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O CONTEXTO HISTÓRICO-
LITERÁRIO
PARA SABER...

Autor desconhecido,
Padre António Vieira (início do século XVIII).
Padre António Vieira: vida
e obra
O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, no dia 6 de fevereiro
de 1608, e morreu na Baía, no Brasil, no dia 18 de julho de 1697. De
origem modesta, era filho de Maria de Azevedo e de Cristóvão Vieira
Ravasco.
Em 1614, o pai decidiu emigrar para o Brasil, levando consigo a
família. Fixaram-se na Baía, onde Vieira começou a frequentar o
Colégio da Companhia de Jesus. Numa fase inicial, o menino não
obtinha resultados brilhantes na aprendizagem, tendo, no entanto,
subitamente revelado surpreendentes capacidades — mudança que
foi interpretada como um milagre de Nossa Senhora das Maravilhas.
A inteligência do jovem Vieira terá sido o principal motivo que levou
os Jesuítas a persuadi-lo a ingressar na Companhia de Jesus. Em 1623
inicia o noviciado, tendo sido enviado pelos seus superiores, quando
contava apenas 15 anos, para a missão do Espírito Santo. Esta
experiência permitiu-lhe conhecer a mundividência dos Índios e
aprender tupi.
Em 1634, Vieira recebe a ordenação sacerdotal na Sé da Baía.
Contudo, já antes iniciara a sua atividade de pregador — a sua
primeira pregação oficial foi proferida em 1633. Isto significa que,
mesmo antes da ordenação, os seus dotes de pregador já haviam sido
reconhecidos.
No início de 1641, chega ao Brasil a notícia da Restauração da
Independência de Portugal e de que D. João IV se tinha tornado rei. O
Padre António Vieira foi então escolhido pelo vice-rei, D. Jorge de
Mascarenhas, para integrar a delegação que viria a Lisboa comunicar
a adesão do Brasil à causa nacional. Quando a comitiva se encontrou
com o novo rei, a empatia entre o monarca e o Padre António Vieira
foi evidente, de tal forma que D. João IV viria a proteger o sacerdote ao
longo de todo o seu reinado.
Em Lisboa, António Vieira começou a ganhar fama pelos seus dotes
de pregador. As igrejas enchiam-se de tal forma para ouvir os seus
sermões que os nobres chegavam a enviar os seus criados para
marcarem, de véspera, o lugar que viriam a ocupar durante a missa.
Nos sermões, o pregador denunciava frequentemente as injustiças e
os abusos dos poderosos em relação aos mais desfavorecidos.
Além disso, Vieira apoiava também a causa da Restauração e D.
João IV, acreditando que seria este rei (e não D. Sebastião, como
antes se dissera) a concretizar o advento do Quinto Império, no qual
os Portugueses reinariam sobre o Mundo, difundindo a sua fé a todas
as nações. O apoio ao monarca leva-o a ser convidado a
integrar várias missões diplomáticas ao seu serviço. É nessa condição
que viaja para França e, posteriormente, para a Holanda. Neste país,
terá várias disputas teológicas e doutrinais com alguns dos membros
mais ilustres da sinagoga de Amesterdão, como Manassés-ben-
-Israel.
Os resultados destas suas missões diplomáticas não são
satisfatórios: quando regressa a Lisboa, todas as propostas que traz
são rejeitadas. Contudo, consegue a autorização do rei para organizar
a primeira de uma série de companhias de comércio para as colónias,
que seriam apoiadas pelo capital de cristãos-novos, com a
contrapartida de que, se estes fossem condenados pelo Santo Ofício,
os seus bens não seriam confiscados. No entanto, este projeto acaba
por se gorar devido à oposição da Inquisição. Em consequência, o
Padre António Vieira tece fortes críticas a esta instituição nos seus
sermões, o que leva a que seja denunciado ao Santo Ofício. A proteção
do rei salva-o de ser perseguido.
Enviado numa missão diplomática a Itália, Vieira não terá, mais uma
vez, sucesso na tarefa de que fora incumbido. Regressa a Lisboa e a
sua situação é tão desfavorável que nem o rei se opõe ao
seu regresso ao Brasil.
Em 1653, chega a São Luís do Maranhão. Contudo, também aqui
encontrará instabilidade. A publicação da ordem régia que concedia a
liberdade aos índios cativos provocou a discórdia entre os colonos e
os missionários. Com a coragem e a frontalidade que o
caracterizavam, o Padre António Vieira servia-se do púlpito não só
para defender a libertação dos Índios, como para criticar ferozmente os
pecados dos colonos. Estes enviaram então para Lisboa protestos
contra Vieira, pelo que o pregador decidiu deslocar-se pessoalmente
ao Reino para defender a sua posição. Porém, ainda antes de
partir, no dia 13 de junho de 1654, prega o Sermão de Santo António aos
Peixes, no qual, através de uma alegoria, recorre a estes animais para
criticar os pecados dos homens, em geral, e dos colonos, em
particular.
A viagem foi tumultuosa: além de tempestades, a embarcação
sofreu o ataque de corsários holandeses, que não só lhes roubaram
todo o açúcar que transportavam como os deixaram, sem roupa e com
fome, na ilha Graciosa.
Quando finalmente chegou a Lisboa, Vieira encontrou o rei
gravemente doente. Apesar disso, o monarca voltou a protegê-lo,
tendo elaborado uma provisão régia que dava razão aos jesuítas na
questão que os opunha aos colonos.
Assim, o sacerdote regressa ao Brasil, tendo mandado recolher
todas as expedições que andavam pelo sertão a capturar índios e
ordenando que todos os índios cativos fossem libertados. Os colonos
reagiram de forma muito violenta, mas Vieira conseguiu, com o apoio
do governador, fazer valer a sua posição.
Contudo, a morte de D. João IV, em 1656, vem privá-lo da proteção de
que gozara durante o seu reinado. Os seus inimigos vencem, e Vieira
é preso e enviado, juntamente com outros missionários, para Portugal.
Aqui, a Inquisição começa também a persegui-lo, em virtude da relação
que ele estabelecera entre D. João IV e o Quinto Império. Acaba por
ser condenado a um regime de clausura, pena que, no entanto, é
posteriormente atenuada.

D. João IV (1604-1656).

PARA SABER MAIS


Os sermões de Vieira sobre Santo António
António Vieira compôs um conjunto de sermões dedicados à figura
de Santo António. O que ele proferiu no Maranhão, em 1654, é o
mais célebre e há muito que passou a ser conhecido por Sermão de
Santo António aos Peixes. Famoso é também o sermão sobre o mesmo
santo que Vieira pronunciou em Roma, em 1670, acerca da
missão evangelizadora dos portugueses no mundo.
Parte então para Roma, no intuito de procurar proteção em relação à
Inquisição. Aqui vai ganhando prestígio como orador, acabando por
ser nomeado pregador oficial da rainha Cristina da Suécia em 1673.
Contudo, continuava com saudades de Portugal. Assim, quando
conseguiu obter do Papa Clemente X um decreto que o libertava da
jurisdição da Inquisição portuguesa, regressou à pátria.
No entanto, em Portugal, depara com a frieza do príncipe, acabando
por voltar para o Brasil, onde dedicou o fim da sua vida a preparar a
publicação dos sermões.
Texto elaborado com base no verbete «Padre António Vieira», de Aníbal Pinto de
Castro,
Biblos — Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, 
vol. 5, Lisboa, Verbo, 2005, cc. 854-874.

A época de Vieira
A situação de instabilidade de um Portugal pós-Restauração (1640) —
independente mas em crise, pressionado pela constante ameaça
estrangeira aos nossos domínios ultramarinos — e a defesa dos
direitos humanos, nomeadamente dos índios do Brasil escravizados
pelos colonos, bem como dos cristãos-novos perseguidos pela Inquisição,
são preocupações a que Vieira se manteve sempre fiel até ao fim da sua
vida.
Ao assumir o poder, D. João IV teve de enfrentar um país
moralmente exausto e financeiramente decadente em consequência da
longa luta travada com Castela. A monarquia encontrava-se ameaçada
e perigosamente vacilante, despojada como estava de órgãos de
autoridade capazes de lhe garantir o poder absoluto.
Com os cofres vazios, impunham-se necessidades de vária ordem a
um povo que conservava ainda a memória do esplendor passado dos
Descobrimentos.
A Restauração só poderia subsistir se fosse financiada pelos
«homens de negócio» que orientavam em Portugal as grandes
transações. Foi, com efeito, sobre os recursos económicos dos cristãos-
novos que o País se apoiou nas horas difíceis do recomeço, mediante a
isenção do confisco inquisitorial que lhes foi concedida pelo monarca a
conselho do sagaz jesuíta, cujo poder de argumentação é visível na
proposta que lhe submetera. A causa dos cristãos-novos advogada por
Vieira, além do incontestável carácter humanitário, do patriotismo e da
solidariedade para com a Companhia de Jesus (a qual tomava
partido contra a Inquisição, sua eterna rival), tinha também uma
finalidade económica, pois visava mitigar a miséria nacional através
dos largos proventos dos Hebreus.
Era, pois, angustioso o clima que se vivia então em Portugal, tanto no
aspeto económico, como político, como social. A Nação definhava em
consequência das perdas sofridas.
Os Holandeses haviam-se apoderado de cinco capitanias do
Nordeste Brasileiro e para as suas mãos resvalara também Angola e
São Tomé. Era urgente reconquistar esses territórios, mas impunha-
se, igualmente, a celebração de uma aliança entre os dois países para
esmagar Castela. Interessava a Portugal a influência da Holanda no
xadrez político para a sua admissão no Tratado de Vestefália, pois
tal equivaleria ao reconhecimento da independência por parte da
Europa. Vieira chegou a Haia em abril de 1646, onde projetava negociar
a paz com a Holanda através da entrega de Pernambuco «para a
tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em
melhor fortuna».
Um dos eventos históricos que já vinham recrudescendo ao longo
de toda a dominação filipina foi o Sebastianismo, forma de louca ânsia
messiânica num rei justo e redentor de uma pátria mergulhada em
letargia. Ideal cristalizado na memória de um povo sedento de
autonomia, a crença sebastianista no predestinado incitou os espíritos
à luta pela independência nos anos sombrios da repressão
castelhana. À semelhança dos seus contemporâneos, Vieira não se
mostrou insensível ao apelo profético, que ia, aliás, tão ao encontro do
seu marcado pendor, avivado por uma educação escolar propícia a
cogitações visionárias. Do alto do púlpito, desafiando corajosamente
os algozes da Inquisição, o jesuíta modela um sebastianismo novo,
dinâmico, ajustado ao contexto da Restauração.
D. João IV torna-se o Messias que após sessenta anos de humilhante
subordinação a Castela vem libertar o País e devolver-lhe o estatuto
de nação escolhida para os desígnios do Eterno.
Maria das Graças Moreira de Sá, in Padre António Vieira, Sermões Escolhidos,
4.ª ed., s.l. [Lisboa], Ulisseia, 1999, pp. 15-20 (com adaptações).
 
1. Registe por tópicos os principais factos sobre a época retratada
neste texto.
Vieira e a escravatura dos Índios
Em 16 de janeiro de 1653, «com vontade ou sem ela», António
Vieira desembarcou em São Luís do Maranhão. Chefiava uma missão
de trinta religiosos. Os colonos, os soldados, os administradores, a
«república» diziam que se não podiam sustentar sem índios. No
Maranhão, o sistema assentava na escravatura dos indígenas.
Naquele vastíssimo território, atravessado pelos grandes rios,
viviam os índios livres, no interior dos matos, os índios escravos dos
colonos portugueses e os índios cristianizados das aldeias que
circundavam as povoações dos brancos. Estas aldeias eram
administradas no espiritual e no temporal pelos padres da Companhia.
Mas estes índios livres das aldeias, como escreveu o Padre António
Vieira, «em tudo são tratados como escravos, não tendo mais
liberdade que no nome».
Mal chegou ao Maranhão, António Vieira quis saber se os escravos
índios tinham sido capturados cumprindo as obrigações da ordenação.
E no sermão da Primeira Dominga da Quaresma de 1653 entrou a
matar: «Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em
estado de condenação; e todos vós ides direitos ao inferno. Já lá
estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não
mudardes de vida.»
 
