Você está na página 1de 209

Através dos relatos edificantes, os jesuítas do Brasil também

tentavam convencer possíveis missionários a se engajarem


na empreitada ultramarina, muitas vezes argumentando que
as missões tinham uma grande carência de material humano.
Nessas cartas, os índios quase sempre eram descritos como
seres degenerados e cheios de pecados, o que dava a entender
que o Novo Mundo era uma terra habitada por pagãos que
necessitavam desesperadamente do auxílio de espíritos nobres.

Seus prazeres [dos índios] são como an-de ir à gerra, como


an-de beber hum dia e huma noute, sempre beber e cantar e
bailar, sempre em pee correndo toda a Aldea, e como an-de
matar os contra rios e fazer cousa nova pera a matança; an-de
aparelhar pera seus vinhos e cozinhadas da carne humana; e a
suas santidades, que dizem que as velhas an-de tornar moças,
e outras mil cousas que vos o Irmão André do Campo terá
contado. Mas a falta de não aver nesta vinha uvas hé por lhe não
cortarem o mato ao redor e não aver podadores, os quaes vós
soys os que muyta mingoa caa fazeis e tanta quanta eu sei que
vós o sentíreís."

A maioria dos jesuítas no Brasil vinha de uma das casas


em Portugal ou tinha laços de amizade com os irmãos que
nelas habitavam. Por conseqüência, as cartas enviadas às
casas continham também descrições das atividades de cada
missionário, seu estado de saúde, disposição de espírito etc.
As cartas muitas vezes incluíam saudações aos conhecidos em
Portugal e pedidos para que os irmãos de Portugal rezassem
pelo sucesso e bem-estar das missões.

Rogo vos omnes ut semper oretis pro paupere Fratre joseph. A


meus charissimos Padres Francisco Rodrigues, Miguel de Sousa,
Antonio de Quadros, Don Lião, Manoel Godinho, com todos
os demais e elles principalmente, e ho meu charissimo P. Antonio
Correa, que forão e são meus pais, rogo e peço se lembrem
sempre deste pobre filho que em Christo gerarão e nutrierunt,
aos quais e a todos os demais, maxime a meu charissimo Jorge
Rijo e Marcos Pereira (si modo vivit) desejo escrever, e porem
parece-me que satisfaço com as cartas gerais que vão para
toda a Companhia. Opto vos, Fratres charissimi, semper in Christo
bene valere."

Nos relatos edificantes os jesuítas deixavam de lado o tom


pessoal e privado característico da comunicação oral. Muitas

55
i,

vezes, esses relatos não tinham endereço específico nem


tampouco os elementos comuns à tradição epistolar do
século XVI: saudação, petição e exortação à boa vontade do
leitor. Essas cartas geralmente continham descrições porme-
norizadas de algum aspecto da vida na colõnia: o entorno
natural, a cultura dos nativos, a história das missões até aquele
ponto etc. A retórica utilizada em sua redação era similar à
da literatura de relatos de viajantes do início da Idade Moderna.
Os autores usavam a autoridade do testemunho ocular para
reforçar a veracidade e a fidedignidade histórica de suas
narrativas.
Funcionando como instrumento de publicidade e promoção
da legitimidade da Companhia dentro da Igreja e das cortes
européias, os relatos edificantes acabaram por criar uma imagem
idealizada das atividades dos jesuítas. Esses relatos eram
verdadeiros instrumentos de propaganda em pleno século
XVI, "vendendo" as missões para aqueles que as financiavam
e, ao mesmo tempo, impedindo que os problemas e inefici-
ências da empreitada viessem a público.?' Porém, o mais
interessante elemento contido nesses relatos edificantes é o
cabedal de informações etnográficas sobre a cultura dos
índios Tupi do Brasil. Os jesuítas brasileiros foram forçados
a conceber táticas de conversão que fossem adaptadas à
cultura dos nativos. Eles rapidamente descobriram que as
táticas desenvolvidas por Francisco Xavier nos encontros com
as culturas do Extremo Oriente pouco serviam àquele novo
contexto. Mas, apesar de estarem conscientes dos problemas
de inadequação cultural enfrentados pela prática da conversão,
os jesuítas não chegaram a articular uma teoria da conversão
em suas cartas. Conforme os preceitos da prudência jesuítica
prescrita por Inácio de Loyola - adaptação de normas e
tolerância a violações menores - os irmãos preferiam
justificar as táticas de conversão através das necessidades
de adequação dos ditames da Igreja aos costumes dos nativos,
e vice-versa. Uma vez que a especificidade cultural dos índios
era, no fundo, a justificativa para uma revisão das práticas de
conversão, criou-se a necessidade de informar os europeus
das características da cultura nativa que justificavam tal revisão.
Isso era feito através das cartas.
A etnografia dos relatos edificantes dos jesuítas funcionava,
portanto, como um meio de legitimar a adoção de novas táticas

56
de conversão e a adaptação das normas a esse propósito. As
descrições da cultura indígena que integram aquelas cartas
dos jesuítas não eram apenas relatos de curiosos espantados
com as novidades do Novo Mundo; elas eram também o
principal instrumento de justificação de suas práticas missio-
nárias. O uso instrumental da etnografia para fins justificativos
fica ainda mais claro na maneira pela qual os jesuítas estrate-
gicamente condenavam os vícios e maus hábitos dos nativos,
quando queriam explicar o fracasso de uma determinada ação,
e exortavam suas virtudes e inocência quando queriam
demonstrar o sucesso de sua empresa evangélica.
Essa divisão funcional da atividade epistolar da ordem em
bijuelas e relatos edificantes perdurou por todo o século XVI.
Os relatos exaltavam as virtudes e a importância da atividade
missionária; eram lidos nas cortes, na Cúria Papal e nas casas
dos jesuítas, enquanto as bijuelas, endereçadas à hierarquia
da ordem, explicavam em segredo as decisões tomadas
e pediam por auxílio e conselho. A hierarquia jesuítica
mantinha-se permanentemente informada sobre tudo que
acontecia com os jesuítas espalhados pelo mundo. Essa
supervisão constante da atividade dos irmãos permitia, por
um lado, que os superiores avaliassem o êxito das missões e
planejassem sua organização e expansão. Por outro, a neces-
sidade de comunicação constante com a Europa forçava os
jesuítas a prestarem contas de suas práticas e a monitorarem
as atividades dos outros irmãos.
Nascidas da conversão da espiritualidade de lnácio de
Loyola em uma organização institucional apostólica, as cartas
jesuíticas representaram, portanto, uma inovação nas técnicas
de administração institucional, vigentes no século XVI. As
cartas ainda não tinham a forma do documento estandardizado
usado nas burocracias modernas, mas já haviam abandonado
o tom confessional e biográfico das técnicas de correspon-
dência utilizadas pelos religiosos do período medieval. Como
instrumento administrativo, a correspondência jesuítica
combinava a demanda por controle institucional da hierarquia
com as interpretações prudentes dos missionários a respeito
de suas experiências de campo.
No próximo capítulo, veremos como os encontros do Novo
Mundo entre jesuítas e índios Tupi levaram os missionários a
revisarem suas estratégias de conversão e a justificarem estas

57
adaptações nas cartas enviadas à hierarquia na Europa. Uma
nova forma de devoção cristã, concebida por lnácio de Loyola,
havia se tornado uma organização religiosa moderna, com
novos instrumentos de controle institucional. Neste conjunto
de práticas discursivas geradas pela instituição epistolar, os
missionários que vieram ao Brasil encontraram novas maneiras
de reformar um empreendimento religioso pleno de conflitos
políticos que exigiam justificação.

58
c A p T u L o II

O~ cNCONr~O~ DO
NOVO MUNDO
o CA~O ~~A~lltl~O

A literatura acadêmica produzida nos últimos anos tem


adotado a expressão "encontros do Novo Mundo" ao invés
de "descoberta" e "conquista" para descrever o processo
colonizador nas Américas. Eliminando as assimetrias pressu-
postas por aqueles dois termos, e permitindo portanto uma
análise mais fidedigna, não só do holocausto indígena
perpetrado pelos europeus no novo continente, mas também
das interações culturais que aconteciam nas margens do
processo colonizador, a expressão "encontros do Novo Mundo"
indica como aquela experiência revolucionou o modo como
os europeus concebiam seu próprio mundo. No continente
americano, os povos do Velho Mundo descobriram culturas
que não podiam ser descritas com os vocabulários político e
religioso, falados na Europa do século XVI. Os "encontros
do Novo Mundo" foram, dessa maneira, responsáveis por uma
vasta revisão das linguagens e conceitos utilizados na Europa
do início da Idade Moderna.
No entanto, o tom excessivamente didático da expressão
"encontros do Novo Mundo" acaba por conferir um falso
aspecto generalizante às diferentes experiências envolvidas
nos encontros entre europeus e nativos do Novo Mundo. Além
das expressões de espanto, admiração e horror, manifestadas
pelos europeus em relação aos costumes dos nativos, havia
uma multiplicidade de significados, atribuídos aos encontros,
originária das diferentes motivações dos muitos viajantes,
assim como uma grande variedade de culturas indígenas
encontradas. Aqueles que vieram ao Novo Mundo em busca
de riquezas, por exemplo, tendiam a ver os nativos através
F------------~~~--~--~-------
de uma perspectiva instrumental, segundo a qual os índios
constituíam um meio ou obstáculo para a obtenção de seus
objetivos econômicos. Por outro lado, para os viajantes que
aqui chegaram, a diversidade cultural dos nativos é que
infundia significado ao encontro. As classificaçôes das dife-
rentes culturas encontradas compõem a parte mais importante
dos relatos produzidos por esses "turistas" transoceânicos da
aurora da modernidade.'
Mas, assim como em outras partes do Novo Mundo, os
principais personagens europeus envolvidos nos encontros
culturais que ocorreram no Brasil não eram viajantes, ou muito
menos conquistadores, mas missionários cristãos, para quem
os "encontros do Novo Mundo" tinham um significado muito
peculiar. Esses missionários viram-se diante do desafio da
conversão dos pagãos, desde o início de sua empreitada no
continente americano, desafio este que acabou rendendo um
sem número de especulações a respeito das características
culturais de cada povo encontrado. Para os missionários
católicos, as diferenças culturais se traduziam em diferentes
perspectivas de conversão, e o estudo dos hábitos e costumes
dos povos descobertos acabou gerando, portanto, uma nova
etnologia comparada, na qual categorias medievais como
"bárbaro" foram gradualmente abandonadas.'
No caso aqui em estudo, esses missionários eram jesuítas
que haviam entrado em contato com índios Tupi no Brasil.
Diferentemente dos viajantes e conquistadores, os irmãos da
Companhia de Jesus tinham algo mais que simples espanto e
admiração pela diversidade cultural indígena: eles tinham
como objetivo principal converter esses pagãos ao cristianismo.
Os viajantes que vieram à colônia, em geral, não tinham a
cultura literária dos irmãos jesuítas, e produziram relatos
esporádicos sobre seus encontros. Os jesuítas, porém, tinham
a obrigação institucional de escrever periodicamente para os
seus superiores na Europa, e, nas milhares de páginas que
escreveram, discutem as atividades missionárias, as notícias
da colônia e as peculiaridades das culturas nativas. A corres-
pondência jesuítica é, sem dúvida, a fonte mais valiosa de
informação sobre os encontros entre europeus e nativos no
Brasil colônia.
Começamos com uma análise da maneira como os missio-
nários da Companhia de Jesus transformaram a teoria tomista

