os de caza».174 Autenticado a 25 de Agosto de 1510 no
convento perante o juiz ordinário, Antão Oliveira, cavaleiro por iniciativa do Prior
Frei Gabriel175.
Em 1551, Frei Álvaro Monteiro, religioso do convento de Lisboa, estando
«atormentado com dores de mal de gouta e sentindosse hum dia com maiores
dores», facto que o terá impedido de se levantar e «estando em trabalho assi do
mal que padecia como da fraqueza de naõ comer, vio entrar pella cella dous
religiosos que a encheraõ de claridade»: Frei João de Estremoz e São Gonçalo de
Lagos que, para além de o aliviarem das dores, lhe deram alimentos anunciando-
lhe também que «se aparelhasse que cedo seria seu companheiro na gloria»176.
Quando, a 14 de Outubro de 1556, se tratava dos preparativos para a festa
de S. Gonçalo, a comemorar no dia seguinte, Frei André Toscano pregava um
prego «sobre a chave do arco da Capela mòr, escorregou, e caindo em uoltas pelo

174
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 288v-289. I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, f. 417v.
175
Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 211v.
176
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 285v – 286. Este milagre aparece
também descrito por Frei João de São José quando narra a vida de Frei João de Estremoz. No
entanto aqui o papel de Frei Gonçalo é quase secundário (Cf. Frei João de São José, Flos
Sanctorum Augustiniano..., Parte III, Lisboa Occidental, Of. da Musica, 1726, p. 16).

53
ar ueyo dar de cabeça abaixo sobre a sepultura do Sancto com os pès pera cima. E
deuendo, segundo a Rezam natural, espedaçar a cabeça no duro marmore, e ficar
logo morto: aconteceo [...] que sem lezão alguma sepos logo em pé muito alegre,
com espanto seu, e de todos os que ouiram cair»177.
Dona Joana Góis que, afirma o cronista, viria a ser aia de D. Sebastião,
estando em Torres Vedras, no ano de 1558, teve no peito «hum cancro muito
grande». Por se ter deitado sobre a sepultura do santo, foi curada
milagrosamente178.
Maria Henriques, «molher nobre da villa de Torres Vedras [...] tendo huma
uinha no dedo polegar do pe direito, a qual lhe furaua o dedo»179 foi curada depois
de visitar a sepultura gonçalina que se encontrava nas ruínas do convento e ter
introduzido o pé no buraco funerário. Frei António da Purificação descreve este
milagre com generosa riqueza de pormenores, acrescentando que ocorreu no dia 15
de Outubro de 1560180.

Durante a trasladação do sepulcro de S. Gonçalo de Lagos do convento


velho para o novo, ordenada por Frei Gaspar Cão, Bispo de São Tomé, que se
encontrava naquela vila para se resguardar da «peste grande de Lisboa», foi
beneficiado um seu criado que, vítima de uma «grande febre», ficou curado no
momento em que tocou na sepúltura do beato agostinho.181

177
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 289v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 418v; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 393v-394.
178
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 289v-290; I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, f. 418v; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, f. 394.
179
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 281v.
180
Ibidem, fls. 281v-282; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418; Processo da Fama
de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 394-394v.
181
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 282 – 282v. O cronista situa este
milagre «pelos anos de 1570»; Frei Manuel de Figueiredo e Frei Pedro de Souza, apesar de
terem conhecido o texto de Frei Aleixo de Menezes (Cf. B.G.U.C., Cód. N.º 436, f. 10) e de
João de França de Brito (Cf. Processo de Fama de Santidade..., f. 394v-395) datando o milagre
de 1579 e 1576, respectivamente (Cf. Processo de Fama de Santidade..., f. 394v-395), situam-
no com a mesma imprecisão «pelos anos de 1570». Ora, Frei Gaspar Cão foi Bispo de São Tomé

54
João de França de Brito, «homem dos nobres de Torres Vedras» não foi
contagiado pela peste depois de durante o sono o santo, numa aparição, lhe dizer:
«Està seguro que tua molher tem por seu auogado Saõ Nicolao Tolentino. Tua mãy
a S. Sebastiaõ, tu a mim: não ajas medo que nós te livraremos»182. Crónicas
hagiográficas e processo de beatificação esclarecem mesmo, nesta linha
taumaturlógica, que, durante a peste de 1576 em Torres Vedras os que tinham
consigo terra da sepultura de S. Gonçalo ou outra relíquia não ficaram doentes183.
No ano de 1578, um escravo de João de França de Brito «achando-se
doente em tal estado, que o medico lhe daua so huma hora de uida» foi curado
graças a uma relíquia gonçalina e à promessa de trabalhar durante trinta dias nas
obras do convento novo184 que se haviam iniciado a 7 de Setembro185.
Em 1579 um homem visitado por João de França de Brito «que estaua
perigoso de sangue que deitaua pela boca» foi curado pela mesma relíquia186.
Ainda em 1579, o próprio João de França de Brito padecendo de uma «postema»
numa perna, «tomou huma cãdea de rolo a medida da perna em prezença do
Çurgiam que estaua pera lha abrircom ferro; e mandou por hum Criado seu, que a
puzesse aceza em hum dos castiçaes da sepultura do Sancto pera que estiuesse
ardendo em quanto o Çurgiam fazia seu officio. E contam os escritores deste cazo;
que no ponto em que a candea foy posta na sepultura do sancto, arrebentou por si,

entre 1554 e 1572, ano em que morreu (Cf. CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano..., I, p. 452).
Fortunato de Almeida (Cf. História da Igreja em Portugal, vol. II, p. 716) refere que, em 1565,
na sequência de queixas feitas contra excessos cometidos em S. Tomé, foi Frei Gaspar Cão
chamado a Lisboa tendo-lhe sido instaurado um processo do qual não se chegou a saber o
resultado. Este facto, pelo menos, indica a forte possibilidade da sua presença em Portugal nas
proximidades da década de setenta o que nos remete para um erro de datação de João de França
de Brito do qual os hagiógrafos posteriores se defenderam assinalando apenas a década.
182
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 286 – 286v (o cronista data esta
aparição do ano de 1569); I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418v; Processo da Fama de
Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 395-396.
183
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290.
184
Idem, ibidem.
185
Ibidem, f. 183; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 418v-419; Processo da Fama de
Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f. 396.
186
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290; Processo da Fama de Santidade ...,
Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 396-396v.

55
a postema de improuiso, ficando o Çurgiam pasmado»187. A seguir, João de
França de Brito, depois de, num episódio de caça, ter sido, acidentalmente,
alvejado por um criado seu, não sofreu qualquer ferimento graças a uma relíquia
gonçalina e ao facto de, no preciso momento do disparo, ter invocado o santo188.
Maria Fernandes, casada com Pedro Gomes, «desconfiada da vida com o
rigor das maleitas qua auia muito tampo padecia» foi aconselhada por duas filhas
de João de França de Brito a deslocar-se à sepultura do santo e a trazer consigo
terra da sepultura e quando «recebeo da mão do Sanchritam hum papelinho
daquella terra se achou saã de todo»189.
«No anno de 1583 morrião em Torres-Vedras muytas crianças do mal de
bexigas». Um filho de Agostinho Lopes foi curado por visitar a sepultura de S.
Gonçalo depois de a tal ter sido aconselhado por João de França de Brito.
Divulgada a cura milagrosa, várias foram as crianças que, da vila e arredores,
foram levadas à sepultura, tendo todas recuperado a saúde. Acrescenta ainda o
cronista agostinho que os que lá foram levados «antes que adoecessẽ nam lhes
pegaua aquelle mal tam contagioso, e perigoso em crianças: e somente adoeceram,
ou morreram os filhos daquelles que nam recorreram ao sancto»190
Catarina Sarrã por estar há três dias «ás portas da morte com dores de parto
[...] pedio lhe trouxessem huma reliquia de S. Gonçalo. Levaram o recado ao
Conuento; e o Padre Prior por acodir com mais breuidade a esta pressa, tirou, do

187
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 289v-290; I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, f. 419; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus
n.º 3335, f. 396v.
188
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290v-291-291v; I.A.N./T.T., Livraria,
Ms. n.º 673, f. 419; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti,
Processus n.º 3335, f. 397.
189
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 291v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 419v; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 398-398v.
190
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 290v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 419v-420; Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus
n.º 3335, fls. 398v-399.

56
pescoço um relicario em que tinha hum pequeno osso do Sancto, e mandoulho [...]
e pario immediatamente huma filha que viueo muytos annos»191.
Dois homens e uma mulher moradores nos arredores de Lisboa, não
identificados, foram curados de dores de estômago, de febre e de paralisia graças a
relíquias de terra da campa de S. Gonçalo de Lagos.192
No dia 15 de Outubro de 1634, «huma molher nobre de Lisboa», por ter um
osso atravessado na garganta, havia deixado de comer. Esgotada a possibilidade de
intervenção dos cirurgiões socorreu-se sem sucesso de uma relíquia de São Brás,
chamando-se o confessor que era o próprio autor da crónica. Este mais não fez que
contar à moribunda alguns milagres de São Gonçalo fazendo com que a própria e
os circunstantes «lhe prometessem huma missa offertada, e o invocassem naquelle
ultimo aperto». Feito isto, a enferma engoliu o osso e «logo mandou a Torres
Vedras dar cumprimento a promessa que fizera da offerta»193.
A 27 de Novembro de 1634, em Lisboa, uma mulher nobre chamada
Custódia de Almeida que «estaua muito doente de camaras, e cõ grandes dores de
tripas» chamou o seu confessor que, precisamente Frei António da Purificação,
«lhe inculcou os merecimentos de S. Gonçalo de Lagos e lhe aconcelhou, se
encomendasse a elle» o que foi bastante para a curar. Após este facto terá a doente
pedido que, para prevenir males futuros, lhe enviassem de Torres Vedras terra da
sepultura do santo194.

191
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 291v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673,
f. 420; Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 399. Frei Manuel de Figueiredo esclarece que a filha nascida é Maria Serrão que
deixou um legado de 50.000 reis anuais (FIGUEIREDO, Frei Manuel de, Ecco da Santidade,
continuado no immemorial culto do Beato Gonçalo de Lagos da ordem de Santo Agostinho da
Provincia de Portugal, Lisboa, na Offic. de Ignacio Nogueira Xisto, 1765.pp. 191-192).
192
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 291v-292.
193
Ibidem, f. 292v; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, fls. 420-420v (Aqui é fornecida
uma descrição semelhante à do texto cronístico em que o autor da crónica se refere a si próprio
utilizando a primeira pessoa. Contudo, os dados que possuímos não nos permitem, como
assinalámos, afirmar com segurança estarmos na presença de um autógrafo de Frei António da
Purificação, muito embora a letra do documento seja do século XVII).
194
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 292v-293; I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 420v.

57
Em continuação, no dia 28 de Novembro de 1634, apresentando-se o
cronista como testemunha na qualidade de confessor, D. Filipa de Lencastre, filha
de D. João Lobo, barão de Alvito, estando doente e tendo notícia dos milagres,
encomendou-se ao santo e fez oferta de cera para a sua sepultura. Logo melhorou,
mas esquecendo-se de cumprir a promessa tornou a ficar doente, situação que foi
ultrapassada pelo seu cumprimento195.
Em 1635, outra filha do mesmo barão de Alvito, D. Maria de Lencastre,
casada com D. Álvaro de Abranches, moradores em Lisboa, temendo as
dificuldades de parto que já havia sofrido, «tomou S. Gonçalo por seu auogado
naquella necessidade fazendolhe outra promessa como a sobre ditta Donna Filipa
sua irmãa [e] pario hum filho com tanta facilidade, que disse nam sentira dores
algũas nelle: sendo no minimo manifestamẽte maior do que costumam ser as
crianças quando nacem. E acautellada com a aduertencia da irmâa. Satisfez logo a
promessa que fizera, e em breues dias se leuantou sam, e ualente»196.
No ano de 1642, Maria Serrão Borges, «nobre matrona» de Torres Vedras e
«grande benfeitora da nossa Ordem, trazendo em Lisboa huma demanda contra
certas pessoas poderosas sobre quãtidade de dinheiro que lhe deuião,
encommendaua a causa a S. Gonçalo de Lagos». Durante duas noites teve
aparições que associou a sonhos. Numa terceira o santo repreendendo-a anunciou-
lhe que a ssentença lhe seria favorável, mercê que foi agradecida com «pera ornato
da sua sepultura huma esmola considerauel de seda, e dinheiro.»197
Este itinerário taumaturlógico de S. Gonçalo de Lagos permite rapidamente
destacar estarmos perante um santo cuja principal especialização é a cura de
problemas e doenças físicos. Trata-se de uma colecção de milagres dirigida
directamente a interferir com males corporais, sobrepujando a medicina e as

195
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 291v-293; I.A.N./T.T., Livraria, Ms.
n.º 673, fls. 420v-421; O cronista serve-se deste milagre para, fazendo uma referência bíblica,
recordar a importância do cumprimento das promessas.
196
Frei António da Purificação, ob. cit., fls. 293-293v.
197
Ibidem., fls. 286v-287. A «esmola» a que o cronista se refere não mais que o
testamento feito pela beneficiada (Processo da Fama de Santidade ..., Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3335, fls. 220 – 223v).

58
culturas medicinais epocais para ofercer um auxílio súbito, inesperado por vezes,
preparado noutros, mas sempre absolutamente eficaz, estendendo-se do parto aos
acidentes de caça, passando pelas pandemias e doenças colectivas. Por isso, é
frequentemente o próprio médico a apontar o milagre da intercessão de S. Gonçalo
de Lagos como a única possibilidade de cura, sugestão que, não deixando de
recordar as fronteiras porosas epocais entre ciência e superstição, revela a
preocupação dos relatos milagrosos em fornecer argumentos de autoridade
“científica” firmando a verdade da cura milagrosa e, consequentemente, a
santidade do santo agostinho.
Esta colecção de milagres permite também destacar a especialização cultual
de S. Gonçalo de Lagos. É a terra do sepulcro do santo que, guardada em campa
feita em pedra especialmente em 1518, especializa a principal relíquia que se
manipula para curar. Metida nos ouvidos, nos olhos, em qualquer parte doente do
corpo, simples ou envolta em papel, a terra sacral do sepulcro gonçalino tudo cura,
mesmo às portas da morte. A capela sepulcral transforma-se, assim, em espaço de
devoções, em santuário, mas não se conseguem surpreender peregrinações e
romarias numerosas capazes de transformar a sepultura em espaço de cultos
massivos e populares.
Por isso, S. Gonçalo de Lagos precisa, por vezes, do apoio de outras figuras
santas: S. Sebastião, S. Nicolau Tolentino, Frei João de Estremoz ou a intromissão
mariana de Nossa Senhora da Graça mobilizam-se para ajudar a taumaturgia
gonçalina. Se, no dois primeiros casos, se trata de colar um santo, afinal, local a
grandes figuras da santidade cristã, já a aparição de S. Gonçalo ao lado do
confessor da rainha D. Leonor, visa colocá-lo no mesmo patamar de uma figura
histórica de inegável prestígio religioso aúlico e conventual. Finalmente, a
recomendação feita aos mareantes de Lagos para invocarem Nossa Senhora da
Graça parece concretizar a devoção mariana que os religiosos do convento

59
reclamaram ainda antes de 1340, altura em que o culto mariano da Graça foi
ordenado pelo Geral da Ordem, Frei Francisco do Monte Rubiano198.
A geografia dos milagres remete-nos para três zonas: Torres Vedras e
termo, Lisboa e termo e Algarve, apesar do domínio quase esmagador do primeiro
espaço. A iniciativa de Frei Lionel, requerendo uma série de autentificações de
milagres entre 1489 e 1490, conduz à ideia de que, pela oficialização e
consequente divulgação, há um esforço daquele prior no sentido de, não só reforçar
o culto local, mas também convocar devoções da região de Lisboa e do Algarve.
Um acréscimo de frequência de devotos que fizessem peregrinações em sinal de
agradecimento ou para pedir a intercepção do santo aumentaria a notoriedade e
prestígio do convento, mas também engrossaria as suas entradas em bens, atracção
económica que, infelizmente, não se encontra adequadamente documentada, o que
não deixa de sugerir a dimensão limitada do culto do santo. De qualquer forma, os
documentos de autenticação e de descrição dos milagres esclarecem uma ligação
particular intensa ao priorado de Frei Lionel, no final do século XV, a que se
somam os favores dirigidos a João de França de Brito, entre as décadas de 1570 e
1580, concluindo-se significativamente pelos anos de 1630 e 1640 por uma
comunicação milagrosa com o próprio cronista, Frei António da Purificação.

198
«Em seus principios era esta casa [o convento de Torres Vedras] dedicada a Santo
Agostinho; mas no ano de 1340. mandando o Reverendissimo Geral da Ordem Frey Francisco de
Monte Rubiano hum Decreto, em que dispunha que todos os Conventos que dalli por diante se
fundassem, o fizessem debaixo do titulo de nossa senhora da Graça, em gratificação de hum
favor que a Senhora lhe havia feito, e à Ordem toda conservandolhe o seu Escapulario. Os
Padres do Convento de Torres Vedras o abraçarão de forte, que ainda que o Decreto os não
comprehendia [...]. Em seus principios tinhão no seu altar hũa Imagem de nossa Senhora;
porque sempre os mossos Eremitas se confeárão filhos, e reconhcerão obrigados a esta Senhora,
e a estimarão, e venerárão sempre como Mãy sua. Dizem alguns, que naqueles principios se
intitulava esta Imagem com o titulo dos Remedios, e que este titulo se lhe deu pelos muytos
milagres que obrava, por que todos achavão na sua invocação o seu remedio, mas depois do
Decreto a denominárão sempre com o titulo da Graça» (SANTA MARIA, Frei Agostinho de,
Santuario Mariano e Historia das Imagẽs milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente
apparecidas, em graça dos Prègadores, e dos devotos da mesma Senhora, Tomo II: Imagẽs de
Nossa senhora que se venerão no Arcebispado de Lisboa, Lisboa, Of. de António Pedroso
Galrão, 1707, pp. 70-71).

60
No caso de Frei Lionel tudo parece indicar tratar-se, como acima referimos,
de um esforço nem sempre conseguido de ampliar uma devoção estritamente local,
investimento provavelmente inserido também num contexto religioso e devocional
“concorrencial” já que o convento do Varatojo, inaugurado em 1474 com catorze
religiosos franciscanos observantes, rapidamente viria a exercer forte influência
social na região.
Quanto a João de França de Brito, provavelmente o próprio ou parente do
escrivão que, em 1553, a pedido de Frei António dos Anjos, trasladou em pública
forma os instrumentos de autenticação dos milagres feitos por autoridade
judicial199, verifica-se a existência de uma forte ligação da sua família ao convento
agostinho e ao culto gonçalino local200, sendo muito provavelmente um dos que
protagonizou a defesa dos religiosos dos diversos ataques de que eram alvo desde
que haviam tomado posse da gafaria de S. André e respectivas rendas.
Concomitantemente, a fundação em 1570, pela Infanta D. Maria, de um convento
de monges Arrábidos no Barro201, poderá ter contribuido para uma eventual
necessidade de reavivar a memória dos fiéis no sentido de renovar uma devoção
que estava adormecida ou circunscrita ao espaço de influência directa do santuário
funerário. Não serão igualmente estranhas para este ciclo de renovação cultual, a
nova espiritualidade inspirada pelos decretos tridentinos e a importante reforma da
Ordem dos agostinhos que, promovida por D. João III, foi levada a cabo por
Villafranca e Montoya entre 1535 e 1569, promovendo a restauração e trasladação
de algumas casas conventuais, cuidando das vocações, tentando aumentar junto da
corte o prestígio da Ordem e fundando o seu importante colégio de Coimbra202.
Frei António da Purificação comparece, duplamente, como testemunha e
cronista de milagres que ele próprio procurou promover. Uma devoção que não se

199
Processo da Fama de Santidade..., Arquivo Secreto do Vaticano, Processus n.º 3335,
fls. 197v-198 e 216v-217
200
O próprio refere que incutiu em várias pessoas a devoção em Frei Gonçalo (ob. cit.,
f. 398v).
201
B. N. L., Reservados, Cód. n.º 1435, f. 7.
202
ALONSO, Carlos, Os Agostinhos em Portugal, Madrid, Ediciones Religión y
Cultura, p. 61-72.

61
pode dissociar dessa outra forma de devoção que, através da representação
cronística, tratava de fixar a memória das glórias de uma Ordem que se vazava nos
seus santos e nessa outra ordem dos seus milagres. Um cronista testemunha
permitia ainda edificar essa ordem fundamental da prova, da realidade, da
historicidade que, do culto ao documento, faltava desesperadamente na história
quase perdidade de S. Gonçalo de Lagos, à semelhança dessas outras histórias
recuperadas por Frei António da Purificação para construir a história gloriosa da
sua Ordem.

