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HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

SERMÃO DA
SEXAGÉSIMA
A ACTUALIDADE DO PE. ANTÓNIO VIEIRA

Jorge Damasceno

inglês / alemão 10/96

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ÍNDICE

1. Padre António Vieira .............................................................2


2. Os Jesuítas e a Companhia de Jesus ..................................... 3
3. Vieira e a Inquisição .............................................................4
4. Sermão da Sexagésima .........................................................4
5. A Bíblia no Sermão da Sexagésima ....................................... 5
6. O semeador de poetas mortos .............................................. 7
3

1. PADRE ANTÓNIO VIEIRA


(n. 6.2.1608 - † 18.7.1697)

Obras: Sermões, 13 vols., 1679-1690; 2 vols. Póstumos, 1710, 1748.


Cartas, (ed. Póstuma), 1º e 2º vols., 1735; 3º vol. 1746.

"Nos seus sermões não faúlha apenas um


espírito enamorado de aplausos; freme uma
grande, complexa alma de apóstolo cristão
e orientador político."
Hernâni Cidade

Mais do que um homem de Letras, o Pe. António Vieira, padre jesuíta, pregador,
missionário, diplomata, político e utopista é a figura mais representativa do pensamento
seiscentista português. Nascido em Lisboa partiu aos sete anos de idade com a família
para Baía, capital do Brasil nessa altura, e também a capital da produção de açúcar. O
pai, Cristóvão Vieira Ravasco, que tinha sido escrivão em Portugal, passou a ser
secretário da governação da colónia.
Vieira iniciou os estudos ao frequentar o colégio dos padres jesuítas. Em 1623,
com 15 anos, foge aos pais para ingressar na Companhia de Jesus, iniciando o
noviciado. Segundo o Prof. Hernâni Cidade, a veracidade desde episódio não está, no
entanto, documentada:

"Verídico episódio, o dessa evasão de noctâmbulo? É possível que sim; mas possível, também,
que seja invenção romanesca, consoante a maneira de considerar tais coisas que no tempo em que
escrevia o seu primeiro biógrafo se supunha a mais própria para edificar as almas, por se encarar o
caso como indício claro da vocação irresistível do rapazinho, da predestinação divina que o
encaminhava."1

Seja qual for a nossa aceitação do grau de veracidade histórica deste episódio,
sabe-se que aos 17 anos fez voto de "gastar toda a vida na conversão dos gentios e
doutrinar novamente aos convertidos"; mas há um pormenor que nos convida a rejeitar
a ideia de que se trata de uma invenção romanesca: trata-se do noviciado, não era uma
decisão banal a impressionante determinação com que nesta altura se enfrentava a
dificílima fase do noviciado numa ordem religiosa como era a Companhia de Jesus:

"Os dois anos de noviciado são de pura provocação para os alunos; tudo durante esse tempo
tende a abolir as relações existentes com o mundo exterior. O neófito pertence em corpo e alma à
Companhia; nenhum acto que não esteja de antemão regulado pelos superiores, nenhum pensamento
que não seja por eles sugerido ou perscrutado ... Do romper do sol à hora de adormecer, todos os
momentos têm a sua ocupação prevista; nenhum para a recordação dos pais, dos amigos, dos interesses
que até aí prendiam à vida comum o iniciado." 2

1
Hernâni Cidade, Padre António Vieira, Obras Escolhidas, Vol. I,, Prefácio, p. XII.
2
Id., p. XVI.
4

A actividade como pregador inicia-a Vieira em Dezembro de 1635 ao ser


ordenado, mas o seu talento já era reconhecido há muito tempo, de tal modo que, após a
ascensão de D. João IV ao trono português, em 1640, Vieira facilmente se tornou o mais
destacado pregador da corte; esta aproximação ao poder temporal, assim como a sua
fidelidade duradoura ao rei
até à morte deste em 1656, (Oliveira Martins viria a chamar-lhe, em analogia com D.
João II do final do séc. XIV, o João das Regras de D. João IV) vem explicar as suas
facetas de diplomata e político; ao longo desta fase, desenvolveu uma actividade
diversificada na vida pública. Entre outras,

· preconizou junto do poder régio o desenvolvimento da burguesia mercantil;


· tentou fomentar a instituição de uma companhia portuguesa de comércio com
a Índia;
· devido ao seu espírito aberto, livre e empreendedor, enfrentou repetidas vezes
a intolerância religiosa do Santo Ofício, acabando mesmo por ser
processado e exilado;
· na sua luta pela defesa dos ameríndios da América do Sul, chegou a ser
adversário dos colonos e da própria Companhia de Jesus;

vem documentada na sua obra monumental, duzentos sermões, meio milhar de cartas,
numerosos relatórios, etc.