60
do paganismo em uma série de táticas concretas de conversão,
e como essas estratégias foram sendo adaptadas, com o passar
do tempo, aos objetivos da empreitada missionária. Como
veremos, em um primeiro momento, os irmãos se dedicaram
a aprender a língua Tupi e a produzir uma etnografia da
cultura indígena. A compreensão da cultura dos pagãos
brasileiros permitia que os jesuítas achassem modos mais
eficazes e prudentes de adaptar a linguagem, costumes e normas
do cristianismo ao modo de vida dos nativos. Os jesuítas
descobriram contudo que a conversão dos índios por esses
meios estava sujeita a sérios limites. Com a chegada ao Brasil
da terceira leva de jesuítas advindos de Portugal, os irmãos
começaram a redesenhar as táticas de conversão, ampliando
assim suas atividades para além da simples pregação da
palavra. Neste novo contexto, a cura dos índios doentes
tornou-se um importante instrumento de conversão. Ao
perceberem que os índios conferiam autoridade religiosa ao
curandeiro da tribo, os jesuítas tentaram assumir esse papel,
e, para competirem com a autoridade religiosa dos pajés,
começaram a se dedicar ao atendimento médico dos índios e
a adaptar os rituais dos sacramentos cristãos aos usos locais.
A trajetória do empreendimento jesuítico da palavra à cura
na tentativa de converter pacificamente os índios Tupi fracassou,
no entanto, e foi na busca de explicações para esse fracasso
e de razões para reformar o projeto missionário, que um novo
pensamento político começou a se desenvolver.

A FUNDAÇÃO DAS MISSÕES NO BRASIL

Cinqüenta anos antes do descobrimento do Brasil, o papa


Calixto II doou todas as terras a oeste do Cabo do Bojador à
Ordem de Cristo, um ato de recompensa pela sua colaboração
na vitória militar alcançada no leste europeu contra Mohamed lI.
De acordo com o direito eclesiástico, portanto, o Brasil era
uma propriedade da ordem. Fundada em Portugal no século
XIV, a Ordem de Cristo foi criada para substituir a Ordem
dos Templários, extinta pelo papa Clemente V em 1312. O
Sumo Pontífice havia determinado que todos os membros e
propriedades dos Templários fossem incorporados pela ordem
militar dos Hospitalários. Devido à grande rivalidade existente

61
---- ---

entre as duas ordens de cavaleiros, contudo, muitos Templários


resistiram à ordem do Papa. Entre eles estava a maioria dos
cavaleiros de Portugal - o mais importante reduto dos
Templários e sede de seu principal monastério, localizado
na cidade de Tomar. O rei português d. Dinis fundou, então,
a Ordem de Cristo com o objetivo de acolher os cavaleiros
que se negaram a integrar os Hospitalários."
Quando da descoberta do Brasil em 1500, o rei de Portugal
era Manuel r. Por tradição, o monarca lusitano ocupava um
posto de destaque na hierarquia da Ordem de Cristo. D. Manuel,
no entanto, não seguiu o costume criado por seus antecessores,
e negou-se a entrar para a ordem. Com a sua morte em 1521,
o rei d. João III assume o trono e junta-se imediatamente à Ordem
de Cristo, tornando-se seu Governador e Administrador. Até
então, o Brasil, assim como outras possessões da ordem,
tinha sido ignorado pela coroa portuguesa, ficando à mercê
das visitas freqüentes de piratas e corsários. O interesse de
d. João III pelo Novo Mundo foi a principal causa do início
da colonização sistemática do Brasil.
Com a finalidade de administrar e fiscalizar as três principais
ordens religiosas portuguesas (a Ordem de Cristo, a Ordem
de Santiago e a Ordem de Avis), em 1532 d. João III criou a
Mesa de Consciência e Ordens, dotada de poderes delibera-
tivos e consultivos sobre assuntos que, não raro, estavam
sob jurisdição das autoridades eclesiásticas no Vaticano. Os
conflitos de jurisdição, potenciais e reais, criados pela Mesa
levantaram suspeitas em Roma sobre os verdadeiros propó-
sitos de sua existência, os quais só se tornaram claros em
1537. Nesse ano, d. João III promoveu a união dos Mestrados,
um ato legislativo que conferia ao rei de Portugal o título de
Grão-Mestre das três ordens militares, as quais a partir de
então estariam submetidas ao poder secular da monarquia."
Com isso, as propriedades das ordens passaram para o
controle do monarca, estabelecendo o monopólio político
da coroa em relação ao Brasil e representando um importante
passo na consolidação do Estado português.
O primeiro ato da colonização sistemática do Brasil foi o
estabelecimento do sistema de capitanias hereditárias, criado
por d. João III em 1534. Porém, nenhuma das capitanias parecia
ser rica em minerais preciosos, o que limitou seu desenvolvi-
mento econômico. Apenas duas capitanias foram moderadamente

62
bem sucedidas: Pernambuco e São Vicente. Nessas capitanias, os
acampamentos dos colonizadores rapidamente se transformaram
em pequenas vilas, e uma economia local gradualmente foi-se
desenvolvendo em torno da exploração do pau-brasil.
Em 1548, d. João III decide reformar o sistema colonial e
ordena a criação de um governo geral na Bahia, então um
pequeno povoado eqüidistante das regiões de maior sucesso
econômico no nordeste e no sudeste brasileiro. O governo
geral era composto de três postos: o governador-geral, que
detinha o poder executivo e o controle das forças militares
na colônia; o ouvidor, responsável pelas funções judiciais; e o
procurador, que administrava as finanças da colônia.
Três anos após o estabelecimento do governo geral no
Brasil, o papa Júlio III promoveu d. João III de Governador a
Grão-Mestre da Ordem de Cristo, dando sinal de que parte do
ressentimento provocado pela criação da Mesa de Consciência
e Ordens estava sendo esquecido pela Cúria Romana. A
autoridade eclesiástica de Grão-Mestre conferia ao Rei de
Portugal o direito de indicar os juízes da Mesa, o que propor-
cionava àquele monarca total controle sobre a administração
dos territórios do Novo Mundo.
D. João Ill nomeou Tomé de Souza para o posto de gover-
nador-geral do Brasil. De acordo com as ordens do Rei, Tomé
de Souza recebeu as incumbências de fundar uma cidade na
Bahia, repelir os corsários, combater os índios inimigos da
costa e estabelecer um sistema de arrecadação de impostos
que incidissem sobre a exploração de pau-brasil. Além desses
objetivos militares e econõmicos, d. João III ordenou a Tomé
de Souza promover a conversão dos pagãos:

Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as


ditas terras do Brasil foi para [que] a gente dela se convertesse
à nossa Santa Fé Católica, vos encomendo muito que para isso
se pode ter, e de minha parte lhe direis que lhes agradecerei
muito terem especial cuidado de os provocar a serem cristãos,
e para êles mais folgarem de o ser, tratem bem todos os que
forem de paz, e os favoreçam sempre, e não consintam que
lhes seja feita opressão nem agravo algum, e fazendo-se-lhe
lho façam corrigir e emendar de maneira que fiquem satisfeitos
e as pessoas que lhas fizerem sejam castigadas com fôr justiça.'

63
A conversão dos índios ficaria, no entanto, a cargo dos
jesuítas que acompanhavam a expedição do primeiro governador
do Brasil.
As negociações visando a participação dos jesuítas na
empreitada de d. João III haviam começado em Roma, enquanto
lnácio de Loyola ainda tentava conseguir a autorização do
Papa para a fundação da Companhia de Jesus. Em 1539,
d. João IIl ordenou que seu embaixador no Vaticano, Pedro
Mascarenhas, consultasse Loyola e seus seguidores a respeito
de seus interesses em participar da empresa colonial portu-
guesa de além-mar." Loyola respondeu que a Companhia "não
tinha vontade própria", e que seus membros só viajariam se o
Papa assim lhes ordenasse. Mascarenhas solicitou ao Papa um
contingente de quatro homens para auxiliarem na colonização
das conquistas ultramarinas. O Papa, por sua vez, sugeriu a
Mascarenhas que dirigisse o pedido diretamente aos religiosos,
pois seria desejável que estes aceitassem voluntariamente tal
tarefa. O grupo aceitou o desafio, e imediatamente enviou
Simão Rodrigues e Francisco Xavier a Portugal. Em 1541,
Xavier partiu de Lisboa com destino a Goa, para lá fundar as
primeiras missões jesuíticas nos recém-conquistados domínios
portugueses da costa da Índia."
Simão Rodrigues deveria acompanhar Xavier, mas Loyola
pediu para que ele ficasse em Portugal e assumisse o posto
de provincial da ordem naquele reino. Rodrigues porém
desejava se integrar à atividade missionária nas colônias, e,
aproveitando-se da reforma do sistema colonial iniciada pelo
rei d. João III em 1548, acabou por convencer Loyola a
deixá-Io partir com Tomé de Souza para o Brasil. Rodrigues
planejava partir para o Brasil com um grupo de doze irmãos
jesuítas em janeiro de 1549. No entanto, o padre que seria
nomeado para substituí-Io no cargo de Provincial de Portugal,
Frei Santa Cruz, morre em outubro de 1548, levando Loyola a
reverter sua decisão: ordena a permanência de Rodrigues em
seu antigo posto, e transfere a responsabilidade do estabele-
cimento das missões no Brasil para as mãos de outro jesuíta,
Frei Manuel da Nóbrega. As missões de Xavier no Oriente e
de Nóbrega no Novo Mundo foram as primeiras atividades
transoceânicas empreendidas pelos jesuítas após a fundação
de sua ordem. As duas empreitadas foram conduzidas sob os
auspícios de d. João III, que, segundo Loyola, era um dos
mais leais aliados do papa Paulo m.s