62
III PARTE

CULTO, PRÁTICAS RELIGIOSAS


E DEVOCIONAIS

63
1 – RELÍQUIAS

As relíquias são, como se sabe, objectos corpóreos que, ultrapassando a


dimensão de substância no sentido aristotélico do termo, têm a propriedade de
fazer subsistir uma realidade transcendente, vazando-se em crença e frequência
devota. Na sua acepção histórica cristã, as relíquias são principalmente corpos ou
partes deles – maioritariamente ossos do crânio ou dos membros –, assim como
objectos materiais de uso quotidiano que, graças ao contacto com uma personagem
santa ou com uma sua relíquia, se viram santificados, manifestando-se o seu culto
através da exposição, bênçãos, procissões, peregrinações e festas ou cerimónias
relacionadas com a sua chegada, manipulação e visita203.
Por se acreditar que mantêm ad aeternum as mesmas capacidades de
intervenção miraculosa, o culto das relíquias está estreitamente associado ao dos
santos que concorrem para afirmar cultural e socialmente, sendo, por isso, alvo de
uma circulação e procura consideráveis. Com efeito, são vários os relatos que nos
permitem concluir que a sua posse contribuía para o engrandecimento da pessoa ou

203
São várias as produções literárias que atestam este carácter festivo da chegada das
relíquias. Para o caso da procissão saída da Sé de Lisboa que, em 25 de Janeiro de 1588, feita
para a recepção das relíquias oferecidas à Igreja de S. Roque, Manuel de Campos oferece-nos
um minucioso relato dos festejos e respectivos preparativos: «A noite dantes se gastou toda em
ornar as janellas, paredes, e ruas por onde a procissam auia de passar, e o mais della se vigiou
andando muita gente com tochas pera ver os apercebimentos, e ornatos das ruas, excitandoos a
isso os muitos lumes em que ardia a igreja de Sam Roque cujo tecto e varandas de hũa e outra
parte estiueram cercadas de lanternas q arderam grãde espaço da noite juntamente com muitos
barris de alcatrão, a que se deu fogo com grande aluoroço de charamelas e repique de sinos que
á entrada da noite se tocáram [...] Alem do ornato das paredes , e casas, estauam as ruas cheas
de palanques alcatifados, E cubertos cõ cortinas de seda com muita gẽte que estaua apinhoada
assi nelles comopollas janellas de todas estas ruas, as quaes se alugauam por muito dinheiro,
pois uoue janella de quarenta cruzados de aluguer, e casas de trinta mil reis: de algũas se soube
de certo que naquellas sete ou oito horas forráram o aluguer de todo o ãno». (Cf. CAMPOS,
Manuel de, Relaçam do solenne recebimento que se fez em Lisboa às santas reliquias q se
leuaram à igreja de S. Roque da companhia de Iesu aos 25 de Ianeiro de 1588, Lisboa, Antonio
Ribeiro 1588, fls. 7 – 8). [B.N.L.: RES. 1681P.]
Idêntica riqueza descritiva encontramos em Gaspar dos Reis, Relaçam do Solenne
Recebimeto das Santas Reliquias que forão da See de Coimbra ao real Mosteyro de Santa Cruz:
he carat coriosa que se escreueo da Universidade a hum amigo per hum sacerdote canonista,
Coimbra, em casa de Antonio de Mariz, 1596 [B.N.L.: RES. 1405P.]

64
instituição, da localidade ou espaço regional, da pátria ou nação que detinha e
agitava os seus poderes, do religioso ao social, passando pelo económico e pelo
ideológico. Desta forma, julgamos pertinente a busca de resposta a algumas
questões que, ajudando a compreender a importância das relíquias, concorrem para
se investigar devoções e práticas religiosas que se concentram em S. Gonçalo de
Lagos: (a) Que consequências sob o ponto de vista económico ou político tinham
para uma localidade a propriedade e a exploração cultual de relíquias consagradas?
(b) Que dignificação sócio-religiosa obtinham as pessoas e grupos sociais locais
que estavam associados ao seu culto? (c) Que renovação religiosa ou vitalidade
devocional ofereciam as relíquias na «popularidade» devocional da Ordem
religiosa que albergava o seu culto?204 (d) Que indulgências eram obtidas para
elevar festas, cultos e orações relacionados com a celebrações realizadas em torno
das relíquias e dos seus poderes taumaturlógicos?
Para organizar a resposta a estas perguntas que interessam para o estudo da
localização e consumo religioso e social do culto de S. Gonçalo de Lagos, comece
por se sublinhar que o culto das relíquias é anterior ao das imagens dos santos e só
conheceu uma diminuição com a introdução e difusão medievais dos cultos
marianos. Baseado na veneração das imagens e com uma capacidade de protecção
mais abrangente, o culto da Virgem conhece no século XVI um renovado
florescimento através de diversos centros de devoção e peregrinação, chegando a
suplantar em muitos casos a veneração de padroeiros locais que vêem transferidas
as devoções populares para os espaços marianos205. William Christian Jr. estudou o
caso espanhol para o século XVI, referindo que, com a invasão muçulmana, as
relíquias cristãs foram levadas para os territórios do Norte tendo lá permanecido
mesmo depois do fim Reconquista, situação que explicaria o facto de no período

204
«Na história da religiosidade portuguesa do Renascimento, os santuários mais
numerosos e procurados eram aqueles que reuniam e ofereciam às devoções populares relíquias
que apresentavam um conjunto de intercepções milagrosas e de propriedades excepcionais que
atraiam as populações de fiéis da época, especializando festas e romarias religiosas, apelando a
peregrinações continuadas». (SOUSA, Ivo Carneiro de, D. Leonor..., p. 722).
205
PENTEADO, Pedro, «Peregrinações e Santuários», AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.
de), História Religiosa de Portugal, vol. 2, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000, p. 355.

65
do Renascimento se encontrar um número cada vez menor de relíquias à medida
que se avança para sul. Esclarece ainda o antropólogo americano que, na mesma
época quinhentista, em Castela, onde a antiga devoção aos ossos dos santos
permanecia viva, se podiam encontrar dois tipos de relíquias: um composto
essencialmente por restos mortais dos santos, convocando elevada devoção pelos
milagres e curas que proporcionavam; outro tipo mais variado reunia relíquias na
sua maioria vindas de Roma ou dos países em que a Reforma protestante havia
triunfado, gerando novos martírios católicos, mas em ambos os casos estes
relicários não davam origem a devoções tão sólidas e populares quanto as
precedentes206.
Recorde-se ainda que, na XXV sessão do Concílio de Trento, reunida em I3
de Dezembro de 1563, a magna assembleia conciliar reafirma caber aos bispos
ensinar os fiéis acerca das «honras devidas às relíquias». Deste modo, a igreja
romana tridentina reitera a dimensão canónica e oficial do culto das relíquias,
promovendo a sua renovada difusão tanto em espaços europeus como nos espaços
missionários ultramarinos, fazendo assim com que a ordem da literatura
hagiográfica se veja obrigatoriamente obrigada a frequentar e a provar também
com relíquias a santidade das personagens que procurava exornar. Em
consequência, as histórias da intercessão milagrosa das relíquias dos santos
invadem a literatura hagiográfica barroca, verificando-se que praticamente todas as
produções hagiográficas já impressas já simplesmente manuscritas estão
formalmente organizadas em torno da biografia, dos milagres e traslados de
relíquias dos santos que ajudam a celebrar207.

206
CHRISTIAN JR., William A.., Religiosida local en la España de Filipe II, Madrid,
Nerea, 1991, pp. 157-158.
207
Não poucas vezes as trasladações, para além de se inscreverem numa festa no
calendário religioso local, são acompanhadas de milagres. No caso da segunda trasladação das
relíquias de S. Gonçalo, em 1570, um criado de Frei Gaspar Cão foi milagrosamente curado de
peste.

66
Reflectindo no ambiente religioso barroco português estas reafirmações
doutrinárias tridentinas do carácter interceptivo das relíquias, Jorge Cardoso
esclarece normativamente nas Advertências do monumental Agiologio Lusitano a
sua essência e função, salientando a sua importância como elemento motivacional
para a imitação dos santos:

«São as sagradas Relíquias dos Sanctos, e principalmente aquelas que


são partes dos seus corpos, preciosas joias de valor inestimauel, finas, e
viuas pedras do templo do Spiritu Sancto, que nelles, em quanto viuerão,
habitou por sua graça, ricas prendas da futura, e immortal resurreição,
que esperamos, perpetuo estimulo da imitação de suas heroicas virtudes,
ardente incentivo de seguimento de seus sanctos exemplos singular
ornamento de nossa peregrinação, continuo espertador da nossa Fé,
salutifero fomento da esperança da vida eterna, e finalmente poderosos
impulsos, que nos excitão, e inflãmão no amor d’aquelle Senhor, que he
marauilhoso em em seus sanctos. Pois quando vemos suas sanctas
Relíquias, com pio affecto nos mouemos a venerar aquelles sacros
despojos, que em quanto viuerão, forão agradauel, e deleitosa morada da
Sanctissima Trindade, que tẽ por suas delicias estar cos filhos dos
homẽns [...] E juntamente crèmos, que aquelles sagrados ossos, no
ultimo dia juntos em sseus corpos, unidos com as almas, ande ser
participantes da eterna felicidade; e considerando que tanto bem
alcançarão pelo momentaneo trabalho, que no exercicio das virtudes
nesta vida tiuerão, com nouo feruor nos excitemos aos imitar.
Principalmente sabendo que forão homẽs mortaes, como nos,
combatidos de varias tentaçoẽs, das quaes a diuina graça os fez
vencedores. E que o mesmo Senhor, que os ajudou a elles , se nos não
negarà, se com seu auxilio o cooperarmos de nossa parte, para seguirmos
os marauilhosos exemplos, que de suas esclarecidas virtudes nos
dexarão os sanctos»208

208
Jorge Cardoso, «Aduertencias necessarias ao Agiologio Lusitano.», Agiologio
Lusitano dos Sanctos e Varoens Illustres em Virtude do reino de Portugal, e suas Conquistas.
..., Tomo I, Lisboa, Off. Craesbeekiana, 1652, p. 41

67
Com a cisão do céu da cristandade europeia, o século XVI é frequentado
por um movimento de recuperação das relíquias existentes nos territórios
dominados pelos protestantes, circulação que, frequentemente, se fez acompanhar
de uma actividade comercial de compra e venda de relicários e indulgências que,
por assumir proporções desmedidas, viria a merecer estreita regulamentação por
parte da Igreja romana. As Constituições Sinodais de Arcebispado de Braga, por
exemplo, proíbem em 1639 com a pena de excomunhão os seculares que se
entreguassem a estas práticas de venalidade religiosa,209 instruindo os visitadores
das igrejas para procederem a um exame de proveniência, autenticidade e decência
das relíquias e relicários210. Noutro caso exemplar, relembre-se para o nosso século
XVI o processo inquisitorial do pretenso frade agostinho Francisco Leão,
envolvido num negócio de venda de relíquias trazidas de Itália cerca de 1560,
constituindo a sua actividade venal um bom ilustrativo não só destas práticas
verdadeiramente mercantis, como também da grande procura devota dos objectos
que eram exibidos como candidatos a relíquias prestigiadas, colaborando na
consolidação pública e privada da devoção dos crentes211. Um outro exemplo desta

209
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1639), tit. 26, Const. IV, p.338,
apud MARQUES, João Francisco, A Parenética Portuguesa e a Restauração. !640 – 1668, vol.
I, Lisboa, INIC, 1989, p. 259.
210
Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga (1639), tit. 40, Const. VII, p.479,
apud MARQUES, João Francisco, ob. cit., p. 259.
211
«[...] dez partículas do lenho da Cruz [...]; um espinho da coroa de Nosso Senhor
Jesus Cristo; dois cabelos e “ũa redoma de vidro com três pelouros do leite de Nossa Senhora
coalhado”; ossos dos Santos Inocentes e dous “pedaços dos ossos de São Cristóvão, mártir; mais
partículas das cabeças de São Gervagy e Portagy, da pelle de São Lourenço, e dos carvões em
que foy queimado e da terra do mesmo logar em que foy assado”; uma partícula do queixo de
São Joáo Baptista; outra da cabeça de “Santo Inofre, martir”; partículas dos ossos dos santos
Fabião e Sebastião; “mais um pedaço do pao onde dormia São Alexandro, martere”; mais outro
pedaço do lenho da Cruz; ossos de São Filipe, mártir, e de São Brás, bispo e mártir; “mais um
pedaço do braço de São Marçalinho, martir; “mais ossos e um dente do mesmo martir”; ossos de
Santa Maria Madalena e dos apóstolos Filipe e Tiago; “mais lenho da crux em que foy
crucificado Sancto André apostolo, e ossos do mesmo apostolo»; mais ossos da cabeça de Santo
Estêvão, mártir, “e dos marteris Mario e Marta”; ossos dos Santos Inocentes, de São Jerónimo,
de São Pedro Apósto, dos mártires São João e Paulo ; «mais dos ossos de Sancta Demicila
virgem e martyr”, de São Lourenço, de São Gens e de Santo Eleutério, bispo; “mais ũa bolsa de

68
circulação e valor das relíquias como motivo de, por eleição divina,
engrandecimento de um país que, neste caso concreto, é extensivo à Casa de
Bragança, esclarece-se no Agiologio Lusitano a propósito das relíquias da coroa de
espinhos de Cristo, destacando-se que, dos setenta e dois que a compunham,
Portugal possuía, na altura, «mais de sincoenta, e seis, em ricas custodias de ouro,
e ambulas de christal»212.
Expressão do favor divino gozado pelos santos, os seus restos mortais ou os
seus objectos de uso quotidiano assumem para os fiéis, para além de um estímulo à
imitação, capacidades interceptivas e taumatúrgicas, sendo a sua posse motivo para
uma verdadeira corrida a que muitas vezes estiveram associados factores políticos
e económicos. Conferindo uma maior importância à instituição religiosa e à
localidade que as possuía213, registava-se em muitos casos a procura de uma
colecção de relíquias que, assegurando intercessão para todos os males,
prestigiasse espaços e meios sociais. À importância do culto das relíquias estavam
também associados mecanismos de distinção social e religiosa para os que as
doavam a igrejas e instituições religiosas. Veja-se, entre tantos, o caso de D. João
de Borja e sua esposa que, em 1588, doaram apreciável quantidade de relíquias à
igreja de S. Roque e receberam em troca a «capella mor da dita casa de S. Roque
pera sua sepultura, e de seus descendentes co hũa missa quotidiana, e outras
muitas, com outros sufragios que em vida, e pera depois de sua morte lhes foram
concedidos»214

tafetá azul, dentro de na qual estavam varias terras e pedras de reliquias da Terra Santa de
Jerusalem”; “mais outra bolsinha de cor catassol de seda, com algũas contas dentro em sy”,
etc.». (MARQUES, Armando de Jesus, O processo inquisitorial inédito do aventureiro
Francisco de Leão, Braga, [s.n.], 1968, separata de Itinerarium, Ano XIV, n.º 59, pp. 10 – 11).
212
CARDOSO, Jorge, ob. cit., III, p. 64.
213
Recorde-se a este respeito que Jorge Cardoso asssinala ser a posse de relíquias um
dos critérios de apropriação de um santo por um reino ou cidade (CARDOSO, Jorge,
«Aduertencias necessarias ao Agiologio Lusitano.», ob. cit., I, p. 40).
214
CAMPOS, Manuel de, Relaçam do solenne recebimento que se fez em Lisboa às
santas reliquias que se leuaram à igreja de S. Roque da companhia de Iesu aos 25 de Ianeiro de
1588, Lisboa, Antonio Ribeiro, 1588, pp. 4 – 5. [B.N.: RES. 1681P.]. Na segunda metade do
século XVI, seria um dos mais notáveis santuários de relíquias, possuindo mais de quarenta
relicários (Cf. SOUSA, Ivo Carneiro de, A rainha D.Leonor (1458 – 1525). Poder,

69
Para o caso do nosso país não há ainda estudos que permitam conhecer o
movimento de coleccionismo e multiplicação das colecções de relíquias.
Socorremo-nos, pois, do trabalho referencial de William Christian Jr. que, inscrito
na antropologia histórica da Castela Moderna, nos informa que, até ao século XVI,
a maior parte das relíquias se achava na posse de mosteiros, catedrais e colegiadas,
instituições religiosas dotadas de maiores recursos e contactos com Roma. A partir
da época de quinhentos, o facto de a Espanha se ter transformado numa potência
imperial europeia com fundos tentáculos coloniais americanos, situação política
que importa cruzar com a prioridade missionária dos Jesuítas, eleitos pela Santa Sé
como «milícia espiritual em toda a Europa» em comunicação com a intensa
frequência com que os sacerdotes espanhóis se deslocavam a Roma constituem
factores políticos, eclesiásticos e religiosos concorrendo para a entrada de muitas
relíquias no mundo ibérico215. Tendo os Jesuítas, muitos deles espanhóis, chegado
a Portugal em 1540, por iniciativa de D. João III, compreende-se que este renovado
culto das relíquias, já anteriormente apreciado pela casa real,216 tenha conhecido
uma dimensão ainda considerável, congraçando vetustos cultos com novas
devoções a relicários nacionais e ultramarinos, reinventando-se santidades e
taumaturgias que trataram de reorganizar o processo de longa duração de difusão
de uma identidade católica de Portugal. É neste contexto geral que se devem
também inserir as relíquias de S. Gonçalo de Lagos que, como esclarecem os seus

Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, Lisboa, Fundação


Calouste Gulbenkian – Ministério da Ciência e do Ensino Superior, 2002, p. 732).
215
CHRISTIAN JR., William A.., Religiosida local en la España de Filipe II, Madrid,
Nerea, 1991, p. 166.
216
Exemplos conhecidos da devoção régia às relíquias são, entre outros, os casos de D.
Catarina (1502 – 75) e D. Isabel (1502 – 39); a importância da famosa relíquia da coroa de
espinhos da corte da rainha D Leonor (1458-1525); o enorme impacto social, urbano e
devocional da chegada promovida pela mesma rainha a Portugal do corpo de Santa Auta: «No
[dia 3 de Setembro], anno de 1517, entrou pela barra de Lisboa hum thezouro amis precioso, que
quantos tributou o Oriente ao Tejo: Este foi o corpo de Santa Auta , huma das doze mil Virgens,
que a Rainha Dona Leonor, mulher de El Rey D. João II mandara pedir ao Emperador
Maximiliano I seu primo como irmão: Venera-se o sagrado corpo na Cidade de Colonia, donde o
Emperador o remeteo para Portugal» (MARIA, Frei Francisco Santa, Anno Historico, Diário
Portuguêz, Noticia abreviada de pessoas grandes e cousas notaveis de Portugal, Lisboa, 1714,
tomo III, p. 9).

70
milagres, se tornaram especialmente activas entre finais do século XV e as
primeiras décadas do século XVIII.

1.1 – AS RELÍQUIAS DE FREI GONÇALO DE LAGOS

A veneração com honras de santidade de Frei Gonçalo, de acordo com o


testemunho dos textos hagiográficos, teve início pouco tempo após a sua morte217.
O cronista da Ordem faz estrategicamente coincidir o debutar do culto ao
agostinho com o momento em que celebravam ainda as suas exéquias, altura em
terá começado uma verdadeira perseguição popular das suas relíquias. Seguindo a
ordem textual devota destas hagiografias, parece mesmo ter sido a necessidade de
corresponder a essa canonização vox populi que justifica a opção então feita de
edificar para o corpo «santo» de Frei Gonçalo de Lagos uma sepultura separada da
dos outros religiosos, na capela-mor da igreja do convento218, espaço rapidamente
concorrido por numerosos fiéis em busca da intercepção do santo. A leitura da
descrição do milagres atrás apresentada, sublinha também o papel central da capela
funerária do agostinho, sendo a sua terra a principal relíquia que, começando por
ser recolhida directamente da sepultura térrea do convento velho, passa, depois, a
procurar-se em sepulcro de pedra feito especialmente para esse efeito. Esta nova
sepultura mantinha-se distinta das dos outros religiosos e situava-se «na capela
mor da Igreja do Conuento no chão do presbyterio do altar mor à parte do
Euangelho»219. Embora nenhum dos autores até aqui referidos o esclareça, a leitura

217
PURIFICAÇÃO, Frei António da, Chronica..., Parte II, f. 277v; B.G.U.C., Cód. n.º
436, f. 9.
218
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 277v. Refira-se que estes dados não
frequentam o texto de Frei Aleixo de Menezes.
219
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 277v. Embora João de França de Brito e
Frei Aleixo de Menezes também refiram os factos que envolvem esta procura de terra pelos
devotos, é com Frei António da Purificação, por ter frequentado estes textos e compulsado outra
documentação, que nos fornece dados mais correctos cronologicamente. Saliente-se, contudo,
que o cronista confunde frequentes vezes as palavras “sepultura” e “sepulcro”, utilizando-as

71
dos instrumentos de autenticação dos milagres leva-nos a admitir a hipótese de a
sepultura ter especializado uma tampa com um buraco por onde os devotos podiam
recolher aquela relíquia formada pela terra funerária220. Motivada por esta devoção
terá sido criada pela nobreza local de Torres Vedras uma confraria que tinha a seu
cargo a celebração de uma festa anual221 que as hagiografias, procurando ampliar a
dimensão e importância desta comemoração, assinalaram ser acompanhada da
realização de uma feira que, provavelmente, não corresponderia a mais que à
prática de pequenas transacções comerciais.
Os textos e documentos hagiográficos destacam ainda, em seguida, o grande
concurso de crentes que, em 1492, terá estado na origem de uma primeira
trasladação dos restos mortais de Frei Gonçalo, nessa altura depositados num
cofre, fechado com duas chaves, que foi colocado dentro de um arco feito para esse
efeito na mesma capela-mor222. O elevado número de devotos e a falta de espaço
no interior da igreja são os motivos apresentados pelo cronista agostinho para
justificar esta trasladação ordenada por Frei João da Madalena223, então Provincial
da Ordem:

«acontecia muytas vezes, que ao tempo da missa do dia não tinhão


os ministros logar liure pera celebrarem cõ a quietação, e decencia

indistintamente, sendo certo que a distinção é perceptível pelo contexto da narrativa ou


descrição em que estão inseridas.
220
Como ilustrativo refira-se que, no relato constante do instrumento do milagre em que
foi beneficiada Catarina Lopes, surge a expressão «metesse a mão dentro no buraco da
sepultura» (Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti., Proc. n.º
3335, f. 206)
221
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278. Desta confraria, compulsados
diversos arquivos onde seria plausível encontrar qualquer notícia sobre a sua existência, não
encontrámos, à excepção dos textos hagiográficos, nenhum vestígio.
222
PURIFICAÇÃO, Frei António da Purificação, ob. cit., f. 278.
223
Frei João da Madalena nasceu em 1449. Ingressou no Convento de Nossa Senhora da
Graça de Lisboa em 1458 e, depois de uma prolongada permanência em Florença e em Perugia,
onde estudou e chegou a leccionar, regressou a Portugal em Janeiro de 1480, sendo lente de
Teologia na Universidade desde 1486 até 1515, altura em que faleceu no Convento de Penafirme
(Cf. MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana Historica Critica e Cronnologica, Tomo
II, Lisboa, Ignacio Rodrigues, p. 685 – 686).