2. OS JESUÍTAS E A COMPANHIA DE JESUS


A Companhia foi fundada em 1534, numa conjuntura caracterizada pela reacção
da igreja católica à Reforma Luterana, precedendo o Concílio de Trento, instituída como
ordem religiosa sob os auspícios do Sumo Pontífice.
Vieira chegou à Baía em 1615, regressou à Europa e iniciou a segunda estadia
na colónia, agora em S. Luis do Maranhão, em Janeiro de 1653, já a Companhia de
Jesus no Brasil (Assistência de Portugal) aí se encontrava instalada desde o longínquo
ano de 1549, tendo-se mantido a missão em actividade até 1760, data em que foi abolida
na sequência da Lei de 3 de Setembro do ano anterior, de D. José I, durante o governo
do Marquês de Pombal, e exilada, tendo os bens sido confiscados. É este contexto, com
a Companhia no auge da sua implantação no Brasil, que envolve grande parte da obra
do Padre António Vieira.
A finalidade da ordem, como qualquer outra era a de "servir a Deus com
perfeição, em castidade, em pobreza, e em obediência", competindo à Igreja "julgar se
entre os modos e o fim há a devida proporção". 3 Julgar significa o recurso a um juiz, o
que pressupõe a existência de um tribunal: o Tribunal do Santo Ofício, que viria a ficar
conhecido como Inquisição.

3. VIEIRA E A INQUISIÇÃO
Qualquer dialecta brilhante, pensador utopista, e espírito progressista como era o
caso de Vieira, produzia, consequentemente, textos caracterizados pelo rigor das
3
M. Scotton de Bassano, Os Jesuítas, (tradução), Lisboa, 1888.
5

afirmações, e viria, mais tarde ou mais cedo, a enfrentar o tribunal da Inquisição. De


facto, das muitas peripécias que se podem imaginar neste contexto, que foram, na sua
maioria, registados na sua obra, é de notar que um dos seus escritos mais significativos,
publicado pela Universidade da Baía em 1957, é intitulado, precisamente, Defesa
perante o Tribunal do Santo Ofício. Os problemas surgiram principalmente na
sequência da elaboração, por parte de Vieira, das suas obras, de carácter utópico,
História do Futuro e Quinto Império. Em relação à primeira Hernâni Cidade escreve: 4

"A circunstância de tal escrito haver sido denunciado à Inquisição haveria feito recuar a outro
que não tivesse a sua pugnacidade. Vieira, porém, é antes estimulado à elaboração da obra reveladora,
em cuja larga e decisiva projecção em toda a Igreja Católica ele punha toda a desmedida confiança ... "

e cita o próprio Pe. Antóno Vieira em carta deste ao Conselho Geral da


Inquisição, em 1665:

"Comunicando a várias pessoas as mais doutas da sua religião, portugueses, espanhóis,


italianos e franceses, todos aprovaram o dito assunto /da "História do Futuro") e os fundamentos dele,
posto que reconheceram que ao princípio haviam de Ter alguma contradição, como o tiveram sempre
todas as cousas novas e grandes, ainda aquelas que depois foram definidas de Fé [...] E houve entre as
pessoas doutas quem se ofereceu a escrever e compor o dito livro ou livros, vistas as indisposições e
ocupações dele, suplicante, se ele o quisesse consentir e dar e apontar os textos e fundamentos de que
tinha feito estudo; e alguns houve que, considerando a grandeza e importância de muitas das ditas
matérias e a utilidade que do conhecimento delas se pode seguir à universal Igreja e conversão de
muitas almas de ateus, gentios, judeus e de todo o género de herejes, julgou e disse que eram
merecedoras as ditas matérias de que na igreja se fizesse um concílio para maior qualificação delas."

4. SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
O Sermão foi pregado na Capela Real, em 1655. Vieira faz a sátira à arte
oratória da época, podendo ser, assim, o Sermão da Sexagésima considerado um meta-
sermão. Especialmente visados são os pregadores dominicanos, assim como os
sacrifícios a que se expõem os missionários:

"Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair.
Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair são
os que se contentam com pregar na Pátria. [...] Os de cá, achar-vos-ei com mais paço; os de lá com
mais passos"
"Dizei-me pregadores (aqueles com quem eu falo, indignos verdadeiramente de tão
sagrado nome), dizei-me: Esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso
parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Velho Testamento, ou nos
Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? - É certo
que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse não há tal cousa em
todas as Escrituras."

A temática deste sermão movimenta-se ao redor da expressão "Semen est verbum


Dei" (A semente é a palavra de Deus), como explicação da Parábola do semeador, no
Evangelho de S. Lucas, cap. VIII. No primeiro capítulo, Vieira dá-nos a explicação da
razão de ser da palavra "semeador", aludindo aos missionários, no contexto do sermão:

4
Hernâni Cidade, Padre António Vieira, Obras Escolhidas, Vol. VIII - História do Futuro, Prefácio, p.
XII.
6

"Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da Missão do Maranhão, de doze anos a esta
parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas;
houve Missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na Ilha dos Aroãs; houve
missionários mirrados [...] da fome e da doença"

As restantes imagens, trigo, espinhos, pedras, caminhos, terra, são explicadas,


no segundo capítulo, com rigor, e a intenção de clarificar a analogia semeador -
pregador.