64
Nóbrega tinha 32 anos de idade quando chegou ao Brasil
em 1549. Havia estudado em Salamanca e se graduado em
Direito Canônico pela Universidade de Coimbra, em 1541.
Quando entrou para a Companhia de Jesus em 1544, já havia
sido ordenado padre. Antes de partir para o Brasil, ele parti-
ciparia de missôes da Sociedade de Jesus no interior de
Portugal, e também monitoraria a transferência de proprie-
dades eclesiásticas para a recém-fundada escola jesuítica de
Coimbra. Nóbrega pretendia ser nomeado para o posto de
Prima Professor de Direito Canônico na Universidade de
Coimbra. Apesar do apoio do mais influente teólogo português
daquele tempo e Prima Professor de Teologia, Martin de
Azpilcueta Navarro, ele não conseguiu a posição."
Durante todo o tempo em que esteve no Brasil, ou seja,
de 1549 até sua morte em 1570, Nóbrega foi sem dúvida o
jesuíta mais importante na colônia. Líder das primeiras
missões, assumiu mais tarde o cargo de primeiro provincial
do Brasil, e teve uma influência marcante nas decisões da
administração colonial. Mesmo após ser removido do cargo
de Provincial - por razões difíceis de serem estabelecidas
historicamente -, Nóbrega continuou a participar intensa-
mente da atividade missionária jesuítica, revelando-se o mais
prolífico e importante escritor entre os jesuítas sediados no
Brasil naquele período. Em seus escritos encontramos os
relatos mais interessantes da experiência missionária dos
jesuítas no Brasil e das estratégias adota das na busca de
converter os pagãos do Novo Mundo.

A PALAVRA

Quando Nóbrega chegou ao Brasil em 29 de março de 1549,


integrando a expedição de mil homens comandada por Tomé
de Souza, junto com ele estavam outros cinco jesuítas: os
irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome, Leonardo Nunes,
Antônio Pires e João de Azpilcueta Navarro, um sobrinho do
teólogo português Martin de Azpilcueta Navarro. Duas semanas
após sua chegada ao Brasil, Nóbrega escreveu ao provincial
Simão Rodrigues em Portugal: "Depois de ter scripto a V. R.,
posto que brevemente segundo meus desejos, soccedeo nom
se partir a caravela e deu-me lugar para fazer esta e tornar-lhe

65
a encomendar as necessidades da terra e ho aparelho que
tem para se muytos converterem."?
Nóbrega e seus colegas chegaram ao Brasil otimistas com
relação ao "aparelho que tem [os índios] para se muyto
convertem", e queriam convencê-los a se converter através
da pregação da palavra, como prescrevia a bula Sublimus Dei,
promulgada pelo papa Paulo III em 1537: "... os tais Índios e
outros povos devem ser convertidos à fé de Nosso Senhor
Jesus Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo
de uma vida boa e sagrada."!' A bula aplicava a interpretação
tomista do paganismo para o caso dos habitantes do Novo
Mundo.
Segundo Tomás de Aquino, além dos cristãos existem dois
tipos humanos pecadores: hereges e pagãos. Herege é aquele
que escolhe negar a religião de Cristo, enquanto o pagão
simplesmente ignora a fé. Aquino defende que enquanto os
hereges devem pagar pelos seus pecados, os pagãos devem
ser convertidos através da persuasão, um argumento que ele
derivou de sua concepção a respeito da fonte da fé. Segundo
ele, a fé é uma virtude da vontade; a falta dela, no entanto, é
um defeito da razão. Esse defeito da razão pode se dar de
dois modos, pois algumas pessoas têm simplesmente ausência
de fé, ao passo que outras a rejeitam ativamente. O último
caso é claramente o do herege, o qual, segundo Tomás de
Aquino, deve ser compelido a abandonar o erro, podendo ser
punido por não fazê-Io. O pagão tem simplesmente ausência
de fé e, nesse contexto, não incorre em pecado por ignorar a
fé. Sua ignorância é o resultado do pecado de seus antepas-
sados, o que faz dele um inocente que não pode ser forçado
a se submeter. Aquino conclui, então, que a persuasão é o
único instrumento justo de conversão do pagão."
Nóbrega e seus colegas encontraram quarenta colonos
vivendo na Bahia, a nova capital da colônia. A maioria deles
era parente de Diogo Álvares, o Caramuru, patriarca da
comunidade, que mantinha relações amistosas com os índios
Tupiniquim que habitavam a região. Assim como os Tupiniquim,
a maioria das tribos brasileiras que habitava a costa pertencia
ao tronco lingüístico Tupi. Suas formas de organização social
eram semelhantes, sendo tribos geralmente semi-sedentárias,
compostas de algumas centenas de indivíduos que viviam da
agricultura, caça, coleta e pesca. Os grupos principais dentro

66
do tronco Tupi eram os Tupiniquim da Bahia, os Tamoio do
Rio de Janeiro e os Tupinambá do Sul. Outros grupos indígenas
menores que habitavam as florestas da costa atlântica, como
os Caetés do nordeste do Brasil por exemplo, falavam línguas
diferentes do tupi; os jesuítas consideravam esses índios muito
perigosos e raramente tentavam convertê-los, Portanto, dife-
rente de outros missionários chegados da Europa - que
encontraram grandes civilizações urbanas no Novo Mundo
como os Incas do Peru e os Aztecas do México - os jesuítas do
Brasil depararam-se com grupos sociais menores, similares aos
povos Caribe encontrados por Bartolomeu de Ias Casas.
Ao debater a escravidão indígena com Juan Gines de
Sepúlveda em 1550-1551, em Valladolid, Las Casas define os
Caribe como simpliciter: "... povos que, por causa de seu
entendimento impiedoso e perverso, ou por causa das regiões
miseráveis que habitam, são selvagens, ferozes, pouco
perspicazes e estranhos a qualquer forma de razão. Tais povos
não são governados por leis nem compreendem o que seja a
justiça.v" Essa descrição pode parecer um julgamento exces-
sivamente severo dos Caribe, especialmente quando sabemos
que foi proferida por Las Casas, um religioso tido como
"defensor" dos direitos dos índios. Devemos porém entender
essa passagem no contexto do debate, isto é, em relação aos
argumentos contra os quais ela se dirige. Las Casas pretendia,
com este texto, refutar o argumento de Sepúlveda, segundo o
qual os nativos do Novo Mundo eram como os escravos por
natureza descritos por Aristóteles. Las Casas pretendia mostrar
que não havia evidência suficiente para se argumentar que
os índios eram incapazes de ação, a principal característica
da escravidão natural segundo a define o filósofo grego.
Segundo Las Casas, a situação dos selvagens não permitia
tal julgamento.
Ao falarem dos índios Tupi, os jesuítas empregavam termos
semelhantes aos de Las Casas. Diziam, por exemplo, que o
fato de a língua tupi não ter as letras R, L e F, explica a ausência
de Rei, Lei e Fé na sociedade Tupi.14 Porém, mesmo que os
Tupi fossem muito diferentes das civilizações encontradas no
Peru e México, a principal comparação feita pelos jesuítas
era com as tribos mais "selvagens" e "bestiais", que não falavam
tupi e habitavam as matas da costa brasileira.
Os jesuítas descobriram que as sociedades Tupi tinham três
formas institucionais de autoridade: chefes, curandeiros (pajés)

67
e um conselho de anciaos. A organização dessa estrutura de
autoridade estava relacionada com a constante atividade
guerreira dos nativos. Em um dos principais estudos sobre a
cultura dos Tupinambá, Florestan Fernandes mostra que a
guerra era extremamente ritualizada nas sociedades Tupi, e
geralmente levada a cabo com o pretexto de vingar a morte
de antepassados. O canibalismo, por exemplo, era um dos
rituais associados à guerra, pois somente prisioneiros de
guerra eram canibalizados. A grande importância da guerra
nessas sociedades fazia com que os Tupi delegassem grande
autoridade ao chefe, geralmente alguém de grande bravura e
habilidades guerreiras que liderava o bando nos conflitos. Já
o conselho dos anciã os julgava os conflitos internos à comu-
nidade e tinha também o poder de declarar guerra contra
outras tribos."
Os Tupi também reconheciam a autoridade dos curandeiros
- os pajés. Um índio adquiria o status de pajé ao demonstrar
habilidades mágicas e capacidade de comunicar-se com os
espíritos. Qualquer pessoa que cumprisse esses pré-requisitos
poderia assumir o papel de pajé. A primeira habilidade
necessária para que uma pessoa se tornasse pajé era o
domínio da arte da sucção. A sucção era a principal técnica
usada pelos índios para tratar as doenças contraídas através
do contato com plantas e animais da floresta. O pajé também
deveria ser perito em técnicas mais imateriais como o canto e
a magia. As maracas eram potes de cerâmica com poderes
medicinais e mágicos, que estes curandeiros usavam para
predizer o tempo e o futuro. Os índios acreditavam que os
pajés que conseguiam utilizar as maracas com sucesso eram
capazes de se comunicar com os espíritos, habilidade essa
também manifestada através de cantos.
Em alguns casos, a reputação do pajé se tornava tão grande
que ele passava a ser reconhecido por tribos vizinhas. Esses
homens, chamados de caraíbas ou pajés-guaçú, eram tratados
como profetas pelas tribos da região onde moravam. Eles
geralmente viviam afastados das comunidades e atendiam
doentes em várias tribos. Existem relatos que descrevem esses
caraíbas liderando migrações em massa de índios Tupi em
busca de um paraíso terrestre, a terra-sem-mal chamada por
eles de ywy mara ey.16
O poder nas sociedades indígenas, apesar de dividido,
não era estratificado. As funções de chefe, conselho dos

