Você está na página 1de 14

VOLTAIRE: O VERSEJADOR, O LITERATO, O COMUNICA-

DOR
Jussara Santos Pimenta
Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio)

“Marchez toujours em ricanant, mé frères


dans le chemim de la verité”.
(Voltaire, Carta a D'Alembert, 1761)

Resumo: Esse trabalho tem como objetivo apresentar alguns instantes da vida e obra de Voltaire
e discutir a conexão existente entre essa vida e obra, ou seja, o que foi definitivo e marcante em
sua trajetória pessoal, a influência do contexto histórico, o que foi definitivo para o desenvolvimento
de suas campanhas, que propósitos utilizou ou silenciou. A partir dessa reflexão, encaminha para
uma divisão, apenas didática, em três fases: a primeira, que nasce a partir de seus dotes de hábil
versejador; a segunda, de literato e intelectual da academia e a terceira fase - a do comunicador -
que inicia com as suas campanhas e panfletos e o livro Cândido.

Palavras-Chave: Voltaire. Filosofia. História da Filosofia.

Abstract: This study concerns some moments of life and work of Voltaire and considers the link
between these two aspects, that is, what was crucial in his personal path and decisive for the devel-
opment of his campaigns, which proposals he had or put aside, as well as the influence of the his-
torical context. From these considerations, this study didactically divides his life into three periods:
the first, which originates from his abilities as a poet; the second, as a talented writer; and the third –
as a communicator –, which initiates with his campaigns and pamphlets, and the book Candid.

Key- words: Voltaire. Philosophy. History of Philosophy.


inúteis. Quando soube que o pai
rançois Marie Arouet nasceu

F em Paris 1694. Era filho de um


comerciante e notário no Cha-
telêt. Estudou com os jesuítas, embo-
pretendia comprar um título de no-
breza para ele, teria respondido que
não se interessava por uma deferên-
cia comprada e que o conquistaria
ra afirmasse que com eles só havia
sem nada pagar a ninguém.
aprendido latim e algumas bobagens.
Seu pai sonhava em torná-lo advo-
Um dos homens mais fascinantes e
gado, porém Voltaire achava que o
paradoxais de todos os tempos, Vol-
Direito era uma profusão de coisas

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
54 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

taire era ao mesmo tempo ambicioso, por ele como um novo Lot, e sua fi-
intolerável, polêmico, odioso, ridículo, lha, a duquesa de Berry, como uma
ímpio, intransigente, impiedoso, intri- nova Messalina, o que lhe valeu o
gante, caluniador, jamais esquecia a confinamento em Tulle. M. Arouet
injúria recebida. O escândalo era o conseguiu que o lugar de desterro
seu dia-a-dia, permanecia à espera fosse Sully-sur-Loire, onde parentes
de oportunidade para dizer a última poderiam ajudar na correção de sua
palavra. Era sempre um exagerado imprudência e esfriar um pouco o seu
em tudo, além de impulsivo, iracundo, temperamento inquieto. Do exílio
inepto, cheio de má-fé, incapaz de se escreveu pedindo perdão ao Regen-
privar de um golpe baixo e ademais, te. De volta a Paris, reatou com a
possuído pelo desejo de destruir e duquesa du Maine, Malézieu e a
liqüidar aqueles que o feriam. Encon- corte de Sceaux. Sentindo-se preju-
trava-se freqüentemente exilado, dicada na luta sucessória, a duquesa
para fugir dos excessos de sua pena, fomentou uma conspiração, em 1717,
por ordem real ou por conta própria. onde incitava todos os escritores de
Tudo o que escrevia se agitava e se sua corte, entre eles Arouet, a fusti-
irradiava. Por outro lado, era extre- gar o Regente com libelos, sátiras e
mamente lúcido, consciente de suas poemas infamantes.
limitações, e tinha excepcional sensi-
bilidade. Para Desfontaines, um dos Preso, Arouet passa 11 meses na
seus desafetos, Voltaire era não ape- Bastilha, onde escreve La Henriade
nas um péssimo escritor: era um ig- (por falta de papel vai guardando os
norante estouvado, uma cabecinha versos de cor). Ao sair da prisão,
bêbada de orgulho, um homem para Arouet mudou de nome, um anagra-
quem nada era sagrado, nem os ma de Arouet L(e) (J)eune; na época,
costumes, nem o decoro, nem a a transformação do “u” em “v” e do “j”
compaixão, nem a verdade, nem a em “i” era perfeitamente regular. A
religião. Para Montesquieu, Voltaire mudança de nome significava afas-
era um pequeno burguês, ambicioso tamento de suas origens burguesas,
e agitado, divertido e inteligente, po- integrando-o a uma aristocracia do
rém irritante. Voltaire não é ideal, é espírito, tão valiosa quanto a do ber-
apenas passável. Será uma vergonha ço. Ao mesmo tempo, pedia publica-
para a Academia acolher Voltaire; mente que se esquecessem dos ex-
mas um dia será vergonhoso não tê- cessos de sua pena.
lo acolhido.
Recém-saído da Bastilha, Voltaire
Arouet foi convidado, ou melhor, re- brilhou com a peça Édipo, que se-
crutado, pela corte da duquesa du gundo ele, estava mais perto da per-
Maine, onde figuravam poetas jo- feição do que fora possível a seus
vens, talentosos e brilhantes. Acabou antecessores, referindo-se a Sófocles
pondo seu talento e sua pena à dis- (demasiado bárbaro) e Corneille (de
posição dos inimigos do regente, tido uma rudeza insuportável). O sucesso,