A reação não se fez esperar. Ao afixarem a ordenação nas portas da
cidade, o demónio soltou as línguas: a ordenação era obra dos padres
da Companhia. Levantaram-se as vozes e no tumulto arrancaram das
portas o edital. Nobreza, religiosos e povo entregaram ao governador um
abaixo-
-assinado para retirar a ordenação. Mandaram o papel aos Jesuítas para
assinarem. Recusaram. Na primeira hora da noite, o tumulto cresceu e
reluziram as espadas: «Padres da Companhia fora! Fora inimigos do
bem comum. Metam-nos em duas canoas rotas!» O
Governador acorreu com três companhias com espingardas e morrões
acesos.
Entretanto chegavam do Reino os procuradores daquele Estado com
ordens para alterar a política relativa aos Índios. Surdos os ouvidos
dos homens, o Padre António Vieira falou então aos Peixes e veio a Lisboa.
Regressou ao Maranhão em 16 de maio de 1655. Obtivera que os
Jesuítas ficassem com o exclusivo das missões. De 1655 a 1661
peregrinou por mais de seiscentas léguas do sertão. Contudo, as
expedições de compra e captura de índios continuaram.
Porém, os colonos não viam com bons olhos o protagonismo dos
Jesuítas. E no ano seguinte, em maio, os habitantes de São Luís do
Maranhão assaltaram o Colégio e levaram presos os padres. Não os
queriam na administração dos Índios. Vieira vinha no mar. Não o
deixaram desembarcar. Meteram todos os jesuítas na nau Sacramento e
despacharam-nos para o Reino.
Entretanto, os Jesuítas puderam regressar ao Maranhão, sem
jurisdição secular, sem o exclusivo espiritual das comunidades
ameríndias e sem o Padre António Vieira.
António Borges Coelhos, «Algumas notas sobre o tempo e a vida do Padre António
Vieira»,
in J. Cândido Oliveira Martins (org.), Padre António Vieira: Colóquio, Sermões Escolhidos,
Braga, Universidade Católica Portuguesa, 2009, pp. 68-70 (com adaptações).

O Barroco: A arte da época de Vieira

Caravaggio, São Jerónimo escrevendo (1606).


A conceção predominante nos estudos sobre o Barroco é a que o
considera como um período histórico, situado entre fins do século
XVI e meados do século XVIII, com balizas cronológicas não
rigorosamente delimitáveis nem perfeitamente coincidentes nos
diversos países em que se manifesta. O Barroco seria a arte da
Contrarreforma. A arte barroca corresponde claramente a uma
ideologia religiosa triunfante e que ostenta esse triunfo.

Princípios artísticos do Barroco


Barroco e retórica — A cultura barroca, em todas as suas
manifestações, é fortemente marcada pela retórica, a arte da persuasão.
É bem conhecido o relevo que a retórica assume no plano pedagógico
e a repercussão deste facto na produção literária. Mas também as
artes plásticas — da pintura à arquitetura — desenvolvem processos
de captação do destinatário, de manipulação dos seus afetos, quer por
meio de técnicas de sedução sensorial quer por meio de
representações alegóricas de sentido facilmente captável pela
sensibilidade ou pela inteligência dos recetores.
Metamorfose e ostentação — O Barroco é tempo de ostentação e de
grandeza, de riqueza, de materiais preciosos: lembremos a
sumptuosidade de templos e palácios, o abundante recurso à talha
dourada, a profusão estonteante de ouro, prata e pedras preciosas em
objetos de carácter religioso ou profano. Tempo também de ostentação
de artifícios, de virtuosismo formal, de engenho. Este gosto da
ostentação associa-se ao trabalho de metamorfose, de transfiguração da
realidade, de representação artificiosa de uma outra realidade,
mesmo que paradoxalmente construída apenas por aparências. O
Barroco cultiva a arte da ilusão: uma ilusão consciente, que não
pretende enganar, mas sim seduzir.
Excesso — A cultura barroca tem sido também caracterizada
pelo gosto do excessivo, bem presente na sobrecarga ornamental e
decorativa no campo artístico, na expressão hiperbólica em literatura, na
representação patética e minuciosa de cenas de violência, de que as
descrições do inferno em muitas obras religiosas da época são um
bom exemplo.
Teatralidade — É outra das características que mais profundamente
individualizam a época barroca e a sua cultura; uma característica que
se exprime no shakespeariano the world is a stage como
no calderoniano1 gran teatro del mundo. Falar da teatralidade do Barroco
significa ter em vista a importância que o teatro, o espetáculo cénico,
assumiu nesta época, como fenómeno social de divertimento das
populações, bem como de doutrinação religiosa e política.
Mas significa também algo de mais profundo: uma conceção do mundos
e da vida como teatro, isto é, como jogo de aparências, como engano e
ilusão efémeros.
Sensorialismo — A arte barroca é profundamente sensorial, isto é,
faz apelo às sensações e explora-as com comprazimento.
Pretende seduzir os sentidos, sobretudo a visão, e por meio deles falar
ao espírito. O tema dos cinco sentidos ocorre frequentemente quer
para representar os seus deleites quer para, numa atitude ascética, os
recusar. Mas verifica-se muitas vezes que mesmo esta atitude de
renúncia é acompanhada de representação gozosa das sensações a
que se diz renunciar. O sentido privilegiado pelas representações
barrocas é a visão. A cultura barroca é marcada pelo intenso
visualismo das suas manifestações: a grandiosidade e complexidade
das encenações teatrais, a arquitetura com o insistente recurso
ao trompe-l'oeil, a pintura com os jogos de claro-escuro, as festas
públicas com a sumptuosidade de arcos triunfais e outras efémeras
formas arquitetónicas, a prática parenética acompanhada de
representações visuais, e até a literatura cultivando processos
retóricos tendentes à visualização.
Maria Lucília G. Pires, «Barroco», Biblos — Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1995, cc. 575-581 (com adaptações).

ESTUDO CRÍTICO

Sermão e pregação
As características do Sermão
Como orador, Vieira foi precetista no Sermão da Sexagésima (1655),
onde expôs parte das suas ideias retóricas, estéticas, linguísticas,
religiosas e morais, relativas às tradicionais faculdades do orador, as
cinco que sempre figuraram nos tratados de retórica, quer laica quer
cristã: invenção, disposição, elocução, pronunciação e memória (não
abordou esta última). Nesse importante texto, com que abriu
intencionalmente a obra maior, Sermões, apresentando-o como
manifesto artístico e religioso, toca ainda outros assuntos específicos
das artes retóricas, privilegiados na época barroca: os que dizem
respeito ao carácter do orador (ethos), à importância persuasiva da
visão (ponere ante oculos), às finalidades do discurso, ou
seja, movere, delectare, docere, com insistência na primeira delas, ou
ao valor dos afetos (pathos): «Quando o ouvinte a cada palavra do
pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para
o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa
confuso, e atónito, sem saber parte de si, então é a pregação qual
convém, então se pode esperar que faça fruto.» 
Margarida Vieira Mendes, História da Literatura Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Publicações
Alfa, 2002, pp. 171-195, 182-183 (com adaptações).

Peter Paul Rubens, Santo Inácio de Loyola (início do século XVII).


Frontispício da primeira edição dos Sermões do Padre António Vieira (Primeira parte,
1679).

A «agudeza» no estilo culto


É costume ligar-se o estilo culto ou «cultismo» dos séculos XVII-
XVIII aos jogos de palavras, imagens e construções (o barroquismo
verbal, segundo António Sérgio), e opor-se-lhe o «concetismo», ou
seja, os jogos de conceitos (o barroquismo do pensamento). Os
nossos historiadores literários adotam esta divisão —
cultismo/concetismo — para o conhecimento da escrita barroca, mas
esta distinção não existia no século XVII.
Defendemos nós que a «agudeza», fundamento do concetismo e
muito usada pelos cultos, e que poderá definir-se como a busca
de relações ou «proporções» subtis entre dois ou mais termos,
geralmente factos e ideias, seres e conceitos, muitas vezes — nos
sermões de Vieira quase sempre — ao serviço da argumentação e
persuasão, só se torna visível e crível quando na própria estrutura
frásica e vocabular as mesmas relações aparecem como que em
espelho. A linguagem não está lá para transportar as ideias; está lá
para as tornar visíveis, imitando-lhes a configuração, como um seu
simulacro material. Todas estas «figuras [de estilo]», toda esta matéria
profética se vai espelhar, por similitude, na forma dos
conceitos. Defendia Gracián que as analogias entre palavras faziam
descobrir analogias entre as coisas. Torna-se assim impossível aderir
a qualquer tipo de distinção entre os jogos de palavras e os jogos de
conceitos, aplicada à escrita barroca portuguesa.
Margarida Vieira Mendes, Sermões do Padre António Vieira, 4.ª ed., Lisboa, Editorial
Comunicação, 1992, pp. 26-32 (com adaptações).

Glossário
Barroco: período artístico que se segue ao Renascimento e ao
Maneirismo e se desenvolve ao longo do século XVII e primeira
metade do século XVIII. As artes plásticas barrocas caracterizam-se
pela força das cores, pelo excesso de ornamento, pelo apelo às
sensações e pela teatralidade. A ostentação está também presente na
literatura, onde se aposta na retórica (uso de recursos expressivos) e
numa linguagem rebuscada.
Agudeza: arte do uso das palavras, que se traduz sobretudo em
admiráveis associações e contrastes entre ideias e vocábulos: por
exemplo, a associação entre homens e peixes e as ideias e relações que
os aproximam.
Alegoria: cf.  Ficha 12 
Conceito predicável: frase ou expressão retirada da Bíblia que serve
de ponto de partida para a argumentação do pregador no Sermão: por
exemplo, «Vos estis sal terrae.» A ideia é retomada ao longo do texto
sermonístico para conferir coesão e garantir a ligação ao tema tratado.
Oratória: arte de falar em público e de argumentar com
propriedade e de forma persuasiva. No século xvii, aplica-se sobretudo
ao sermão.
Parenética: arte de pregar ou eloquência do orador religioso que se
revelava no sermão.
Púlpito: varandim das igrejas que servia de tribuna para
os sacerdotes pregarem.
Retórica: conjunto de princípios, regras e elementos (como os
recursos expressivos) que podem ser mobilizados quando se profere
um discurso ou quando se escreve um texto.

O CONTEXTO HISTÓRICO-
LITERÁRIO
PARA SABER...
Almeida Garrett (1799-1854).