68
anciães e pajé diferiam entre si, mas não havia uma ordem
hierárquica de precedência, exceção feita para os tempos de
guerra, quando a autoridade do chefe se aproximava à de um
rei europeu. A separação das funções de poder na sociedade
tupi propiciava a auto-regulação do sistema na medida em
que criava mecanismos de controle contra o abuso de poder
de qualquer autoridade. Os chefes deveriam prestar contas
ao conselho de anciães: o poder dos anciães, por sua vez,
era ultrapassado pela autoridade do chefe em tempos de guerra;
e, finalmente, o poder do curandeiro sempre dependia de
sua capacidade de demonstrar periodicamente seus dotes
mágicos e sua capacidade de curar doenças.
Até 1549, todos os contatos entre nativos do Novo Mundo
e missionários haviam sido estabelecidos por membros das
ordens franciscana e dominicana. Mas os franciscanos escreviam
pouco sobre suas experiências no Novo Mundo, e a principal
fonte de informação disponível para os jesuítas antes de sua
chegada ao Brasil eram, portanto, os relatos escritos pelos
dominicanos envolvidos em atividades missionárias. Os
jesuítas seguiram de perto a abordagem missionária de seus
colegas dominicanos: defendiam os nativos das tentativas dos
colonos de escravizá-l os e aprendiam as línguas indígenas
para melhor explicar as coisas da fé para os nativos pagãos.
Logo no início, Nóbrega e seus colegas se comunicavam
com os índios através de Diogo Álvares Caramuru, um dos
poucos portugueses da colônia que sabia falar o idioma dos
nativos. Os jesuítas sabiam que esta era uma solução provisória,
e logo começaram a aprender tupi e a ensinar português para
os nativos. Os padres decidiram que, para aprenderem rapi-
damente a língua nativa, melhor seria morar entre os índios.
A educação humanista recebida pelos jesuítas propiciava-lhes
um bom preparo para o aprendizado de línguas. Os irmãos
eram obrigados a aprender pelo menos uma segunda língua
(latim), sendo que as Constituições jesuíticas prescreviam
também o estudo de grego e hebreu nas escolas da ordem.
De acordo com os jesuítas, o processo de aprendizado da
língua nativa era não só necessário mas também enriquecedor
e belo. Eles elogiavam a musicalidade e a riqueza estrutural
da língua tupi, e freqüentemente a comparavam às línguas
do velho continente.

69
Também me parece que Mestre João aproveitaria cá muito,
porque sua lingoa [Catalão] hé semelhante a esta, e mais apro-
veitar-nos-emos cá da sua theologia .
.. .ordenou [o Provincial] em casa que ouvesse cada dia huma
hora de lição da lingoa brasilica, que quâ chamamos grego.
Não tem escrita, nem caracteres, nem sabem contar, nem têm
dinheiro ... sua língua é delicada, copiosa e elegante, tem muitas
composições e síncopas mais que os Gregos."

Assim que os jesuítas começaram a aprender a língua tupi


eles notaram que os nativos passaram a mostrar algum
interesse em suas pregações. Os índios Tupi tinham grande
respeito pelos membros de sua comunidade que demonstravam
habilidades retóricas, a quem eles chamavam de "senhores
da fala". O domínio da oratória, portanto, tornou-se um possível
caminho para os padres conquistarem alguma autoridade
perante os nativos. Ademais, na condição de intérpretes eles
conseguiam se distanciar da má reputação que os colonos
portugueses tinham entre os índios. Rapidamente, os jesuítas
bilíngües se tornaram a principal ponte de comunicação entre
portugueses e índios, sendo freqüentemente chamados para
resolver conflitos e auxiliar nas transações comerciais entre
as duas partes. Alguns dos irmãos, apesar do esforço genera-
lizado dos jesuítas para aprender rapidamente a língua tupi,
dependiam de intérpretes para comunicarem-se com os índios.
Essa demanda foi em parte atendida por crianças indígenas
às quais os padres haviam ensinado o português. A ajuda
das crianças era especialmente utilizada nos rituais sacramentais
cristãos ministrados pelos jesuítas, tal como a confissão."
As dificuldades enfrentadas por alguns irmãos, associadas
ao esforço exigido para o aprendizado, tiveram como conse-
qüência uma relativa estandardização dessa língua nativa.
Com o objetivo de auxiliar o ensino da língua aos irmãos, os
missionários compuseram gramáticas daquela que os jesuítas
acreditavam ser a "língua geral", falada por todos na costa
atlântica. A primeira gramática da língua tupi foi escrita pelo
padre José de Anchieta, e se chamou Artes da Gramática da
Língua Mais Usada na Costado Brasil. Esse texto foi publicado
em 1595, após ter circulado por muitos anos pela colônia na
forma de manuscrito. Interessante notar que a obra de Anchieta
foi a segunda gramática de uma língua vernácula a ser
composta no mundo ibérico, sendo precedida somente pela

70
Gramática de ta Lengua Castellana, escrita por Antônio de
Nebrija meio século antes.
As gramáticas do tupi preparadas pelos jesuítas foram um
genuíno esforço de invenção de uma língua padrão que
fizesse referência aos dialetos falados por toda a costa. O
esforço jesuítico de composição da língua geral acabou por
produzir uma latinização da língua nativa, já que o tupi era
uma língua exclusivamente falada e portanto sem tradição
escrita. O tupi dos jesuítas passou a ser escrito em alfabeto
latino e a seguir a estrutura de formação de sentenças das
línguas neolatinas. O conhecimento dessa língua rapidamente
se tornou uma fonte de poder tanto para os jesuítas quanto
para os índios. Assim como na Espanha e Itália, onde uma
língua nacional foi imposta a comunidades lingüística mente
diversas, o conhecimento da língua padrão tornou-se uma
fonte de estratificação de status nas sociedades indígenas.
Ademais, na medida em que as crianças nativas eram os estu-
dantes mais ativos de português e da língua geral, a forma-
lização do tupi causou uma inversão na distribuição social
de poder por idade nas sociedades Tupi, onde os anciãos
tradicionalmente gozavam de grande autoridade. Tal inversão
contribuiu para a resistência dos mais velhos ao empreendi-
mento missionário dos jesuítas.
A composição das gramáticas também permitiu que os
jesuítas incorporassem o aprendizado do tupi às instituiçôes
educacionais da ordem. Em 1565, por exemplo, Juan Polanco
requisitou o envio de vocabulários da língua tupi para Portugal,
para que fossem usados na educação dos noviços antes de
sua partida para o Brasil. A primeira Congregação dos Jesuítas
do Brasil, em 1568, também recomendou que as escolas
jesuíticas substituíssem o latim pelo tupi como requisito para
a ordenação de novos padres.'?
Os jesuítas também escreveram textos em tupi para auxi-
liá-Ios na atividade missionária. Os primeiros textos foram
os manuais de doutrina cristã. Por volta de 1552, Pero
Correia compôs a Suma da Doutrina Cristã em tupi; outra
doutrina do mesmo período escrita em língua tupi é atribuída
a Anchieta. Em 1574, Leonardo do Vale traduziu um manual
português para o tupi, e em 1618, o catecismo de Antônio de
Araújo traduzido para o tupi é publicado em Portugal. Essas
obras eram guias práticos de auxílio na atividade evangélica

71
e continham os princípios fundamentais da doutrina cristã,
tais como os mandamentos de Deus e da Igreja, os nomes das
virtudes cardeais e teológicas, as palavras em tupi que deveriam
ser ditas durante os sacramentos, os artigos da fé e os pecados
venais e mortais. Muitas vezes, esses manuais de doutrina
funcionavam como dicionários tupi da terminologia cristã.
Talvez o mais importante aspecto do esforço jesuítico em
aprender a língua dos nativos foi a quase forçada submissão
dos irmãos à cultura nativa Tupi. Ao traduzir os ensinamentos
e crenças cristãs para a língua local, os jesuítas acabavam por
atribuir significado tupi a palavras cristãs, Assim, essa submissão
ajudava efetivamente na conversão dos índios, mas isso só
pôde ser feito às custas de uma aproximação, modificação e
adaptação da doutrina cristã aos conceitos religiosos da
cultura Tupi. Alfredo Bosi (992) descreve este processo
desencadeado pela tradução como a formação de uma mito-
logia paralela, nem cristã nem Tupi. Mais interessante, no
entanto, é o argumento de Vicente Rafael, em sua análise das
missões jesuíticas entre os Tagalog das Filipinas:

Por tornar possível a tranferência de significado e intenção


entre colonizador e colonizado, a tradução torna possível a
articulação das linhas gerais da subjugação contida na conversão.
Por outro lado, porém, essa mesma tradução produz uma
inevitável separação entre o sentido original da mensagem cristã
(que como tal diz respeito à própria natureza da origem) e sua
articulação em língua vernácula. Ao colocar línguas em movi-
mento, a tradução tende a desvirtuar as intenções originais,
proporcionando, mas também subvertendo, as bases ideológicas
da dominação colonial. A necessidade de emprego de línguas
nativas na atividade evangélica limita o conteúdo totalizante e
universalizante da ordem colonial cristã ... Baseado em uma
concepção diferente de submissão e negociação com a autori-
dade, o sistema Tagalog de conversão paradoxalmente apoiou
e subverteu o poder colonial espanhol ao formular essa relação
de poder em uma língua estranha ao colonizador."

o domínio da língua nativa também propiciou aos jesuítas


um entendimento mais profundo da religião e dos costumes
indígenas. Através da observação etnográfica da cultura Tupi,
os irmãos da ordem aprenderam sobre as crenças dos nativos
e seus rituais religiosos, e, a partir daí, formularam táticas
para persuadí-los a acreditar no ensinamento cristão que