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 55

porém, não o satisfez. Pretendia a Além de não ter escandalizado nin-


consagração do Regente. Este relu- guém, o acontecido ainda mereceu
tava, mas acabou concedendo-lhe críticas, entre as quais as de Montes-
uma medalha de ouro, sem, no en- quieu. Convencido de que nada con-
tanto, aceitar que Édipo lhe fosse seguiria nos tribunais, Voltaire se
dedicado. dispôs a um duelo: refugiou-se no
interior, tomou aulas de esgrima e
A segunda passagem de Voltaire exercitou-se com a pistola. Em sua
pela Bastilha está diretamente ligada volta a Paris, foi capturado pela polí-
aos seus desentendimentos com um cia. Nessa época, Voltaire tinha 32
representante da nobreza. O cavalei- anos. Foi sua segunda passagem
ro Gui Auguste de Rohan (Rohan- pela Bastilha, onde ficou do dia 18 de
Chabot), de importante família fran- abril a 2 de maio, quando seguiu para
cesa, primo do Cardeal de Estrasbur- o exílio na Inglaterra (sob forte es-
go, era um personagem insignifican- colta), onde ficou por 30 meses.
te, um aristocrata cuja nobreza limita-
va-se às origens. Irritou-se com o A passagem pela Bastilha e o exílio
plebeu Arouet por ter este conquista- na Inglaterra provocaram uma mu-
do as graças da corte e cometido o dança na vida, na obra e na elabora-
pecado de acrescentar uma partícula ção do pensamento de Voltaire. Ele
ao nome (de Voltaire). Após vários estava mudado pela experiência in-
desentendimentos verbais entre os glesa, mas, como sempre, dominado
dois personagens, num dos quais pelas três paixões que lhe domina-
Voltaire teria usado de escárnio em vam a existência: o dinheiro, a religi-
sua réplica (não carregava um gran- ão e a literatura. Aqui aconteceria a
de nome, porém sabia honrar aquele metamorfose do homem de letras em
que arrastava e, ainda, eu estou co- filósofo e o encontro com a obra de
meçando o meu nome, ao passo que Newton. Inaugurando seus dotes
o senhor está acabando com o seu), jornalísticos, foi responsável pela
Rohan-Chabot armou uma embosca- divulgação da história da maçã a par-
da contra seu desafeto. tir de uma visita sua à casa de uma
sobrinha de Newton.
Espancado por arruaceiros, Voltaire
resolveu fazer queixa à polícia, tendo Voltaire estava deslumbrado com a
a solidariedade do duque de Sully. modernidade inglesa e com a cons-
Entretanto, apesar de talentoso, Vol- tatação do atraso francês. Da Ingla-
taire não passava de um burguês e, terra guardaria o gosto da liberdade e
sendo assim, nem mesmo Mme. de da tolerância, da modernização, da
Prie, sua protetora (e amante do pri- utilidade coletiva, da intervenção dos
meiro ministro, duque de Bourbon), escritores na vida pública, o grande
ficou do seu lado. Não houve inter- chamamento ao exercício da razão e
venção da rainha e somente foram do espírito crítico. A filosofia o afasta-
punidos os agressores de aluguel. ria definitivamente de Versalhes.