72
deuida. Pello que foy forçado tirarem-no fôra do presbyterio. E pera
mayor veneração sua o collocarão dentro de hum arco, que se fez no
lado da mesma capella, da propria parte do Euangelho, em hum rico
cofre fechado com duas chaues, das quaes tinha hũa o Prior, outra o
Sanchristão do Conuento»224.

Em 1518, a grande procura de terra da sepultura gonçalina por parte dos


devotos justificou que fosse construído um receptáculo para a sua solene recolha.
Assim, foi talhado um sepulcro de pedra com a imagem do santo esculpida na
tampa 225 que continha terra da sepultura inicial e onde, através de um buraco, os
devotos podiam introduzir os «pès, e braços enfremos»226 ou dela tirarem essa
relíquia mais popular. Concluía-se deste modo um processo de especialização
relicária, vazando o culto de S. Gonçalo de Lagos na organização de um «chão
santo», um espaço santuário especializado na procura e manipulação da terra que
se apresentava como o envólucro sacral dos prodígios do frade agostinho.
Não deixe de se referenciar também algumas contradições neste processo
devocional. Na trasladação das relíquias de S. Gonçalo não foi, contudo,
contemplada a mudança daquele sepulcro, retirado apenas mais tardiamente por
ordem de Frei Gaspar Cão, Bispo de S. Tomé, entre 1570 e 1572227. Nenhum dos
textos hagiográficos parece dar importância a esse facto. Somente Frei Manuel de
Figueiredo228 adianta como hipótese explicativa para esta aparente contradição a

224
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278.
225
Foi, segundo Purificação, a data inscrita neste sepulcro que levou Frei Jerónimo
Román a assinalar este ano como ano da morte de Frei Gonçalo. O engano seria detectado pelo
próprio depois da sua vinda ao nosso país, altura em varejou «os cartorios dos Conventos desta
Prouincia. Donde leuou do de Torres-Vedras hu a historia authentica da vida, & milagres deste
Bemauenturado», tendo corrigido o erro na «Centuria quinze» (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei
António da, ob. cit., f. 279).
226
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 278v - 279. Ver imagem apresentada
em anexo. Actualmente, como é bem visível na fotografia, o referido buraco encontra-se tapado
com cimento.
227
Purificação assinala este facto como tendo ocorrido «pelos annos de !570».
Assinalámos este espaço de dois anos uma vez que Frei Gaspar Cão morreu em 1572.
228
FIGUEIREDO, Frei Manuel de, ob. cit., p. 124.

73
possibilidade de, para além de descuido dos religiosos, não haver na igreja do
hospital de S. André espaço que pudesse, com dignidade, receber aquele
receptáculo, razão discutível porquanto os demais autores afirmam ter ficado
votado ao abandono, muito embora ressalvem o facto significativo de ter
continuado a ser frequentado pelo povo que nele recolhia terra como remédio para
vários males229. Poderá, pois, ter existido uma verdadeira concorrência devocional
entre um culto popular que continuava a dirigir-se ao espaço funerário medieval de
S. Gonçalo e os esforços quinhentistas tanto da Ordem como da cidade para,
apropriando este culto, lhe dar uma dimensão mais organizada, estruturada e
monumentalizada. De facto, depois dos religiosos agostinhos se mudarem para o
Hospital de Santo André, em 1544, o cofre e o sepulcro de pedra gonçalinos
permaneceram no convento velho até que, em 1559, o edifício começou a ser
demolido para que os seus materiais fossem aproveitados na construção da nova
igreja. Nessa altura, a 5 de Agosto, foi feita a trasladação do cofre que se
encontrava no arco da capela-mor:

«Correndo o anno de 1559. em que a Igreja delle se começou a


derrubar, antes que a destelhassem se tresladarão della pera o
hospital os veneraueis ossos do sancto Padre Fr. Gonçalo de Lagos
com grandes festas, pomposa procissaõ, missa cantada, e sermão;
para aqual solemnidade concorreo toda a Cleresia da villa, e do
Conuento de nossa Senhora da Graça de Lisboa muytos Religiosos,
com os quaes se achou presente o sancto varão Fr. Luis de
Montoya»230.

No relato que faz desta cerimónia, apoiado em memórias que não


especifica, Frei Manuel de Figueiredo esclarece que Frei Luís de Montoya cantou a

229
Cf. B.G.U.C. Cód. n.º 436, f. 9v; Frei António da Purificação, ob. cit., f. 281v; Frei
Pedro de Souza, ob. cit., pp. 64 – 65.
230
Frei António da Purificação, ob. cit., f. 280.

74
missa e Frei Tomé de Jesus disse sermão. A narrativa, emoldurada em requintes
literários inflamados pela devoção e propósitos da obra, denota a intenção de
complementar as qualidades ou virtudes dos celebrantes e do celebrado:

«E para que nesta solemnidade naõ houvesse lingua, que se naõ


inflamasse com o fogo do Espirito Santo, bradava a do beato Gonçalo
desde o sepulchro com os milagres; a do veneravel Montoya desde o
Altar com os Sacrifícios; e a do Veneravel Fr. Tomé desde o pulpito
com os louvores.»231

Nesta mudança das relíquias para o convento novo foi igualmente deslocada
para nova fundação uma imagem de Nossa Senhora das Neves232. Para além desta
associação ao culto mariano, assume particular importância no que diz respeito à
renovação da vitalidade do santuário o facto de ter sido acompanhada da concessão
pelo Arcebispo de Lisboa, D. Fernando, de quarenta dias de indulgências:

«Dom Fernando [...] Fazemos saber aos que este nosso Aluarà virem
como os Padres de Nossa Senhora da Graça desta cidade nos
enuiaraõ dizer, que queriaõ cõ muita solẽnidade mudar a Imagem de
Nossa Senhora, e o corpo de São Gonçalo de Lagos da Igreja velha
do Mosteiro de N. S. Da Graça de Torres-Vedras pera a Igreja de
Santo Andre da Gafaria, pedindonos para issso licença. E visto sua
deuoção, auemos por bem de lhe darmos. E por este concedemos
todos os perdẽs que em direito podemos, aos que se acharem
presentes quando se mudar a ditta imagẽ de nossa Senhora, e o
corpo do Bemauenturado S. Gonçalo como ditto he. E no dia, em
que se fizer a ditta festa de mudança, damos licença que se possa
dizer missa de todos os Sanctos em louuor de S. Gonçalo. [...] Dado

231
FIGUEIREDO, Frei Manuel de, ob. cit., p. 114
232
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 280

75
em Lisboa sob nosso sinal, e sello aos seis dias do mês de Iulho de
1559. Felipe Tauares a fez escreuer»233.

Da leitura da cópia deste alvará ressalta a preocupação, sem dúvida


resultado já da reforma em curso, de fazer uma associação entre os dois cultos, do
santo e mariano. Por outro lado, a inclusão deste documento no texto da crónica
visa a legitimação, quer pela hierarquia secular quer pelo próprio reformador, do
culto prestado ao religioso eremita, culto esse fundamental pela taumaturgia que
lhe era associada, fazendo confluir as ofertas piedosas dos devotos consagrando o
prestígio que um santo nacional conferia ao seu santuário e à sua Ordem religiosa.
Apesar da concessão de quarenta dias de indulgência pelo Arcebispo de
Lisboa, adverte o trabalho cronístico de Frei António da Purificação não ter sido
esta a primeira vez que foi celebrada missa em honra do santo. A celebração
litúrgica existia já desde o tempo da instituição da confraria e perdurou até à morte
de D. Sebastião (1578), altura em que aquela se extinguiu. Acrescenta ainda que,
ao contrário do indicado pelo documento que transcreve, a missa então celebrada
não foi a de todos os santos «mas do commum de hum confessor não Pontifice»,
atestando esta conclusão com as orações que encontrou no «liuro segundo dos
milagres deste Sancto às folhas vinte»234. A este argumento acrescenta ainda o
facto de a confraria ter ornamentos de cor verde que era a utilizada em Roma para
as festas dos confessores235.

233
PURIFIÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 279v - 280.
234
Ibidem, f. 280v.
235
Ibidem, f. 281. Apesar destas afirmções, o autor afirma mais à frente que durante
conversas que teve com religiosos que moraram no convento (provavelmente quando procedia a
inquirições e varejos para a elaboração da segunda parte da crónica, facto que aconteceu a partir
de 1633 e muito provavelmente não antes de 1640, ano das licenças da Chronologia Monastica
Lusitana, obra em que, como se viu, os dados biográficos eram parcos e pouco precisos),
nenhum se lembrava de ver celebrada outra missa que não fosse a de todos os santos (Cf. ob.cit.,
f. 281v). Desta informação retira-se ainda, permitindo desta forma esclarecer algumas das
imprecisões que se detectam ao longo da narrativa, algo acerca da economia da produção da
crónica: o autor deve ter frequentes vezes recorrido a testemunho de outros religiosos que
frequentaram o convento torrejano. Ter-se-á igualmente socorrido de algumas memórias
sucintas e dispersas como as que se encontram no Ms. n.º 673 da Livraria no I.A.N./ T.T.

76
Regressando à trasladação quinhentista do santo, retenha-se que este evento
confirma a necessidade de convocar em novo contexto sacral a devoção da
população, urgência que resultaria também da luta que o Senado camarário terá
movido aos religiosos por causa da posse das suas novas instalações e rendas que
lhe estavam afectas, confrontação que se já se havia verificado em 1544236. O
diferendo ganha novas proporções em 1557237, chegando mesmo a ocasionar
tumultos organizados pela Câmara que levaram à intervenção da Infanta D. Maria
que, a 12 de Julho desse ano, escreveu uma carta ao Senado lamentando a posição
assumida contra os religiosos agostinhos. Contudo, esta intervenção não terá sido
suficiente para sanar as contradições, esclarecendo o cronista outra missiva de
semelhante teor, agora escrita pela rainha D. Catarina em 2 de Agosto do mesmo
ano238.

236
O motivo desta oposição é esclarecido pelo cronista da seguinte forma: «O Prouedor,
e outros officiaes, que neste hospital tinhão a grandes proueitos, fizerão sua resistencia, e
protestos de nulidade, afim de se conseuarem na posse em que estauão de comerem salarios por
seruiço de pobres que não auia. E como a utilidade que daqui tirauão tocasse a muytos por rezão
das eleiçoẽs que cada anno se fazião em diuersas pessoas da terra, tomou a Camara, e pouo, á
sua conta molestarnos em tudo o q podia para q, visto não podernos tirar o hospital por via da
justiça, nós de opprimidos o deixassemos, e lho largassemos» (PURIFICAÇÃO, Frei António
da, ob. cit., f. 182v).
237
É neste contexto que se inscreve o traslado dos instrumentos de autenticação feitos
em 1553 a que já nos referimos (Cf. nota n.º 133) e os milagres da década de setenta associados
a João de França de Brito.
238
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 182v. Sobre este assunto é esclarecedor
o seguinte excerto «No anno de 1559. gouernando a ditta Prouincia [?] Rd Pe Fr. Fran.co de
Villa Franca confessor da Rainha Dona Catheria o s.to Pe Fr. Luis de Montoya confessor del
Rey Dom Sebastião, sendo ambos vivos, e vigairos gerais desta Prouincia tomãdo emparticular a
sua conta a protecção e amparo do Convº de Torres Vedras, alcansarão del Rey Dom João o 3º q
Deus tem em gloria unisse a gafaria de S. Lazaro ao ditto Conv/to de Torres Vedras, pois a auia
dado aos P.es do Carmo pª fazerem hum Conv/to na mesma villa; E o ditto Rei e S.or Dom João
o 3º impetrando a Bulla do Summo Pontifice Paulo 3º a anexou neste Conv.to de Torres Vedras,
sobre oq ouue tantos motins nesta villa contra os dittos Religiosos q não bastando o Respeito q
se deuia ao Sto Pe Montoya, varão de tantas virtudes e milagres, que em sua vida se conta q qdo
dizia missa depois de leuantar [?] o cobria e não aparecia o sto senão despois de consumir a
hostia. Chegarão os motins a tal extremo, q a Infanta Dona Maria , q era em o tal tempo snra da
ditta villa mandou carta de reprehensão aos Moradores della , estranhandolhe m.to o pouco
resp.to q tinhão aos Religiosos sendo q lhe devião ter m.to porque porque (palavras formais da

77
Na altura da trasladação de 1559, o sepulcro que continha a terra foi
deixado no convento velho, situação que, como se sugeriu, pode ressaltar de um
culto tradicionalmente ligado a esse espaço, mas que pode igualmente revelar uma
diminuição do concurso de devotos, ao ponto de não justificar a sua deslocação
para a nova fundação. Tal só aconteceria em 1570 por iniciativa do Bispo de S.
Tomé, Frei Gaspar Cão, ocorrendo então o milagre que, durante o transporte do
sepulcro, curou da peste um seu escravo. Naturalmente, o aparato em torno da
movimentação do sepulcro e da cura milagrosa representou um esforço para
promover as práticas devocionais em torno de uma relíquia que podia direccionar
para o santuário as romagens e oferendas dos devotos. Saliente-se aqui que, apesar
da mudança de convento, a construção do edifício definitivo foi um processo
longo. As obras do novo espaço religioso só se iniciaram a 7 de Setembro de
1578,239 ficando a igreja pronta em 1580, altura em que, a 18 de Dezembro, foi
feita a terceira trasladação tendo na cerimónia pregado Frei Agostinho da
Trindade240. Desta vez, contemplando as duas peças relicário – o cofre e o sepulcro
de pedra –, congraçavam-se na cerimónia os religiosos e os poderes civis locais
concluindo a resolução da contenda que havia envolvido o Senado241. Junto do
nicho então preparado para albergar o cofre das relíquias, mandou mesmo este
órgão municipal colocar a seguinte inscrição feita sobre tábua:

«Corpus Beati Gondiçali de Lagos multis, magni niraculis clari:


huius Monastery quondam Prioris: e huius oppidi post Beatissimam
Virginem Sanctam Marieam, insignis Patrom, anno 1580.»242

Infanta Dona Maria na mesma carta) os Padres tudo o que fazem he afim de aproveitarem nossas
Almas com confissoens e pregaçoens.» (I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º 673, f. 368).
239
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 183.
240
Ibidem, fls. 282 – 282v
241
Ibidem, f. 282v.
242
Ibidem, f. 282v – 283. Ressalta aqui o facto de Frei Gonçalo ser venerado como
padroeiro depois da Virgem.

78
Entre 1580 e 1634243, ano do primeiro milagre ao qual está associado Frei
António da Purificação, apenas há registo de um em 1583, altura em que por
conselho de João de França de Brito244, Agostinho Lopes conduziu um filho com
bexigas ao sepulcro gonçalino. Finalmente, em meados de Dezembro de 1640,
procurando associar o religioso cultuado à causa da Restauração e,
simultaneamente, criando um registo de culto posterior aos decretos de Urbano
VIII , foi feita uma quarta trasladação, se bem que desta vez não tenha o cronista
agostinho assinalado a participação de representantes dos poderes públicos ou
eclesiásticos, situação interrogando a memória social e política de um culto que
parecia dissolver-se:

«Quãdo chegado ia o memorauel, e ditoso anno da liberdade


Portugueza de 1640. em que tomou posse destes Reynos o
Serenissimo D. Ioam o quarto [...] quis o Sancto mostrar que era
Portuguez, mouendo o coração do Padre Prior [...] a que poucos dias
despois de sua acclamaçam [...] tresladasse como tresladou, as suas
Reliquias, e sepulcro pera a Capella Mòr»245.

Aliando desta forma o santo a essa «libertação» protagonizada pela nova


dinastia de Bragança, para a qual havia já apresentado uma genealogia peregrina, o
cronista agostiniano trata de oferecer aos seus devotos leitores um notável
elemento prestigiante para os Eremitas de Santo Agostinho e para o convento,
inscrevendo agora o santo numa nova ordem de «portugalidade». Ao mesmo
tempo, por ter desaparecido a inscrição sobre tábua que havia sido feita em 1580
pelo Senado, foi colocada, por iniciativa do prior do convento, outra com a esta
nova inscrição:

243
Os milagres do século XVII, com já foi referido, estão associados a Frei António da
Purificação que na qualidade de confessor aconselhava a invocação do santo.
244
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 398v-399.
245
Frei António da Purificação, ob. cit., f. 283.

79
«Sepultura do Sancto Padre Frei Gonçalo de Lagos Prior que foy
deste Conuento, que em vida floreceo em virtude, e em morte
resplãdeceo em milagres»246.

A propósito desta trasladação a crónica de Purificação afirma mesmo que


Frei Agostinho de Castro, Arcebispo de Braga, terá iniciado, apoiado
financeiramente pelos Senados de Lagos e de Torres Vedras, diligências com vista
à canonização de Frei Gonçalo. Terá mesmo chegado a ser concluído um
«summario da informaçam dos milagres, e fama de Sanctidade [...], e da posse
immorauel de sua veneraçam», mas a doença e morte do arcebispo interrompeu o
processo e a documentação existente, por incúria dos religiosos, perdeu-se247.
É, assim, mais do que notória a preocupação do grande cronista dos
Agostinhos em demonstrar a existência de um culto público e que a devoção
gonçalina chegava mesmo às esferas mais elevadas do alto clero de Portugal. Deste
modo, ao Arcebispo de Lisboa, D. Fernando, acrescenta ainda figuras como D.
Miguel de Castro e D. Rodrigo da Cunha, tendo aquele feito uma relevante oferta
de cera para a sepultura gonçalina, enquanto este manifestara a sua estranheza pelo
facto de a nobreza da terra e os priores do convento terem permitido que a
confraria dedicada a S. Gonçalo se tivesse extinguido, informação que não deixa
de sublinhar as dificuldades de circulação e imposição socias locais da devoção ao
santo agostinho.

246
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 284v.
247
Recorde-se que Frei Pedro Calvo, a que já nos referimos quando nos debruçámos
sobre os autores que Frei António da Purificação assinala terem já escrito sobre Frei Gonçalo,
também afirmou que no tempo de D. Jorge de Almeida, Arcebispo de Lisboa, se havia iniciado
semelhante diligência. Ora, durante o curso do Processo da Fama de Santidade, foram
compulsados os arquivos do Colégio do Pópulo em Braga e da Câmara Patriarcal de Lisboa.
Todavia, nenhum documento foi encontrado que fizesse referência às ditas diligências. (Cf.
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus, 3335, fls. 390-
390v).