72
pregavam. Uma das primeiras ações empreendidas por Nóbrega
e seus companheiros foi tentar convencer os selvagens a
descartarem os discos de madeira que costumavam inserir
nos lábios, pois esses objetos impediam que os índios
pronunciassem corretamente os fonemas da língua portu-
guesa." A transposição da barreira lingüística trouxe portanto
uma aproximação entre os universos culturais dos missioná-
rios e dos índios, já que, para convencê-Ias a abandonar o
uso dos discos labiais, os jesuítas tiveram não só que aprender
a língua tupi, como também descobrir o significado daquele
uso dentro da cultura nativa.
O contato entre padres e nativos se deu em dois estágios.
Primeiro, os jesuítas procuraram palavras do português que
pudessem definir aqueles elementos da língua tupi que não
tinham uma tradução imediata. Cada novo animal, planta ou
costume do Novo Mundo e de seus habitantes recebeu um
equivalente europeu. Este processo de "nomear o desconhecido"
começou com a procura de palavras para descrever os próprios
nativos. Por terem um conhecimento de culturas não-européias
limitado aos continentes africano e asiático, os jesuítas
primeiramente identificaram os índios como "negros". Para
os missionários, os nativos do Novo Mundo se assemelhavam
mais ao tipo humano proveniente da África do que aos habi-
tantes da Ásia. Nesse primeiro instante, portanto, os jesuítas
tenderam a igualar a nova experiência com um tipo de dife-
rença que já conheciam. Mais tarde, quando escravos africanos
foram trazidos para o Brasil, os portugueses passaram a
chamá-Ias de "negros de Guiné", diferenciando-os assim dos
"negros da terra".
Num segundo estágio, os jesuítas passaram a interpretar a
cultura Tupi. Curiosamente, os missionários concluíram que
os índios haviam tido algum conhecimento da fé cristã no
passado e que haviam perdido essa informação com o passar
do tempo, uma vez que viram em alguns mitos indígenas
semelhanças com histórias antigas do cristianismo. Os mitos
Tüpi mais importantes descobertos pelos irmãos foram o
paraíso terrestre, o espírito do mau Anhangá, a inundação
que se seguiu à criação do mundo, e o mito de Sumé - um
ancestral dos Tupi que peregrinou por todo o Brasil.
O paraíso terrestre, também chamado de terra-sem-mal
Cywy mara ey), era um lugar muito distante e inviolável para

73
onde as pessoas iam após a morte. De acordo com o jesuíta
Fernão Cardim, os índios acreditavam que esse lugar era cheio
de árvores frutíferas que margeavam um rio onde o povo não
fazia nada além de dançar. 22 Índios do interior do Brasil
viajavam para a costa em busca da terra-sem-mal, assim como
índios da costa faziam o caminho inverso com o mesmo
propósito. O paraíso terrestre, contudo, estava reservado
somente para os bravos. Os nativos acreditavam que os
covardes e afeminados iam depois da morte para junto do
espírito do mau, Anhangá. Naturalmente, os jesuítas identifi-
caram o mito indígena do paraíso terrestre com o conceito
cristão de céu; o termo Anhangá, por seu turno, foi usado
pelos jesuítas em suas atividades evangélicas para designar
demônio da mitologia cristã."
A primeira referência ao mito indígena da inundação aparece
em uma carta escrita por Nóbrega nos primeiros meses após
sua chegada à colônia, e enviada a seu professor Martin de
Azpilcueta Navarro. O Tupi acreditava descender dos sobre-
viventes da inundação e os jesuítas rapidamente associaram
esse mito ao dilúvio narrado no Velho Testamento. As histórias
não eram inteiramente simétricas, pois no mito indígena não
havia arca e os protagonistas eram às vezes uma pessoa, às
vezes um casal. Os jesuítas atribuíram essas diferenças às
imperfeições introduzidas pela repetida transmissão oral da
história através dos tempos:

Tienen noticia dei diluvio de Noé, pu esta que no según Ia


verdadera historia, porque dizen que murieron todos, sino una
vieja que escapá en un arbol alto.
Tienen memoria deI diluvio empero falsamente, porque dizen
que cubriéndose Ia tierra de agua, una muger con su marido,
subieron en un pino, e después de menguadas Ias aguas
descendieron, y de aquéstos procedieron todos Ias hombres y
mugeres."

A evidência considerada mais contundente pelos jesuítas


de que os índios tinham tido contato com a cristandade foi, no
entanto, a existência do mito de Sumé. Segundo acreditavam os
nativos, Sumé era um ancestral, provavelmente um pajé, que
havia lhes ensinado a agricultura e criado sua organização
social. Os padres acreditaram que Sumé fosse o apóstolo
São Tomé.

74
Dizen ellos que Sancto Thomás, a quien llaman Zomé, passó
por aqui. Esto les quedó por dicho de sus antepassados. Y que
sus pisadas están seüaladas cabo un río, Ias quales yo fuy a
ver por más certeza de Ia verdad, y vi con los proprios ojos
quatro pisadas muy seüaladas con sus dedos, Ias quales algunas
vezes cubre el río quando hinche. Dizen también que quando
dexó estas pisadas yva huyendo de los Indios que le querían
flechar, y llegando allí se le abriera el río, y passara por medio
dél sin se mojar a Ia otra parte; y de allí fué para Ia lndia. Ansí
mesmo cuentan que quando le querían flecha r los Indios, Ias
flechas se bolvían para ellos, y los matos le hazían camino por
do passasse. Otros cuentan esto como por escarnio. Dizen tambíén
que le prometió que avía de tornar otra vez a verlos. ÉI los vea
dei cielo, y sea intercessor por ellos a Dios, para que vengan a
conocimiento suyo, y reciban Ia sancta fe, como esperamos."

o relato apresentado por Nóbrega nessa carta parece ter


sido influenciado pela extrema popularidade desfrutada por
São Tomé e suas relíquias na Europa da baixa Idade Média. A
lenda de suas pregações no oriente era disseminada, e, dada a
ignorância dos jesuítas em matéria de geografia, não parecia
improvável para eles que o santo tivesse alcançado as terras
do Novo Mundo a partir da Asia."
Através de suas investigações da cultura e dos mitos Tupi,
os jesuítas tornaram-se peritos em identificar elementos da
cultura cristã na mitologia indígena. Ao assumirem que os
mitos Tupi correspondiam a eventos da antiga história do
cristianismo, os jesuítas evitavam o árduo e doloroso processo
de dessacralizar as histórias indígenas e substituí-Ias por mitos
cristãos. Se as histórias dos índios eram também cristãs, a
única coisa a ser feita era uma correção que eliminasse as
imperfeições introduzidas pela transmissão oral das suas
narrativas. E as crenças Tupi, de fato, forneciam uma base
sólida para a pregação jesuítica. Nelas, os padres identificaram
importantes pilares da religião cristã: (a) os índios Tupi
acreditavam na imortalidade da alma; (b) organizavam seu
universo moral em torno da oposição entre o bem e suas
recompensas, e o mal e suas punições; (c) veneravam São
Tomé, assim como os jesuítas. Dessa maneira, a etnografia da
cultura Tupi permitiu que os jesuítas decifrassem a estrutura de
autoridade encerrada na organização social dos nativos e o
papel dos mitos da reprodução e legitimação dessa estrutura.

75
Mas, se a língua mostrou-se um instrumento indispensável
na conversão dos nativos através da persuasão, por si só não
permitia aos jesuítas superar a confusão e o mal-entendido
produzido por suas pregações. Em uma carta de 1563, José
de Anchieta narra a história de um velho índio a quem foram
ensinados os princípios básicos da fé cristã. O missionário
levou o nativo à igreja para que fosse batizado. Depois da
cerimônia, seu neto veio chamá-l o para partir. Confuso, o
velho homem indagou: "Partir para onde?" Ele imaginava que,
após o batismo, iria direto da igreja para o paraíso."
Onde seria o paraíso senão na igreja? Por que não matar e
comer os inimigos? Qual a razão do casamento e da monogamia?
Os jesuítas tinham que responder a todas essas perguntas, e
suas respostas, freqüentemente, não convenciam os nativos.
A tradução do cristianismo para o tupi permitiu aos jesuítas
converter seus símbolos religiosos em símbolos locais;
entretanto, se os jesuítas pretendiam convencer os índios de
coisas que não tinham correspondência na língua dos pagãos,
então seria necessário algo mais que aquela eloqüência. Para
transformarem os índios em cristãos, os padres teriam que
fazê-Ios acreditar que falavam a verdade a respeito dos
assuntos religiosos. Com este propósito, Nóbrega e seus
colegas buscaram novas táticas de conversão além da mera
pregação da palavra.

A CURA

As primeiras notícias, em carta, de que Nóbrega e seus


colegas passaram a considerar a pregação da palavra um
instrumento ineficaz na conversão dos nativos são de 1552.
Nessas cartas, eles comentam que precisam encontrar outros
meios de persuasão que não se baseiem exclusivamente em
seu trabalho evangelizador. Para descobrir esses novos meios,
porém, os padres tiveram que examinar antes as razões do
fracasso das práticas anteriores. Segundo eles, havia três
obstáculos à conversão. O primeiro era o comportamento do
próprio nativo que, imediatamente após receber os sacramentos,
declarava acreditar no Deus cristão, levando os irmãos a
acreditar que a conversão tinha de fato se realizado. Os índios,
contudo, seguiam praticando seus mais pecaminosos costumes,

76
como o canibalismo e a poligamia. Os jesuítas viam nisso
evidência suficiente de que os índios recém-convertidos haviam
retomado aos seus velhos modos'.
O segundo obstáculo era os colonos. Eles constantemente
atacavam os índios na tentativa de escravizá-los, e os nativos,
assustados e injustiçados, ao reconhecerem a origem européia
comum, passavam a tratar os jesuítas com a mesma desconfiança
com que tratavam os colonos. Além disso, os colonos do Brasil
viviam uma vida cheia de pecados, e eram portanto, um mau
exemplo para os nativos. Como poderiam os jesuítas convencer
os índios a se portarem como bons cristãos se os próprios
cristãos não o faziam? Dez meses após seu desembarque em
terras brasileiras, Nóbrega escreveu: "Quanto mais longe
ficarmos dos cristãos velhos que vivem aqui, mais frutos
colherernos.v"
Por fim, o clero secular também era visto pelos jesuítas
como um obstáculo para a atividade missionária. Desde cedo,
Nóbrega defendia que a corrupção do clero secular que vivia
nas cidades da colônia só poderia ser remediada com o envio
de um bispo às terras novas. Ele pressionou d. João III e seus
superiores na Companhia para que arranjassem o envio de
uma autoridade eclesiástica ao Brasil;" Porém, a chegada do
primeiro bispo Pedro Fernandes Sardinha, em 1552, só trouxe
mais problemas para os jesuítas. Sardinha não simpatizava
com as táticas adaptativas e tolerantes dos irmãos da Companhia
de Jesus. Em uma carta ao jesuíta reitor da Escola de S. Antão
em Lisboa, esse bispo escreveu:

oo.dizía y digo aora a V.R. que estrané mucho, y estrafian todos


a los Padres confessaren Ias mistiças mugeres casadas com
portugeses per intérprete, nino de doze o 13 anos nacido y
creado en Ia tierra; y también andaren tanendo y cantando los
días de fiesta los instrumentos y sonos que los gentiles tanen y
cantan quando andan embriagados y hazen sus matares. Y
aora me dixeron que enterraron algunos que hizieron christianos
ai modo gentílico. (00.) quanto más devemos ocupamos que
no se pervertan los blanquos que en que se convertan los negros.
(. .. ) Quanto ai Nóbrega es virtuoso y letrado, mas poco expri-
mentado y muy casado com su parecer, por l-o que me parece
que tiene mejor talento para ser súbdyto, que para mandar.ê?