A vida e a obra de Almeida Garrett


João Baptista da Silva Leitão (mais tarde, de Almeida
Garrett) nasceu no Porto, em 1799. Aí passou a primeira infância, num
caloroso ambiente burguês que lhe deixaria gratas recordações. Aos
10 anos parte com a família para os Açores, onde inicia a sua
formação literária, sob a tutela do tio frei Alexandre da Sagrada
Família, bispo de Angra.
Em 1816 ingressa na Universidade de Coimbra, para seguir estudos de
Leis. A vivência académica seria determinante na sua iniciação
política e filosófica. Ainda estudante, participa no movimento
conspirativo que conduziria à revolução de 1820. Paralelamente,
despontava, irreverente, a vocação literária.
No período conturbado que se seguiu, o trajeto pessoal do escritor
(já casado com uma menina elegante, Luísa Midosi) entrelaça-se com
a história política do Liberalismo. A revolução foi um breve momento de
entusiasmo liberal, logo desfeito pela chegada ao poder da fação
conservadora, que apoiava o infante D. Miguel. Garrett foi obrigado a
deixar o País (entre 1823 e 1826), situação que se repetiria pouco
tempo depois (1828-1831), na sequência da abdicação de D. Pedro.
No entanto, o escritor encontra na circunstância penosa do exílio uma
oportunidade intelectualmente vantajosa. A permanência em França e
Inglaterra permitiu-lhe conhecer o movimento cultural europeu, na sua
dimensão artística e ideológica. A publicação (ainda em Paris) dos
poemas Camões e Dona Branca — os primeiros textos românticos
portugueses — constitui o resultado mais simbólico e expressivo
dessa experiência.
O regresso a Portugal, em 1832, integrando a expedição liberal
comandada por D. Pedro, constituiu um momento heroico para o
«poeta-soldado», que se incorpora no Batalhão Académico. Garrett foi
chamado a participar nas reformas legislativas do novo regime, mas
pouco depois afastado do poder, sob pretexto de missões
diplomáticas no estrangeiro. Voltará à cena política em 1836, no contexto
da «Revolução de Setembro», pela mão de Passos Manuel: faz parte das
Cortes Constituintes e ajuda a redigir a Constituição de 1838. Além de
deputado, desempenha também um papel relevante no programa de
educação cultural setembrista, designadamente na renovação da
dramaturgia nacional: empenha-se na criação da Inspeção-Geral
dos Teatros, do Conservatório de Arte Dramática e do futuro Teatro
Nacional.
Durante os anos 40, sob o regime autoritário de Costa Cabral, Garrett
destaca-se na oposição. Descontente com o devir da revolução, afasta-se
da vida pública em 1847. Desse desencanto patriótico dão significativo
testemunho algumas obras publicadas neste período, o mais fecundo
da criação literária garrettiana: O alfageme de Santarém, Frei Luís de
Sousa, Viagens na minha terra e O arco de Sant'Ana.
Em 1851 regressa ao Parlamento, já sob a acalmia política
da Regeneração. Recebe nesta derradeira fase da vida alguns gestos
oficiais de consagração: é feito visconde, em 1851, e nomeado Par do
Reino, no ano seguinte; chega ainda a ocupar um cargo ministerial
(Negócios Estrangeiros), de que seria demitido pouco tempo
depois. Morreu a 9 de dezembro de 1854, depois de uma vida
sentimental romanticamente atribulada.
Ancorada no tempo histórico do Liberalismo, a obra literária
garrettiana não pode conceber-se alheada do contexto político e
cultural que a motivou. Da mesma circunstância decorre a orientação
«iluminista» e eticamente empenhada do seu trajeto literário, por
entender que «o poeta é também cidadão».
A poesia lírica e narrativa dominaria a primeira fase da sua carreira,
ainda oscilante entre a lição do Neoclassicismo convencional e a nova
corrente romântica, de inspiração nacionalista. Depois do
controverso O Retrato de Vénus (1821), publica, no exílio, os
poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) — textos fundadores do
Romantismo português —, a que se seguiria a coletânea Lírica de João
Mínimo (1829). Começou também nesta fase o trabalho de recolha e
preparação dos textos do cancioneiro tradicional português, fonte
inspiradora dos poemas narrativos « Bernal francês» e «Adozinda»
(1828), e posteriormente do Romanceiro (1843; 1851).
A par da produção literária, o jornalismo ocupa neste período um lugar
importante na sua escrita. Garrett cedo se apercebeu do imenso poder
democratizador da imprensa nas sociedades modernas. Datam
também dos tempos do exílio dois importantes ensaios: Da
Educação (1829), um tratado de filosofia pedagógica dedicado à futura
rainha D. Maria II; e Portugal na balança da Europa (1830), uma notável
reflexão de índole histórico-política.
A fase da maturidade (década de 40, sobretudo) seria particularmente
fecunda, do ponto de vista literário. Garrett atribuía ao Teatro uma alta
função civilizadora, e empenhou-se intensamente na sua renovação.
Queria uma produção nacional de qualidade, suscetível de elevar o
gosto e a cultura do público. A vocação dramatúrgica, revelada
na juventude (as tragédias Catão, Lucrécia e Mérope), conhece a partir
de 1838 um novo élan, com o êxito de Um auto de Gil Vicente. Seguir-se-
ia um conjunto de peças que modelizam, em diferentes géneros, a sua
eclética veia teatral: o drama histórico — O alfageme de Santarém, Frei
Luís de Sousa, D. Filipa de Vilhena — e a comédia — Falar verdade a
mentir, Profecias do Bandarra, Um noivado no Dafundo, entre
outras. Frei Luís de Sousa (1844) é, sem dúvida, a peça que melhor realiza o
seu ideal de sobriedade artística: combinando o pathos da tragédia clássica
com a atualidade vivencial do drama familiar, constitui um texto
modelar da literatura dramática nacional.
A poesia lírica, embora continue em certos aspetos datada, conhece
também uma renovada inspiração. Das duas coletâneas poéticas desta
fase — Flores sem fruto (1845) e Folhas caídas (1853) —, a última é sem
dúvida a mais interessante, e onde mais livremente se expande o
individualismo romântico.
Apesar de escassa, a obra romanesca de Garrett tem um rasgo
inconfundível de originalidade. Viagens na minha terra (1843-1846) pode
considerar-se a primeira narrativa moderna portuguesa: utilizando um estilo
desenvolto e informal, em diálogo permanente com o leitor, o autor
realiza, à maneira de Stern, uma obra-prima de ironia intelectual; sob o
pretexto de uma crónica de viagem (que também é), oferece-nos uma
ampla e lúcida representação do tempo histórico e social do
Liberalismo. Idêntica estrutura digressiva e aparentemente desconexa
caracteriza o romance histórico O arco de Sant'Ana (1845-1851), um texto
polémico e repassado de humor, cuja ação se reporta a uma revolta
popular contra o bispo do Porto, no século XIV.
Maria Helena Santana, «Almeida Garrett», Instituto Camões,  Centro Virtual Camões,
http://cvc.instituto-camoes.pt/figuras/agarrett.html, s.d. (com adaptações).

PARA SABER MAIS


Cabralismo (1842-1846)
Cabralismo é o nome dado à política autoritária do governo de
António Bernardo da Costa Cabral. Os mais conservadores voltam a
conduzir os destinos do País e algumas liberdades individuais são
limitadas. Garrett e Alexandre Herculano insurgem-se contra a
governação cabralista, que tem contornos ditatoriais. Tanto Frei Luís de
Sousa como Viagens na Minha Terra rejeitam e afrontam a
política despótica de Costa Cabral.

A época de Garrett: as lutas liberais


Tabela elaborada com base em Sara M. Pereira, «Época
Contemporânea», in Miguel Corrêa Monteiro (coord.), Enciclopédia do
Estudante: História de Portugal, vol. 15, Carnaxide, Santillana
Constância/Público, 2008, pp. 179-
-181, 184-185.
Honoré Daumier, caricatura representando D. Pedro IV e D. Miguel I 
a disputar a coroa portuguesa (1833).

Características da literatura romântica
A dimensão histórico-cultural, a variedade temática e mesmo
algumas contradições ideológicas fazem do Romantismo um período
literário de complexa e árdua caracterização.
O tempo do Pré-Romantismo, fase inicial do período, revela autores
e temas decisivos para a formação do Romantismo. A identificação
com a natureza, lugar de autenticidade e pureza, a vivência do
sentimento do amor, sentimento angustiado e fatidicamente resolvido,
a valorização emocional e mesmo estética do sentimento
religioso provêm do Pré-Romantismo e estendem-se ao Romantismo,
em várias latitudes e registos.
Com eles chegam também outros temas e
comportamentos fundamentais: a rebeldia do herói romântico, a busca
do absoluto (por exemplo: o absoluto amoroso), a ironia crítica e
distanciadora, o culto da liberdade, a instabilidade gerada pelo vague des
passions e pelo mal du siècle, a autenticidade por vezes aliada ao gosto
do popular e do tradicional, noutros casos conjugada com a evasão
para cenários exóticos ou para tempos medievais, e o dandismo
antiburguês constituem alguns desses temas e comportamentos.
O Liberalismo foi, pois, para muitos românticos, uma referência
ideológica incontornável do Romantismo. Declarou-o expressamente
Victor Hugo no famoso prefácio de Hernani: «O Romantismo»,
escrevia em 1830, «não existe levando-se tudo em consideração — e
esta é a sua definição real — se não for encarado pelo seu lado
militante, que é o do “liberalismo” em literatura».
A liberdade de pensamento e de expressão, a fraternidade social,
nalguns casos mesmo a apologia da soberania popular constituem
valores que estreitamente se cruzam com a
propensão individualista e idealista que caracteriza uma
parcela significativa do Romantismo europeu; não por acaso, Lilian R.
Furst conexionou o individualismo romântico com os ideais saídos
da Revolução Francesa: «A afirmação da esmagadora importância do
indivíduo representa, na verdade, o crucial ponto de viragem na
história da sociedade e na da literatura. Desta crença nos direitos dos
indivíduos decorrem os ideais de liberdade, fraternidade e
igualdade que inspiraram a Revolução Francesa.»
A par disso — e algumas vezes como consequência disso —, o
Romantismo foi também ideologicamente nacionalista. Não
esqueçamos que o tempo romântico corresponde à época de
refundação e reafirmação de nacionalidades; e o envolvimento direto
de escritores românticos em causas nacionalistas (em prol da
independência da Polónia ou da Grécia, por exemplo) revela
expressivamente o profundo significado romântico de tais causas, de
certa forma na decorrência do culto da autenticidade a que já fizemos
referência e em sintonia íntima com o valor da liberdade.
Carlos Reis, «Pré-Romantismo e Romantismo», O Conhecimento da Literatura. Introdução
aos Estudos Literários, 2.ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 2008, pp. 422-427 (com
adaptações).
 
1. Registe por tópicos as características do Romantismo
mencionadas no texto.
Caspar David Friedrich, Caminhante sobre o mar de neblina (1818).

PARA SABER MAIS


O Romantismo em Portugal
O Romantismo é introduzido em Portugal, sobretudo, pela mão dos
escritores Almeida Garrett e Alexandre Herculano, que
haviam contactado com esta corrente durante o seu exílio europeu. O
primeiro dos autores compõe as duas obras fundadoras do
Romantismo Português: os poemas narrativos Camões (1825) e D.
Branca (1826). Garrett e Herculano são influenciados por
autores europeus como Byron, Walter Scott ou Lamartine.
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
A época da ação: de Alcácer-Quibir à união ibérica
O penúltimo episódio do drama já foi mil vezes descrito, falado e
representado. Antecâmara necessária do que muitos, na posteridade,
viram como uma tragédia maior — a integração de Portugal na monarquia
de Espanha —, a etapa final do reinado de D. Sebastião, depois de o rei
atingir a maioridade em 1568, foi em si mesma uma tragédia mitificada
pelos vindouros e indissociável, no seu fatal desenlace, de um dos
mitos referenciais da identidade do Portugal quinhentista, a honra de
combater o Infiel. Presságios e temores, não há dúvida de que
estiveram, mesmo antes do seu nascimento, em 1554, associados à
figura mítica por excelência de D. Sebastião. Desejado foi antes mesmo
de ver a luz do dia. Uns atrás dos outros, os nove filhos legítimos de
D. João III e D. Catarina tinham vindo sucessivamente a falecer.
Desde cedo que as coisas militares seduziram D. Sebastião. É
plausível, e encontra razoável fundamentação empírica, a ideia de que
o rei se assumiu como um combatente da Cristandade contra os
infiéis. E que o palco em que esperava concretizar
essa vocação deveria ser o Norte de África e, também, a Índia. Até
certo ponto, além de legados muito mais remotos, essa orientação
reflete um pendor bem característico da sociedade portuguesa de
meados do século XVI. Embora combatida por D. Catarina, D.
Henrique, boa parte dos conselheiros do rei, e até, muito mais tarde,
pelo próprio tio de D. Sebastião, Filipe II, esta orientação bélica tinha
um significativo fundamento nas referências identitárias das elites
portuguesas, bem como em acontecimentos recentes. O curto ciclo
que culminaria em Alcácer-Quibir parece ter principiado por volta de
1572, quando os ecos de Lepanto ainda se ouviam com vigor e o rei
falava em deslocar-se ao Algarve.
A batalha de Alcácer-Quibir, da qual subsistem muitas e
desencontradas narrativas, teve lugar a 4 de agosto e saldou-se numa
completa derrota das forças portuguesas, cercadas pelos seus
opositores e vencidas, ao que se diz, pela impreparação, pela
desigualdade numérica e pela deficiente utilização da artilharia. De
acordo com algumas das divergentes descrições da batalha que
se conhecem, apesar da bravura demonstrada por D. Sebastião e por
muitos que o acompanhavam, o rei terá falecido no campo de batalha,
tal como cerca de metade dos efetivos do seu exército, entre os quais
muitos fidalgos destacados.
Além do suposto cadáver do rei, que foi resgatado em Ceuta, em
dezembro de 1578, ficaram cativos alguns milhares de soldados e
centenas de fidalgos. O Reino mergulhou na maior consternação, pois
sabia-se que o reinado do cardeal-infante seria um intervalo antes de
outra solução mais definitiva. Porém, D. Sebastião, embora sepultado
em 1582 por Filipe II no Mosteiro dos Jerónimos, iria ressuscitar. O
messianismo possuía raízes remotas.
Eclesiástico de 66 anos e com uma longa experiência pastoral,
institucional e política, o cardeal-infante D. Henrique foi aclamado rei nas
circunstâncias trágicas descritas. Mas as duas questões mais
candentes desse curto reinado de menos de ano e meio foram, por um
lado, o resgate dos cativos de Alcácer-Quibir, e, por outro, a
incontornável questão sucessória.
Nuno Gonçalo Monteiro, «D. Sebastião e Alcácer Quibir (1568-1578)» e início de «O
cardeal-rei e Filipe II (1578-1580)», in Rui Ramos (coord.), História de Portugal, Lisboa, A
Esfera dos Livros, 2009, pp. 257-266 (com adaptações).

PARA SABER MAIS


Frei Luís de Sousa (1557/1558-1632)
Antes de ingressar na vida religiosa, dava pelo nome de Manuel de
Sousa Coutinho. De condição nobre, recebeu uma educação
humanística. Casou com D. Madalena de Vilhena (viúva de D. João de
Portugal), que tinha três filhos do anterior casamento, e que virá a ter
com ele uma filha, D. Ana de Noronha. Por desentendimentos com
os governadores do Reino (e não por revolta contra o
domínio castelhano), incendeia o seu palácio de Almada para não ser
obrigado a hospedá-los. Por motivos ainda não esclarecidos,
ingressa, tal como a mulher, na vida religiosa, adotando o nome de
Frei Luís de Sousa. É nesta condição que se virá a tornar um dos
maiores prosadores portugueses.