80
1.2 - RELÍQUIAS EXISTENTES EM 1760 EM TORRES
VEDRAS E LAGOS

As diligências processuais que, em Torres Vedras e Lagos, se reuniram para


o processo de canonização de S. Gonçalo de Lagos têm a vantagem de fornecer
uma rigorosa descrição das relíquias gonçalinas existentes ainda em meados do
século XVIII. Em 12 de Janeiro de 1760, na presença de dois cirurgiões, dois
antiquários, um canteiro, um pedreiro e um pintor foram examinadas as relíquias
existentes no Convento de Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras, tendo sido
feito mesmo um desenho dos depósitos que as albergavam248. Uma arca249 que se
encontrava em nicho protegido por grades continha, envoltos num véu de seda
encarnada, diversos ossos250, um papel «de letra antiga» com a inscrição
«Reliquias de S. Gonçalo de Lagos» e duas moedas com a figura de D. João III251.
Terminado o exame, as relíquias foram depositadas de novo dentro da arca que se
decidiu guardar dentro de outra252. O sepulcro de pedra também foi examinado,253

248
Ver desenho em anexo.
249
Trata-se de uma arca de formato quadrangular com cerca de um palmo e três dedos
de altura por dois palmos e um quarto de largura, forrada de couro por fora e com uma
fechadura. Estava dentro de um nicho quadrangular, a catorze palmos do chão, protegida por um
gradeamento com sete varões de ferro na vertical e três na horizontal enquadrado num arco de
volta perfeita e ornado por cortinas de seda «que mostravão ter sido de cor encarnada , mas
muito antigas, e gastas pelo tempo» (Processo de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Proc. n.º 3336, fls. 287 – 287v). Feitas várias diligências para encontrar as três
chaves que permitiam a abertura da grade e a da arca resultaram infrutíferas, pelo que se
procedeu ao seu arrombamento (ob. cit., fls. 299v – 304).
250
«O crâneo e queixo superior, e inferior, seis vertebras do espinhaço; duas fibulas,
ambas as juras da composição das pernas; ambos os ossos das coxas; dous ossos das cias, ou
illios; dous docados de radios do antebraço; hum osso do tarso do pé; dous ossos do metacarpo
da mão; e outras muitas partes miudas, que por confundidas, e quebradas, se não podia ao certo
ajuizar a sua situação cada huma de per si» (Processo de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3336, fls. 289v – 290).
251
Processo de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong.Riti, Proc. n.º 3336,
fls. 289v-290
252
Tinha esta nova arca «três palmos de comprido, e meio de alto, de feitio abaulado
forrada por fora dee cetimencarnado, debruado com galão de seda amarelo com duas argolas nas
ilhargas douradas, e huma fechadura com três chaves, também a fechadura dourada». (Processo
de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3336, f. 291).

81
mas, no seu interior, da terra que noutros tempos era procurada pelos devotos para
obtenção dos favores divinos, não foi encontrado qualquer vestígio.254 Um facto
que, por si só, nos permite detectar uma diminuição do culto, assinalando ainda
uma alteração das práticas epocais devocionais em torno dos prodígios milagrosos
que, informadas por uma maior espiritualidade barroca setecentista, recorriam
menos aos poderes daqueles objectos sagrados e mais ao prestígio da imagem e da
palavra.
A relíquia existente em Lagos foi também identificada pelos cirurgiões
chamados a depor no processo relativo ao seu culto255, esclarecendo um fragmento
de osso do antebraço (um rádio), provavelmente parte da relíquia que haviam
observado ainda antes do terramoto de 1755256. Das conclusões do processo retira-
se que, originária de Torres Vedras, esta relíquia terá rumado para a cidade
algarvia ainda antes dos decretos de Urbano VIII relativos ao culto dos santos,
sendo depositada na Ermida de S. Pedro dos Mareantes257. Transformando-se esta

253
Situado no chão, contava cerca de três palmos e meio de largura por quatro de alto,
tinha na tampa esculpida a efígie de um religioso cujo hábito era cingido por um cinto de fivela.
No lado direito tinha um buraco (Processo de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong.
Riti, Proc. n.º 3336, f. 288v).
254
Processo de Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3336, f.
293.
255
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia de SãoGonçalo de Lagos
da Ordem de Santo Agostinhofeito nesta Cidade de Lagos Autoridade ordinária por Delegação
do Ex.mo, e R.mo Snor. Arcebispo do Reyno do Algarve, No Anno de 1760, Arq. Sec. do
Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3337.
256
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia..., Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3337, fls. 139 – 139v.
257
Frei António da Purificação quando refere a eleição de Frei Gonçalo como padroeiro
da vila feita pelo Senado de Torres Vedras em 1495, altura em que se colocou um terceiro
cadeado no cofre das relíquias, informa que aquele só foi aberto «dahi a muytos annos, para se
tirar hrelíquia, que à instancia da Camara de Lagos se mandou para aquela Cidade, e se collocou
na Igreja do Corpo Santo [junto de] Sam Pedro Gonçalves, invocado dos Mareantes»
(PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278v). Num memorial que, durante a tramitação
do processo, foi feito pelo Senado de Lagos e a seu requerimento integrado no processo, consta
que para obtenção da relíquia se deslocaram dois Senadores a Torres Vedras. Chegada a Lagos
foi recebia com «os maiores jubilos e festas pelo Bispo deste Reyno D. Fernando Coutinho» (Cf.
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquiade São Gonçalo de Lagos da Ordem
de Santo Agostinhofeito nesta Cidade de Lagos Autoridade ordinária por Delegação do Ex.mo,
e R.mo Snor. Arcebispo do Reyno do Algarve, No Anno de 1760, [Arq. Sec. do Vaticano, Cong.

82
no hospital de S. João de Deus 258, passou a relíquia para a posse de Francisco
Nunes da Silva, Vedor Geral, vendo-se, posteriormente, colocada, primeiro no
Sacrário da capela de Nossa Senhora do Rosário, depois no armário dos cálices na
sacristia da Igreja de Santa Maria até que, com o terramoto de 1755, ficou
sepultada entre os escombros. Cerca de cinco anos mais tarde, tomando o Senado
conhecimento das diligências processuais, ordenou que fosse procurada a relíquia
para que, entregue ao prior da Colegiada de Santa Maria, pudesse ser examinada
pelos peritos que testemunharam no processo259. Em qualquer dos casos, distingue-
se a acção decisiva dos poderes municipais na organização das relíquias
necessárias para o processo de beatificação.

2 – ROMARIAS E PEREGRINAÇÕES

Associadas ao culto dos santos e, em particular, ao das relíquias descobrem-


se as peregrinações que, na tradição cultual portuguesa, aparecem, desde cedo,
organizadas em torno dessa noção ainda hoje dominante de romaria. Prática
devocional que convoca transversalmente todos os estratos sociais, consiste, para
cumprimento de promessas, agradecimento, obtenção de protecção ou cura, em
deslocações ao santuário onde se encontram em exposição aqueles objectos ou
imagens sagradas, ultrapassando frequentes vezes a dimensão regional para impor
verdadeiros espaços de devoção nacionais e internacionais. Os santuários de
relíquias eram especialmente prezados pelas populações locais e regionais

Riti, Processus n.º 3337, f. 29. A dar-se crédito a este memorial terá a relíquia chegado a Lagos
entre 1502 e 1536.
258
O autor da Monografia de Lagos situa e edificação da ermida no ano de 1490 e a
fundação do hospital de S. João de Deus no ano de 1696 (Cf. Manoel João Paulo Rocha,
Monografia de Lagos, ed. fac-similada da de 1909, Faro, Algarve em Foco, 1991, p.152).
259
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia..., Arq. Sec. do Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3337, fls. 141v - 145. Da transferência da relíquia para a igreja de
Santa Maria o único testemunho que aponta para uma data é o do Padre Rodrigo Caetano Xavier
que afirmou lembrar-se de a ver nesse local desde 1740 (ob. cit., f. 50v).

83
portuguesas, descobrindo-se que, ao longo dos séculos XV e XVI, a maior parte
das peregrinações a estes espaços se relacionava com a busca de cura para as
grandes e pequenas doenças cujo socorro não era oferecido pelas diferentes
culturas medicinais epocais: paralisias, febres, inchaços, perda de fala, deficiências
físicas ou, entre tantas centenas de casos, acidentes mobilizavam multidões de
peregrinos a perseguir a intercessão dos santuários de relíquias. Estes romeiros
deslocavam-se ao santuário para, junto da relíquia, obter a intervenção divina ou
agradecer uma mercê obtida, fazendo-se frequentes vezes acompanhar de ofertas
de bens que, na sua maior parte, estão relacionados com o culto: das velas ao
pagamento de missas, dos objectos pessoais a essas belíssimas colecções de ex-
votos populares. A relíquia era manipulada de diferentes maneiras: somente
exibida e rezada, por vezes tocada, noutros casos passada por água que se dava a
beber, em muitos outros exemplos osculada, as relíquias difundiam uma crença
profundamente misteriosa, tão intercessora como curativa.
A partir da década de trinta da centúria de seiscentos, regista-se uma
progressiva incidência das dimensões penitencial e espiritual das peregrinações
religiosas portuguesas que, como sublinha Pedro Penteado, se explica pela maior
interferência do clero nestes santuários e itinerários de santidade, dificultando o
acesso directo às imagens e relíquias com vista a uma valoração da administração
dos sacramentos, sobretudo o da confissão e a procura de indulgências, fazendo
com que o reconhecimento e identificação do pecado, o arrependimento e a
obtenção do perdão fossem fundamentais para o contacto ou aproximação com
aqueles objectos sagrados260. Uma alteração que, de forma alguma, dissolveu a
devoção e prestígio dos objectos tradicionais ligados ao culto dos santos. Na
verdade, no caso de S. Gonçalo de Lagos verifica-se que, convocando o processo
setecentista destinado a demonstrar a existência do culto imemorial gonçalino, os
depoimentos depoimento das quarenta testemunhas arroladas continuam a destacar
a intercessão através de ofertas e votos se tornam tradicionais: membros em cera

260
PENTEADO, Pedro, «Peregrinações e Santuários», AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.
de), História Religiosa de Portugal, vol. 2, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000, p. 349.

84
ou em pão, fitas, ex-votos, tranças de cabelo e muitos outros objectos pessoais e da
cultura material popular mopbilizam-se para interferir com o poder taumaturlógico
do santo agostinho.261
As festas e celebrações religiosas, sobretudo as relacionadas com o santo
padroeiro, também constituíam motivo de peregrinação, assumindo especial
relevância as que estavam associadas a trasladações de relíquias. João de França de
Brito, na década de oitenta da centúria de quinhentos, assinala que, no século
anterior, se fazia uma romaria no dia em que se celebrava a morte de Frei
Gonçalo. A utilização da expressão «hum dos dias do mês doutubro» é reveladora
de que nem na memória do devoto era guardada uma recordação precisa de uma
prática já desaparecida como é pelo próprio assinalado262.
Num estilo que denuncia a frequência deste texto, bem como do manuscrito
de Frei Aleixo de Menezes263, Frei António da Purificação assinala a existência de
uma romaria anual no dia da morte de S. Gonçalo envolvendo pessoas do Algarve
e ofertório variado. Associada a esta data, embora bebendo a informação nos
mesmos textos, refere ainda o cronista a realização de «uma grande feira no
terreiro de fronte do mosteiro»264, associação entre sagrado e profano que, como
assinala Virgínia Rau, é frequente. Com efeito, o aparecimento de muitas feiras foi
favorecido pela existência de cerimónias religiosas, pois muitas vezes o peregrino
e o mercador são quase a mesma pessoa. Esclarece ainda a autora que «quase todas
as cartas de feira portuguesas marcam o prazo da feira em relação a uma festa da
Igreja», sublinhando que «muitas feiras tiveram o seu berço junto à capela de
algum orago particularmente venerado»265.

261
Processo do Culto Imemorial..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3336, fls. 38v - 249
262
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 391 – 391v.
263
B.G.U.C., cód n.º 436, f. 9.
264
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278.
265
RAU, Virgínia, Feiras Medievais Portuguesas. Subsídios para o seu Estudo, Lisboa,
Editorial Presença, 1983, pp. 33 – 34.

85
No entanto, no caso em análise, não se pode aceitar que a feira de Torres
Vedras deva a sua existência àquelas celebrações gonçalinas visto a sua fundação
datar de 1293, realizando-se de acordo com a respectiva carta de feira entre o
primeiro dia de Maio e o primeiro dia de Junho266, sendo este período alargado, em
1318, até ao primeiro dia de Julho267, alteração que se manteve até ao final da
Idade Média268. A comunicação entre as comemorações do santo agostinho e a
feira torrejana não colhem quaisquer provas documentais rigorosas, não assentam
na ordem da cronologia, antes sublinham mais uma dessas estratégias de ampliação
do biografado próprias da retórica hagiográfica barroca.

3 - DEVOÇÕES E DEVOCIONÁRIOS

A estas diferentes práticas cultuais dirigidas para S. Gonçalo de Lagos estão


associadas outras actividades de natureza devocional, geralmente especializadas
por aqueles que rogavam a proteção do santo ou tratavam da manter viva a fama do
seu culto. Em sinal de agradecimento pelos favores alcançados, era frequente a
romagem ao santuário para que, junto do altar das relíquias, fossem depositadas as
ofertas mais comuns – essas colecções referidas de velas, membros de cera ou pão,
ex-votos, fitas, medalhas, etc. –, ao mesmo tempo que os mais abastados
mandavam celebrar missas em louvor do santo.
Em meados do século XVII, regista-se a existência de dois legados pios
significativos dedicados a S. Gonçalo de Lagos. Em 1644, Maria Serrão Borges,
viúva de Bartolomeu Pacheco de Sande, oferece em vida, para esmola e obras pias,
uma tença anual de vinte e cinco mil reis a Frei Miguel da Luz, seu confessor,
valor que depois da sua morte passará a ser o dobro, para que por sua alma fossem
ditas dez missas por ano, gastando-se metade daquele valor. Depois de morto o

266
Ibidem, p. 180-181.
267
Ibidem, p. 182-183.
268
RODRIGUES, Ana Maria, Torres Vedras. A Vila e o Termo nos Finais da Idade
Média, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica, p.345.

86
confessor, dos cinquenta mil reis receberia Frei Francisco da Luz dez mil e o
restante seria cobrado pela Misericórdia para prover às mesmas despesas e
diligências, sendo que, depois de beatificado o santro agostinho, deveria ser
construida uma capela ornada com quatro castiçais de prata269. Em 1648, Jacinto
da Fonseca Moniz, morador em Torrre Vedras, determinou por testamento que dos
rendimentos de umas casas fosse retirado o bastante para que todos os sábados,
enquanto o santo estivesse no nicho, fossem acesas no convento, quatro velas de
dois arráteis, cabento ao sacristão a devolução dos cotos aos herdeiros para troca
por outras novas. Extinguir-se-ia esta obrigação apenas no caso de o santo ser
mudado para altar onde se dissesse missa, altura em que deixaria de pertencer aos
devotos esse tipo de prática por passar a ser da obrigação dos religiosos270.
Além dos beneficiados com os milagres e prodígios, os autores das
principais biografias hagiográficas e uma larga maioria das testemunhas dos
processos de beatificação destacam a existência de uma confraria gonçalina e o
patrocínio continuado dos Senados municipais de Torres Vedras e de Lagos.
Relativamente à erecção desta confraternidade, as duas principais fontes
hagiográficas apresentam uma ligeira diferença quanto à ocasião e motivo. Se o
Arcebispo de Goa, D. Aleixo de Menezes, assinala a sua criação depois da era de
1518271 - altura em que terá sido feito um sepulcro de pedra de onde os devotos
retiravam terra -, já o cronista oficial da ordem, Frei António da Purificação, em
diversos locais do seu texto hagiográfico sublinha três elementos que conduzem o
leitor ao ano de 1422: primeiro, teria sido a confraria a suportar as despesas da
primeira trasladação das relíquias feita precisamente nesse ano272; segundo,
durante a trasladação efectuada em 1559, o cronista afirma que se preservava um

269
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 220 – 223v.
270
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 218-218v
271
B.G.U.C., Cód. n.º 439, f. 9 - 9v. Como já referimos o texto deste autor é frequentado
pelas duas formas de datação, a de César e a de Cristo, sem que a tal, aparentemente,
correpondam rigorosamente os dois critérios.
272
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 287v.

87
tipo de culto que era costume prestar-se apenas ao santos canonizados «com
grande deuoção auia mais de cem anos»273; finalmente, depois de fazer coincidir
quase «tragicamente» a extinção da confraria com o ano da morte de
D.Sebastião,274 não deixa de informar que a sua actividade durou 150 anos275. Frei
António da Purificação, dada a sua condição de cronista oficial dos Eremitas de
Santo Agostinho, teve certamente acesso a um maior número de fontes
documentais que deveriam firmar uma análise mais apurada, conquanto, no que
toca à hagiografia gonçalina, à boa maneira da imitatio epocal, sejam constantes as
colagens mais do que íntimas ao texto de Frei Aleixo de Menezes.
Instituída pela «nobreza da terra»276, tudo leva a crer que se tratava de uma
confraria laica cuja função se prendia essencialmente com as práticas e despesas
do culto de S. Gonçalo277. Acerca do tema da sua extinção são reveladores no
plano simbólico e das estratégias hagiográficas os textos fundamentais de Frei
Aleixo de Menezes e o de Frei António da Purificação. Se o primeiro faz depender
a dissolução da confraria, bem como a retracção das manifestações devocionais ao
santo agostinho, da falta de autorização pontifícia do seu culto, uma condição que,
nos primeiros tempos, havia sido desrespeitada por ignorância ou simplicidade dos
devotos278, já o segundo cronista faz coincidir a extinção da experiência
confraternal com a morte de D. Sebastião, evento que assinala como um verdadeiro
desastre nacional com consequências sobrepujando o domínio do político,
estratégia narrativa especialmente adequada para, a partir da recordação da
Restauração, vincar, como se viu, a dimensão portuguesa do santo:

«Ià por este tẽpo [1580] não auia confraria do S[anto]. A qual se
começou a dsfazer cõ a infelice iornada, e morte de ElRey D.

273
Ibidem, f.280v.
274
Ibidem, f. 280v e f. 283.
275
Ibidem, f. 281.
276
Ibidem, f. 278.
277
Ibidem, f. 281.
278
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 9v.

88
Sebastião. Porque ficando desde então o Reyno sẽ gẽte, e sẽ
dinheiro pouoado de Viuuas, e orfãs, e banhado em lagrimas, foy
faltando pouco, e pouco quem cõtinuasse com as obrigaçoens, de
hũa confraria tão custosa: e assi veyo breuemente a se extinguir de
todo: confirmandose este desemparo com a noua ẽtrada do Rey
Castelhano Dom Fellipe, que por morte do Cardeal Rey Dom
Henrique no mesmo anno de 1580. se introduziu industriosamente
na sucessam destes Reynos»279.

Esta confraria, acerca da qual não se encontra qualquer alusão no texto de


João de França de Brito, ainda que desse facto não se possa afirmar a sua
inexistência, desempenha nos textos hagiográficos que temos vindo a estudar uma
função devocional e simbólica relevante perspectivada com aproveitamentos
diferentes pelos dois principais autores gonçalinos, servindo já para enaltecer um
culto que, desde a segunda metade do séc XVI, conhecia um refluxo social
indesmentível, já também para concretizar essa exornação da Restauração tão
conveniente nas estratégias de lusitanização de S. Gonçalo através das quais se
acreditava poder restaurar e ampliar o seu culto social. A inexistência de
documentação primária sobre o assunto – uma situação que não deixa de ser um
indicador significativo – não nos permite esclarecer rigorosamente se Frei António
da Purificação corrige cronologias e factos nas informações veiculadas pela obra
manuscrita de Frei Aleixo de Menezes ou, hipótese talvez muito mais verosímil, se
pretendeu ampliar a devoção da época cruzando-a, duplamente, com o tema do
desastre de Alcácer Quibir e a Restauração, também do culto gonçalino, que
assegurava novamente a «libertação» de Portugal. É evidente que, no plano das
estrtégias narrativas do hagiográfico, o texto de Purificação cola estreitamente o
(desastre do...) refluxo do culto gonçalino a essa tragédia de Alcácer Quibir,
batendo-se pela restauração do seu culto e popularidade em estreita comunicação
com essa outra libertação política concretizada com a Restauração de 1640.

279
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 283.