A desilusão dos jesuítas com a vida na colônia envolvia,


portanto, a decepção com o comportamento dos índios e com

77

\
a maldade e corrupção dos colonos e do clero secular. No
mesmo ano da chegada do bispo Pedro Fernandes Sardinha
ao Brasil, Nóbrega e seus colegas começaram a procurar meios
de superar esses problemas. Em junho de 1553, p. Leonardo
Nunes, então morando em São Vicente, escreveu uma carta a
Nóbrega relatando que os índios daquela região eram mais
pacíficos e mais fáceis de se converter.!' Nessa mesma carta,
Nunes menciona a grande população indígena que habitava
a região do Paraguai, a qual, tinha ouvido falar, vivia em paz
com os cristãos e estava mais preparada para receber a fé.
Esses índios eram os Guarani, que mais tarde, no início do
século XVII, se tornariam os "cidadãos" das reducciones jesuí-
ticas. No Brasil, contudo, eles eram chamados de Carijó.
Aborrecido com os problemas criados por Sardinha,
Nóbrega deixou a capital na Bahia e rumou para a capitania
de São Vicente onde, enquanto se dedicava à atividade
evangélica ouvia novas informações sobre os Carijó, o que
aguçou ainda mais seu interesse e curiosidade. O padre partiu,
então, rumo ao interior com o intuito de encontrar aqueles
índios, enquanto tentava convencer as autoridades metropo-
litanas para que permitissem a transferência das missões do
Novo Mundo para aquela nova região. A idéia chegou a Roma
e começou a ser prontamente discutida pelas autoridades
eclesiásticas. Loyola era a favor da empreitada contanto que
a Coroa Portuguesa também aprovasse a idéia." Os portugueses,
no entanto, temiam que a transferência das missões violasse
o tratado de Tordesilhas, que dividia longitudinalmente as
terras do Novo Mundo entre Espanha e Portugal. Nóbrega
ficou tão obcecado com a idéia de transferir as missões para
o Paraguai que começou a duvidar do valor das missões no
Brasil como um todo. Em uma carta enviada em 1553 ao rei
de Portugal escreve: "Parece rezão deixáremos esta parte e
quinhão ao Bispo e a seus Padres, o qual quer levar outro
estillo com elles [os índios] diferente do nosso proceder, e ho
seu deve ser ho milhor, pois hé muito vertuoso, zeloso e
letrado, e em tudo muito esperimentado.'?" Apesar do pesado
tom irônico das últimas palavras dessa passagem, o desejo
expresso por Nóbrega de mudar-se para o Paraguai parecia
genuíno.
A avaliação pessimista de Nóbrega e seus colegas parece
também estar ligada à chegada da terceira leva de jesuítas ao

78
Brasil, em 1553. Enquanto a segunda leva de quatro jesuítas,
que chegou à colônia em 1550, havia partido de Lisboa antes
do recebimento de qualquer correspondência proveniente das
missões, a terceira leva tivera acesso às cartas dos irmãos na
colônia quando ainda estavam em Portugal; chegara ao Brasil,
portanto, já com alguns preconceitos sobre os empreendimentos.
Em carta datada de 1555, José de Anchieta, o principal
integrante desta terceira leva, escreve a Loyola: "Conto estas
coisas para V." R." Paternidade e todos os nossos Irmãos
entenderem que as coisas escritas nas precedentes cartas não
valem tanto que nelas se possa colocar grande esperança;
pelo contrário, são de menos peso do que parecern.v'" As
primeiras cartas escritas por Nóbrega e seus companheiros
tinham dois propósitos: persuadir a Coroa Portuguesa e a
hierarquia jesuítica das virtudes e perspectivas favoráveis de
sua empreitada missionária, e convencer seus colegas nas
casas jesuíticas de Portugal a se juntarem à aventura na colônia.
Contudo, a chegada da terceira leva em 1553 levou os jesuítas
a constatar que aumentar o número de irmãos na colônia não
renderia os frutos desejados em termos da conversão dos
nativos.
Ao chegar ao Brasil, Anchieta foi enviado a São Vicente
para trabalhar com Nóbregaj que ficou muito impressionado
com as habilidades médicas do companheiro: quando Anchieta
curava os índios de alguma enfermidade, eles se convertiam
mais facilmente. Em uma carta a Diogo Lainez, o próprio
Anchieta narra como suas práticas medicinais facilitavam a
conversão.

Acudimos a todo genero de pessoa, Português e Brasil, servo e


livre, assim em as cousas espirituais como em as corporais,
curando-os e sangrando-os, porque não há outro que o faça, e
principalmente as sangrias são aqui mui necessarias ... assim
com isto temos melhor entrada com eles para lhes dar a entender
o que toca à saude de suas almas."

Nas sociedades Tupi, o poder de comunicação com os


espíritos estava restrito àqueles que tinham o dom da cura.
Os índios acreditavam que o pajé falava a verdade sobre
questões religiosas devido ao poder de persuasão dos rituais
de cura que ele executava. Essa persuasão contudo era teatral
e não somente lingüística. Se os jesuítas desejavam algo mais

79
do que o direito de pregar a palavra - eles queriam persuadir
seus ouvintes - eles teriam que convencer os nativos a
acreditarem que não eram meros impostores. Os missionários
queriam ser vistos pelos índios como oradores "autorizados",
e isso implicava convencê-los de que, como os pajés, eles
também tinham o privilégio de conversar com os espíritos.
Portanto, antes que os jesuítas pudessem persuadir os índios
com sua mensagem religiosa, eles tinham que demonstrar suas
habilidades médicas. Isso colocava os irmãos em direta
competição com os pajés.
O envolvimento de Anchieta e dos jesuítas com atividades
de cura resultava do elemento pastoral do Novo Testamento.
No Velho Testamento, somente Deus perdoa os pecados, e
não havia qualquer ligação direta entre a saúde espiritual e a
corpórea. Jesus acrescentou ao poder de perdoar os pecados,
os poderes derivados de sua humanidade. Ele era um médico
de almas que também curava os corpos enfermos através de
ações milagrosas. De acordo com o Novo Testamento, Jesus
transferiu seus poderes humanos para os apóstolos, que, por
sua vez, os transferiram para a Igreja. Devido a essa descen-
dência dos poderes humanos de Cristo, eles foram herdados
por todos os membros da Igreja, que são, portanto, obrigados
a se dedicarem às obras de caridade para com os doentes.
A maioria dos hospitais na Europa do século XVI estava
sob o controle direto de religiosos, além do atendimento de
doentes e moribundos ser uma das atividades principais das
confrarias e monastérios cristãos. Contudo, apesar de estarem
envolvidos diretamente no atendimento dos doentes em
hospitais, os religiosos europeus nunca trabalhavam como
médicos. Essa profissão era tida como suspeita e contrária
aos princípios cristãos, desde a alta Idade Média. O direito
canônico, para citar um exemplo, declara que os preceitos da
medicina pagã eram contrários ao conhecimento dívino." Em
meados do século XII, o papa Alexandre II proibiu os monges
de estudarem ou praticarem a medicina. Em 1243, os domi-
nicanos baniram todos os tratados de medicina de seus monas-
térios. Duzentos e cinqüenta anos depois, o papa Pio V ainda
considerava importante legislar sobre o assunto e ordenou
que, antes de ser atendido por um médico secular, o cristão
deveria ser primeiramente consultado por um médico da alma.
Isso porque as enfermidades do corpo, concluía o Papa,
freqüentemente tem raízes nos pecados da almaY

80
Por volta do século XVI, contudo, a medicina hipocrática,
aprimorada por médicos da Renascença, tinha se espalhado
por toda a Europa, trazendo consigo novos conhecimentos
de anatomia, farmacologia e técnicas cirúrgicas. Apesar de
algumas práticas medievais como a flebotomia ainda estarem
em pleno uso, uma nova medicina baseada na anatomia de
Vessalius conquistava rapidamente o continente. Esses avanços,
no entanto, demoraram mais para serem aceitos na Península
Ibérica, onde a hegemonia católica não sofria qualquer ameaça.
A dissecação, por exemplo, só foi legalizada na Espanha a
partir do século XVIII, e a doutrina da circulação sanguínea
foi constantemente rejeitada pelas autoridades espanholas
durante todo o período."
O parco conhecimento médico que os missionários jesuítas
tinham não os capacitava para o exercício da profissão hipo-
crática. Contudo, os padres sabiam muito mais a respeito das
doenças contraídas pelos nativos do que os pajés, pois a
maioria dessas enfermidades havia sido trazida pelos colonos
da Europa. Essas novas doenças tinham um efeito terrível
sobre os nativos, que não tinham quaisquer anticorpos para
combatê-Ias.
Enquanto trabalhava ao lado de Anchieta em São Vicente,
Nóbrega notou que o sucesso de seu colega na conversão
dos nativos se devia ao fato de se submeterem aos poderes
aparentemente miraculosos do missionário. Do mesmo modo
que respeitavam os pajés e os caraíbas, os índios submetiam-se
à autoridade carismática de Anchieta por reconhecerem nele
a fonte da autoridade de seus pajés, o poder de curar doenças."
Mas a competição de Anchieta com os pajés não se limitava
ao monopólio das práticas curativas. Havia também uma
batalha pela produção de explicações convincentes para o
sucesso ou fracasso de tais práticas. Os pajés diziam que a
terapêutica ministrada pelos jesuítas, assim como os rituais
cristãos, estavam matando os índios. Os jesuítas, por seu turno,
acusavam os pajés de conduzirem práticas pecaminosas que
acabavam por eliminar as chances dos índios irem para o
paraíso. Para persuadirem os nativos a adotar o cristianismo,
os jesuítas teriam que convencê-Ios a aceitar a consolação
produzida pelos sacramentos cristãos e a possibilidade de
salvação da alma, principalmente nos casos em que a cura
não funcionava. Em outras palavras, os jesuítas deveriam