O Sebastianismo
O Sebastianismo, conhecido também por mito sebástico ou mito do
« Encoberto», é um mito messiânico originado no desaparecimento do
rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir em 4 de agosto de
1578, mas alimenta-se de raízes profundas, nomeadamente o
Bandarrismo (profecias do sapateiro de Trancoso, Gonçalo Anes
Bandarra, anterior a D. Sebastião e cujas Trovas foram depois àquele
rei adaptadas) e ainda os mitos peninsulares do Encubierto, além de
outras fontes do profetismo judaico correntes por toda a
Europa. Bandarra, nos meados do século XVI (pelos anos 30 e 40), ao
clamar pela vinda de «um chefe que mande» e de um «salvador» que
tire do mundo toda a «erronia», não está mais do que a fazer-se eco
de uma atmosfera messiânica relativamente generalizada, sobretudo
em comunidades de forte presença judaica.
O Sebastianismo viria a apropriar-se do Bandarrismo bem como, ao
longo do período de afirmação da Restauração (após 1640), de todos os
mitos e lendas que fortificassem a independência e um sentimento de
predestinação e de missão pátria (alicerçado no conhecido mito ou
milagre de Ourique, cuja batalha se situa em 1139-1140).
Nos anos subsequentes à derrota de Alcácer-Quibir, foi fácil fazer
acreditar em D. Sebastião «regressado», isto é, em falsos D.
Sebastião. A vontade de que D. Sebastião estivesse vivo, para
garantir a restauração da nacionalidade, o caudal de dúvidas e lendas
acerca do seu desaparecimento, e o fundo de messianismo judaico
(de que é forte componente o Bandarrismo) dão corpo a este mito
messiânico português que é o Sebastianismo, uma «resposta» mítica do
povo tiranizado, humilhado pela independência perdida.
Nascido após a morte do pai, D. Sebastião fora, de resto, o rei
«desejado». Desenvolvendo-se num contexto de perda da
independência, o Sebastianismo, alimentando-se do «mito do
Encoberto», transforma o Desejado no Encoberto.
O Sebastianismo transcende, porém, a figura de D. sebastião.
Envolve, com traços «sebásticos», muitas outras figuras da nossa
História. A vontade de que D. Sebastião estivesse vivo podia justificar
que durante algum tempo se esperasse por «ele». A lenda popular do
aparecimento de D. Sebastião (retido na «Ilha Encoberta » ou em
outra parte, à espera «da sua hora»), numa manhã de nevoeiro,
montado num cavalo branco, atravessou séculos, como crendice
popular de uns quantos. Mas o mais importante não é este
sebastianismo restrito e relativo a D. Sebastião ele mesmo; é o
sebastianismo em sentido lato, o sebastianismo transposto ou
messianismo (quase julgado estrutural) português, enchendo o
«molde do Encoberto», fazendo-se mesmo «tese» de interpretação do
modo de ser português e traço da cultura portuguesa. Em Frei Luís de
Sousa, Telmo é uma figura sebastianista.
António Machado Pires, «Sebastianismo», Biblos — Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 4, Lisboa, Verbo, 2001, cc. 1212-1215 (com adaptações).
 
1. Registe por tópicos os fatores que estiveram na origem do
Sebastianismo.
Cristóvão de Morais, O rei D. Sebastião, o Desejado (1571).

ESTUDO CRÍTICO
Eduardo Lourenço (n. 1923).

Portugal 
e O Frei Luís de Sousa
Como tragédia sentimental e psicológica, o Frei Luís de Sousa tornou-
se quase ininteligível. Ou a sua inteligibilidade tornou-se insignificante,
quer dizer, sem possibilidade de apropriação e interiorização
autênticas. Felizmente essa ótica sentimental-psicologista nunca foi a
do próprio Garrett. Garrett escreveu com consciente determinação
uma obra política. É mesmo a primeira peça fundamentalmente política
do teatro português, em sentido moderno, como a Castro não podia
ser. A consciência das personagens não está centrada na sua
individualidade própria, mas refrata sob ângulos diversos uma relação
objetiva: a de cada uma com o destino histórico da Pátria, ou melhor,
com o seu ser. Tudo o que D. Manuel de Sousa, Telmo, D. Madalena,
Maria são (ou não são) está em relação direta com o que a Pátria é.
Essa relação, por sua vez, não é meramente acidental.
Por isso Garrett escolheu aquele momento da história nacional que
na ótica política não foi um presente. O conteúdo real de um país que não
tem presente mas teve um exaltante passado só pode ser a ruminação
— vã e exaltada — desse mesmo passado. Quer dizer que o Frei Luís
de Sousa é uma peça fantomática em volta de dois fantasmas, um sendo a
alegoria do outro, D. João a de Portugal que ele leva no nome. Uma
só personagem tem os pés no presente por tê-los no futuro, mas os
restantes fantasmas acabam por convertê-la em Frei Luís de Sousa,
em cronista encerrado entre os quatro muros, entregue à evocação
desse mesmo passado que o devorou vivo.
Garrett teve a audácia de conceber uma tragédia da pura
possibilidade e de imaginar heróis trágicos cuja culpabilidade é
duvidosa ou imaginária. Num certo sentido, a famosa aparição de D.
João de Portugal é dispensável. De resto, Garrett bem o inculca. Ele
é, em todos os sentidos do termo, Ninguém. Nas tradicionais
representações realístico-psicologistas essa nulidade adquire o
máximo de relevo e o mínimo de mistério. Uma interpretação «irónica»
seria mais certeira. De qualquer modo e, num eco mais que
hamletiano, D. João de Portugal não é mais que a projeção da
culpabilidade metafísica de todas as outras personagens sem presente.
No interior da peça há um momento em que esse «fantasmismo», que
não é arbitrário, mas a tradução profunda da ausência de presente próprio na
realidade portuguesa (de que a histórica é acidental), parece querer
romper o círculo encantado do seu sonambulismo. A Saudade,
encarnada em Telmo visiona um momento a sua conversão em
esperança e liquidação dos fantasmas pela presença regenerador de
Maria.
Na verdade, o espaço trágico estava de antemão traçado:
num Portugal sem autêntica existência, num país sem liberdade ou de
liberdade de pura repetição da gesta passada, a saída só podia ser a
de um castigo suplementarmente absurdo, uma pura «feliz-expiação»
de uma felicidade fora de tempo. É na identificação profunda com esse
momento coletivo de inexistência que os protagonistas encontram
enfim a sua identidade. Nenhuma será mais radical que a de Maria,
culpada do não ter culpa e exemplo de um sacrifício de pura
imaginação. A esse título não há morte mais romântica que a da
heroína garrettiana, morta da pura vontade de querer morrer mas
igualmente, e com mais fundura, da pura identificação com a sua
inexistência ideal, sem estatuto civil nem moral.
Eduardo Lourenço, «Romantismo e tempo e o tempo do nosso romantismo: 
a propósito do Frei Luís de Sousa», Estética do Romantismo em Portugal: Primeiro Colóquio,
1970, Lisboa, Grémio Literário, [1974], pp. 109-111.

Glossário
Atos: divisão de um texto dramático: tradicionalmente, os atos
mudam quando muda o lugar representado. Por regra, os atos
dividem-se em cenas.
Aparte: convenção teatral em que a fala de uma personagem se
dirige ao público para exprimir um pensamento ou um comentário
que as demais personagens não escutam.
Didascálias: indicações cénicas que aparecem num texto dramático e
que têm informação sobre o cenário, os adereços, a movimentação e os
gestos das personagens, o seu tom de voz, etc.
Drama romântico: género literário que compreende as «peças teatrais»
escritas no período romântico e que, ao contrário da tragédia, não têm
de obedecer a regras rígidas (como as regras das unidades de ação,
espaço e tempo). Escritos em prosa, os dramas românticos são o
produto da sociedade moderna e tratam frequentemente temas
históricos mas à luz de ideias e valores que emergem no liberalismo (a
liberdade, a relação entre o indivíduo e a sociedade, etc.). Traduzem
uma visão cristã do mundo.
Falas: discurso proferido pelas personagens e que se distingue
graficamente, e pela função, das falas.
Romantismo: corrente artística que se inicia tardiamente em Portugal,
na década de 1820, e que se desvanece com a chegada do Realismo
(década de 1870). A literatura e as demais formas de expressão do
movimento romântico caracterizam-se pela liberdade artística e pelo
desafio a regras do período neoclássico, que o antecedeu. Nascido com
as ideias do liberalismo, o Romantismo vai privilegiar questões sociais
e políticos com implicações artísticas: a liberdade, a Nação e as suas
origens, a valorização do indivíduo (e dos sentimentos), o culto da
natureza na arte, etc.
Sebastianismo: crença de que, após o desastre de Alcácer-Quibir, D.
Sebastião regressaria fisicamente ou em espírito para resgatar Portugal
da situação decadente ou ruinosa em que se encontrava. (Quando a
crença surge, Portugal está sob domínio da coroa de Espanha).
Tragédia: género de «peças teatrais» de tom elevado que terminam
em desgraça (catástrofe). Seguindo regras rígidas (as regras das
unidades de ação, tempo e espaço, a presença de elementos trágicos),
são escritas tradicionalmente em verso e colocam em cena personagens
de condição elevada. A tragédia, que tem origem na Antiguidade
Clássica, representa uma visão do mundo pagão e encena um
problema insanável, em que o ser humano se defronta com
forças superiores como o destino, os deuses ou a sociedade.

3.1
AMOR DE PERDIÇÃO,
de Camilo Castelo Branco
 
 

PARA SABER...

A vida e a obra de Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco (1825-1890).


Nascido em Lisboa a 16 de março de 1825, no seio de
uma família da aristocracia, era filho de Manuel Joaquim Botelho
Castelo Branco e de mãe incógnita. As vicissitudes resultantes da
morte do pai atiraram-
-no (e à sua irmã Carolina) para os fojos de Trás-os-
-Montes, onde viveu uma existência agitada. O facto de não
ter conhecido a mãe (falecida, provavelmente, quando Camilo tinha
apenas 2 anos) e de ter assistido à agonia do pai (feitos os 10
anos), associado à desamorável proteção da tia Rita, de Vila Real, e à
bruteza de costumes em que culturalmente se formou, terão
contribuído para o desenvolvimento de características peculiares, que
lhe marcaram a personalidade: rebeldia contestatária,
espírito contraditório e instabilidade psíquica, individualismo
inveterado, repugnância pessoal pelo trabalho manual e
uma ambição sem limites pela conquista de um lugar proeminente
numa sociedade fechada.
Falhou nos estudos (oficiais) e nas relações amorosas. Começou um
curso de Medicina, no Porto, que abandonou, e terá tentado o curso
de Direito, em Coimbra; finalmente, pensou em abraçar a carreira
sacerdotal, de que também desistiu. Com apenas 16 anos casou-se
com Joaquina Pereira de França, com o objetivo de conquistar a
independência e tomar posse da parte que lhe cabia da herança
paterna (avultada para a época), seguindo o exemplo da irmã
Carolina. Deste casamento nasceu uma menina, Rosa. Mãe e filha
morreriam poucos anos depois. Já escritor de nomeada, apaixonou-se
por uma mulher casada da alta sociedade portuense, Ana Augusta
Plácido, de quem teve três filhos.
Dir-se-ia que o percurso vivencial do aspirante a escritor até 1850, a
que deve acrescentar-se o período seguinte (de 1850 à baliza
fundamental que é o ano de 1861: a absolvição do crime de adultério),
representou um acumular de experiências, as mais diversas e
dolorosas (da rapacidade dos familiares, que o defraudaram de parte
do património, à boémia portuense, às dificuldades económicas até à
luta intransigente pela sua independência), que viria a constituir o
cabedal valioso com que construiu o monumento literário que legou
aos vindoiros.
Depois de exercitar o talento em tentativas na poesia, no teatro e no
jornalismo (até 1849), avançou sobre Lisboa em 1850. Na capital
relacionou-se com alguns intelectuais e vegetou nas colunas de A
Semana, sem o êxito espetacular que talvez esperasse. Regressa ao
Porto com a decisão tomada: seria homem de letras, custasse o que
custasse. Atacou e venceu em duas frentes, na social e na literária,
colaborando com assiduidade nos periódicos e frequentando os
teatros, os outeiros e tudo quanto pudesse contribuir para o prestígio
do seu nome. Em 1889, recebe, em Lisboa, uma significativa
homenagem da intelectualidade e da massa estudantil.
A 1 de junho de 1890, Camilo, desenganado da cura para os graves
problemas de visão pelo seu oftalmologista, suicida-se com um tiro de
revólver na cabeça.
Alexandre Cabral, «Camilo», in Dicionário de Camilo Castelo Branco, 2.ª ed., 
Lisboa, Caminho, 2003, pp. 115-120 (com adaptações).