89
3.1 - ASSOCIAÇÃO AOS PODERES PÚBLICOS

Associado ao culto de S. Gonçalo descobrem-se também os interesses e


estratégias municipais dos poderes públicos das duas vilas de Torres Vedras e
Lagos. No caso da hoje cidade da Estremadura, a devoção política municipal
dirigida ao santo agostinho expressa-se elevadamente com a sua eleição para
padroeiro da vila, a 13 de Outubro de 1495, como mostra a certidão apresentada
em sede de processo de beatificação, publicada igualmente no trabalho cronístico
de Frei Pedro de Souza. Na altura desta opção de patronato religioso pelo Senado
camarário que, significativamente, viria a ficar na posse de uma terceira chave
então posta no cofre das relíquias280, passaram os vereadores a ser confrades, sendo
juíz confraternal o mais velho281. Se a presença do Senado constitui um reforço
para o prestígio local do santo, a dimensão dialéctica desta associação permite
também ao poder municipal alargar o seu poder simbólico em direcção tanto a
grupos sociais influentes como na dominação de espaços cultuais importantes.
Estas formas de apropriação de poderes simbólicos eram ainda mais urgentes
porque permitiam consolidar as redes clientelares que, servindo-se de confrarias,
misericórdias e outras instituições, consolidavam os poderes sociais das elites
locais cientes da relevância das alianças ou solidariedades políticas, sociais e
religiosas. A este respeito, a medievalista Maria Helena da Cruz Coelho considera
que, desde os finais do século XIV, altura em que a eleição para os cargos
municipais se começa a fazer de forma indirecta, os processos utilizados para a
centralização régia encontram ao nível local um equivalente na concentração do
poder em grupos elitários municipais282. Se, durante a segunda metade de
quatrocentos, entre os oficiais concelhios de Torres Vedras existe uma relação
equilibrada entre o número de cavaleiros e escudeiros face aos provenientes de

280
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 278.
281
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., pp. 56 – 57.
282
COELHO, Maria Helena da Cruz, «O poder na Idade Média: um relacionamento de
poderes», Vários, Poder Central, Poder Regional, Poder Local. Uma perspectiva hitórica,
Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 42.

90
outras categorias sociais, na centúria seguinte a presença de elementos da nobreza
é dominante283, facto que admite a hipótese de terem sido desenvolvidas estratégias
de tipo clientelar para manutenção dessa oligarquia, alargando-se do político e do
económico também ao social e ao religioso.
Quanto a Lagos, sabemos através da cronística oficial de Frei António da
Purificação que, embora não clarificando a cronologia, a Câmara local pediu ao
Senado municipal de Torres Vedras uma relíquia do santo agostinho que havia
nascido na cidade algarvia. Um memorial feito em 16 de Abril de 1760 pela
Câmara lacobrigense esclarece ter chegado a santa relíquia entre 1502 e 1536:

«O Senado da Camara [de Lagos] com excessiva diligencia enviou


dois Senadores procurar hũa Sagrada Reliquia, com que se
enobrecesse esta Cidade, foi esta conduzida de Torres Vedras a esta
Cidade com toda a decencia, e servindolhe de decoroza guarda seis
clerigos com sobrepelizes e lanternas, que alumiavão a Sagrada
Reliquia, erigindo-lhe para maior culto altares em todos os lugares,
que nos povos da iornada estavão destinados. Chegando a esta
Cidade foi recebida com os maiores jubilos e festas pelo Bispo deste
Reyno D. Fernando Coutinho, que a esperava acompanhado de
nuitas Dignidades e Conegos da sua Cathedral; Levantarãose pelas
ruas arcos em triunfo, e gloria do nosso Bemaventurado Patricio, e
com repetidas aclamaçoẽs foi levada para a Ermida de São Pedro
dos Mareantes desta Cidade honde se conservou athe o anno de
1695, tempo, em que recebendo alguas ruinas esta, e fazendose
dificultozo o seo reparo, a arrogou á sua iurisdicção o Snor. Rey D.
Pedro, e a mandou reedificar, estabelecendo nella o Hospital dos
militares dando a administração delle aos Religiozos de S. João de

283
RODRIGUES, Ana Maria, Torres Vedras. A Vila e o Termo nos finais da Idade
Média, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e
Tecnológica, 1996, pp. 552 – 553.

91
Deos, a quem a dita Ermida servio de Capella, sendo por esta cauza
removida, e levada a Sagrada Reliquia para a Igreja de Santa Maria
onde se colocou, e venerou sempre, continuando o concurso da
nobreza, e povo desta Cidade que no mesmo dia e anno em que se
recebeo iurarão a este prodigiosos varão por seo Padroeiro, e
Protector»284

Uma nova associação documentada entre os poderes públicos locais e a


restauração do culto gonçalino recupera-se, como se sugeriu, à roda de 1760,
período em que se procedeu ao exame «municipal» das relíquias existentes em
Torres Vedras e Lagos. Naquela cidade, ao tomar conhecimento das diligências
periciais efectuadas no convento, o vereador mais velho requereu aos juízes
delegados do processo que ficasse Senado na posse de umas das chaves do cofre
das relíquias285. No dia seguinte, a 13 de Janeiro, era perante os mesmos juízes
renovado o voto a que os seus antepassado se haviam obrigado em 1495286. Por sua
vez, em Lagos, os vereadores, quando, em 17 de Abril de 1760, entregaram aquele
memorial de culto, renovaram o antigo juramento devocional, prometendo a
edificação de uma capela na igreja de Santa Maria e a celebração anual de uma
cerimónia religiosa em que a Câmara seria sempre representada formalmente pelo
vereador mais velho287. Destaca-se, assim, que tanto num local como noutro, os
detentores da autoridade municipal perseguem uma propositada associação e
apropriação de elementos religiosos próprios do culto gonçalino, elevando quer o
seu prestígio social público, quer principalmente associando a bondade do poder
municipal a essa outra bondade maior da santidade.

284
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia..., Arq. Sec. Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3337, f. 29 – 29v.
285
Processo do Culto Imemorial..., Arq. Sec. Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3336,
f. 291v
286
Ibidem, fls. 304v – 307v.
287
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia..., Arq. Sec. Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3337, f. 30

92
IV PARTE

DA PERSONAGEM HISTÓRICA
À INVENÇÃO DA SANTIDADE

93
1 – AS FONTES

Quando a história e as ciências sociais procuram estudar a santidade a partir


dos finais da Idade Média europeia, uma das primeiras opções epistémicas
incontornáveis explica que não podemos «limitar-nos às personagens que
beneficiaram das honras da canonização»288. Encontramos com frequência uma
diferença entre a atitude da hierarquia e a dos fiéis, estes consagrando cultos, votos
e santidades que a eclesiologia procura várias vezes isolar e combater. A
hierarquia trata de tentar assegurar o monopólio da decisão da santidade através do
rigor selectivo dos complicados processos de canonização, contrastando com a
verdadeira popularidade que muitas figuras de «santos vivos» multiplicaram em
muitos espaços urbanos e rurais do mundo europeu medieval e moderno. O caso de
S. Gonçalo de Lagos é também um exemplo paradigmático desta tensão
permamente entre culto «popular» e apropriação e controlo eclesiásticos. Morto em
1422289, provavelmente com uma áurea popular de santidade, o santo agostinho
conhece uma renovação cultual que, a partir da segunda metade do século XVI,
organiza uma veneração local torrejana, mas com uma diomensão já firmadamente
eclesiológica atestada pelas sucessivas trasladações das relíquias realizadas em
1492, 1559, 1580 e 1640 até se encontrar o espaço religioso julgado adequado para
um santo ligado, por fim, à própria celebração religiosa da Restauração política.
Integrando-se claramente no contexto da “reconquista” tridentina, a
hagiografia gonçalina é tardia, essencialmente barroca, concorrendo para esse
movimento que, ao longo dos séculos XVI e XVII, procurou sedimentar uma
cultura e praxeologia de uma santidade portuguesa, estendendo-se da recuperação

288
André Vauchez, «O Santo», Jacques Le Goff (dir. de), O Homem Medieval, Lisboa,
Editorial Presença, 1989 ,p. 222.
289
Considera-se aqui a data fornecida por Frei António da Purificação, se bem que as
conclusões dos processos para a beatificação e canonização, dada a inexistência de outras fontes
para além dos escritos de diversos autores que ora seguiram aquela data, ora a que foi fornecida
por Frei Aleixo de Menezes, tenham considerado a possibilidade de ter ocorrido em 1445.
(B.G.U.C. Cód. 436, f. 8; Frei António da Purificação, ob. cit., II, f. 277; Processo do Culto...,
Arq. Sec. Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3336, f. 340).

94
de vetustos santos da antiga Lusitânia romana à divulgação de «novos»,
restaurados ou inventados a partir de memórias antigas, tardo-medievais, mais ou
menos populares e locais. A estes dois aspectos devemos ainda acrescentar a
preocupação mais especializada de geração de santos, agora portugueses, capazes
de elevar a história das diferentes ordens e institutos religiosos, esforço que se
alarga ao Eremitas de Santo Agostinho e ao investimento cronístico que desagua
na obra de Frei António da Purificação. Somem-se ainda factores locais
mobilizando elites e municípios para afirmarem a sua prioridade regional graças à
sua antiguidade e poder dos seus santuários. Em Torres Vedras, os finais do
período medieval são agitados pela competição entre novas observâncias e
experiências religiosas organizadas em torno dos franciscanos do Varatojo (1474)
e dos monges arrábidos do Barro (1570), acrescentando-se, a seguir, a mudança,
com a apropriação das respectivas rendas, do convento dos agostinhos para o
Hospital de Santo André (1544). Apesar de encontrarem um local mais
privilegiado, a demora na construção do edifício definitivo foi grande, tendo-se
iniciado apenas em 1578,290 prolongando-se por vários anos até receber o impulso
decisivo do próprio Frei Aleixo de Menezes durante o seu curto priorado (1588-
90).291 Esta instalação local de novas ordens e programas religiosos obriga a

290
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit, f. 183.
291
Relacionados com os bens e doações do convento terão estado na origem de conflitos
com um grupo encabeçado por João Gomes Rebelo. A intervenção régia levaria a que Gaspar de
Abreu Castelo Branco, juíz de fora, sanasse a contenda a favor dos religiosos. «No anno de
1588. sendo Prior do ditto Conu/to Dom Fr. Aleixo de Menezes q não so por seu sangue foi
illustre mas pelos lugares que tem, sendo Arcebispo de Goa Primas das Indias, e vicerey da
mesma India, Arcebispo de Braga, Primas das Espanhas e viceRey de Portugal e acabou
Presidente em Castella do Consº de estado em Portugal, sendo chamaado o Restaurador da fée
q.do o Apostolo São Thome auia pregado nas partes Orientais; e auista do grande exemplo q
nesta villa sendo Prior viueu; todo o pouo da villa como do termo lhe fez esmola de certo
dinheiro para aiuda das obras da Igreia, e certos homens se confederarão tambem contra o ditto
Prior, e mais religiosos fazendo assinar a outros homens papeis contra os dittos Religiosos afim
só de os dezacreditarem, uzando trapaças e emburulhadas para lhes tirarem a esmola q lhes
auião prometido chegãndo seus maos termos e ruins procedim.tos a tanto q elRey D. Felipe de
Castella q.do (intruso gouernaua Portugal) mandou por guiza sua ao Juis de Fora q antão seruia
o [?] Gaspar de Abreu Castelbranco q não consentisse que João Gomes Rabelo q era procurador
e cabeça dos ditos homens requeresse contra os Religiosos, mande por nulla a procuração q elles

95
frequentar os trabalhos cronísticos e hagiográficos barrocos, entre outros factores
mais complexos, também em função da luta por vezes culturalmente violenta pela
justificação da prioridade de espaços religiosos, dos seus santos, ideários e
instituições. Uma concorrência religiosa que a cronística religiosa barroca haveria
de exagerar e que não deixa de matizar a aparente tranquilidade com que se
edificam exemplos de santidade e se provam vetustos cultos oferecidos ao
consumo social e devocional público.
Compulsados vários arquivos e muitas colecções documentais, no estado
actual dos nossos conhecimentos sobre a história da vida de S. Gonçalo de Lagos
apenas sobreviveu uma única referência documental contemporânea do frade
agostinho em contrato de emprazamento celebrado entre o Convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa e um tal Diogo Lopez. Trata-se de documento datado
de 21 de Maio de 1404, cujo interesse histórico reside no facto de atestar que,
nesse ano Frei Gonçalo de Lagos, era o prior do convento:

«Emprazamento que faz este Convento a Diogo Lopez moedeiro e


sua molher Leonor Gomez [...] de huas casas mui danificadas na
freguesia de S. Vicente, por hua dobra Castelan cruzada d’ ouro.
Sendo Provincial Fr. Lourenço, e Prior Fr. Gonçalo de Lagos...»292

Confirmando um dos dados biográficos fornecidos por Frei António da


Purificação referente ao priorado gonçalino exercido no convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa, este pequeno excerto documental293 permite garantir
que Frei Gonçalo de Lagos foi uma personagem histórica, um frade agostinho com
alguma importância no seu tempo e na sua Ordem. O documento de emprazamento
permite ainda colmatar a lacuna documental assinalada pelo estudioso nosso
contemporâneo David Gutiérres, sublinhando a inexistência de referências nos

lhe auião feito p[ara] procurar contra os mesmos Religiosos.» ( I.A.N./T.T., Livraria, Ms. 673, f.
368-368v)
292
I.A.N./T.T., Livro 1 do Convento de N. Srª. da Graça de Lisboa, f. 162 v.
293
Frei António da Purificação, ob. cit., f. 271.

96
arquivos de Roma ao priorado de Frei Gonçalo294. Em rigor, exceptuando esta
simples referência quase episódica, da existência de Frei Gonçalo de Lagos tudo o
que se sabe foi resultado, sucessivamente, dos instrumentos de autenticação de
milagres feitos entre 1489 e 1510, da construção de hagiografias e crónicas
redigidas entre os últimos quarteis das centúrias de quinhentos e de setecentos,
mas sendo indiscutivelmente o grande monumento hagiográfico da sua vida e
santidade o texto fixado pelo labor cronístico de Frei António da Purificação, em
1656.
Por todos os hagiógrafos reconhecido como tendo sido o primeiro a
escrever sobre o religioso agostinho, o traslado295 de uma biografia e relato de
milagres atribuído a João de França de Brito é, como referimos, a mais antiga peça
historiográfica cujos sentidos fundamentais sublinham a intervenção de uma rede
familiar na expansão devocional e cultual numa altura em que estes estariam, se
não esquecidos, limitados ao espaço do santuário, fixando ainda a divulgação dos
prodígios e milagres das relíquias do santo, mas oferecendo um fundo
desconhecimento dos factos biográficos da vida gonçalina.
A cópia do texto manuscrito de Frei Aleixo de Menezes296 enviado da Índia
em 1604, tem sido apresentado pela historiografia especializada como sendo a
mais antiga biografia de S. Gonçalo de Lagos que subsistiu até nós. O seu autor
afirma ter-se baseado na tradição oral, frequentada durante o período em que foi
Prior do convento de Torres Vedras (1588-90), e em escritos anteriores muito
sumários. O facto de muitos desses textos não terem sobrevivido, não permite que
sejam definidos os limites entre a tradição oral e a certeza documental, fronteiras
muitas vezes abertas às indagações mais fantasiosas. Ficamos, pois, sem saber se
as fontes alegadas pelo Arcebispo de Goa conteriam matéria semelhante à
frequentada por esta hagiografia que, claramente, encontraremos plasmada nas

294
GUTIÉRRES, David, Los Agustinos en la edad media. 1357 – 1517, Roma, Instituto
Historicum Ordinis Fratum S. Augustini, 1977, p. 130.
295
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 391 – 399.
296
B.G.U.C., Cód. 436.

97
produções posteriores. De uma forma ou de outra, uma primeira leitura da
expressão utilizada por Frei Aleixo de Menezes declarando que a vida de S.
Gonçalo se achava «taõ curta e mal escrita ẽ liuro [...] no Conuento de Torres
Vedras»297, faz supor um conjunto escasso de informações, pelo que, aliado à falta
de documentação e à pouca informação biográfica fornecida por outros autores,
somos levados a admitir como plausível a possibilidade de os chamados
testemunhos por ouvir dizer terem sido frequentemente convocados por Frei
Aleixo de Menezes sempre que se tornava indispensável alimentar uma hagiografia
longe da precaridade documental. Uma espécie de estratégia de ocultação
característica da hagiografia e da cronística religiosas barrocas, compondo os
lugares vazios, os hiatos e as ignorâncias com inventadas tradições orais.
O original deste códice é uma espécie de segunda edição desse outro
entregue a Frei Jerónimo Román, relação que o Arcebispo de Goa temia poder
perder-se298, mobilizando-o quase de memória durante a sua estada em Goa. De
qualquer modo, existe uma filiação clara de hereditariedade entre o texto mais
antigo, atribuído a João de França de Brito, e as hagiografias de Menezes e
Purificação. Com efeito, a tradição mais vetusta define já o corpus de atributos
pessoais do santo – a humildade, a caridade, a pregação e a castidade – que os
textos de Frei Aleixo de Menezes e de Frei António da Purificação tratarão de
ampliar, ultrapassando a sua dimensão tópica. O mesmo acontece, como se verá,
quanto à naturalidade e origem social de S. Gonçalo, se bem que é notório um
desconhecimento do seu percurso religioso e uma grande incerteza quanto à data
da sua morte.
Apesar de os fundos do Convento de Nossa Senhora da Graça se terem
perdido após a acção legislativa de António Augusto de Aguiar que, com a
extinção das ordens religiosas, viu perpetuada essa alcunha de “mata frades”, os
biógrafos gonçalinos são unânimes na acusação aos religiosos da época de falta de

297
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 2v. Provavelmente o autor referia-se ao texto de João de
França de Brito.
298
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f . 2.

98
cuidado na preservação dos documentos respeitantes à história da ordem. Frei
António da Purificação, no «Prologo» da sua Chronica chega mesmo a apresentar
um historial de desvios e perdas pelas quais teriam sido responsáveis Frei Egidio
Viterbiense que, Geral da Ordem, em 1512, mandou recolher documentos da
Província de Portugal com vista à elaboração de uma Crónica Geral que nunca
chegou a ser feita; no ano de 1553, por ordem do Geral Frei Cristóvão Patavino,
procedeu-se a idêntica recolha que teve como fruto « hum breue index, a que seu
author Dom Fr. Ioseph Pamphilo chama Chronica da ordẽ de Sancto Agostinho, e
taõ sucinto que naõ ocupa mais, que 36. folhas de papel»299. Muitas foram também
as perdas resultantes de selectivas pesquisas de vários religiosos que, por ordem
dos seus superiores, recolhiam documentos conventuais para escrever memórias
gerais e locais. De entre esses religiosos, destaca-se Frei João de São José que terá
fornecido vários documentos das casas e arquivos dos agostinhos portugueses a
Frei Jerónimo Román300 que, durante as suas estadas no nosso país, recolheu e
levou consigo diverso material com interesse para a história da ordem que, refere o
nosso cronista, provavelmente se terá perdido:

«No arquiuo do Conuento de Torres Vedras achei estes annos atraz


hum [documento] assinado deste Padre, em que se obrigaua a
restituirlhe hũs papeis de importancia dentro de certo tempo; mas
elles atê hoje não tornarão. Nem elle nas suas obras chegou a fazer
menção da menor parte, do que nelles se continha»301.

Frei Luís dos Anjos, autor de um devoto Jardim de Portugal, também


revolveu os cartórios dos conventos em busca de fontes que alimentassem uma
crónica geral da ordem que não chegou a ser concluída, pois com a sua morte

299
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., I, f. 19v.
300
Ibidem, f. 19v.
301
Ibidem, f. 20.

99
«se perdeo muita parte de seus escritos, e dos papeis e notados, que
com grande trabalho, e despezas tinha junto, e colhido das mais das
Prouincias de nossa Religião. A causa foy em parte a muita
humidade do lugar, em que forão depositadas, e tambem a
indiscreta curiosidade de algũs, que por lerem o que melhor lhes
parecia, os esperdiçarão» 302.

Esta delapidação – como diríamos hoje – do património documental da


província portuguesa dos Eremitas de Santo Agostinho não terá ficado por aqui.
Em 1632, Frei Agostinho de S. Nicolau levou para a Andaluzia, sobretudo do
colégio de Braga, onde se encontravam numerosos escritos de Frei Agostinho de
Jesus, várias memórias para serem entregues a Frei Pedro del Campo com vista à
publicação de uma crónica geral. Contudo, a viagem de regresso, feita em pleno
Inverno, fez com que a maior parte da documentação ficasse destruída, pelo que os
poucos volumes chegados ao seu destino eram de somenos importância, sendo
devolvidos cerca de dois anos mais tarde303. Neste contexto, parece de destacar o
sucesso documental raro do próprio Frei Aleixo de Menezes, dele resultando

«hum tratado, que fez da antiguidade da nossa Ordem. E tambem


eeste tratado senão imprimio, pelas muytass, e grãdes occupaçoẽs de
seu Author. Cõtudo não deixou de todo de se lograr tão precioso
trabalho; porque vendose depois Arcebispo em Madrid, com a
Presidencia do Cõselho Real deste Reyno, mais impossibilitado,
pera lhe pôr as ultimas maõs, o entrregou ao P. M. Fr. João Marquez
Cathedratico de Salamãca, o qual delle tirou a mayor parte, do que
diz no seu doutissimo liuro da origem de nossa Religião, como se vê

302
Ibidem, f. 20.
303
Ibidem, f. 20v.

100
cõferindo com elle hũ traslado, ou original, que tenho em meu poder
da letra do mesmo Arcebispo»304

A isto acrescente-se um incêndio que, em meados do século, lavrou na


livraria e cartório do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa que era então
cabeça de província, destruindo parte fundamental do arquivo e história
documental dos agostinhos portugueses.
Se, como se referiu, o texto atribuido a João de França de Brito revela
grandes debilidades biográficas, já o mesmo não se passa com o trabalho de Frei
Aleixo de Menezes. Além do percurso de vida da juventude até à entrada em
religião cruzado com o relato de alguns milagres, o epicentro da narrativa destina-
se a transmitir ao leitor o retrato recheado de qualidades pessoais e de uma
espiritualidade gonçalina que, por estar já informada de elementos modernos, é
sem dúvida uma projecção do próprio autor. O facto de se registar alguma omissão
de elementos cronológicos ou do percurso religioso, poderá ser explicado pelas
circunstâncias em que o autor, como se refriu, elaborou esta “segunda edição”,
inventando e preenchendo de memória as etapas e eventos marcantes da vida de S.
Gonçalo de Lagos. A seguir, Frei António da Purificação, por ter tido acesso a um
volume superior de fontes, fornece-nos mais elementos biográficos acerca do santo
agostinho. Num estilo marcadamente barroco, recompõe e redimensiona o retrato
exemplar edificado pelo Arcebispo de Goa para, desta forma, elevar as qualidades
e notoriedade do biografado. Sigamos entre retóricas barrocas e inflamadas
exemplaridades este itinerário biográfico da hagiografia gonçalina.

