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CURSO DE PASTORAL (6º ANO)

Trabalho realizado por João Paulo Machado de


Freitas no âmbito da Diaconia da Caridade
orientado pelo Pe. Lino da Silva Maia

O Papa Francisco escreve na sua primeira Exortação Apostólica:

«Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica


descobrir que ‘assim lhe confere uma dignidade infinita’. Confessar que o
Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa
humana foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus
deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do
amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem
um sentido social, porque ‘Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa
individual, mas também as relações sociais entre os homens’. Confessar
que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que Ele procura
permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: ‘O Espírito
Santo possui uma criatividade infinita, própria da mente divina, que sabe
prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e
impenetráveis’. A evangelização procura colaborar também com esta
acção libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade recorda-nos
que somos criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não
podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do coração do
Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente
exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação do
primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-lo com
o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas
suas acções uma primeira e fundamental reacção: desejar, procurar e
levar a peito o bem dos outros»1.

Olhando para a nossa história socio-caritativa de Portugal, encontram-se


diversos homens e mulheres que sentiram interpelados, pela fé, o bem dos outros. Uma
dessas pessoas foi o Padre Joaquim Alves Correia.

1
FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, nº 178.
SEMINÁRIO MAIOR DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DO PORTO 2
Padre Larguezas - Pe. Joaquim Alves Correia

1. Biografia

O Pe. Joaquim Alves Correia nasceu em Aguiar de


Sousa, concelho de Paredes, distrito do Porto, a 8 de Maio de
1886, duma família de modestos lavradores. Era o quarto filho
de uma família profundamente cristã: um dos irmãos torna-se
frade menor franciscano e duas das suas irmãs irão para as
Franciscanas de Calais. Com a morte de seu pai, a família é
obrigada a vender terras e muitos trabalhos. Desde muito
cedo, decidiu ser religioso missionário: entrou na
Pe. Joaquim Alves Correia
Congregação do Espírito Santo (espiritanos), frequentando as
diversas casas de formação (no Colégio da Formiga, em Ermesinde onde concluiu os
seus estudos secundários, em Sintra, onde estudou a filosofia, no Seminaire des
Missions, em Chevilly-Larue, França, onde frequentou a Teologia). Fez a sua Profissão
Religiosa a 16 de Outubro de 1906. Em 28 de Outubro de 1910, foi ordenado sacerdote
nesta última casa de formação e foi nomeado missionário de Onitsha, Nigéria, então
colónia inglesa, entre 1911 e 1918, onde teve a oportunidade de trabalhar com Pe.
Joseph Ignatius Shanaham (1871-1943) – que mais tarde será Perfeito de Lower
Nigéria, Vigário Apostólico do Sul da Nigéria). Nove anos mais tarde, teve de regressar
a Portugal por motivos de saúde.
Com a Implantação da República em Portugal (5 de Outubro de 1910), fez com
que muitos espiritanos fossem dispersos: os que eram estrangeiros, foram expulsos do
país; os de nacionalidade portuguesa foram dispersos, alguns secularizam-se e outros
fugiram para outros países. O Conselho Geral pediu ao Pe. Moisés Alves Pinho (1883-
1980) – em 1932, foi nomeado Bispo de Angola e Congo, Arcebispo de Luanda e Bispo
de São Tomé e Príncipe – que restaurasse a Província portuguesa dos espiritanos. Foi,
então, que pediu ao espiritanos portugueses que regressassem à sua Província, uma vez
que, os desafios eram elevados. Pe. Alves Correia colaborou na instauração da
Província de 1919 até 1945. Durante este período, assumiu diversos cargos: foi
professor em Braga e em Lisboa; dirigiu a Revista “Missões de Angola e Congo (1920-
1930); foi procurador das Missões, em Lisboa (1922-1932; 1935-1945); e foi director
do Seminário do Espírito Santo, em Viana do Castelo (1932-1935).
Em Lisboa, contactou com muitas figuras mais representativas da oposição do
regime salazarista. Era habitual conviva de uma tertúlia no Café do Chiado, de que
SEMINÁRIO MAIOR DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DO PORTO 3
Padre Larguezas - Pe. Joaquim Alves Correia