A novela Amor de perdição
A história amorosa que opõe Simão Botelho e Teresa de
Albuquerque às convenções sociais encarnadas em Tadeu de
Albuquerque e ao desamor, incapaz de compreender a generosidade
do herói, personificado em Domingos Botelho e D. Rita Preciosa,
representa, por sinédoque, a luta romântica entre o ideal e o convencional,
entre os sentimentos passionalmente vividos e o rasteiro
materialismo burguês ou os preconceitos de casta, entre a verdade e as
aparências mistificadoras, numa palavra, entre o espírito que liberta e a
matéria que oprime.
É no quadro assim definido que se desenvolve a trama da ação
romanesca centrada no tema dos amores contrariados em nome de
rivalidades nobiliárquicas. No seu desenvolvimento encontramos,
porém, outros elementos fundamentais da temática ficcional camiliana,
como o encerramento forçado da heroína no convento, a perseguição,
prisão, desterro e morte do herói, como consequência de um
destino inexorável.
Para melhor estruturar essa realidade ficcional, o autor criou as
suas personagens com traços de grande propriedade, tanto na sua essência
psicológica, como no plano do seu enquadramento social,
distribuindo-as em dois grupos bem diferenciados: um, constituído
pela tríade dos protagonistas — Simão, Teresa e Mariana; outro,
pelas personagens secundárias que, ora como adjuvantes ora como
oponentes, os enquadram, condicionam e ajudam a definir. Enquanto
estas últimas mantêm, do princípio ao fim da história, uma
caracterização e comportamento uniformes, como personagens planas
que são, os protagonistas evoluem de uma situação e de um
estado psíquicos iniciais, até outros completamente diversos,
através de um percurso marcado por dois sentimentos-força
fundamentais: o amor e a honra.
Simão é um paradigma novo do herói romântico. O seu espírito de
impulsiva rebeldia leva-o de início a desafiar as leis habituais da
organização social e familiar; mas o amor transforma-o para se
consubstanciar no seu comportamento posterior, com um profundo
sentimento de honra e com uma visão poética da vida, que a desgraça
não deixará de concretizar.
Teresa e Mariana, por seu lado, oferecem dois tipos distintos de
mulher, em permanente confronto: conceitos diferentes de amor. Teresa
define-se pela constância, mas, com traços não menos incisivos, pela
firmeza do seu carácter. Só depois o autor valoriza nela as
características habituais dos modelos da heroína romântica. Muito
diferente é Mariana, que com ela concorre no amor por Simão. É, desde
o início, uma mulher feita, formosa e triste, dotada, não obstante a sua
simples condição de aldeã, de arguta inteligência e de profunda
delicadeza de sentimentos. Longe de obedecer a modelos prévios, o
seu progressivo enamoramento vai-se desvelando pouco a pouco, com
subtil penetração, mediante a perspetiva do narrador e das outras
personagens, ou através das notações que ela própria em si vai
descobrindo. Votada de corpo e alma a uma paixão, que, complexa e
simples, nem sequer desconhece o ciúme, Mariana atinge a grandeza
das personagens da tragédia antiga. A sua atuação desenvolve-se
segundo uma linha de harmonia tão bem definida que a imolação final
surge com inteira coerência, e sem cair na vulgaridade do figurino
estereotipado que o Romantismo reclamava.
Aníbal Pinto de Castro, «Amor de perdição», in J. A. Cardoso Bernardes et
alii (coord.), Biblos — 
Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1995, cc. 228-
230.

ESTUDO CRÍTICO
A EVOLUÇÃO DE SIMÃO BOTELHO EM AMOR DE PERDIÇÃO

Amor de perdição (1943).
Nestes três andamentos da personagem Simão Botelho, nestas três
dinâmicas da sua psicologia, parece-me que Prado Coelho consigna
uma proposta digna de nota, tanto mais que distingue sem
concessões as motivações de Simão das do meio que o reprime.
A delineação na personagem de evolução e rutura, hiatos a que
aqueles ensaístas não foram sensíveis, ajuda-nos a melhor
compreender como se inscreve o seu percurso. Todavia a indicação
de leitura ainda é genérica. Simão tem, de facto, uma primeira
fase — «período da rebeldia, da negação revolucionária, extremista»
— em que rompe com tudo e todos, proclama ideais revolucionários e
faz prova de uma energia que contrasta com a dos outros, a começar
pelo irmão Manuel Botelho. Baltasar dá-nos um resumo das
façanhas do Simão dessa fase, síntese pouco isenta como se
compreende mas franco ponto de vista da moralidade conservadora
do Antigo Regime, ao tentar denegrir o rival junto de Teresa. É
também reconhecível um segundo momento, no qual, elevado pelo
sentimento amoroso, o herói manifesta ingenuamente reconciliação e
concórdia com o meio.
O desacordo com Prado Coelho pode instalar-se na última fase da
trajetória, demasiado alargada, até relativamente às anteriores, para
conter, numa unidade só, a perdição de Simão. Com efeito, nessa
terceira etapa, a do regresso à « oposição radical entre o indivíduo e a
sociedade», nada obsta no texto, bem pelo contrário, a que
descortinemos dois momentos. O primeiro antecederia o disparo
contra Baltasar e teria como termo ab quo o fim da segunda fase
enunciada por Prado Coelho. Nesse intermédio, Simão regressa de
Coimbra e, clandestinamente ajudado por João da Cruz e
por Mariana, luta pela emancipação e pelo direito à felicidade, direito,
como sabemos, sociologicamente moderno e liberal.
Depois de matar Baltasar, transfigura-se novamente. Antes do disparo,
Simão reveste-se de herói inconformado, disposto a tudo. Morto o
rival, a personagem inicia um outro tipo de resistência: a que tem
como ponto alto o sacrifício da própria vida e a que projeta para a
condição de bode expiatório. Simão abdica da felicidade com Teresa
e aceita, sem fraquejar, a condenação que culmina na morte.
Dispensa todos os apelos e os ajuizados conselhos (não foge da cena
do crime, não alega defesa legítima, não consente deliberadamente
na comutação da pena). Estes dois momentos diferem do
confronto ainda pueril com que abre a novela. Aqui, as consequências
são outras. Já não se trata de repreender as más companhias, de
chamar a atenção para a quebra de vasilhas ou de proibir discursos
inflamados de liberdade.
A morte de Baltasar consubstancia uma desordem socialmente
inadmissível. Simão não só matou como afrontou um valor supremo,
porque indispensável ao status quo da sociedade tradicional: o da
linhagem (consanguínea: Tadeu queria que Teresa casasse a todo
custo com o primo Baltasar reunindo assim a filha a um quase-filho).
Sérgio Paulo Guimarães e Sousa, «A tradição crítica», in Abel Barros Batista (coord.),
Amor de perdição: uma revisão, Coimbra, Angelus Novus, 2009, pp. 38-39.
Glossário
Herói romântico: personagem que acredita em valores elevados e se
move por ideais grandes e, regra geral, inalcançáveis: o amor, a justiça,
a liberdade, a construção de um mundo melhor, etc. Cf.
Sistematização de conhecimentos.
Novela: narrativa mais breve do que um romance (mas mais extensa
do que um conto) e que se centra num enredo mais simples (sem ações
secundárias relevantes). O número de personagens e lugares da ação
são também mais reduzidos.

4.1
O CONTEXTO HISTÓRICO-
LITERÁRIO
PARA SABER...

Vida e obra de Eça de Queirós


Tendo nascido na Póvoa de Varzim (25 de novembro de 1845), Eça
de Queirós desenvolveu a sua vida literária entre meados da década
de 1860 e 1900, quando, a 16 de agosto, morreu, em Paris.
Formado na Coimbra romântica e boémia dos anos 60, o jovem Eça
acolhe o ascendente de Antero de Quental como líder de uma geração
de intelectuais abertos ao influxo de correntes estéticas e ideológicas
que se projetam na vida literária desses anos e das décadas
seguintes: Socialismo, Realismo, Naturalismo, etc. Logo depois,
em Lisboa e em Évora, Eça de Queirós conhece a experiência do
jornalismo (n'O Distrito de Évora, na Gazeta de Portugal, onde colabora
com folhetins postumamente editados em livro, em 1903, com o
título Prosas bárbaras). A invenção (com Antero e Batalha Reis) da
figura de Carlos Fradique Mendes bem como a composição d'O
mistério da estrada de Sintra (publicado em cartas, em 1870, no Diário de
Notícias, de parceria com Ramalho Ortigão) prolongam ainda o tom e a
temática romântica que caracterizam este Eça em tempo de
aprendizagem literária. As «Conferências do Casino Lisbonense» (em
1871 e novamente sob o impulso motivador de Antero) representam,
na vida literária de Eça de Queirós e da sua geração, um momento
decisivo e de abertura a novos rumos estéticos e ideológicos:
relaciona-se essa abertura com a análise e com a crítica da vida
pública que As farpas (1871-1872, novamente com Ramalho) haviam
iniciado, sob o signo do Realismo e já mesmo do Naturalismo
emergentes em Portugal.
O facto de ter saído do País, em 1872, quando parte para o seu primeiro
posto consular, em Havana, não impede o romancista de fazer da
crítica à vida pública do seu país um dos grandes vetores da sua obra;
a verdade, porém, é que Eça se vê confrontado com a distância a que
se encontra o espaço português que deveria observar. As Cenas
portuguesas (ou Cenas da vida portuguesa) em que Eça então trabalhava
acabariam por abortar, enquanto projeto de ampla crónica de
costumes, envolvendo um conjunto harmonioso de narrativas.
Apesar disso, o escritor consagra o fundamental da sua atividade
literária, entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80, à escrita,
publicação e revisão de romances de índole realista e naturalista: O
crime do padre Amaro (com três versões, muito distintas entre si, em
1875, 1876 e 1880), O primo Basílio (1878) e, de certa forma ainda, A
relíquia (1887) e Os Maias (1888), este último um romance em que
ecleticamente se fundem temas e valores de feição diversa. Depois
disso, Eça privilegia áreas temáticas e opções narrativas nalguns
casos claramente afastadas das exigências do Realismo e do
Naturalismo: a novela O mandarim (1880) fora um primeiro passo nesse
sentido, tal como o serão depois, em registos peculiares, A
correspondência de Fradique Mendes (1900), A ilustre casa de
Ramires (1900) e A cidade e as serras (1901), romance que, tal como os
dois títulos anteriores, deve considerar-se semipóstumo. Por publicar
ficam tentativas em estado diverso de elaboração: A capital, O conde de
Abranhos, Alves & C.ª e A tragédia da Rua das Flores, este último
um projeto claramente abandonado pelo escritor.
© 
Enquanto intérprete do Realismo e do Naturalismo, Eça cultivou um tipo
de romance bastante minudente, no que toca aos espaços
representados e às personagens caracterizadas; entre estas, avultam
os tipos sociais, emblematicamente remetendo para aspetos
fundamentais da vida pública portuguesa, na segunda metade do
século XIX. À medida que as referências realistas e naturalistas se
vão diluindo, é a representação da vida psicológica das suas
personagens que começa a estar em causa: a articulação de pontos
de vista individuais bem como o tratamento do tempo narrativo
constituem domínios de investimento técnico que o romancista
trabalhou com invulgar perícia; por outro lado, as histórias relatadas
diversificam-se e dão lugar a diferentes estratégias
narrativas: narradores de feição testemunhal (n'O mandarim, n'A
relíquia e n'A cidade e as serras) alternam, então, com formas de
representação próximas do relato biográfico e do testemunho
epistolográfico (n'A correspondência de Fradique Mendes).
As transformações assinaladas são indissociáveis de
balizas ideológicas e periodológicas que, sem excessiva rigidez mas
com inegável significado epocal, devem ser mencionadas. Deste
modo, enquanto aceita os princípios do Realismo e do Naturalismo,
Eça procura fundar a representação narrativa na observação dos
cenários que privilegia; as personagens que os povoam (Luísa,
Amaro, Amélia) surgem como figuras afetadas por fatores educativos
e hereditários que os romances tratam de pôr em evidência, de forma
normalmente muito crítica. Em harmonia com estas tendências, Os
Maias revelam um aprofundamento notório dessas indagações: não
é possível entender o trajeto pessoal das personagens mais
relevantes sem aludirmos ao devir de uma família que, ao longo do
século XIX, testemunha, em várias gerações, os acontecimentos
históricos, políticos e culturais que decisivamente marcam a vida
pública portuguesa. Além disso, o protagonista do romance vive o
destino trágico que, pela via do incesto, conduz a família à extinção. O
que permite remeter esse destino, de novo pelo eixo das ponderações
simbólico-históricas, para o plano das vivências coletivas; essas
vivências envolvem a geração de Eça e, mais alargadamente, o
Portugal decadente do fim do século XIX, que é aquele que Carlos
da Maia observa em Lisboa, quando por algum tempo regressa, em
1887.
Refira-se ainda que a produção literária de Eça de Queirós não se
limitou ao romance, mas estendeu-se também ao conto: em certos
contos queirosianos (como, por exemplo, em Civilização), estão
embrionariamente inscritos temas e ações desenvolvidas em
romances. Além disso, Eça colaborou em diversas
publicações periódicas ou de circunstância (jornais, revistas,
almanaques); nalgumas daquelas chegou a manter uma regular
atividade de cronista. Foi também por acreditar na capacidade de
intervenção destes seus escritos que Eça projetou, fundou e
dirigiu a Revista de Portugal (1889-1892). Apesar da vida efémera que
teve, a Revista de Portugal conseguiu afirmar-se como uma das mais
cultas e elegantes publicações da sua época, buscando superar, com
a ajuda de vozes prestigiadas (além de Eça, Oliveira Martins, Antero
de Quental, Alberto Sampaio, Moniz Barreto, Teófilo Braga, Luís de
Magalhães, Rodrigues de Freitas, etc.), o clima de vencidismo a que o
escritor também chegou a aderir.
Carlos Reis, «Eça de Queirós», Centro Virtual Camões,
http://cvc.instituto-camoes.pt/figuras/equeiros.html,
Lisboa, Instituto Camões, s.d. (com adaptações).
 