2 – BIOGRAFIA E ESPIRITUALIDADE

Natural de Lagos, desconhecem os seus biógrafos a data de nascimento305 e


a genealogia de Frei Gonçalo, desconhecimento que não impede situá-la num

304
Ibidem, f. 20.

101
estrato socialmente humilde, condição ultrapassada pela grande nobreza de
costumes permitindo que ao jovem fosse ministrada uma educação exemplar
possibilitando-lhe até no campo das letras o domínio da língua latina:

«criaraõ seu filho com grande zelo, e cuidado, para que saisse muy
perfeito em todo o genero de virtudes, e como o mandassem aprẽder
as artes, q na primeira idade se costumaõ estudar, sahio nellas
consumado, e principalmente na de escreuer, e na noticia da lingua
Latina»306

Desde tenra idade, afastado dos perigos do século e do convívio com outros
indivíduos da mesma idade, entregava-se o jovem Gonçalo a exercícios espirituais
e penitenciais que anunciavam já uma propensão para ingressar na vida religiosa:

«Foy crecẽdo o moço em idade, e juntamente em temor a Deos , e


piedade Christãa: e particularmente resplandecia em humildade de
coração, pela natural pureza,e singeleza, de que o senhor o dotàra
[...]. Não sofria o inimigo do genero humano como no inocẽte moço
taõ bõs principios; e adiuinhando o fim sancto, a que o leuauão,
solicitou outros moços da sua idade, a que com pratticas peruersas,

305
Depois de concluídos os processos que conduziram à beatificação, em 1778, Frei
Pedro de Souza, fornece a «era de 1360» como ano do seu nascimento e a Igreja de Santa Maria
como local do seu baptismo. A isto acrescenta ainda que foi morador na Rua de Santa Bárbara.
O ano de nascimento foi retirado das peças testemunhais do Processo da Fama de Santidade...,
altura em que surgem pela primeira vez e sempre com grande imprecisão poi em todos os casos
as expressões utilizadas são «pelos anos de... » ou outras similares (Cf. Frei Pedro de Souza.,
ob. cit., f. 2; Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 49 – 185v ). Os restantes dados foram colhidos das conclusões do Processo da Fama
de Santidade e Culto... feito em Lagos (Cf. Arq. Sec Vaticano, Cong. Riti, Proc. n.º 3337, f 142)
Iniciados em 1759, os referidos processos viriam a ser concluídos no ano seguinte.
Sobre este assunto veja-se o capítulo relativo à beatificação. Todavia assinale-se que o atraso no
envio para Roma, cerca de catorze anos depois, explica o atraso da apreciação pela Sagrada
Congragação dos Ritos e a autorização de Pio VI em 27 de Maio de 1778.
306
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., II, f. 267v.

102
conuersaçoes, e trattos deshonestos o diuertissem dos sanctos
exercicios de virtude, em que se ocupaua [...] abriu o sancto as
[portas] de seu coração a Deus , pedindolhe com aseruoradas
oraçoẽs remedio, e forças para vencer os inimigos de sua alma, que
tanto o cõbatião. E preseruerando sem intermissaõ em continuas
oraçoes ao Ceo, que lhe valesse, acrecentando duras penitencias,
soube com a diuina graça conseruar por então, e em todo o discurso
da sua vida, a limpeza, e pureza d’alma, que no baptismo
recebera»307.

Frei Pedro de Sousa, conciliando expressões que frequentam os textos de


Frei Aleixo de Menezes e de Frei António da Purificação, vai ainda mais longe na
descrição pormenorizada destes rigores ascético-místicos:

«armando-se contra si mesmo com rigorosas disciplinas, e asperos


cilicios; negando o sustento ao corpo [...]; mortificando-o com
apertados, e contínuos jejuns; fortalecendo a alma com contínua
contemplação»308

Desta precocidade traçaram os biógrafos barrocos uma vocação que é


apresentada como determinação pessoal motivada pela necessidade de afastamento
do século:

«Porem entendendo quam difficultosa empresa tomaua para quem


viue no mundo, receoso de si mesmo, como prudente assentou
consigo recolherse em hua Religião, aonde liure dos embaraços, e
perturbaçoẽs seculares, pudesse mais seguramete ir auante no
caminho das virtudes. Mas lembrado do exemplo de Christo [...]

307
Ibidem, fls. 267v-268.
308
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 5.

103
quis primeiro fazer a experiencia de suas forças, para ver se poderia
depois de frade com as dificuldades, e rigores da vida Religiosa. E
assi se começou a exercitar de nouo em obras mais subidas de
virtudes, dando-se com mais afectos, e frequencia a jejuns, oraçoes,
e disciplinas»309

A entrada na vida religiosa, informa o cronista seiscentista, terá ocorrido


pelos anos de 1380310. A pretexto de uma deslocação que os familiares fizeram a
Lisboa, aproveitou o mancebo para tomar um primeiro contacto com diversas
ordens, acabando por optar pela de S. Agostinho, ingressando no Convento de
Nossa Senhora da Graça311. Dotado de significativas virtudes rapidamente se
tornou digno de ascender ao priorado de diversas casas. Se o autor torreense das
primeiras memórias, João de França de Brito, informa só que foi prior de casas
ilustres312, Frei Aleixo de Menezes, embora assinale os priorados dos conventos de
Santarém e Lisboa, apenas descreve o zelo do exercício do cargo no de Torres
Vedras, circunstância certamente relacionada com o facto de ele próprio lá ter
exercido o mesmo cargo entre 1588 e 1590313. Frei Duarte Pacheco, que, à boa
maneira da época, escreveu colado ao texto do Arcebispo de Goa, não introduz
qualquer dado novo, pelo que, a maior parte dos notícias biográficas, fixam-se com
esse trabalho do cronista que, em 1633, foi incumbido de fazer a história da ordem.

309
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 268
310
Ibidem, f. 269.
311
B.G.U.C., Cód. 436, f. 3v; PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 268-268v.
312
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 392.
313
Apesar de o ter sido também no convento de Lisboa entre 1592 e 1595, nada refere
sobre a passagem de Frei Gonçalo por aquela casa. Esta omissão, se por um lado poderá reforçar
a hipótese por nós avançada de um significativo peso da tradição oral no texto do autor, por
outro conduz-nos à ideia de que com Frei António da Purificação não serão raros elementos de
invenção hagiográfica. Este autor, como adiante veremos assinala neste priorado uma acção
significativa e reformadora de Frei Gonçalo. Ora, tendo Frei Aleixo de Menezes sido prior da
mesma casa, não seria de esperar que um tão relevante desempenho do seu antecessor constasse
nas suas memórias?

104
Assim, as informações recordam que o primeiro convento em que S.
Gonçalo foi Prior teria sido o de S. Lourenço, na Lourinhã, cerca do ano de
1394314. Relativamente a este período Frei Manuel Figueiredo315 e Frei Pedro de
Sousa316 demarcam a cronologia do priorado gonçalino entre aquele ano e o de
1396, acrescentando este autor que as memórias deste convento se perderam em
1555 com a sua extinção inscrita na reforma de Frei Luis de Montoya317.
Em 1404, encontramos o nosso santo no exercício do mesmo cargo de prior
no Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa318. Com base no facto de
muitos dos priores do convento terem sido também Vigários Gerais, Frei António
da Purificação presume que, durante o exercício deste cargo, Frei Gonçalo também
o terá sido. Por isso, atribui ao seu labor na vigararia geral a responsabilidade da
aplicação na província agostinha de Portugal do ordenado no Capítulo Geral da
Ordem de 1404 acerca da cerimónia da genuflexão «quãdo no hymno Te Deum
laudamus, se diz o verso Te ergo quaesumus», assim elevando S. Gonçalo de
Lagos como Reformador da Província.
Entre 1404 e 1408, data em que inicia o exercício de semelhantes funções
no convento dos agostinhos de Santarém, não temos qualquer dado que permita
saber se permaneceu ou não na cabeça do reino. Na casa escalabitana terá
aumentado, pela aquisição de uma herdade em 1409, o património do convento319,
facto também assinalado por Frei Aleixo de Menezes a propósito do milagre que

314
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 271. O Cód. n.º 436 da B.G.U.C. não
refere este priorado.
315
FIGUEIREDO, ob. cit., pp. 34-35.
316
SOUZA, Frei Pedro de, pp. 19-20.
317
SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., p. 34. (Cf. PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit.,
f. 271).
318
I.A.N./T.T., Livro 1 do Convento de N. Srª. Da Graça de Lisboa, f. 162 v; B.G.U.C.,
Cód. n.º 436. Purificação aponta como fonte para o priorado do Convento de Nossa Senhora da
Graça de Lisboa umas escrituras datadas de 1404 assinadas por Frei Gonçalo (Cf.
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 271). Dessas escrituras apenas conseguimos
encontrar, como acima assinalámos, a que se encontra no Livro 1 do Convento de Nossa
Senhora da Graça de Lisboa, folha 162 v, depositado no I.A.N./T.T.
319
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 271v; FIGUEIREDO, Frei Manuel de,
ob. cit., p. 41; SOUZA, Frei Pedro de, ob. cit., pp. 22-23.

105
envolve a escritura de doação320. Finalmente, frei Gonçalo assume, desde 1412, o
priorado do Convento de Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras, cargo que
ocupará até à sua morte apontada, sem unanimidade, em 15 de Outubro de 1422.
A forma como dirigiu estes conventos é sobejamente utilizada pelos seus
biógrafos para justificar uma caracterização recheada de virtudes, bem como para
registar alguns dos prodígios que lhe são associadas. Embora o primitivo biógrafo
torreense tenha assinalado de forma sumária a humildade que marcou o exercício
deste cargo321, caberia ao Arcebispo de Goa322 e, numa redacção mais cuidada, ao
cronista da ordem, recorrendo mesmo a uma comparação tópica com a figura de
Cristo, informar que Frei Gonçalo se encarregava de todo o tipo de tarefas
humildes. De todas, as mais evidenciadas eram as que se relacionavam com
práticas caritativas e piedosas quase levadas ao extremo, como é ilustrado com a
sua dedicação permanente aos doentes:

«Lembrandose do que Christo nosso Redmptor dissera a seus


discipulos, que não viera ao mundo, sendo senhor, e Rey delle, a ser
seruido; senão a seruir, todos os officios baixos, e humildes do
Conuento fazia por si, sendo muytas vezes cosinheiro, e porteiro, e
sempre enfermeiro, pela grande charidade que tinha com os doentes,
e compaixão de suas enfermidades. Elle lhe fazia as camas, e os
alimpaua, e seruia em tudo com alegre, e humilde rosto. Elle
aquentaua a agua pera lauar os pès aos hospedes quando vinhão de
fôra, e lhos lauaua. Elle concertaua as cellas; elle varria as casas, e
alimpaua as officinas do Conuento, e seruia a todos em tudo o que
as forças do seu cançado corpo podião chegar [...]» 323.

320
B.G.U.C., Cód. N.º 436, f. 5v.
321
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 392.
322
B.G.U.C., Cód. N.º 436, f. 4v.
323
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 271v.

106
A estas qualidades são acrescentadas as que ilustram a humildade com que
pedia esmola,

«tomando os alforges às costas, e pedindo nas terras em que estaua,


e nos lugares visinhos. [...] O que lhe dauão de esmola recebia cõ
hũa humildade profundissima, tendose por indigno de receber ainda
aquelle pequeno bem. E com tanta singeleza, e alegria festejaua os
pedaços de paõ, que com muyto poucos delles se vinha às vezes pera
o Mosteiro tão cõtẽte, como se trouxera todas as riquezas do
Mundo»324

Se bem que, com a intenção de fazer sobressair um reconhecimento dos


méritos do prior por parte de uma autoridade do clero secular, a humildade é
também exemplificada com a descrição dos preparativos para o Capítulo Provincial
de 1413 que, elegendo Frei Agostinho, contou com um excepcional apoio por parte
do Arcebispo de Lisboa325:

«Vendo elle a pobreza da casa, e a falta de, que tinha de tudo o


necessário pera a sustentação dos religiosos que auião de ir a
Capitulo: foyse a Lisboa a pedir pera isso esmola ao Arcebispo [...]
E mandando o Arcebispo, que lhe dessem liberalmente tudo o que
elle quisesse, e pedisse: contentouse o seruo de Deos com os pães
que pode leuar nos alforges, que trasia às costas, e encheo hũa
pequena almotolia de azeite, e hũa borracha de vinho, cousas todas
com que elle podia caminhar. E [...] se voltou a pera Torres Vedras a

324
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 272. João de França de Brito (apud
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3335, f.
392) e Frei Aleixo de Menezes (ob. cit. f. 4v) com graus de relevância semelhantes aos dos
casos já referidos em comparações anteriores também assinalam estes factos.
325
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 5; Frei António da Purificação, ob.cit., f. 272. Por se tratar
de um mero ilustrativo , não se transcreve a narrativa de Purificação que aliás é uma colagem à
de Frei Aleixo de Menezes.

107
pè [...] muyto alegre, e contente [...] Mas o Arcebispo, q de muytos
annos o reuerenciava, e estimaua, como sua santidade merecia,
pasmado de ver um espirito tam humilde , e singello, q empregando
os desejos só nos bens do Ceo, com tam pouco dos da terra se
satisfazia, deixouo leuar seus pobres alforges pela reuerencia que
lhe tinha, e por não molestar sua singeleza. Mas mandou apos delle
muytas azemolas carregadas de paõ, vinho, carnes, pescado, azeite,
e todas as mais cousas necessarias pera o Capitulo»326

A par destas qualidades e do zelo que lhe é apontado na imposição aos


religiosos dos votos de pobreza e demais observâncias dos princípios regrais, Frei
Gonçalo terá sido igualmente um bom gestor do património das casas por onde
passou. No convento da Lourinhã adquiriu algumas herdades que, depois da sua
extinção, no tempo de Frei Luís de Montoya, em 1555, passaram a ser propriedade
do convento de Torres Vedras327. No de Santarém anexou ao convento a herdade
da Ocharia.328
Por fim, a data da morte de S. Gonçalo de Lagos aparece envolta numa
nebulosa incerteza que, só com Frei António da Purificação, parece desvanecer-se,
329
muito embora algumas das testemunhas do Processo da Fama de Santidade não
sigam todas a mesma informação cronológica, acompanhando quer a data indicada
por Frei Aleixo de Menezes, quer a definida por aquele cronista. É com Frei
Jerónimo Román330 que, pela primeira vez, encontramos uma datação mais
redonda. Contudo, o ano de 1519 apontado por este cronista mais não era que o

326
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 272.
327
Ibidem, fls. 270v - 271.
328
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 5v ; PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f.271v.
329
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong Riti, Processus n.º
3335, fls. 49 – 185v.
330
ROMAN, Fray Hieronymo, Chronica de la orden de los Ermitanos del Glorioso
Padre Sancto Augustin, Diuidida en Doze Cẽnturias, Salamanca, en Casa de Ioan Baptista de
Terra Noua, 1569, f. 105.[B.N.: RES 2615 V.] O autor corrigiria mais tarde, em texto que ficou
manuscrito, esta data para 1422.

108
que se encontrava na sepultura do santo existente no convento de Torres Vedras,
correspondendo não ao ano da sua morte, mas sim ao da feitura da sua renovada
campa fúnebre331. Cerca de nove anos mais tarde, Frei João de São José,
supostamente na posse de numerosos documentos e colaborador de Román, quando
na sua Corografia refere o nosso religioso, fá-lo de uma forma intemporal que
parece denotar fundo desconhecimento.
Depois de João de França de Brito assinalar que, relativamente à altura em
que escrevia, terem ocorrido «cento e vinte anos pouco mais ou menos» em
meados de Outubro pois em tempos já passados se realizara uma romaria nessa
época do mês332, caberia, menos de uma década depois, a Frei Aleixo de Menezes,
recheando de abundantes detalhes a vida e morte de Frei Gonçalo, situar no início
daquele mês, «na era de 1445», a grave doença que no dia quinze poria termo à
vida do beato agostinho333. Frei António da Purificação fixaria o início da doença
no dia 2 de Outubro do ano de 1422 e a morte treze dias depois. Tal como em Frei
Aleixo de Menezes, a morte é aqui encarada como uma recompensa, podendo
mesmo afirmar-se que estas hagiografias nos oferecem uma paideia da morte:

«E entendendo ser aquella a vltima enfermidade, alegrauase seu


espirito de ver chegada a hora, para que tantos annos se auia
aparelhado. [...] Vendose pois o seruo de Deos neste trãse, pedio, e
recebeo com muyta reuerencia,e contriçaõ os Sacramentos da Igreja.
E ficando com elles mais confortado, com tão grande alegria e
jubileos dalma esperou a morte, que parecia começar já a gozar na
terra a gloria, que dahi a pouco auia de receber no Ceo.»334

331
Como se assinalou, este receptáculo foi feito em 1518 pelo que a leitura que
informou o texto de Román padece de erro devido ao facto de os números inscritos na tampa se
encontrarem imperfeitamente talhados. Disto adverte já Frei António da Purificação (Cf. ob.
cit., f. 279v).
332
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, f. 393.
333
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 8.
334
PURIFICAÇÃO, Frei António da Purificação, ob.cit., f. 277.

109
Relativamente à construção da imagem de santidade, não considerando aqui
os milagres já estudados, sobressai que, se o primeiro hagiógrafo, João de França
de Brito, fornece um quadro simples enaltecendo fundamentalmente os dotes
pregatórios, a castidade e a caridade335, à medida que se percorrem os textos
hagiográficos posteriores deparamos, além da valoração daqueles predicados
tópicos e normativos, outros elementos que chegam mesmo a consubstanciar uma
projecção da espiritualidade barroca dos autores na vida do seu biografado
medieval. Assim, Frei Aleixo de Menezes, colocando a educação recebida nos
tempos de juventude ao serviço de Deus, apresenta Frei Gonçalo como um exímio
escritor de livros para o serviço do coro cuja valoração é exaltada através, como
atrás referimos, dos milagres em torno dos volumes desaparecidos nos conventos
Lisboa e Santarém336. Com a intervenção cronística de Frei António da
Purificação, Frei Gonçalo é já debuxado como um homem que, tendo mesmo
frequentado, pese o anacronismo, Artes e Teologia na Universidade, manteve a
centralidade da humildade e o desejo de rapidamente se dedicar à pregação, opções
religiosas impelindo-o a não prosseguir os estudos superiores para obtenção de
grau académico em Teologia:

«não se pode com todo consentir ao sancto sua humildade, que


passasse de estudante raso, com o titulo ordinario de Pregador:
officio que começou logo a exercitar [...] que tanta força tem a
doutrina Euangelica na boca do Prègador, que à imitação de Christo
faz o que ensina»337

Quanto à pregação que, no caso de Frei Gonçalo, parece subsumir-se em


subgénero catequético mais próprio da missionação barroca, são conhecidas as

335
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Processus n.º 3335, fls.
392 – 392v.
336
B.G.U.C., Cód. n.º 436, f. 4.
337
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 269v.

110
orientações saídas de Trento. Os seus dotes como pregador junto das gentes do
povo e a prática da catequese junto dos mais jovens são sobremaneira evidenciados
quer por Frei Aleixo de Menezes quer por Frei António da Purificação, mas estas
categorizações encontram-se já definitivamente ancoradas à religiosidade
conventual e pastoral barroca:

«Inuentou hũa maneira de prègação no pouo de Torres-Vedras [...]