81
convencê-Ias que a cura da alma era mais importante que a
cura do corpo. O problema é que os benefícios espirituais
supostamente produzidos pela terapia do espírito defendida
pelos irmãos não eram visíveis. Mesmo assim, eles insistiam
que rituais cristãos como a extrema-unção traziam consolo
para a alma, mesmo que a saúde do doente não apresentasse
nenhuma melhora. Ou seja, os jesuítas tinham que convencer
os índios de que os ritos de sua fé cristã trariam mais "saúde
para suas almas" do que os cantos e objetos mágicos do pajé.
Na prática, isso significava convencê-Ias a participar dos
sacramentos cristãos ministrados pelos jesuítas: batismo,
casamento, eucaristia e confissão.
A maioria dos batismos ministrados pelos jesuítas aos
índios era in extremis. Era difícil fazer com que os nativos
concordassem em batizar seus recém-nascidos, mas não
convencê-Ias a permitir o sacramento para aqueles que estavam
morrendo. Mesmo em casos em que o moribundo estava sendo
tratado por um pajé, os padres procuravam ministrar o batismo
in extremis. Para explicar o ritual aos nativos, os jesuítas
afirmavam que ele iria ajudar o enfermo a ir para o paraíso,
coisa que todos os índios Tupi desejavam para si.
Além da resistência ao batismo, a poligamia era um obstáculo
ainda mais complicado de se remover. Na prática, os padres
tinham que convencer os homens Tupi a escolher uma entre
suas várias mulheres e, portanto, a abandonar as demais.
Mesmo quando os jesuítas conseguiam que os índios seguissem
seus conselhos, a persistência de costumes indígenas como o
canibalismo impedia que os jesuítas ministrassem o casamento
cristão.'? O problema se tornava ainda mais grave perante o
desafio representado pelas leis positivas da Igreja sobre
casamentos consangüíneos e as práticas de casamento cruzado
da estrutura de parentesco dos índios Tupi. Para tentar resolver
esse dilema, Nóbrega usou de sua perícia em direito canônico.
Ele argumentou que, mesmo que os jesuítas não pudessem
casar os índios de acordo com as leis da Igreja, eles ainda
assim podiam casá-I os segundo o direito natural, pois o
casamento era uma instituição natural que existia antes mesmo
do surgimento da Igreja. Nóbrega concluiu que os índios, de
fato, poderiam ser casados in lege naturae.

82 •
Será necessario haver de Sua Santidade nisso largueza destes
direitos positivos e, se parecer muito duro ser de todo o posi-
tivo, ao menos seja de toda afínidade.Ie seja tio com sobrinha,
que hé segundo grao de consanguinidade, e hé quá o seu
verdadeiro casamento. Ha sobrinha digo da parte da irmãa,
porque a filha do irmão hé entre elles como filha e não se
casão com as tais. E posto que tenhamos poder de dispensar
no parentesco de direito positivo com aquelles que antes de se
converterem já erão casados, comforme a nossas bulas e ao
direito canonico, isto não pode quá aver lugar, porque não se
casão pera sempre viverem juntos como outros infieis, e se
disto usamos alguma hora, hé fazendo-os primeiro casar in
lege naturae e despois se bautisão."

o casamento natural, porém, não era suficiente para


compelir os índios a adotar a monogamia. Eles aceitavam
serem casados pelos jesuítas, diziam que manteriam uma vida
monógama, mas não abandonavam suas outras esposas.
Devido a esse problema recorrente, os jesuítas preferiam casar
índios jovens, que estavam entrando na vida matrimonial pela
primeira vez. Dessa maneira, os jesuítas poderiam simples-
mente ignorar as outras esposas que esses índios viessem a
adquirir na vida pós-matrimonial. Para os padres havia uma
sutil diferença entre poligamia e relações extraconjugais.
Outro obstáculo que se colocava à realização do casamento
era a consagüinidade. As tribos Tupi eram pequenas e todos
os seus membros tinham alguma relação de parentesco. Os
jesuítas portanto tinham que decidir, em cada caso, se a união
era ou não permitida pelas leis positivas de consangüinidade
estabelecidas pela Igreja,' e até tentaram obter uma permissão
especial da Cúria Romana para o relaxamento dessas leis."
Os missionários queriam, de fato, combater os pecados
extremos, como é o caso da poligamia, mas estavam mais
dispostos a tolerarem pecados menores, como o casamento
consangüíneo.
O pecado mais intolerável praticado pelos Tupi, de acordo
com os jesuítas, era sem dúvida alguma o canibalismo. Os
padres abominavam tal hábito, mesmo sabendo que os Tupi
só praticavam o canibalismo ritualístico em situações de guerra.
O filósofo Montaigne, que tivera contato com índios Tupi
antes de escrever seu ensaio Sobre os Canibais, achava que
este ritual indígena era menos repugnante que o hábito de

83
torturar homens até a morte e depois lançar seus corpos para
serem comidos por cães e porcos, coisa que os povos da
Europa praticavam em um passado recente. Para a vantagem
dos índios, Montaigne também notou que os nativos conside-
ravam um fim honrado e corajoso ser comido pelos inimigos
após ter sido aprisionado no campo de batalha. Ao contrário
de Montaigne, no entanto, os jesuítas não compreendiam a
lógica da honra e glória que justificava o canibalismo indígena,
embora às vezes tolerassem a cerimônia apenas como pretex-
to para arrancarem dos índios a promessa de sua cessação
no futuro.P
Este quadro fazia com que, além das práticas terapêuticas,
a tolerância com os ritos nativos fosse sem dúvida uma das
principais causas do sucesso dos jesuítas. A decisão sobre
quais dos costumes Tupi deveriam ser tolerados tornou-se
uma questão importante para os irmãos.

Se nos abraçarmos com alguns custumes deste gentio, os quais


não são contra nossa fee catholica, nem são ritos dedicados a
idolos, como hé cantar cantigas de Nosso Senhor em sua lingoa
pello seu toom e tanger seus estromentos de musica que elles
[usam) em suas festas quando matão contrairos e quando andão
bebados; e isto pera os atrahir a deixarem os outros custumes
esentiais e, permitindo-lhes e aprovando-lhes estes, trabalhar
por lhe tirar os outros; e assi o pregar-Ihes a seu modo, em
certo toom andando passeando e batendo nos peitos, como
elles fazem quando querem persuadir alguma cousa e dizê-Ia
com muita eficácia: e assi trosquiarern-se os meninos da terra,
que em casa temos, a seu modo. Porque a semelhança é causa
de amor. E outros custumes semelhantes a estes."

Nenhum dos rituais cristãos, no entanto, foi mais sujeito a


adaptaçôes do que a missa. Nessas cerimônias, os padres
muitas vezes organizavam peças teatrais nas quais as crianças
indígenas encenavam passagens do evangelho. As peças eram
escritas originalmente em latim ou português e depois tradu-
zidas para o tupi. Os índios participavam com prazer de tais
rituais semanais." Neles, os jesuítas também permitiam que
os índios dançassem e cantassem como faziam na comemoração
de suas vitórias guerreiras. Ademais, os nativos podiam usar
seus paramentos religiosos tradicionais, cantar em tupi e tocar
seus próprios instrumentos. As palavras podiam persuadir,
sabiam os jesuítas, mas se acompanhadas de música e drama

84
persuadiam ainda mais. Como notou Nóbrega, "a semelhança
é a causa de amor". Os jesuítas descobriram que a imitação
da linguagem corporal dos nativos era outro meio pré-lingüístico
muito eficiente de magia social.
Enquanto a missa era o ritual mais adaptado, a confissão
era o mais problemático. Os missionários costumavam usar
crianças bilíngües como intérpretes no confessionário. Os
índios confessavam para as crianças que então traduziam para
o padre. Logo ao, chegar ao Brasil em 1552, o bispo Pedro
,
Fernandes SardiÂha se declarou contra essa prática pois,
segundo ele, ela violava o princípio da privacidade da peni-
tência. Nóbrega apelou para os teólogos jesuítas na Europa,
pedindo que julgassem a validade de tal prática. Ele sabia
que não havia precedentes na história do cristianismo.
Contudo, quando ainda era estudante de direito canônico
em Coimbra, ele havia aprendido nos manuais de confissão
escritos pelo cardeal Caetano e por Manuel de Azpilcueta
Navarro, que a confissão poderia ser adaptada desde que
nenhuma imposição fosse feita àquele que confessa. Escan-
dalizado, Sardinha escreveu para o Provincial de Portugal:

También hallé que el Padre Nóbrega confessava ciertas mugeres


mistiças por intérprete, 10 que a mi me fué muy estrano, y dió
que hablar y que mormurar por ser cosa tan nueva y nunqua
usada en Ia Yglesia. Élluogo platicó esto comigo. Yo 10 dixe que
no 10 devía hazer más, aunque trezientos Navarros y seiscientos
Caietanos digan que se puede hazer de consilio, (. .. )46

Apesar das reclamações do Bispo, os jesuítas continuaram a


usar as crianças na confissão dos índios adultos. Esse problema
ainda estava sendo discutido pelos missionários no Brasil
uma década após o incidente com Sardinha.

PARA ALÉM DA PALAVRA E DA CURA?