1. Tendo em conta o texto apresentado, elabore uma cronologia da
vida e obra de Eça de Queirós.

Eça de Queirós (1845-1900).

A Geração de 70
É chamada «Geração de 70» aquela que, entre 1865, data do
primeiro texto polémico de Antero de Quental contra Feliciano de
Castilho, «Bom senso e bom gosto», em Coimbra, e 1871, data das
Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, se afirmou como
elite intelectual que promoveu um movimento cultural e literário
renovador de funda repercussão no País. Os anos 70 teriam sido,
assim, uma década fulcral para o desenvolvimento da sua ação e as
Conferências do Casino uma espécie de primeira manifestação
pública da unidade dessa geração, para lá, obviamente, das grandes
diferenças de personalidades e obras, que mais tarde se foram
acentuando.
Com datas de nascimento que oscilam entre 1836 (Ramalho
Ortigão) e 1850 (Guerra Junqueiro), tendo ao centro o decénio 40-50
(Antero nasceu em 1842, Teófilo Braga em 1843, Eça de Queirós e
Oliveira Martins em 1845), os principais elementos da Geração de 70
viveram em pleno período da chamada Regeneração, período de
mudança do País, caracterizado por uma estabilidade do regime
liberal. A Geração de 70, herdeira espiritual da primeira geração do
Romantismo, retomando, de certo modo, os ideais de regeneração
dos primeiros liberais, voltados para a educação e a cultura, rebelou-
se contra esse progresso predominantemente material de tipo
mercantilista personalizado por Fontes Pereira de Melo. Por
outro lado, a sua formação revolucionária radica-se em leituras de
autores franceses e alemães e no conhecimento dos movimentos
insurrecionais vindos de França, desde o de 1848 (insurreição de 23 a
26 de junho dos bairros operários do Leste de Paris) até ao de 1871
(insurreição da Comuna de Paris).
Essas atitudes de carácter mais doutrinário seguem-se à célebre
Questão Coimbrã, que opôs Antero a Castilho. Devemos considerar
esta polémica muito mais do que literária, cultural e ideológica. E, logo
a seguir, vem uma longuíssima lista dos grandes modelos e dos
grandes movimentos do pensamento e da literatura seguidos, em
geral, pela Geração de 70, como uma espécie de apresentação
programática: «O grande espírito filosófico do nosso tempo, a grande
criação original, imensa da nossa idade, Hegel, Stuart Mill, Augusto
Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet, Proudhon, Littré, Feurbach,
Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner, Quinet, a filosofia alemã, a
crítica francesa, o Positivismo, o Naturalismo, a história, a metafísica,
as imensas criações da alma moderna, o espírito mesmo da nossa
civilização.» (Cf. Prosas da Época de Coimbra, ed. da obra completa,
org. por António Salgado Júnior, Lisboa, 1973.)
É em nome dessa «alma moderna» que Antero será ainda a figura
carismática do chamado Grupo do Cenáculo, da Travessa do Guarda-
Mor (perto do Chiado), grupo de uma fase intermédia de
preparação das Conferências do Casino, definido por Jaime Batalha
Reis como uma «academia obscura e terrível».
Álvaro Manuel Machado, «Geração de 70», in Álvaro Manuel Machado (org.), Dicionário
da Literatura Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1996 (com adaptações).
Rafael Bordalo Pinheiro, A situação (caricatura, n'O António Maria, 1881).

A literatura realista e naturalista


Realismo
Enquanto designação periodológica, referida à produção literária de
meados do século XIX, o Realismo começa por ser um movimento de
contestação do idealismo romântico; fundando-se na observação e
análise de costumes sociais, o Realismo adota uma atitude crítica em
relação à sociedade do seu tempo e tenta representar o real de forma
desapaixonada.
As coordenadas ideológicas do Realismo cumprem-se pelo
privilégio de temas de alcance coletivo, de inserção
no contemporâneo do escritor e do leitor, selecionados em obediência a
critérios de verosimilhança; para corresponder a esta
preocupação seletiva, de intuito ideológico-reformista e de incidência
coletiva, o Realismo centra-se em temas da vida familiar (a educação, o
adultério), em temas da vida económica (a ambição, a usura, a opressão)
e em temas da vida cultural e social (o jornalismo, a política, o arrivismo,
o parlamentarismo).
Com um entusiasmo que era o do escritor jovem, Eça de Queirós
escreveu: «O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do
mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se
educar «segundo o passado»; queremos fazer a fotografia, ia quase a
dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico,
explorador, aristocrático, etc. E apontando-o ao escárnio, à
gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático —
preparar a sua ruína» (Eça de Queirós, Correspondência, Lisboa, IN-
CM, 1983, vol. 1, p. 142).
 
Naturalismo
Enquanto movimento literário estreitamente relacionado com o
Realismo, o Naturalismo coincide, em certos aspetos, com as
preocupações socioculturais daquele seu antecessor, mas noutros
aspetos acentua as suas tendências temáticas e ideológicas. Em
termos genéricos, o Naturalismo pode considerar-se um período
literário de base realista, cultivando também posicionamentos
antirromânticos e anti-idealistas e perseguindo objetivos de reforma
social e mental, pela crítica da sociedade e dos costumes do seu tempo.
Configura-se, então, como uma espécie de realismo científico, de
índole causalista e determinista, tudo traduzido num certo fatalismo de
raiz materialista. Ideologicamente, o Naturalismo funda-se no
positivismo, enquanto filosofia de índole materialista, factualista,
antimetafísica e atenta, pelo culto da indução e de métodos
experimentais, à importância das leis da Natureza.
Os temas cultivados pelo Naturalismo correspondem às
coordenadas ideológicas e metodológicas explanadas. Trata-se, em
princípio, de privilegiar questões de índole social e cultural, em parte
coincidentes com as que cabiam ao Realismo: educação,
adultério, opressão, etc.; mas trata-se também, muitas vezes,
de cultivar temas que refletiam uma preocupação científica, incidindo
sobre fenómenos deprimentes como o alcoolismo, a histeria, o roubo
ou a alienação mental.
Carlos Reis, «Realismo» e «Naturalismo», in Álvaro Manuel Machado (org.), Dicionário
da Literatura Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1996 (com adaptações).
José Malhoa, O Fado (1910).

ESTUDO CRÍTICO

Jacinto do Prado Coelho (1920-1984).

As relações entre personagens n'Os Maias


As personagens d'Os Maias, tanto como as situações, os
sentimentos, os conceitos, são múltiplas peças dum grande jogo de
contrastes, ora categóricos, violentos, ora ténues, de simples
cambiantes. Definem-se, num quadro de valores, por comparação.
Trata-se, por vezes, de expressões solidárias, embora não-
coincidentes, duma ampla realidade; outras vezes, de elementos que
pertencem a esferas distintas, se não opostas.
Por exemplo: a educação inglesa recebida por Carlos é sublinhada
pelo contraste com a educação tradicional, devota, piegas, que fora
infligida ao pai, e com a educação, igualmente tradicional, dada ao
Eusebiozinho. Os amores de Carlos e Maria Eduarda têm uma
elevação, uma qualidade, que se torna mais sensível ao leitor pelo
contraste com os amores entre o Ega e Raquel Cohen e os amores
entre Carlos e a Gouvarinho. Todos ilegítimos, situam-se,
porém, numa escala em que Carlos/Maria Eduarda ocupam o lugar
cimeiro e Ega/Raquel o inferior. Quando o marquês de Sousela
observa, acerca de Maria Eduarda: «Em todo o caso, é um mulherão»,
Carlos, cuja sensibilidade é doutro nível, indigna-se: «Carlos achou a
palavra odiosa» (p. 307). Da estupidez do conde de Gouvarinho faria o
leitor uma ideia menos justa se não fosse levado a reclassificá-la pelo
confronto com a estupidez ainda maior do Dr. Sousa Neto.
Jacinto do Prado Coelho, «Para a compreensão d'Os Maias como um todo orgânico»,
Ao contrário de Penélope, Venda Nova, Bertrand Editora, 1976.

Carlos Reis
(n. 1950).
O amor nos romances
de Eça de Queirós
De um modo geral, o tema do amor, constituindo um sentido
crucial na obra queirosiana, aparece quase sempre representado nos
termos de uma conceção negativa, pessimista ou, pelo menos, crítica.
Se observarmos as conexões que o tema do amor estabelece
com outros temas relevantes em Eça, verificaremos que aquela
conceção crítica da problemática amorosa tem que ver diretamente
com as análises de índole social e cultural que dominam a literatura
queirosiana. Assim, o sentimento amoroso associa-se à questão da
educação, pelas deficiências que nesta são denunciadas; o adultério é
uma sua consequência negativa, relacionado também com
o bovarismo1 que afeta algumas mulheres queirosianas, sujeitas a
processos de sedução provindos do donjuanismo próprio de certas
personagens masculinas. Por outro lado, os exageros de uma
devoção religiosa fanática desviam para a relação com Deus (e
mesmo com os padres) a energia amorosa da mulher.
No caso de João da Ega, é na decoração da alcova de «Vila
Balzac» que se concentra essa dimensão erótica; já em Carlos da
Maia ela dispersa-se tanto em aventuras determinadas pelo
donjuanismo, como na tragédia da experiência do incesto,
envolvendo uma Maria Eduarda que atrai o protagonista antes de tudo
pelo seu intenso apelo da sua beleza física.
Carlos Reis, «Amor», Eça de Queirós, Lisboa, Edições 70, 2009, pp. 192-193.