A terceira parte do sermão analisa as condições de base para se evitar o


insucesso junto do "coração dos homens", enquanto na secção seguinte (IV) somos
confrontados com a enumeração das cinco características que compõem o pregador
ideal: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. Cada uma irá ser tratada
separadamente em cada um dos capítulos seguintes.

5. A BÍBLIA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

"Então o Senhor te dará chuvas para as


sementes que semeares na terra, e o pão,
que a terra produzir, será nutritivo e
saboroso."
Is. 31-23

Para além dos diversos aspectos que envolvem este sermão, as citações bíblicas
constituem um elemento muito especial que confere ao texto, não só uma força e uma
autenticidade religiosas, como também uma grande riqueza, uma chuva intensa,
persistente e fértil, muito produtiva

ÊXODO "Todavia, como o Senhor tinha predito, o coração do


Faraó endureceu e não quis escutar Moisés e Aarão."
(Ex. 7-13)

DEUTERONÓMIO "Que o meu ensinamento se espalhe como a chuva,


e o meu discurso se derrame como o orvalho,
como o aguaceiro sobre as plantas,
e como as gotas espremidas sobre a relva!" (Dt. 32-2)

SALMOS "Os céus proclamam a glória de Deus


o firmamento anuncia as obras das Suas mãos." (Sl. 18-2)
"Não são ditos nem discursos
de que não se perceba a voz;" (Sl. 18-4)

ISAÍAS "Que coisa poderia eu fazer pela minha vinha


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que não tenha feito?


Porque, esperando eu que desse boas uvas,
apenas produziu agraços?" (Is. 5-4)
"ele não grita, não levanta a voz,
não clama nas ruas." (Is. 42-2)
"Quem são estes que voam como as núvens,
como as pombas que voltam ao seu pombal?" (Is.60-8)

JEREMIAS "... a quem for dado ouvir a Minha palavra,


reproduza-a fielmente. Que comparação pode haver
entre a palha e o grão?" (Jer. 23-28)

EZEQUIEL "Cada qual prosseguia direito diante de si;


iam para onde o espírito os fazia ir; e ao caminharem não
se
voltavam." (Ez. 1-12)

JONAS "Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída" (Jon. 3-4)

MATEUS "Preparai o caminho do Senhor, endireitai as Suas


veredas"
(Mt. 3-3)
"Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra
que sai da boca de Deus" (Mt. 4-4)
"Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus
e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores" (Mt. 5-
45)
"mas não o encontraram, embora se tivessem apresentado
muitas falsas testemunhas" (Mt. 26-60)
"Mas eles gritavam cada vez com mais força:
» Seja crucificado! « (Mt. 27-23)

MARCOS "Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova


a toda a criatura" (Mc. 16-15)

LUCAS "A semente é a palavra de Deus" (Lc.8-11)


"... não encontrei n'Ele nenhum dos crimes ..." (Lc. 23-
14)

JOÃO "E o verbo fez-se homem" (Jo. 1-14)


"Eu sou a voz que brada no deserto" (Jo. 1-23)
"Ele falava do santuário do Seu corpo" (Jo. 2-21)

CARTA AOS "Senhor, quem acreditou na nossa pregação?" (Rom. 10-


16)
ROMANOS

ACTOS "Viram, então, aparecer umas línguas à maneira


de fogo, que se iam dividindo" (Act. 2-3)
8

6. O SEMEADOR DE POETAS MORTOS


O carácter sempre actual do Sermão da Sexagésima

Não é muito difícil estender-se um pouco mais a nossa imaginação ao ponto de


se associar: semeador - pregador - professor. Se for possível ao leitor saborear nesta
perspectiva o discurso de Vieira no Sermão da Sexagésima, então a leitura aproxima-o
da realidade de uma sala de aula convencional de uma qualquer escola de finais do séc.
XX;
Nesse caso, um exemplo de uma leitura, embora apenas ao nível da mera
percepção, das primeiras linhas do cap. IV, seria:

"Mas como em um professor há tantas qualidades e numa aula tantas leis, e os


professores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? - No professor
podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz.
A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que
fala."

BIBLIOGRAFIA

Cidade, H., Padre António Vieira, Obras Escolhidas, Sá da Costa Ed., Lisboa, 1951.
Pradt, M, Jésuitisme Ancien et Moderne, A. Leroux et Chautpie, Ed., Paris, 1826.
Leite, S., Suma Histórica da Companhia de Jesus no Brasil, Junta de Investigações do
Ultramar, Lisboa, 1965.
Ferreira, Maria E.T., Antologia Literária, Ed. Aster, Lisboa, s.d.
Saraiva, A.J., História da Literatura Portuguesa, Porto Ed., 8ª ed., Porto, 1975.
Bassano, M., Os Jesuítas, (traduç

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