Pregações na língua tupi, conhecimento da cultura nativa,


cura dos índios enfermos e adaptação e tolerância nos ritos
sacramentais: os jesuítas experimentaram todas estas estratégias,
sempre com um único objetivo - converter os índios ao
cristianismo. Da palavra à cura, os encontros do Novo Mundo

85
no Brasil forçaram os jesuítas a buscar novas maneiras de
converter os pagãos.
Mudanças estratégicas como estas são freqüentemente
ignoradas pela literatura sobre os encontros do Novo Mundo.
Tzvetan Todorov (1984), por exemplo, ao falar das "tecnologias
do simbolismo" que deram aos espanhóis vantagem sobre as
culturas do Novo Mundo, dá maior relevância ao controle
dos ibéricos sobre a escrita, e destaca o papel que essa
tecnologia desempenhou na dominação das culturas orais
da América. Stephen Greenblatt (1991), por sua vez, acusa
Todorov de negligenciar os aspectos concretos da dominação
lingüística, em particular o uso da tradução de intérpretes."
Contudo, nem Todorov nem Greenblatt olham para além do
aspecto da produção de significado da linguagem. Como
explica Pierre Bourdieu (1991), a força de um símbolo não é
uma mera função de seu significado, mas sim do contexto
mais amplo dos "ritos institucionais" que fazem esse símbolo
corrente, amplamente entendido e aceito." Todorov e Greenblatt
desprezaram, portanto, as origens pré-lingüísticas do poder
social. O sucesso dos jesuítas, quando ocorria, não dependia
somente do desenvolvimento de uma tecnologia lingüística
para a conversão dos nativos, mas também da descoberta e
controle da força de ritos pré-lingüísticos como a cura e os
rituais religiosos.
Enquanto o aprendizado do tupi e o ensino do português
foram ferramentas essenciais para a pregação da palavra e
para o entendimento da cultura Tupi, os ritos terapêuticos
de magia social, criados e adaptados pelos jesuítas, foram o
verdadeiro canal de comunicação religiosa com os Tupi. Em
particular, a cura do corpo fornecia uma inspirada analogia
com a cura do espírito que os jesuítas buscavam trazer para
os índios. Assim como o diretor nos Exercícios Espirituais de
lnácio de Loyola, os jesuítas consideravam sua atividade
pastoral em termos terapêuticos: eles queriam ser os doutores
das almas daqueles pagãos. Não havia meio melhor de
expressar essa tarefa terapêutica do que ligá-Ia diretamente
à cura dos males corpóreos que afligiam os nativos.
As cartas das missões mostram que os jesuítas somente
tinham êxito quando eram identificados pelos índios como pajés,
ou melhor, como pajés-guaçu (ou caraíbas) - respeitados

86
curandeiros que vinham de outras tribos. Em outras palavras,
os jesuítas só se tornavam autoridades religiosas aos olhos
dos nativos quando, assim como os caraíbas, conseguiam
su perar sua condição de estrangeiros se mostrando hábeis
terapeutas e capazes de se comunicarem com os espíritos. Os
caraíbas eram os mais importantes depositários de carisma
nas sociedades Tupi, pois tinham o poder e a autoridade de
mediar conflitos entre tribos e a capacidade de convencer os
nativos a migrarem em massa para a terra-sem-mal. Teriam os
jesuítas conseguido emular esses pajés? Ansiosos para agradar
a vasta audiência de seus relatos edificantes, os missionários
produziram abundantes relatos de curas, batismos, casamentos,
missas e confissões. Contudo, as hijuelas escritas após a
chegada da terceira leva de jesuítas ao Brasil sugerem que a
maioria das tentativas de conversão deste período fracassou.v
O maior problema era que nem todos os irmãos tinham as
habilidades médicas e o carisma de Anchieta, o que punha
em risco o sucesso do empreendimento de conversão. Em
meados da década de 50, Nóbrega e seus companheiros
mostram-se desiludidos com a dificuldade de converter o
gentio e com o fracasso do seu empreendimento. Mas, como
veremos no capítulo seguinte, foi exatamente este fracasso
que levou os primeiros jesuítas a procurarem maneiras de
levar sua empresa evangélica para além da palavra e da cura.
E das razões teológicas e políticas que Nóbrega usou para
justificar o plano que elaborou para reformar as missões, nasceu
uma aventura teórica. Em sua busca por maneiras de justificar
o seu plano de reforma, Nóbrega e seus companheiros efetuaram
um conjunto de deslocamentos e mudanças conceituais que,
mais tarde, ao serem absorvidos e sistematizados por teóricos
na Europa da virada do século XVII, constituiríam a mais
original contribuição dos jesuítas ao pensamento político
moderno.

87
c A p T u L o III

"
A HfO~MA DA~ MI~~Oc~
"... antes nem com rogos nem com inportunaçõis querião vir à
igreja, despois, logo como ouvião a campainha, acodião todos ...
[O]s Índios se subjeitarão com isso mais e se fizerão muito
nossos obedientes. Assi que por experiência vemos que por
amor hé mui dificultosa a sua conversão, mas, com hé gente
servil, por medo fazem tudo ... "
(Ir. Antônio Blásquez, "Quadrimestre, janeiro-abril de 1556, "
maio 1556?)

A reforma das missões de toda a costa brasileira imple-


mentada a partir de 1556 foi baseada em um projeto que
Nóbrega e Anchieta implementaram em São Vicente durante
1553. Naquele ano, os dois jesuítas decidiram trazer três tribos
localizadas a aproximadamente 70 quilômetros da costa, para
morar em um único lugar conhecido como Piratinim, ou
Piratininga, um vilarejo que mais tarde se tornaria a CIdade
de São Paulo. Ao invés de viajarem para as tribos dos nativos
para convertê-Ias como faziam anteriormente, agora eram os
índios que se locomoveriam para Piratininga, onde os missio-
nários empreenderiam seus esforços catequizadores:

E do mar dez legoas pouquo mais ou menos, duas legoas de


huma povoação de João Ramalho, que se chama Piratinim,
onde Martin Afonso de Sousa primeiro povoou, ajuntamos todos
os que Nosso Senhor quer trazer à sua Igreja e aquelles que
sua palavra e evangelho engendra polia pregação. E estes de
todo deixão seus custumes e se vão estremando dos outros, e
muita esperança temos de serem verdadeiros filhos da Igreja; (. . .)1

A Aldeia de Piratininga, como aquele povoamento veio


a ser chamado, era uma comunidade formada por índios
conversas advindos de diversas tribos da região, onde os
nativos viviam da agricultura de subsistência e permitiam que
suas crianças fossem educadas pelos padres jesuítas segundo
a moral e os costumes da religião cristã. Embora o sucesso
do projeto da Aldeia de Piratininga tenha renovado o fervor
missionário de Nóbrega, os índios somente tinham consentido
em se mudar para a nova localidade porque confiavam em
Anchieta, que tinha conseguido converter muitos índios através
da cura. Nóbrega sabia que as habilidades médicas do
companheiro eram difíceis de reproduzir, pois uma coisa era
curar e ganhar a autoridade derivada deste ato, outra muito
diferente era transferir esta autoridade carismática a outros
irmãos da ordem. Ou seja, não bastava reunir os índios em
um só local para adquirir a autoridade necessária para
convertê-Ios; era preciso curá-los de suas doenças, coisa que
poucos jesuítas sabiam fazer.'
Três anos depois da experiência com Anchieta em São
Vicente, Nóbrega concebeu uma reforma do empreendimento
missionário para toda a costa brasileira, adotando o princípio
de reunir os índios em um só local como havia logrado em
Piratininga. Mas, como não podia contar com os dotes médicos
de seus pares para convencer os índios, Nóbrega introduziu
à reforma uma nova maneira de persuadir os nativos a saírem
de suas tribos para morar em uma aldeia. Assim como em
Piratininga, os índios seriam "convidados" a se mudarem para
os novos povoamentos. Mas os jesuítas levariam consigo uma
tropa do governo colonial e, caso os nativos recusassem o
convite, estariam sujeitos a uma "guerra justa" movida pela
tropa. De acordo com Nóbrega, dessa maneira os índios não
eram forçados a aceitar a fé cristã. Pelo contrário, estariam
consentindo em se submeter à autoridade dos padres pelo
medo de serem mortos ou escravizados em conseqüência da
guerra justa movida pelas armas do exército colonial português.
O conceito central da reforma projetada por Nóbrega era
o medo. Os índios aceitariam a fé pelo medo. Nóbrega já
havia notado a força do medo para a conversão do gentio
logo que chegou ao Brasil. Na primeira carta edificante que
escreveu, o jesuíta conta que os índios não têm deuses nem
ídolos. Não existiam correspondentes no vocabulário tupi
para a palavra Deus, nem tampouco para qualquer palavra
do português semanticamente correlata. Ele então chegou à
conclusão de que a palavra tupi para "trovão" - Tupã ou
Tupana - era a mais apropriada para traduzir "Deus". Os
índios entendiam o sentimento de medo e temiam o trovão
sobre todas as coisas:

90
Esta gentilidad a ninguna cosa adora, ni conocen a Dios
solamente aios truenos llaman Tupana, que es como quien
dize cosa divina. Y assí nós no tenemos otro vocablo más
conveniente para los traer a conoscimiento de Dios, que
llamarle Padre Tupana."

Vindos ao Brasil com o pretexto de demonstrar o infinito


amor de seu Deus pelos pagãos, Nóbrega e seus colegas
acabaram por ensinar aos índios o que eles deviam temer. A
imagem de um Deus amedrontador não era estranha à doutrina
cristã, encontrando-se com freqüência no Velho Testamento,
mas a mudança de uma imagem de um Deus pleno de amor
por todos os homens para a de um Deus temível exprimia
uma série de contradições existentes entre o intento original
do empreendimento jesuítico no Brasil e suas práticas reais
para com os Tupi depois da reforma. A mais importante dessas
contradições se dava entre o uso da autoridade secular para
infligir medo aos pagãos e a teologia jesuíta do amor que
prescrevia a conversão através da persuasão. Não seria a
reforma proposta por Nóbrega uma maneira mal disfarçada
de forçar os índios à conversão? Amedrontar não seria o mesmo
que coagir? Segundo a interpretação de Nóbrega, os índios
submetidos dessa maneira ao mando jesuítico estavam, de
fato, consentindo em fazê-Io. Para ele, provocar o medo não
era coerção, mas sim uma forma de persuasão.
No plano de Nóbrega, a prática se estenderia por toda a
costa brasileira, buscando repetir o experimento de Piratininga.
Tribos vizinhas, e muitas vezes inimigas, seriam relocadas
para um mesmo acampamento onde os índios passariam a
viver sob o governo dos irmãos da Companhia de Jesus. Caso
os nativos resistissem, as autoridades coloniais poderiam travar
uma guerra justa contra eles. Nas cartas que Nóbrega escrevia
para seus companheiros e superiores na Europa enquanto
concebia o plano, ele tinha uma única preocupação: justificar
o seu projeto de reforma das missões. Particularmente em
duas destas correspondências, no Diálogo sobre a Conversão
do Gentio 0556-1557) e no Plano Civilizador(558), Nóbrega
sistematizou uma justificação teológica e política para o uso
do medo na conversão. São nelas que encontramos os primeiros
sinais das importantes mudanças conceituais realizadas por
teólogos jesuítas no seio da seconda scholastica. Como veremos
neste capítulo, naquelas cartas Nóbrega desenvolveu um dos

91

Você também pode gostar