Glossário
Espaço social: cenário propício ao estudo e à crítica de uma sociedade
e dos seus grupos sociais.
Realismo: movimento literário do fim do século xix que, no essencial,
produz um tipo de arte que procura representar a realidade social
«como ela é» (com verosimilhança) e analisar de forma crítica os
defeitos e tiques dos seus membros e dos grupos sociais que a
compõem. (Ver texto sobre o Realismo na página 201.)
Romance: narrativa longa (mais extensa do que o conto e a novela)
em que existe uma pluralidade de linhas de ação — embora, por regra,
domine uma principal — e um número considerável de
personagens. Por esse motivo, multiplicam-se os espaços em que o
enredo se desenvolve e a organização temporal torna-se mais
complexa. (cf. Sistematização de conhecimentos.)
5.1
VIDA E OBRA DE ANTERO DE
QUENTAL
PARA SABER...
O nome de Antero de Quental (Ponta Delgada, 18/IV/1842-
11/IX/1891, ib.) tornou-se o símbolo de uma geração (a Geração de
70 ou a Geração de Antero) e é referência obrigatória na poesia, no
ensaio filosófico e literário, no jornalismo, mas também nas lutas pela
liberdade de pensamento e pela justiça social, onde se afirmou como
ideólogo destacado.
Oriundo de uma das mais antigas famílias de colonizadores
micaelenses, alinhada nos setores liberais da sociedade, Antero
continuou essa tradição, a exemplo do avô, André da Ponte de
Quental, signatário da Constituição de 1822, e do pai, Fernando de
Quental, um dos «7500 bravos do Mindelo».
Desembarcado em Lisboa aos 10 anos de idade, para estudar no
colégio de António Feliciano de Castilho, Antero veio a ingressar na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1859, tornando-se
rapidamente o líder dos estudantes e seu porta-voz, sendo o autor de
vários manifestos contra o conservadorismo intelectual e sociopolítico
do tempo. Para esse prestígio contribuíam os poemas e artigos de
crítica literária e política que ia escrevendo para os jornais e revistas
coimbrãs: «A influência da Mulher na civilização», «A ilustração e o
operário», «A indiferença em política», «O sentimento da
imortalidade». Os Sonetos de Antero, o seu primeiro livro de poesia,
data de 1860, e em 1865 publica Odes modernas, obra por si
caracterizada como «a voz da Revolução», resultante da aliança entre
o naturalismo hegeliano e o humanismo radical francês de Michelet,
Renan e Proudhon. É decisiva a importância das Odes modernas no
panorama literário português, pois a sua edição marca, entre nós, o
advento da poesia moderna e está na origem da nossa maior
polémica literária de sempre (durou cerca de seis meses, com mais de
40 opúsculos) a «Questão coimbrã» ou do «Bom senso e bom gosto», o
título da violenta carta-panfleto de resposta à crítica provocatória feita
à Escola de Coimbra por António Feliciano de Castilho, que
personificava o tradicionalismo retrógrado e ultrarromântico.
Após a licenciatura, e atraído pelos ideais socialistas de Proudhon,
sobretudo, pensa alistar-se nos exércitos de Garibaldi, mas acaba por
aprender a arte de tipógrafo, na Imprensa Nacional, deslocando-se
depois a Paris, em 1867, para aí exercer o ofício e familiarizar-se com
os problemas do proletariado que, no nosso país, longe da
industrialização, ainda eram desconhecidos. Durante essa estada,
traumatizante e de curta duração, chegou a frequentar aulas no
Collège de France.
Em 1868 viaja para a América do Norte (EUA e Canadá) e, no
regresso, fica a residir com Batalha Reis num andar da Travessa do
Guarda-Mor (atual Rua do Diário de Notícias), o «Cenáculo», como era
conhecido entre os amigos: Oliveira Martins, Eça de Queirós, Manuel
de Arriaga, José Fontana, Ramalho Ortigão, entre outros. Inicia então
(1870) uma intensa atividade política e social. Colabora na fundação
de associações operárias e na introdução, em Portugal, de uma
secção da Associação Internacional dos Trabalhadores; publica
folhetos de propaganda.
O jornalismo também o atraía, tendo sido um dos diretores
do República — jornal da democracia portuguesa. Em 1872 publicou
anonimamente o folheto «O que é a Internacional», destinado a
angariar fundos para a criação de um novo jornal, O pensamento social,
que dirige em parceria com Oliveira Martins.
Todavia, o período mais estimulante da sua vida pública foi o que
culminou com a organização, junto com Batalha Reis, das Conferências
do Casino, que se inauguraram em 22-V-1871, no Casino Lisbonense.
A sua finalidade era a reflexão sobre as condições políticas, religiosas
e económicas da sociedade portuguesa no contexto europeu, porque
«não podia viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes
preocupações intelectuais do seu tempo», lia-se no programa, redigido
por Antero. A mais célebre das conferências é a sua «Causas da
decadência dos povos peninsulares», que foi imediatamente impressa e se
tornou o seu mais conhecido texto em prosa. Para ele, a decadência
das nações peninsulares, tão prósperas nos séculos XV e XVI, era
devida a três causas de diversa natureza: moral, política e económica.
A primeira tinha que ver com a transformação pós-Concílio de
Trento do Cristianismo, «que é sobretudo um sentimento», no
Catolicismo, «que é principalmente uma instituição». Um vive da fé, o
outro do dogmatismo e da disciplina cega, que levou à Inquisição. A
segunda, atribuiu-a ao Absolutismo, tão nefasto para a vida política e
social como o Catolicismo para a Igreja. A terceira causa (sem discutir
o carácter heroico das Descobertas) tinha que ver com as conquistas
longínquas que levaram à decadência económica da Metrópole, com
largas camadas da população a abandonar os campos com o olho nas
riquezas da Índia.
Mas nunca a ação política impediu Antero de continuar a vida
literária. Em 1872 editam-se Primaveras românticas — Versos dos 20
anos e Considerações sobre a filosofia da história literária portuguesa. Dois
anos depois, manifesta-se a primeira crise de uma doença nunca
completamente diagnosticada, que o vai impedir de se consagrar
continuadamente a qualquer atividade. Ainda assim, fundou em 1875,
com Batalha Reis, a Revista ocidental, que visava a aproximação dos
povos peninsulares.
Entretanto, como a medicina nacional não conseguia atinar com o
seu mal, decide ir a Paris experimentar uma nova cura. De volta a
Lisboa, e sentindo algumas melhoras, aceita candidatar-se como
deputado pelo Partido Socialista nas eleições gerais de 1879 e 1880,
embora não alimentando esperanças de vir a ser eleito.
No ano seguinte, após ter adotado as filhas do seu grande amigo de
Coimbra, Germano Meireles, falecido em 1878 (Albertina, de 3 anos, e
Beatriz, de ano e meio), decide fixar residência em Vila do Conde, onde
irá permanecer dez anos, os mais calmos e literariamente mais
produtivos da sua vida. É lá que escreve os últimos sonetos, reflexo
do espiritualismo que lhe permitira ultrapassar a crise
pessimista: «Voz interior», «Solemnia verba», «Na mão de Deus», entre
outros, do último ciclo dos Sonetos completos, editados em 1886, e que
Unamuno considerou «um dos mais altos expoentes da poesia
universal, que viverão enquanto viva for a memória das gentes». Para
António Sérgio, os Sonetos constituem «o mais alto, luminoso cume a
que subiu a poesia no nosso país», enquanto José Régio
considerará os Sonetos «não só um livro único entre nós, como um dos
mais belos que possa escrever um poeta por igual rodeado de lucidez
crítica e uma imaginação metafísica».
Surge então o projeto de se fixar definitivamente em Ponta Delgada,
juntamente com as filhas adotivas, tendo embarcado em 5-VI-1891. As
primeiras cartas aos amigos são otimistas, mas em breve o seu
estado de saúde se agrava. No dia 11 de setembro, à hora do
crepúsculo, após ter comprado um revólver, Antero suicida-se, no
Largo de São Francisco, junto ao Convento da Esperança.
Ana Maria Almeida Martins, «Antero de Quental», in Centro Virtual Camões, http://cvc.
instituto-camoes.pt/seculo-xix/antero-de-quental.html#.Vfb9iRFViko (com adaptações).

ESTUDO CRÍTICO

O soneto em Antero
Em 1861, Antero, no surto do seu grande amigo João de Deus,
publica os seus primeiros sonetos (ed. Sténio) e, com eles, uma teoria
do género, dedicada ao mesmo, e na qual proclamava o soneto «a
forma superior do lirismo puro». Esta forma, que Almeida Garrett se
gabava de ter suprimido, embora, por fim, viesse a lamentar o excesso
da sua reação, era, pois, uma novidade, ao tempo.
Dentro de catorze versos, o poeta soube dar expressão aos mais
variados modos da sua sensibilidade, desde o amor místico dos
primeiros sonetos, ao amor da Morte e da Noite, e às mais diversas
evocações da sua imaginação, desde aquele quadro
intitulado Idílio (Quando nós vamos ambos de mãos dadas), efusão lírica
que deixa a nossa alma suspensa numa atmosfera de sonho indizível,
até às visões apocalípticas de Voz interior e de Contemplação. A
fantasia desempenha na obra do poeta um papel muito
importante. Ele sonha… Mas, como é a sua sensibilidade que ordena
as imagens segundo o tónus afetivo do momento, os «sonhos» são,
em regra, «dolorosos». «Sonhos de oiro» só o do soneto «À Virgem
Santíssima» — que não representa um estado de alma do poeta. […]
Cada soneto é uma projeção inteira do seu drama e, ao mesmo
tempo, parte de um drama que não tem fim — por mais que o filósofo
tente convencer-nos do contrário. É o drama da alma com os seus
espetros, com as vozes obscuras da natureza, com o terrível Absoluto
que o cinge, com o Mistério impalpável que o esmaga.
Este drama resulta, naturalmente, de um estado de insuficiência
que tem origem na natureza mística do poeta, no seu desejo de união
com o absoluto, que se torna mais insistente a seguir ao
desmoronamento das suas primeiras crenças. Não é
possível compreender a estética de Antero sem admitir este
postulado. «Conheci a Beleza que não morre / E fiquei triste», disse
ele. O canto do Poeta será, durante muito tempo, uma saudade do
Céu, um gosto da Imortalidade.
Álvaro J. da Costa Pimpão, «O soneto em Antero», in Carlos Reis e M. da Natividade
Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. v, Lisboa, Verbo, 1993 (com adaptações).

Poética de Antero
O desdobramento entre o Poeta e Outro tanto poderá inscrever-se
numa latente dramaticidade do poema.
Notaremos, por outro lado, que esse desdobramento subjetivo pode
ser interpretado como uma exigência do próprio discurso alegórico.
Antero não utiliza a figura alegórica como um simples instrumento
formal: identifica-se com ela ao projetar a sua personalidade no
universo poético através do processo dramático. Ora, isto vai
desembocar numa personificação do próprio discurso, expressa na
dualidade vocal para que ele nos transporta; e, a partir daqui, permite-
nos encontrar na alegoria o melhor recurso para
transmitir, retoricamente, essa dualidade, dado que o significado da
figura transporta precisamente um desdobramento semântico: o que é
dito é distinto do que é significado.
Notaremos, ainda, que a figura alegórica está ligada à
temporalidade: a imagem tem um passado, uma história, transporta
por isso uma carga ficcional, imanente à forma dramática do conteúdo
poético dos Sonetos. Quer no intertexto religioso, que vai buscar um
passado imediatamente referencial, quer em poemas como «Mors
liberatrix» ou «Mors-amor», ou nos poemas que personificam a Noite, a
Morte, o Inconsciente, o texto requer esse passado, essa dimensão
temporal, não se esgotando no sentido imediato da metáfora ou
mediato do símbolo.
Nuno Júdice, «Poética de Antero», in M. Isabel Pires de Lima (org.) 
Antero de Quental e o destino de uma geração, Porto, Asa, 1993, p. 146 (com adaptações).

ESTUDO CRÍTICO

Estilo e léxico de Antero


Como vimos, o estilo anteriano de prosador vai de um romantismo
sentimental ou oratoriamente enfático (como é natural, predominante
na juventude e nas solenes tomadas públicas de posição ética) a um
equilíbrio de «clássico» oitocentista.
No entanto, há, até a nível estilístico, um importante lastro
romântico, mesmo nos sonetos, que são uma forma de tradição
clássica. Vitorino Nemésio sentiu, muito judiciosamente, uma
presença de que Antero provavelmente nunca teve consciência,
pois que a esconjurou, consoante verificámos: a presença
«elmanista», ou do árcade pré-romântico Elmano Sadino, ou Barbosa
du Bocage. É ainda virtualmente «elmanista» todo o lançamento
grandiloquentemente visionário de alguns sonetos, como
exemplificámos, certos grandes rasgos sentimentais, os cenários
fantasmagóricos de terror crepuscular ou noturno, a obsessão da
morte, a multiplicidade de personificações, ou mitificações, de
maiúscula inicial: Amor, Razão, Verdade, Liberdade, Sorte, Paixão,
Dor, Tédio, Desengano, Pesar, Dúvida, Futuro, etc. — bem como o
alegorismo a que dão ensejo. São também virtualmente elmanistas-
arcádicos certos latinismos: adusto, avito, mesto, mádido, ingente, inulto,
pelo menos como bloco estético, e, entre outros meios de
magnificação retórica, o uso de certos superlativos alatinados,
como aspérrimo, misérrimo. É curioso notar que, em cerca de uma
centena de títulos de sonetos, dezasseis são latinos, como Ad
amicos, Ama ritudo, Anima mea, Homo, Mors liberatrix, uns de estrato
clássico, outros de estrato católico-romano.
Mas há ainda talvez mais evidentes estigmas de um romantismo
visionário, como o claro-escuro, ou a simples gradação sombria entre
o negro e o pardacento (de qualquer modo, quase acromático) do
vocabulário predileto. Entre os substantivos [isto é, os nomes], sente-
se o predomínio, quase só por si transfigurante, de
emparelhamentos como os seguintes, com preferência pelo termo
negativo da polaridade: noite-dia/escuridão; trevas (ou sombras)-
luz; névoa (ou nevoeiro)-sol; mal-bem. Além destes termos em oposição
quase maniqueísta, outros há que, pela sua recorrência, figuram
como verdadeiras personagens, ou personae, de um mistério cósmico:
o (meu) coração ou a (minha) alma, centro de aflição ou de ansiedade
(ânsia, anseio), o vento, por vezes turbilhão, princípio de animação
(anima em latim é, como se sabe, uma metáfora
metafísica de sopro ou vento), o mar antigo e imenso,
as nuvens envilecidas do poente, as aves e os astros, emblemas de
mobilidade no espaço infinito, o abismo também cósmico (e, como
vimos, ingenuamente orientado segundo um absoluto alto-baixo), o
amor, a tristeza, o sonho, o tédio, o desejo (mais vezes metafísico do que
erótico), a dor, a luta, a ilusão e o desengano, o silêncio, as visões singulares
ou plurais, os espetros ou fantasmas, também a soli ou a tutti. Os matizes
adjetivais também instalam um claro-escuro mais escuro do que claro
(salvo nas raras clareiras do Antero «luminoso»), com
frequentes sinais de tensão por vezes agónica: escuro ou obscuro mais
frequente que claro; noturno; ardente-
frio; vago, mudo; ermo, só; imenso, vasto; eterno, sagrado (ou augusto), mist
erioso, incerto; fantástico, estranho, absorto (a rimar
com morto), tenebroso, sinistro; sombrio, lento, desolado, destroçado, pálido
, cansado.
Óscar Lopes, «Estilo e léxico de Antero», in Carlos Reis e M. da Natividade Pires, 
História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. v, Lisboa, Verbo, 1993 (com adaptações).
Glosssário
Soneto: forma poética das composições constituída tradicionalmente
por catorze versos decassilábicos, organizados em duas quadras e dois
tercetos. Em regra, num soneto desenvolve-se um raciocínio
que conclui com virtuosismo no terceto final: o soneto termina com
chave de ouro.
Face luminosa em Antero: atitude otimista e positiva nos sonetos
anterianos, que é acompanhada por imagens e símbolos de luz e
claridade (sol, dia, etc.). Opõe-se à face noturna.