faziam parte algumas figuras notáveis da República. Durante este período escreve
diversos artigos, publicados em diversos jornais «Era Nova» – fundado por ele –,
«Novidades», «Jornal do Comércio» e «Comércio do Porto» onde condena a
perseguição, violência e a intolerância face à opinião dos eleitores. Tal como se pode
ler, como exemplo, num artigo intitulado «O Mal e a Caramunha» condena os
assassinatos de Carlos da Maia, Machado Santos e António Granja ocorridos a 19 de
Outubro de 1921, conhecido por “Noite Sangrenta”. Neste denuncia «uma polícia de
vigilânda que não deve satisfações a ninguém» e que «era incómodo, mas muito pouco
corajoso, atirar à cara deste povo irrequieto com a responsabilidade da desordem
pública, quando o pobre povo nem responder podia»; ao mesmo tempo, aproveitou para
combater a atitude do Governo, uma vez que «não é justo, nem ordeiro, nem
moralmente elegante, continuar a atirar com o horror daquele tenebroso dia aos amigos
de então. Não é sincero nem decente». Face ao seu empenho pela liberdade, pagou com
o exílio, em 1946, nos Estados Unidos, onde viria a morrer a 1 de Junho de 1951, com
um cancro no pulmão, em Pittsburg.
Nos Estados Unidos, para além de ser capelão da comunidade portuguesa de
San Diego e, mais tarde, professor de sociologia na Duquesne University de Pittsburg,
Pe. Alves Correia não ficou calado mas continuou a condenar todas as represálias face
ao direito de expressão, publicando diversos artigos nos seguintes jornais:
«CatholicWorker», «Diário de Notícias», que era publicado em New Bedford.
O Pe. Francisco Lopes, espiritano e biógrafo da vida deste homem, escreve ao
referir-se à sua morte: «Extingue-se o homem, mas não o eco evangélico das palavras
com que vergastava os que desafiavam a justiça da humanidade, sorvendo o sangue dos
irmãos para matar a sede infrene que lhes devorava as entranhas desumanas». O Doutor
Braga da Cruz, no prefácio do livro «Pe. Joaquim Alves Correia», escreve: «O P.
Joaquim Alves Correia foi uma figura paradigmática do seu tempo e precursora do
nosso, porque viveu na fronteira dos dois, fiel à tradição, aberto ao futuro. Como
sacerdote católico e missionário, foi homem de Deus e um homem do povo. Pertence
por isso ao património eclesial português como também ao património democrático
nacional. Nessa dupla qualidade… deve ser lembrado e louvado».
Após a Revolução de Abril de 1974, houve várias homenagens aos homens que
combateram pela liberdade do povo. Pe. Alves Correia foi homenageado pelo D.
António Ferreira Gomes, após o seu regresso à diocese do Porto, numa secção solene na
Aula Magna da Faculdade de Letra do Porto; inaugurou-se, a 6 de Maio de 1978, na sua
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Padre Larguezas - Pe. Joaquim Alves Correia

terra natal, um busto; nos jardins da casa provincial dos


espiritanos encontra-se um outro busto deste homem, assim
como no Seminário de Godim (Régua), sendo, para os
espiritanos portugueses, um exemplo de um homem que se
dedicou inteiramente pela Justiça e Paz; foi dado ao centro
de apoio aos imigrantes irregulares, em Lisboa, o nome do
Padre Alves Correia (Centro Padre Alves Correia –
CEPAC), por fim, o nome do Pe. Alves Correia foi dado a
Busto do Pe. Alves Correia
arruamentos de Lisboa, Vila Nova de Gaia, Paredes e
Aguiar de Sousa, sua terra natal. Em 1980, foi condecorado como Grande-Oficial da
Liberdade, a título póstumo, pela Presidência da República2.

2. Um exemplo de vida e de doação para os nossos dias

O exemplo deste padre espiritano faz recordar as palavras do Papa Francisco:


«ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das
pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com
a saúde das instituições das sociedades civil, sem nos pronunciarmos sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos»3.
Esta afirmação do Papa vem de acordo com o testemunho dado pelo Pe. Alves
Correia, na medida em que interpela para que a fé tenha impacto na vida social. O
Apóstolo São João escreve: «Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas tiver ódio ao seu
amor, esse é mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar
a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20). Esta perícope revela que existe uma
indissolubilidade entre a fé e a vida social. A nossa fé deve marcar a nossa postura na
vida social, salientando sempre que o homem possui um lugar único, irrepetível na obra
da criação. Desta forma, não pode existir nenhuma lei, nenhuma força política, nenhuma
superioridade face à dignidade da pessoa humana. Se existe, necessita de ser
denunciado, protegendo sempre a vida humana.
Pe. Alves Correia não teve medo de ir contra à corrente política para defender
o homem. Ao mesmo tempo, sentiu que a Igreja estava muito distante face ao que se
2
Os dados biográficos baseiam-se na seguinte bibliografia: PROVINCIA PORTUGUESA DOS
MISSIONÁRIOS DO ESPÍRITO SANTO, Memorial Espiritano, Lisboa: Secretaria Provincial, 2007, pp.
131-132; ADÉLIO TORRES NEIVA, Congregação do Espírito Santo e do Imaculado Coração de
Maria. História da Província de Portugal, Lisboa: Gráfica Povoense, Lda., 2005, pp. 255-263;751-753;
877-878;923.
3
FRANCISCO, Evangelli Gaudium, nº 253.
SEMINÁRIO MAIOR DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DO PORTO 5
Padre Larguezas - Pe. Joaquim Alves Correia

passava à sua volta, tendo, possivelmente, medo de denunciar as fragilidades da política.