A qual era porse todos os dias [...] à porta da Igreja do Mosteiro
velho, que estaua na estrada mais corrente da seruentia da Villa, e
por onde passauão todos os trabalhadores, e mais pessoas, assi
homẽs, como mulheres [...], e alli chamaua os que passauão, e os
amoestaua com grande afecto, e charidade, que seruissẽ, e amassem
muyto ao Senhor, e trataua com elles tudo o que importaua a sua
saluação, e limpeza de suas consciencias de que muytos lhe dauão
conta. [...] Deste ardente desejo que tinha da saluação das almas, lhe
nacia tambem andar ajuntando os mininos pelas ruas, para lhes
ensinar a doutrina de Chsito, e darlhes bons exemplos. E como os
tinha juntos, fazialhes a todos outra muy deuota pregação,
accomodada às suas idades; e depois lhes fazia dizer a doutrina
Christãa.»338

As visitações da Igreja de S. Miguel, feitas entre os anos de 1462 e 1524,


transcritas por Isaías da Rosa Pereira339, poderão, embora para um tempo mais
recuado, dar-nos uma ideia do panorama religioso e eclesiástico que se vivia em
Torres Vedras. São frequentes e insistentes as recomendações no sentido de ser
aumentada a doutrinação, o rigor da celebração eucarística e a necessidade de

338
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., fls. 273v - 274. (Cf. Cód. n.º 436,
B.G.U.C., f. 5v – 6v).
339
PEREIRA, Isaías da Rosa, «Visitações da Igreja de S. Miguel de Torres Vedras
(1462-1524), Lusitania Sacra, 2ª Série, Tomo VII, Lisboa, Universidade Católica-Centro de
Estudos de História Religiosa, 1995, pp. 181- 252.

111
impor uma maior regularidade da confissão. A respeito das colegiadas de Torres
Vedras, Ana Maria Rodrigues conclui que a frequência das visitas feitas no século
XV denota uma situação pautada pela ignorância, absentismo e imoralidade dos
clérigos340. Se bem que estas situações se reportem a um período pré-tridentino,
diversas recomendações da hierarquia ao longo dos séculos XVI e XVII reforçam a
importância do ensino da catequese341 como resposta fundamental na formação dos
fiéis e na organização da sua participação na vida da Igreja.
Apesar de não serem referidos pelo texto mais vetusto de João de França de
Brito, o rigor eucarístico, a contemplação, a oração pessoal e as práticas
penitenciais associadas a um rigoroso ascetismo atravessam os textos da
hagiografia gonçalina, fornecendo ao leitor um exemplo modelar de santidade.
Denotando uma rigorosa domesticação dos sentidos e do corpo, na vida religiosa
de S. Gonçalo estão presentes fenómenos de mortificações corporais (cilícios e
açoutes) e penitenciais (cama de vides, o dormir sem cobertura, a privação de
sono, as lágrimas e suspiros) bem apreciados pela espiritualidade barroca,
invadindo e colorindo as suas hagiografias. Mais uma vez Purificação, ainda que
convocando no essencial o que, embora não de forma tão sistematizada, havia sido
escrito por Frei Aleixo de Menezes342, organiza um retrato plasmando um modelo
espiritual e de santidade modernos, descobrindo-se mesmo uma combinação
harmoniosa entre elementos ascéticos e místicos que não conhecem aqui grande
distinção. Todavia, estes caracteres espirituais fazem de Frei Gonçalo (e
consequentemente da própria ordem) um conveniente «precursor» de uma
espiritualidade frequentada e reivindicada pelos seus biógrafos modernos cujo
protagonismo cabia essencialmente aos Jesuítas e aos Dominicanos:

340
RODRIGUES, Ana Maria, «As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV»,
Espaços, gente e sociedade no Oeste. Estudos sobre Torres Vedras Medieval, Cascais,
Patrimonia, 1996, p. 240.
341
Sobre este assunto veja o estudo de João Francisco Marques em «A palavra e o
livro», AZEVEDO, Carlos Moreira (dir. de), História Religiosa de Portugal, Vol. 2:
Humanismos e Reformas, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 377 – 393.
342
B.G.U.C., Cód. n.º 436, fls. 4 – 4v.

112
«Ordenado Sacerdote [...] se entregou dahi por diante mais á oração,
e meditação [...]. Dizia missa com tanta deuoção, e freuor de espirito
que os que lhe assistião, de admirados o reuerenciauão, como se
fosse hũ Anjo encarnado. A sua cama desde aquelle tempo, até a
morte nunca foy outra cousa, senão hũas poucas de vides secas no
canto da cella, as quais cada anno renouaua [...]. Aqui se encostaua
vestido, quando repousaua, sem outra algũa cobertura, e sem
cabeceira. O mais do dia gastaua em oração no choro,e em outros
exercicios espirituaes [...].As noites todas, que os outros esperão
para descansar do trabalho do dia, tinha ele mais particularmente
dedicadas à oração, e meditação dos mysterios diuinos [...] E assi
tirando o espaço, que repousaua antes das Matinas (que nunca
passaua de tres horas) todo o mais resto da noite gastaua em oração,
lagrimas, suspiros, e rigurosos açoutes [...] A isto ajuntaua hum
grande , e aspero cilicio, o qual nem nas enfermidades tiraua de
sobre a carne, que já pelo uso, na velhice estua quasi tão aspera,
como elle»343

Digno de nota é igualmente o relevo dirigido às formas contemplativas e à


centralidade da oração mental, muito embora esta não seja nunca explicitamente
designada344:

«o principal exercicio, em que [...] se ocupaua era como temos dito


a quietação da oração, e suaue sono da contẽmplação: o qual o fazia

343
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., fls. 269v – 270.
344
Saída da devotio moderna, a oração mental conhece uma simpatia mais ou menos
generalizada na época barroca se bem que o misticismo a ela associado tenha igualmente
suscitado as desconfianças dos que seguiam com mais rigor os princípios tridentinos (Cf.
MARQUES, João Francisco, «Orações e devoções», in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir. de),
História Religiosa de Portugal, Vol.2: Humanismos e Reformas, Lisboa, Círculo de Leitores,
2000, p. 603.

113
andar assi por fora como por casa, todo absorto em Deos, e ardendo
em tão viuas chamas de amor de hum Senhor [...]» 345

A castidade e a pureza são outros predicados atribuidos a Frei Gonçalo de


Lagos desde a sua juventude, acompanhando a sua praxis religiosa até ao seu
passamento:

«soube com a diuina graça conseruar por então, e por todo o


discurso da vida, a limpeza, e pureza d’alma, que no baptismo
recebera: em tanto, que os mais graues Escritores de sua vida
affirmão, q viueo, e morreo virgem»346

Aliadas a uma certa ingenuidade,347 reforçando o carácter que a hagiografia


barroca pretende «cristalino» da sua personalidade, descobrimos igualmente esses
combates habituais entre o santo e as tentações diabólicas, ilustradas por um
episódio em que resistiu aos encantos de uma rapariga insinuante348. Este episódio
merece algum destaque, porquanto, se os biógrafos apenas o assinalam como uma
tentativa diabólica «para derribar aquella fortaleza tão fortificada por Deos»349,
existem alguns indícios documentais350 sugerindo tratar-se de uma «conjura» de

345
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 273.
346
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 268.
347
Uma ingenuidade quase infantil ressalta da relação de Frei Gonçalo com as crianças
decorrente da prátrica da pregação: «E muytas vezes se ajuntauão a brincar com elle, como se
fosse outro de sua idade. O que tudo consentia o seruo de Deos com grande alegria, e deuoto
affecto» (PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 274.)
348
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob.cit., f. 286-288.
349
B.G.U.C., Cód. 436, f. 6v.
350
«No anno de 1420. sendo Prior do ditto conuº o s.to P.e Fr. Gonçalo de Lagos qem
vida floreceo em todo o genero de virtudes e na morte resplandece com protentosos milagres
p[ara] q detodo eclipsasem sua virtude e infamassem tão grande S.to q.do mais sua fama era
conhecida; certas pessoas seconfederarão entre sy (ô coniuração diabolica) e persuadirão a hua
moça q de noite entrasse na cella do sto P.e Fr. Gonçalo fingindo q hia fugida aqual entrando se
descompos em sua presença e o incitou m/tas vezes; porem como a providencia divina [?] da
malicia humana nâo soó não teve effeito tâo preversa e danada tenção mas a pureza do sto
Religioso ficou mais pura e a malicia detaes pessoas detodo frustrada; q este era o respeito q se

114
alguns habitantes da vila de Torres Vedras com vista a desacreditar o Prior do
Convento para, desta forma, denegrir a imagem local dos Agostinhos, enformando
esse temário da luta entre o século e a prioridade da religião atravessando de forma
recorrente os programas da hagiografia medieval e moderna.
A partir destes dados fundamentalmente hagiogáficos, progressivamente
mais barrocos, importa destacar que o quase vazio documental acerca da vida
histórica de Frei Gonçalo se preenche sobretudo com hagiografias e processos de
beatificação como o reunido em 1759. Uma situação obrigando a que se coloque a
seguinte questão: como é que uma figura acerca da qual existem tão poucos dados
documentais contemporâneos só assume relevância devocional a partir dos finais
do século XVI, conhecendo depois assinalável dimensão cultual em meados da
centúria seguinte, principalmente em Torres Vedras e Lagos? Note-se, porém, que
na sua Chronica da Antiquissima Provincia de Portugal Frei António da
Purificação, estabelecendo uma associação ao poder real em comunicação com
essa alegada carta de D. João II, confere ao prior de Torres Vedras um prestígio
que ultrapassa as fronteiras do local, mas que, em rigor, o santo agostinho nunca
conseguiu consolidar fora dos textos e páginas dos cronistas da sua Ordem. No
entanto, com a veneração dos santos e das relíquias estimulada pelo Concílio de
Trento, lavra-se o terreno propício ao fascínio pela santidade, pelos milagres, pelo
maravilhoso e pelos estados místicos, investimentos tridentinos que favorecem,
afinal, a restauração e invenção do culto de S. Gonçalo de Lagos,
progressivamente localizado e, por fim, associado à Restauração.
O prestígio espiritual das ordens religiosas passava necessariamente, para
além de outros critérios de prestígio que adiante assinalaremos, pela visibilidade
das suas personagens mais heróicas, nomeadamente pela afirmação axial da
santidade. Desta forma, acompanhando o movimento editorial do século XVI,
podemos encontrar na cronística uma preocupação com a compilação e redacção

tinha a hum Prior tão S.to vivendo na villa de Torres Vedras.» (I.A.N./T.T., Livraria, Ms. n.º
673, f. 368).

115
dos factos históricos e gloriosos das ordens religiosas, um notório esforço de
divulgação dos seus santos e religiosos relevantes, ao qual não terá sido
igualmente estranha a divulgação de novos modelos de santidade. É neste contexto
que deverá ser entendida a canonização de santos das ordens reformadas nas
primeiras décadas do século XVII351, concretizando a exemplaridade e o didatismo
que cronísticas, hagiografias e visitadores tratavam de semear.
Assim, a hagiografia gonçalina parece inscrever-se também num contexto
de tentativa de reafirmação da importância da Ordem dos Eremitas de Santo
Agostinho no Portugal Moderno e Barroco. Os observantes Franciscanos tinham
enxameado no século XV o tecido urbano e alcançado os meios áulicos,
suplantando o prestígio das chamadas ordens primárias antigas352. A seguir, os
Dominicanos e os Jesuítas assumem no século XVI uma relevância que os levará a
dominar o ensino e a missionação. Esta concorrência terá mesmo originado uma
disputa pelo prestígio perdido entre as ordens primárias. Essa disputa é
reconhecível pela inscrição nos textos cronísticos e hagiográficos daquilo que
poderemos chamar elementos indiciadores de prestígio: a antiguidade e prioridade
da ordem, a sua associação a factos relevantes da construção da história nacional, a
associação ao poder monárquico ou senhorial,353 a especialização de uma cultura

351
Maria de Lurdes Correia Fernandes, «História, santidade e identidade. O Agiologio
Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto», Via Spiritus, 3, 1996, pp. 35 – 36.
352
O convento do Varatojo, logo desde a sua fundação chamou gente dos estratos sociais
mais elevados. Alguns dos que os iam ouvir chegaram mesmo a construir casas na imdiações do
convento. Do palacete dos Andrade ainda hoje se podem ver as ruínas (a esta família
pertenceram homens como Diogo Paiva de Andrade e Tomé de Andrade que depois seria
conhecido por Frei Tomé de Jesus). Sobre este assunto veja-se a síntese que Manuel Clemente ,
sob o título «Varatojo: centro de irradiação», publicou no jornal Badaladas de 5/10/84, p. 11 e
19.
Neste contexto poderemos interpretar a transferência do convento situado na Várzea
para o espaço do Hospital de S. André, não se tratava só de uma simples mudança por causa das
condições desfavoráveis da fundação inicial. A nova localização coincidia com uma das portas
de entrada na vila por onde passava quem vinha do lado de Lisboa
353
Sobre esta associação remetemos para as já referidas preferências de D. João II (carta
escrita do Algarve a louvar o Senado pela posse das relíquias) e D. João III ( doação do Hospital
de S. André para nova fundação do convento de Torres Vedras)

116
erudita teológica e, acima de tudo, a elevação e glória dos seus membros através da
santidade.
O texto cronístico de Frei António da Purificação constitui um verdadeiro
manifesto procurando restaurar o prestígio religioso e social perdido pelos
agostinhos. Não só se preocupa em demonstrar que os Eremitas de Santo
Agostinho chegaram a Portugal ainda antes da formação da nacionalidade,
afirmando mesmo ter sido S. Frutuoso membro da Ordem e «o primeiro, que neste
Reyno plantou a nossa Religião, edificando algũs Mosteiros naquela Prouincia de
entre Douro, e Minho»354, adiantando ainda que o convento de Penafirme foi
fundado «pellos annos de 840»355. Reclamando a primazia sobre os Cónegos
Regrantes de Santo Agostinho esclare igualmente que na armada reunida em
auxílio de D. Afonso Henriques para a conquista de Lisboa seguiam cinco
religiosos eremitas agostinhos a quem o fundador do mosteiro de S. Vicente
entregou o seu governo356. Paralelamente, à prioridade histórica soma-se o
prestígio das letras, destacando-se, entre vários, Frei Rodrigo de Santa Cruz,
pregador de D. João II e de D. Manuel, Frei Tomé de Jesus, autor dos famosos e
muito lidos Trabalhos de Jesus, Frei Agostinho da Graça, celebrado Lente de
Teologia.357 Por fim, como seria de esperar, Frei António da Purificação destaca o
papel da sua Ordem na missionação do Oriente, complementando qualificadamente
a acção prosélita de Franciscanos, Jesuítas e Dominicanos até revelar a sua
prioridade:

«Nas partes do oriente verdade he, que entrarão primeiro algûas


Religioẽs, a de S. Francisco no anno de 1518 a da Companhia de
Iesu no de 1541. e a de S. Domingos no de 1548. e conquistaraõ

354
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., f. 62
355
Ibidem, f. 63
356
Ibidem, f. 85v. Sobre a fundação este mosteiro veja-se o recente estudo de Carlos
Guardado da Silva, O Mosteiro de S. Vicente de Fora. A comunidade regrante e o património
rural, Lisboa, Edições Colibri, 2002
357
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., fls. 122v-124.

117
pera Deos reynos inteiros, e infinitas multidoẽs de almas. Com tudo
era empreza taõ grande pelas muitas, e vastas regioẽs, aonde
falataua a noticia do Euangelho, que nos pareceo conueniente ilos
ajudar em tão sancto trabalho. Fomos no anno de 1572. e naõ nos
achamos enganados; porque alem de muitas cidades, e fortalezas,
onde lhe fizemos companhia, outros muitos Reynos, e Prouincias
auia, que Deos tinha guardado pera nòs, como Mombassa, Sinde,
Gorgistaõ, e outras Regioẽs, nas quaes atè hoje naõ ouue outros
Religiosos, senaõ os da nossa Ordem» 358.

No caso de Ormuz, por exemplo, a Ordem supriria mesmo a incapacidade


dos Dominicanos e dos Jesuítas, afirmando o cronista que, depois de aqueles se
terem visto obrigados a abandonar a região devido à inclemência do clima,

«foy Deos seruido, que podessemos com o rigor della; e assi a


habitamos desdo primeiro anno, em que chegamos à india atè o de
1622. em que os Persas tomaraõ esta ilha com ajuda dos Ingrezes, e
extinguirão nella a memoria do nome Christão»359

No caso geral da Pérsia, para além da conversão do Xá que terá mesmo


fundado à sua própria custa um convento em Aspão, refere o mesmo cronista que
os religiosos Eremitas terão preparado o caminho para a chegada e instalação dos
Carmelitas Descalços, em 1605360. Quanto ao Brasil, é assinalado como
testemunho de uma presença significativa a referência toponímica do Cabo de S.
Agostinho, em Pernambuco361.

358
PURIFICAÇÃO, Frei António da, ob. cit., I, f. 17v.
359
Ibidem.
360
Ibidem, f. 18.
361
Ibidem.

118
Numa época em que a afirmação de santidade estava já bem longe das
imposições da religiosidade popular362, os cronistas não podiam deixar de assinalar
e exagerar a vida daqueles que viveram em odores de santidade. É que se, por um
lado, a canonização havia deixado de se fazer por vox populi363, também é certo
que os rigores processuais requeriam a notoriedade. Por isso, são abundantes as
hagiografias que precedem e, sem dúvida informam, os processos de beatificação e
canonização. Assim é também com S. Gonçalo de Lagos. Longe da cronística
barroca que edifica a sua vida exemplar e inventa a sua história, ocupando o vazio
documental com a elevação da espiritualidade, o frade agostinho dificilmente
acabaria os seus dias «condenado» a ver a sua história narrada por um processo
bem sucedido de beatificação.

362
Inclui-se aqui na noção de religiosidade popular, malgrado alguma impropriedade
científica do conceito, uma área populacional socialmente ampla, frequentada quer elementos
das elites, no sentido sociocultural do termo, quer elementos de origem popular.
363
Com efeito, em 1171, com Alexandre III é proibida a veneração e culto religioso a
qualquer homem sem o aval da Igreja Romana. As determinações de Urbano VIII de 1625, que
seriam confirmadas em 1634, relativamente ao culto dos não beatificados ou canonizados,
indicia claramente que se vivia uma época de proliferação da santidade vox populi, processo do
qual certamente as ordens religiosas não estariam desligadas. A própria criação da Congregação
dos Sagrados Ritos e Cerimónias em 1587, que logo no ano seguinte procedeu à primeira
canonização (Diogo de Alcalá), fazendo depender de Roma e de uma complexa tramitação
processual a condição de beato ou de santo, tendia a disciplinar a santidade nascida
exclusivamente da veneração pública.

119
V PARTE

EPÍLOGO:
S. GONÇALO DE LAGOS DO SÉCULO XVIII
AOS NOSSOS DIAS

120
1 - O ESFORÇO DE RESTAURAÇÃO DA ORDEM E A BEATIFICAÇÃO

A partir de meados do século XVII, o vigor que havia caracterizado a


Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, quando comparado com o que havia tido,
sobretudo depois de, em 1572, ter sido fundada a Congregação da Índia Oriental,
começa a dar sinais de esgotamento. À perda de algumas fundações e ao pouco
rigor relativamente ao voto de pobreza, juntaram-se tensões internas entre os
conventos do Norte e os do Centro e Sul do reino364. No primeiro quartel de
setecentos inicia-se um esforço de restauração religiosa no qual se insere uma
renovação arquitectural do convento de Torres Vedras. As paredes da portaria, da
sacristia e do claustro receberam, a partir de 1725, painéis de azulejos que, sem
deixar espaços vazios, representavam episódios relevantes dos notáveis da ordem.
Deste século podemos igualmente encontrar em algumas das casas do nosso país
inúmeras esculturas de religiosos que se evidenciaram por virtudes ou pela sua
acção nas missões ultramarinas. Entre as muitas com que deparámos figuram
também as arranjadas iconografias de S. Gonçalo espalhando-se pelo Algarve,
distribuídas entre Lagos e Tavira, por Lisboa, Torres Vedras, Coimbra e Porto365.
Apesar desta iconografia geograficamente vasta, mas limitada e pobre,
vários são os indicadores de uma diminuição devocional do culto do santo
agostinho, como os que se recuperam nas Memórias Paroquiais do século XVIII,
inventariando o património e a história do reino graças ao patrocínio da Academia
das Ciências. Para o caso da freguesia de Santa Maria de Lagos, nada é referido ao
questionário número sete366, encontrando-se somente na resposta ao número

364
ALONSO, Carlos, Os Agostinhos em Portugal, Madrid, Ediciones Religión y
Cultura, 2003, pp. 121-122.
365
De algumas das esculturas e representações iconográficas apresentamos em anexo
fotografias das que se encontram em localidades onde ainda hoje, pelos testemunhos verbais que
conseguimos obter, se mantém viva, ainda que com expressões distintas, a prática devocional.
366
«Qual é o seu orago, quantos altares tem, e de que santos, quantas naves tem; se tem
Irmandades, quantas e de que santos?» (apud Fontes setecentistas para a história de Lagos,
Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1996, p. 89.