6.1
CESÁRIO VERDE:
VIDA, OBRA E ÉPOCA
PARA SABER...
Cesário Verde 
(1855-1886).

A vida e a obra de Cesário Verde


José Joaquim Cesário Verde nasce em 1855, a 25 de fevereiro (dia
da invocação de São Cesário), na freguesia lisboeta de Santa
Maria Madalena. O pai, José Anastácio Verde, abastado comerciante
de ferragens e de outras mercancias, com estabelecimento na Rua
dos Fanqueiros, números 2 a 8, dedicava-se também à agricultura na
sua granja de Linda-a-Pastora, sita nos arredores de Lisboa.
Em 1857, a família Verde refugia-se em Linda-a-Pastora devido
às epidemias de cólera-morbo e de febre-amarela que devastam
Lisboa. No ano seguinte, regressa a Lisboa e habita na Rua dos
Fanqueiros. Em 1865, quando a família vivia na Rua do Salitre,
Cesário Verde, com 10 anos de idade, faz o seu exame de instrução
primária.
Em princípios de janeiro de 1872, aos 17 anos, Cesário inicia a carreira
profissional na loja de seu pai, como correspondente comercial. Em abril,
a sua «doce irmã» Júlia adoece com tuberculose, falecendo pouco
depois, aos 19 anos. Em outubro do ano seguinte matricula-se no
Curso Superior de Letras, que abandona pelos fins do ano letivo de
1873/1874. Escreve poesia e publica algumas composições em
periódicos. A 13 de novembro de 1874, numa notícia do Diário
Ilustrado, de Lisboa, informa-se que as poesias de Cesário iriam ser
«dentro em pouco […] publicadas em volume sob o título de Cânticos
do Realismo».
Em 1880, com 25 anos de idade, publica «O sentimento dum
ocidental», a
sua obra-prima (em Portugal a Camões, publicação extraordinária
do Jornal de Viagens, Porto, 10 de junho), que passou quase
despercebida. Em carta a Macedo Papança, lamentava-se: «Uma
poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa,
comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um
desdém, uma observação.» A partir de 1881, convive com os artistas
e os literatos constituídos em tertúlia sob a designação de «Grupo do
Leão», reunidos no Leão de Ouro, na Rua do Príncipe. Cesário terá
nesse ano principiado a escrever o poema «Nós».
Nos começos de 1885, Cesário, a viver novamente em Linda-a-
Pastora, adoece. A doença (tuberculose) progride no ano seguinte.
Em maio, Sousa Martins informa Silva Pinto de que «o poeta Cesário
Verde estava irremediavelmente perdido». Em 19 de julho de 1886, com
31 anos, morre «numa casa do Lumiar», vitimado pela tuberculose,
doença a que haviam sucumbido já dois irmãos. Nos necrológios dos
jornais, o Diário de Notícias considerava-o «poeta apreciável»; quanto
ao Jornal do Comércio, declarava o seguinte: «Cesário Verde morre
quase ignorado.»
Em abril de 1887, numa edição de 200 exemplares, que não foi
posta à venda, O livro de Cesário Verde publicado por Silva Pinto é
distribuído pelas pessoas que o editor e Jorge Verde melhor
entenderam merecer a oferta, ou seja, «pelos parentes, pelos amigos
e pelos admiradores provados do ilustre poeta». 
Texto elaborado com base em: Joel Serrão, «Tábua biobibliográfica de Cesário
Verde», 
in Cesário Verde, Obra completa de Cesário Verde, org. Joel Serrão, 8.ª ed., 
Lisboa, Livros Horizonte, 2003 (com adaptações).

O contexto cultural da época


de Cesário Verde
Foi em Portugal e em Lisboa que o curto trajeto pessoal de Cesário
aconteceu: de 1855 a 1886, ou seja, no bojo de uma experiência
histórica caracterizável pelo projeto nacionalizante do
emburguesamento e do urbanismo possíveis.
Que o projeto político português do século xix fora, a partir de 1820
e da legislação de Mouzinho da Silveira (1832), o de instituir, de cima
para baixo, de fora para dentro, o reinado da burguesia, é sabido. Que, a
partir da vitória dos liberais na Guerra Civil (1832-1834), Portugal vai
procurar acomodar-se, conforme for podendo, aos ritmos europeus
mediatizados e viabilizados pelas realidades hispânicas, quem o
ignora? E é bem conhecido que, sobretudo a partir de meados do
século XIX, se instala em Portugal uma época de acalmia política e
social, designada programaticamente como Regeneração. É
uma regeneração política pelo rotativismo estabelecido entre os dois
partidos liberais; é uma regeneração social mediante o
simultâneo processus de emburguesamento da nobreza e de
nobilitação da burguesia; é uma regeneração citadina pelo relativo
desenvolvimento de Lisboa e do Porto; e é
ainda uma regeneração sociocultural pela assunção e prática da
mentalidade e cultura românticas e pelo desenvolvimento de
personalidades tais como Almeida Garrett, Alexandre Herculano,
Camilo Castelo Branco, para citar apenas os cimos da
intelectualidade portuguesa de então.
Quando Cesário Verde nasceu (em 1855), D. Pedro V era aclamado
rei; no Porto realizava-se uma exposição industrial; e Soares de
Passos, poeta ultrarromântico, dava a lume as suas Poesias. E, a partir
daí, e até 1890, ano do Ultimatum inglês, e quatro anos após a morte
de Cesário, dir-se-ia que Portugal levara, até onde fora sendo
possível, o seu programa de emburguesamento e de desenvolvimento de
teor capitalista.
Em jeito de síntese: sobretudo em Lisboa, a partir da década de
1870, o novo olhar dos escritores «revolucionários» embebe-se nas
experiências decorrentes do desenvolvimento das virtualidades da
sociedade burguesa, na trama de uma cidade, a capital, que cresce, se
transforma e, além do mais, propicia ensejos a «quadros revoltados»,
tais os viria a desenhar, entre outros, Cesário Verde. 
Portugal, mais do que nunca, era um país de vilas e de campos. E,
mesmo numa cidade como Lisboa, o campo estava sempre à mão de
semear, e não havia contradição alguma em que uma família
burguesa como a de Cesário se dedicasse, simultaneamente, ao
comércio retalhista de ferragens importadas, no coração mercantil da
cidade, e à exportação de fruta, tomates ou cebolas.
Porém, nada disto obsta a que a cidade, como tal, seja o lugar
privilegiado para as inovações e confrontações culturais que abrem
brechas em rotinas mais ou menos enquistadas, mais ou menos
antigas, ou até «modernas» como o Romantismo. Todavia, mesmo
nos meios urbanos, só muito lentamente as várias vivências de teor
romântico cederiam o seu lugar ao Realismo e ao Naturalismo, como
atitudes mentais e culturais inovadoras de pequenos grupos sociais
aguerridos e iconoclastas de feições pequeno-
-burguesas. Aquilo que o Realismo e o Naturalismo põem em causa
respeita, afinal, a uma gradual dessacralização do tecido sociocultural,
embebido ainda de valores, em última instância, de essência
teologicamente cristã.
Joel Serrão, «Contexto sociocultural», O Essencial sobre Cesário Verde,
Lisboa, INCM, 1986 (com adaptacões).
© Santi

ESTUDO CRÍTICO

Helder Macedo
(n. 1935).

A cidade e o campo
É evidente […] que «cidade» e «campo» devem ser
entendidos como significantes — cada um deles correspondendo a um
conjunto de factos significativos — e não como significados na obra de
Cesário. Mas também são os polos de um processo intelectual
dinâmico, de uma viagem ideológica em que Cesário procura
reconciliar essas coordenadas antitéticas para poder definir a sua
própria identidade. […]
O tempo-espaço inicialmente definido nos poemas de Cesário é a
cidade, a realidade presente que, ao ser contrastada com a metáfora
antinómica representada pelo campo, é definida como confinadora e
destrutiva. A nível pessoal, a cidade significa a ausência, a
impossibilidade ou a perversão do amor, e o campo, a sua expressão
idílica. A nível social, a cidade significa opressão, e o campo, a recusa
da opressão e a possibilidade do exercício da liberdade.
Para escapar à dupla limitação da cidade, Cesário tenta encontrar
uma solução social e pessoal através de uma identificação ativa e
concreta com o campo. A partir desse momento, o campo deixa de ser
a idílica metáfora oposta ao tempo e ao espaço presente da cidade,
tornando-se uma realidade concreta observada tão rigorosamente e
descrita tão minuciosamente como a própria cidade o havia sido: um
campo de que o trabalho e os trabalhadores são parte integrante, um
campo útil onde o poeta se identifica com o povo e em cujas
atividades participa.
A participação ativa na vida rural levou assim Cesário a reformular o
básico contraste com a abstração metafórica do campo bucólico. Esta
mudança de atitude é expressa por uma negação específica das
associações românticas tradicionais com o campo e por uma
afirmação particularizada do trabalho rural em todos os seus
pormenores técnicos. […]
Esta reformulação leva, por sua vez, à transposição do contraste
campo-cidade para uma nova, mas equivalente, polaridade: o
contraste entre a sociedade agrária e a sociedade industrial. A cidade
artificial torna-se equivalente às nações industriais do Norte, e o
campo — o natural oposto ao artificial — torna-se equivalente a
Portugal, uma nação agrária do Sul identificada com o seu povo
comum. […]
A posição de Cesário perante o povo — entendido como o oposto
do «povo vil e fraco» de Oliveira Martins — está […] profundamente
relacionada com a sua perceção da fraqueza da sua «geração de
ricos». E ao identificar-se com o povo que mantém «as tradições
antigas, primitivas» que lhe permitem apreender «a formidável alma
popular » («Nós»), Cesário está a rejeitar o artifício do modelo
industrial das nações do Norte adotado em Portugal pela própria
classe burguesa e citadina.
O desenvolvimento industrial, que servia aos seus contemporâneos
de padrão para medir o atraso de Portugal, ao mesmo tempo
revelando a superioridade das nações do Norte e, implicitamente,
justificando o seu domínio sobre Portugal, é equiparado por Cesário
ao desenvolvimento da cidade e ao domínio desta sobre o campo.
Mas, ao rejeitar, por destrutiva, a própria base desse desenvolvimento
[…], Cesário parece estar a assumir uma atitude perigosamente
próxima da dos «neogarrettianos» da geração seguinte, que tenderam
a neutralizar as realidades sociais do campo na sua
idealização arcádica. […]
Helder Macedo, Nós — Uma Leitura de Cesário Verde,
Lisboa, Dom Quixote, 1986 (com adaptações).

Glossário
Alexandrinos: versos de doze versos, tradicionalmente acentuados na
sexta e na décima segunda sílabas métricas; entra na literatura
moderna portuguesa através da poesia francesa. 
Encavalgamento: processo poético que consiste em acrescentar no
verso seguinte uma ou mais palavras que completam o sentido do
verso anterior.
Impressionismo: técnica de pintura (usada pelos pintores da corrente
do movimento impressionista) que, quando aplicada na literatura,
consiste na representação da realidade privilegiando as impressões
sensoriais de um incidente ou de uma cena; numa descrição de um
grupo de figuras ou de um lugar, representa-se o cromatismo e o efeito
visual do conjunto sem que o narrador ou o poeta se atenha
aos pormenores.
Parnasianismo: movimento literário que rejeita o excesso de
sentimentalismo romântico ao mesmo tempo que investe nos aspetos
formais da literatura (sobretudo, da poesia) e que recupera modelos da
Antiguidade Clássica. Os poetas parnasianos advogam a ideia de arte
pela arte, no sentido em que a arte (aqui, a literatura) vale por si e não
tem de copiar a realidade ou submeter-se às suas regras.

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