Ao olhar para os dados biográficos deste padre espiritano, penso que a sua posição era
incentivar a Igreja a estar mais atenta aos problemas do mundo, da sociedade e do
homem para que o ser humano pudesse crescer e tornar-se, cada vez mais, humano.
Uma atenção que obrigasse a Igreja a estar mais presente na vida da sociedade,
anunciando assim o Reino de Deus restaurado por Jesus Cristo. Uma Igreja que não se
acomodasse, vendo os sofrimentos humanos, sem impor a sua posição de fé (caindo em
fundamentalismo religioso): Cristo veio libertar o homem de todas as escravidões que
oprimem ao homem, colocando-o à margem dos seus direitos.
De facto, a posição do Pe. Alves Correia vem colocar, utilizando uma
expressão do Papa Francisco, a «Igreja em saída». Uma Igreja que saia, sem esquecer as
suas raízes de fé, para se colocar ao lado daqueles que mais sofrem. Neste sentido,
pode-se ver que o pensamento do Pe. Alves Correia está em concordância com a
doutrina vinda do Concílio Vaticano II, salientando, de maneira especial: «As alegrias e
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos
pobres e de todos os aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não
encontre eco no seu coração» (GS, nº 1).
Porém, ainda estamos a percorrer este caminho; necessita-se de mudar algumas
mentalidades sobre a questão da pobreza nos dias de hoje. Em formato de conclusão,
gostaria de apresentar uma reflexão partindo de umas das frases do Pe. Alves: «uma
nação cristã que não faz pregar, desobedece à última vontade do testamento de Cristo
Salvador […] se um dia acorda entre nós um católico e se lembra cumprir um dever que
todos deveriam cumprir e quase todos esquecem […] o homem é doido e fanático,
porque dá à causa do Apostolado, à salvação longínquos pretos, o que deveria dar aos
pobres que tem à porta».
Esta simples frase fez-me pensar que muitas vezes existe uma falsa imagem de
pobreza. Os meios de comunicação, até mesmo nos ambientes cristãos, encaram a
pobreza como um problema longínquo, criando assim estereótipos de pobreza. Por
exemplo: quando se fala de África, vem à mente aquelas imagens tristes de crianças
muito magras, desnutridas e sem vestimentas… esquecendo que muitas pessoas
possuem diversas pobrezas que necessitam de ser socorridas. Tal torna-se ainda mais
visível quando, por exemplo, nas diversas propagandas/publicidades de angariação de
fundos (recorda-se por exemplo, toda a propaganda que se cria: campanha para o Dia
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dos Leprosos, para o Dia Mundial das Missões…) encontra-se uma imagem de pessoas
neste estado de pobreza miserável do que propriamente das outras necessidades que, de
certa forma, oprimem o homem. Na verdade, as pessoas até são capazes de contribuir
para estas causas, mas será que isto, é de verdade caridade para com o próximo? Será
que se sente que os problemas sociais, políticos e económicos também nos dizem
respeito? De facto, para a nossa mentalidade os problemas dos outros tornam-se nossos
problemas quando batem à nossa porta. Basta, por exemplo recordar, os casos da
epidemia da Ébola: enquanto morria milhares de africanos, raramente aparecia nos
meios de comunicação; mas foi suficiente que, pessoas do nosso continente, ficassem
contagiados para que começasse a haver reacções e combate à epidemia. Mas, acabando
a epidemia na Europa, ainda existe milhares de homens, mulheres e crianças
contagiadas por esta doença.
De facto, a realidade que está à nossa volta obriga a sair do nosso comodismo,
individualismo europeu para reconhecer que todo o ser humano é nosso irmão. O
combate pela pobreza e pelos direitos humanos não pode ser encarado como uma
utopia. É uma realidade bem concreta que bate à nossa porta diariamente e que necessita
de homens e de mulheres audazes para impor que se respeite a vida humana. Para nós,
cristãos, o sentimento de pena face ao outro não deve existir. O nosso sentimento deve
ser de compaixão (sofrer com) que é a postura proposta pelo Evangelho: «Dai vós
mesmo de comer» (Lc 9, 13). Encarando desta forma, percebe-se que a caridade cristã
não é, simplesmente, um acto caridoso que se tem com alguém, resumindo-a a um acto
de dar uma esmola a um pobre; mas baseia-se em reconhecer que cada ser humano,
criado à imagem e semelhança de Deus, necessita de ser amado enquanto homem. Amar
o outro é a melhor forma de combater e de respeitar a dignidade da pessoa humana.
Através do testemunho do Pe. Alves Correia incentiva para que a Igreja esteja
sempre atenta à realidade do mundo e procure sempre novas formas de responder aos
anseios da humanidade. É na medida em que se está atento às necessidades dos que
mais sofrem as sequelas da injustiça, que se pode criar laços fraternos entre todos os
homens, semeando o Reino de Deus.

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