121
dezoito367 informações sumárias sobre a naturalidade e o local onde, de acordo
com a tradição oral, terá vivido S. Gonçalo, a que se acrescentava ainda e a
existência de uma relíquia perdida em 1755368, mas recuperada por ordem do
Senado cinco anos mais tarde. O caso de Torres Vedras é ainda mais
paradoxalmente sintomático, não se arrolando nas Memórias Paroquiais quaisquer
notícias sobre o santo agostinho que havia falecido na vila.
É, assim, em contexto de recuperação de um culto quase exangue que se
inserem as diligências com vista ao reconhecimento pontifício do culto e fama de
santidade de S. Gonçalo. Em dois de Agosto de 1759, Frei Francisco Xavier
Vasques, então Provincial, requereu ao Cardeal Patriarca de Lisboa que fosse
instruído um processo com vista à beatificação e canonização de Frei Gonçalo de
Lagos. Os poderes para condução das diligências foram delegadas em José Dantas
Barbosa, Arcebispo da Lacedónia e Vigário Geral do Patriarcado, em dois juízes
adjuntos, os presbíteros seculares Luís da Costa Barbuda, doutor em Teologia e
Prior na paróquia de Santa Engrácia de Lisboa e Ângelo de Barros, Doutor en
Cânones. Para a legítima contradição foi nomeado Promotor Fiscal da Cúria
Patriarcal Mateus Antunes da Luz e Miranda. A Frei Agostinho da Silva caberia
desempenhar as funções de procurador da Ordem. As diligências processuais
iniciar-se-iam sete dias depois daquela data para terminarem em vinte e quatro de
Março do ano seguinte369. Paralelamente ao processo sobre a fama de santidade e
milagres, correu outro370 sobre a fama de culto entre catorze de Novembro e vinte e
seis de Abril de 1760. Finalmente, seria feito em Lagos, entre 20 de Março e 9 de
Julho deste ano, um processo semelhante relativo à fama de santidade e culto de

367
«Se há memória de que florecessem, ou dela saíssem alguns homens insignes por
virtudes, letras ou armas?» (ob. cit., p. 90)
368
«Florecerão com virtudes, desta cidade, o Beato Gonsallo de Lagos, religiozo de
Santo Agostinho, e se dis foi morador na rua de Santa Bárbara; havia huma relíquia em huma
redoma de cristal com seu pé de prata, dentro da qual estava hum pedaço de ousso do dito Bem-
aventurado, e no terremotu de sincoenta e sinco se perdeu» (ob. cit., p. 116)
369
Processo da Fama de Santidade..., Arq. Sec. do Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º
3335, fls. 1 – 4v.
370
Processo do Culto Imemorial..., Arq. Sec. Vaticano, Cong. Riti, Processus n.º 3336.

122
uma relíquia371. Aqui seriam nomeados pelo Bispo do Algarve, D. Lourenço de
Santa Maria, João Baptista Coelho de Castro, prior da Colegiada de S. Sebastião
em Lagos, Frei António Caetano Nunes, religioso de Nossa Senhora do Monte do
Carmo, Lázaro Moreira Landeiro Corte Real, prior da colegiada da Santa Maria de
Lagos372.
Juntos os três processos, procedeu-se à sua cópia autêntica que forneceu um
total de mil oitocentas e setenta e seis páginas. Todavia, os processos só seguiriam
para Roma cerca de catorze anos mais tarde373, atraso que se terá devido em parte
ao corte de relações com a Santa Sé374. Datada de 29 de Maio de 1773, uma cópia
de uma carta escrita em Faro e destinada ao Papa, fornece-nos como argumento
para aceitação da causa, além dos cuidados exames feitos acerca dos milagres e da
vida virtuosa de Frei Gonçalo, a importância do reconhecimento de um santo para
uma Ordem que pretendia ser activa na missionação no império português.375 A
seguir, Frei Pedro de Souza esclarece que, em 16 de Julho de 1777, Pio VI
autorizou que fossem os processos analisados pela Sagrada Congregação dos
Ritos:

«Por todos os votos se proferiu a sentença confirmativa das do


Ordinário, approvada a fama da santidade, e o culto immemorial [...]
e conforme a praxe da Sagrada Congregação dos Ritos por

371
Processo de Fama de Santidde e Culto dado a hũa Reliquia..., Arq. Sec. Vaticano,
Cong. Riti, Processus n.º 3337.
372
Ibidem, fls. 3 - 4.
373
MARTINEZ, Hipólito, S. Gonçalo de Lagos, Braga, Editorial Apostolado da Oração,
1992, p. 51.
374
Depois de um período de relações tensas entre o Marquês de Pombal e D. Filipe
Acciauoli relacionado com a questão dos Jesuítas, o núncio, a pretexto do episódio em torno dos
festejos do casamento da princesa D. Maria foi expluso do reino. O corte de relações com Roma
duraria cerca de dez anos pois só em Janeiro de 1770 foi nomeado como núncio para Portugal D.
Inocêncio Conti. (Cf. OLIVEIRA, Miguel de, História Eclesiástica de Portugal, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 2001,pp. 198-199).
375
Arquivo Histórico da Diocese do Algarve, Carta ao Papa pera a beatificação de S.
Gonçalo de Lagos, Faro, 23 de Maio de 1773 [Este documento por se encontrar junto de vários
outros ainda não catalogados, não tem cota].

123
Beatificado pelo Decreto intitulado: Decretum Olisiponens.
Canonizationis Beati Gundissalvi de Lagos, Sacerdotis profisssi
Ordinis Eremitarum Sancti Augustini, assinado por Sua Santidade a
27 de Maio de 1778»376

Conhecida a notícia em Lisboa, fez-se celebração no Convento da Graça


durante três dias. A própria coroa se associaria aos festejos377, voltando depois a
fazê-lo durante a trasladação que foi feita em quinze de Novembro de 1784 por D.
Pedro III que, na sequência de uma cura prodigiosa,378 ofereceu um cofre para
serem depositadas as relíquias gonçalinas379 e se fez representar nos festejos do dia
seguinte por Frei Joaquim Forjaz. Nesta festa, que congregou os religiosos de
Lisboa e Torres Vedras, fez-se uma procissão em que o cofre relicário seguia
debaixo de um pálio transportado pelo Juíz de Fora e Vereadores do Senado380.
Compunham o desfile «todas as Collegiadas, Irmandades, Clero Secular e Regular,

376
SOUZA, Frei Pedro de, ob.cit., p. 204 – 205.
377
«Os Religiosos de Santo Agostinho celebrárão com muita solemnidade no Convento
da Graça hum Triduo nos dias 13, 14, 15 deste mez em memoria de S. Gonçalo de Lagos,
beatificado em Maio passado. A 15, dia anniversário do feliz transito deste Santo, a Rainha
nossa Senhora, Principes, e Infantes forão venerar a sua Imagem na ditta Igreja. El Rei nosso
Senhor foi render o culto devido á sobredita Imagem no dia 18 de tarde.» (Gazeta de Lisboa, n.º
XII, 20 de Outubro de 1778, p. 4).
378
Tendo o rei uma chaga numa perna, ter-lhe-á sido sugerido por Frei Joaquim Forjaz
que invocasse S. Gonçalo de Lagos, do qual lhe ofereceu uma estampa para clocar sobre a
ferida. ( Cf. TORRES, Manuel Agostinho Madeira, Descripção historica e Econnomica da Villa
e termo de Torres-Vedras, ed. fac-similada da 2ª ed., Torres Vedras, Santa Casa da
Misericórdia, 1988, p. 126, nota do editor).
379
«S. M. o Senhor D. Pedro III., multiplicando todos os dias os exemplos da sua grande
piedade, acaba de dar hum novo testemunho do zelo que o anima pela Religião, e da devoção
singular que lhe inspirão as heroicas virtudes deste bemaventurado Servo de Deos pela Real
magnificencia com que ordenou se celebrasse a sua trasladação, fazendo-lhe presente d’hum
precioso cofre, para nelle serem depositadas as suas Reliquias e mandando concorrer para a
solemnidade deste dia a Musica da sua Real Capella, os seus Mestres de Cerimonias, e os seus
mais ricos ornamentos e tapecerias.» (Segundo Supplemento Á Gazeta de Lisboa, n.º XLVI, 20
de Novembro de 1784, p. 3).
380
A participação dos representantes e agentes do poder local na procissão deveu-se a
uma ordem dada nesse sentido por D. Maria I ( Cf. TORRES, Manuel Agostinho Madeira, ob.
cit., p. 125, nota do editor).

124
e toda a Nobreza desta Villa e seu Termo, achando-se as Tropas Auxiliares
postadas pelas ruas»381.

2 - DO SÉCULO XIX ÀS COMEMORAÇÕES DOS ANOS SESSENTA

Para o século XIX, as monografias relativas a Lagos e Torres Vedras


fornecem-nos um retrato da evolução do culto de S. Gonçalo nas duas cidades.
Assim, o autor da Monographia lacobrigense assinala em 1783 a bênção da
imagem que foi para a Misericórdia, actualmente guardada no museu da cidade
algarvia. Em 1810, a Câmara requereu ao príncipe regente que fossem concedidas
provisões no valor de trinta mil reis anuais para as despesas ordinárias com os
festejos. Até ao ano de 1834 foram feitas celebrações anuais pela Câmara382. Em
Torres Vedras, até 1834 a Câmara promovia celebrações anuais nos dias 16 e 17 de
Novembro, gastando-se com os festejos de 1828 dezasseis mil oitocentos e
quarenta e cinco mil reis383. Além das habituais cerimónias litúrgicas, era feita uma
Procissão384. Em 1845, em acto isolado, proceder-se-ia à abertura da do cofre das
relíquias para enviar uma para Roma, tendo nessa altura sido feita uma nova saída
processional.385 Nas duas cidades o culto preserva-se com alguma visibilidade até à
legislação de António Augusto de Aguiar, se bem que em Lagos, a julgar pela
diferença das despesas, se realizaria uma festa mais notável. De qualquer forma,
não se deve encontrar numa espécie de causalidade «diabólica» liberal a
incontornável retracção dos cultos gonçalinos, progressivamente esquecidos

381
Segundo Supplemento Á Gazeta de Lisboa, n.º XLVI, 20 de Novembro de 1784, p. 4.
Júlio Vieira fornece um lista das pessoas, notáveis ou representantes do poder local, que
assistiram à cerimónia, bem como uma descrição completa do cofre oferecido por D. PedroIII
(Cf. VIEIRA, Júlio, Torres Vedras Antiga e Moderna, Torres Vedras, 1926, pp. 136-137).
382
ROCHA, Manoel João Paulo, Monographia. As forças militares de Lagos nas
Guerras da Restauração e Peninsular e nas pugnas pela liberdade, ed. fac.-similada de ed. de
1909, Faro, Algarve em Foco, 1991, pp. 161-163.
383
Livro de acórdãos da vereação, f. 280, apud Júlio Vieira, ob. cit., p. 138.
384
TORRES, Manuel Agostinho Madeira, ob. cit., p. 127, nota do editor.
385
Ibidem, p. 126, nota do editor.

125
perante as profundas mutações políticas, sociais e económicas que alteraram
também, das indústrias ao turismo, as duas cidades que acolheram e foram
permitindo a sobrevivência tanto da arranjada memória como da devoção
gonçalina.
Seria preciso esperar pelo ano de 1926 para que a cidade torrejana voltasse
a conhecer novamente os festejos em honra do seu padroeiro. Um edital de 6 de
Agosto relativo à marcação da «Feira Nova» associava à exposição agrícola,
pecuária e industrial as festas do antigo e quase esquecido santo padroeiro da vila.
Ligados aos trabalhos preparatórios para este evento estavam, entre outros, Rafael
Salinas Calado386, um dos oradores do «I Colóquio Gonçalino» que se realizaria
em Lagos, em 1961, e Júlio Vieira que, autor de obra monográfica já citada
dedicando oito páginas a S. Gonçalo, viria a fazer parte da comissão executiva
responsável em associar à «Feira Nova» os festejos em honra do padroeiro da vila,
restaurando essas vetustas comunicações entre profano comercial e sagrado
devocional387.
Em Torres Vedras, a realização de festejos em honra de S. Gonçalo
conheceria a partir desta data uma evolução pautada pela instabilidade. No final
dos anos cinquenta, vários são os artigos do jornal Badaladas que apresentam
propostas para a sua realização. Sob o título «Restabelecimento do culto e das
tradicionais festas em honra do santo Padroeiro de Torres Vedras», chega-se
mesmo a afirmar que as festas gonçalinas deviam coincidir com a feira anual que
se realizava no mês de Junho, pois o mês de Outubro não convocava muitos
devotos.388 Entretanto, em Lagos, uma série de acções prepararia o terreno para o
recrudescimento do culto que conduziria mais tarde ao envolvimento e apropriação
do santo pelas autoridades municipais da cidade. Em 1940, nos «Folhetins
Históricos do Algarve» do Jornal de Lagos, Alberto Iria, com o título «S. Gonçalo
de Lagos (Uma biografia manuscrita inédita do século XVII em cópia do século

386
«Exposição e Festas Anuais», O Correio de Torres, n.º3, 24/Jan./1926, p.1.
387
«Festas Anuais e Exposição», O Correio de Torres, n.º4, 1/Fev./1926, p. 1.
388
Badaladas, 1/1/58, p. 4.

126
XVIII)»,389 viria a estampar o códice nº 112 da Biblioteca Geral da Universidade
de Coimbra. Dois anos mais tarde, aquele hitoriador e José Fernando Mascarenhas,
também colaborador do mesmo jornal, ambos alferes milicianos no Regimento de
Infantaria 4, encontrar-se-iam na «Juventude Católica Militar» ou «Obra dos
Soldados de Lagos», surgida na sequência da desobriga390 preparada para os
soldados na altura da Páscoa. Durante a organização deste acto terá surgido a ideia
de, sob o patronato de D. Nuno Álvares Pereira, S. Gonçalo de Lagos e S.
Sebastião, consolidar a formação moral, religiosa, patriótica e cultural dos mesmos
militares, para que, dentro das linhas que norteavam a Acção Católica, pudessem
ser «melhores cristãos e melhores portugueses»391. Consistia essa formação em
palestras realizadas numa dependência da igreja de S. Sebastião em que eram
tratados temas da moral e doutrina cristãs e episódios da história pátria que
atestassem ou fossem conformes a esses princípios. Visitas ao Museu de Lagos,
cerimónias evocativas de personagens históricas, espectáculos de grupos corais e
celebração de cerimónias religiosas e festas aos patronos da organização392.
Uma das acções então desenvolvida foi a recuperação do nicho e capela de
S. Gonçalo de Lagos junto das chamadas Portas do Mar que viria a ser inaugurado
no dia 15 de Novembro de 1942393. Por essa altura, os dois impulsionadores ainda
criaram, chegando mesmo a redigir os seus estatutos, a Confraria de S. Gonçalo
dos Pescadores de Lagos destinada a «desenvolver o culto pelo glorioso Santo
Algarvio, como também tornar extensivo à juventude marítima o espírito da Acção
Católica»394.
Novos festejos em honra do santo só se realizariam a partir de 1955 por
iniciativa do padre Eudoro dos Santos Vieira, responsável também pela

389
Jornal de Lagos, 19/X/40, p. 2.
390
Confissão anual que é imposta aos católicos.
391
MASCARENHAS, J. Fernandes, No Rumo da Educação, Lisboa, 1944, pp. 41 – 42;
Antero Nobre, O Pescador que quis ser Monge e foi Santo, Tavira, 1957, p. 131-132.
392
MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., pp. 43 – 45.
393
Jornal de Lagos, 21/11/42; MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., Lisboa, 1944, p.
45; NOBRE, Antero, ob. cit., Tavira, 1957, p. 133.
394
MASCARENHAS, J. Fernandes, ob. cit., Lisboa, 1944, p. 83.

127
constituição da Liga dos Amigos de S. Gonçalo de Lagos que, para além de
assegurar o culto, tinha também funções caritativas. Daí em diante celebraram-se
festejos anuais com a presença dos representantes das autoridades civis, militares e
das instituições algarvias ligadas à actividade piscatória395. Contudo, o momento
mais alto da recuperação deste culto concretiza-se com o I Colóquio Gonçalino em
Lagos nos dias 2 e 3 de Setembro de 1961 na sequência das comemorações
henriquinas de 1960, espalhando o fervor nacionalista do Estado Novo por parte da
intelectualidade situacionista do país. Para o efeito, a Câmara Municipal de Lagos
nomearia uma Comissão396 que se encarregaria de organizar o ciclo de
conferências que, no conjunto, incidiu sobre a biografia, bibliografia e iconografia
de S. Gonçao, tudo acompanhado da inevitável exposição. As presenças que
assinalaram a sessão inaugural realizada nos Paços do Concelho de Lagos
evidenciam o envolvimento dos poderes civis regionais algarvios, da hierarquia da
Igreja e da própria Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho397. Dos votos finais do
colóquio sairiam algumas ideias-chave para o futuro: a criação de um feriado
municipal em Lagos no dia litúrgico de S. Gonçalo; a edificação numa das praças

395
CEROL, A. M. Cristiano, Estudos Gonçalinos em Lagos, Lagos, Grupo dos Amigos
de Lagos, 1993, pp. 27-31. Idênticos festejos ocorriam naquele ano em Torres Vedras, cidade
onde se deslocavam os devotos lacobrigenses («Bairrismo e Espiritualidade. Os Algarvios
visitam Torres Vedras», Badaladas, 15/4/56, pp. 1-2). Todavia como atrás se referiu não
voltariam a ter dimensão assinalável.
396
Alberto Iria, então director do Arquivo Histórico Ultramarino, Mário Lyster Franco,
director do Museu Municipal de Faro e do Jorna Correio do Sul, Padre Carlos Patrício, director
do jorna Folha de Domingo, José Fernandes Mascarenhas, dirigente nacional da Obra dos
Soldados da Juventude Católica, Padre José Monteiro, Vigário da Vara de Lagos, Antero Nobre
e Gonçalo Lyster Franco, funcionário superior da Direcção dos Edifícios e Monumentos
Nacionais («Comemorações Gonçalinas em Lagos», Badaladas, 18/3/61, p. 1 e p. 4).
397
«Presidiu o Ex.mo Sr. Dr. António Baptista Coelho, Governador Civil de Faro, que
tinha à sua direita o Ver. Padre Provincial da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho e do Rev.
Padre Prior do Real Mosteiro Agostinho do Escurial (Madrid), e o Exº Sr. Dr. José Correia do
Nascimento, Presidente da Junta Distrital de Faro, e à esquerda os Srs. Dr. José Fernandes
Mascarenhas, Relator Geral do Colóquio. Em lugar especial, à direita da Mesa, sentava-se S.
Exª Revª o Sr. D. Frei Francisco Rendeiro, Bispo do Algarve.» (I Colóquio Gonçalino, Lagos,
1962, p. 165). Nesse ano realizar-se-iam festejos significativos nas duas cidades, sendo de
destacar a realização em 16 de Outubro da Feira de S. Gonçalo em Torres Vedras (Badaladas,
22/7/61, p. 4).

128
cidade de um monumento alusivo; a criação em parceria com Torres Vedras de
seminários de estudos gonçalinos; a criação de uma secção no Museu Regional de
dedicada ao santo; a restauração da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em
Portugal; a promoção das diligências para a canonização398. Pouco tempo depois,
em 1963, surgiria com o apoio da Câmara o Grupo de Estudos Gonçalinos e
expansão do Culto de S. Gonçalo de Lagos. Com o objectivo de divulgar o culto,
publicaria dois boletins399 com pequenos artigos maioritariamente escritos pelos
sócios do grupo que, em 1964 ascendia, já a 106400, número que aumentaria para
250 no ano seguinte401.
Se em Lagos se assistiria à concretização de alguns daqueles votos, fazendo
do culto um elemento de projecção da identidade local, em Torres Vedras a
memória confinar-se-ia às celebrações religiosas. Em 1977, o feriado municipal
passaria mesmo a ser o dia 11 de Novembro, dia de S. Martinho. Valorizava-se
desta forma a importância da vini-vinicultura na economia da região402. Como
muitos desses santos e heróis das gestas oceânicas portuguesas que marcam
exageradamente os lugares da memória de um certo Portugal que, entre sonhos
imperiais e utopias messiânicas, pensava inscrever-se numa eternidade casando
Deus, Pátria e Autoridade, também esse S. Gonçalo laboriosamente edificado pelo
esforço hagiográfico barroco não parece ter resistido às mudanças económicas e
sociais da sociedade portuguesa contemporânea. Restam as estátuas. Sobrevivem
memórias longínquas. E sobra espaço para este estranho ofício de historiador para
quem documentos e monumentos do passado se assemelham tão estranhamente às
relíquias que procuramos exorcizar.

398
I Colóquio Gonçalino, Lagos, 1962, pp. 160 – 161.
399
Boletim do Grupo de Estudos Gonçalinos, Faro, n.º 1: 1964, n.º2: 1965.
400
Boletim do Grupo de Estudos Gonçalinos, Faro, n.º 1, 1964, pp. 27 – 28.
401
Ibidem, pp. 28 – 30.
402
«Feriado Municipal de Torres Vedras. Abaixo assinado dirigido à Câmara»,
Badaladas, 12/3/99, p. 3.

129

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