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
56 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

Écrasez l’infâme – Esmaguem a in- nos negócios com uma intensidade e


fame. O bordão que costumava utili- falta de escrúpulos admiráveis, mas,
zar não designava somente a su- apesar disso, levava uma vida finan-
perstição; com ele, Voltaire procurava ceira de altos e baixos. Em 1728,
atingir a religião como um todo. E, recebeu da Rainha uma pensão, a
como era conveniente escolher um qual aplicou em uma loteria que frau-
alvo bem definido, preferiu a religião dava o Estado. A maneira como Vol-
católica entre as demais, e os jesuí- taire adquiriu sua fortuna jamais lhe
tas entre todos os outros eclesiásti- causou qualquer constrangimento.
cos. A escolha da religião, segundo Segundo ele, decência era algo muito
Lepape (1995), foi imposta mais pe- próximo do luxo. Conquanto se utili-
las necessidades da propaganda do zasse de recursos muitas vezes es-
que pelas convicções pessoais de cusos para angariar fundos para sua
Voltaire. Ao que tudo indica, ele ainda campanha filosófica, entendia como
conservava boas lembranças de seus abominável o fato de a igreja também
dias de estudante no Louis-le-Grand se dedicar, como ele próprio, a inves-
e, inclusive, mantinha correspondên- timentos como o tráfico de escravos.
cia cordial com seus antigos profes- Abomináveis cristãos, os negros que
sores. Os jesuítas eram temidos pela vocês compraram a um mil e du-
sua influência, atacados pelas suas zentos francos valem mil e duzentas
regalias e acusados de querer o con- vezes mais do que vocês. Foi nome-
trole da Igreja. No plano intelectual, ado gentil-homem ordinário do rei e
eram os adversários mais temíveis historiador oficial da França, com
dos filósofos por seu domínio sobre soldo de duas mil libras e direito de
as mentes, pois controlavam o que entrar no quarto do rei. Afinal, eis-me
havia de essencial no ensino. feliz neste mundo, escrevia com ver-
gonha e zombando de si mesmo.
A paixão pelo dinheiro, tão ridiculari-
zada por todos, era, para Voltaire, A academia era vista como uma se-
uma necessidade vital, e ele se em- gurança de Voltaire contra os ata-
penhou desde cedo para a consecu- ques dos adversários, uma forma de
ção desse seu objetivo. A morte de ganhar para suas idéias os órgãos do
seu pai não lhe garantiu a indepen- poder literário, sendo sua aspiração
dência financeira, mesmo porque ele maior conquistar o rei, seduzir a elite
lhe deixara em testamento todos os letrada e difundir sua filosofia. Para
bens de que dispunha aos prováveis entrar na academia, de certa forma
futuros netos. Somente 8 anos depois renegou as Cartas Filosóficas: jamais
o testamento foi anulado e Voltaire lhes dei esse título tão faustoso. Atri-
pôde usufruir da herança, sendo esta buía a existência delas à falsificação.
ainda insuficiente para se igualar ao
estilo de vida da aristocracia. Primeiro abriu espaço para os ami-
gos; depois, contando com o apoio
A partir de 1722, Voltaire mergulhou dos que já estavam lá dentro, alcan-

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 57

çou seu inteiro controle. Quando mor- tradicionais (a tragédia, o poema satí-
reu, a academia era quase cem por rico e o didático, o conto com morali-
cento voltaireana. Em vez de conse- dade filosófica, a correspondência) e
guir aliados, apenas conseguiu a inventou outros gêneros, como a di-
hostilidade daqueles escritores (em vulgação científica, o jornalismo de
grande parte anônimos), que o ata- opinião e o panfleto de agitação cul-
cavam pela sua sovinice, sua vida tural. Voltaire não escrevia para o rei,
privada, suas idéias, suas lisonjas, como era comum na época. Escrevia
seu desprezo pelos escritores sem para o público, a quem pretendia
renome, seu frágil sentimento patrió- pouco a pouco convencer de sua
tico. Usou o poder para atacar seus força como entidade coletiva em rela-
inimigos. ção ao Estado. Sua literatura procu-
rava atacar aqueles tipos e símbolos
O sucesso literário de Voltaire não de um modo de ser e de um modo de
corresponde a qualquer modernida- pensar que não eram mais satisfató-
de, moral ou estética. Em verdade, rios, mas que ainda subsistiam. No
ele não inovou, apenas imitou com entanto, para Voltaire, ainda era pre-
perfeição os modelos antigos; não ciso haver lagartas para que os rou-
criou um gênero novo e construiu sua xinóis comessem e cantassem me-
fama nas alturas daqueles gêneros lhor.
tidos como os mais nobres. Respei-
tava o público e a estética dele e, Utilizou com maestria algumas es-
dizem, que sua única audácia foi tratégias discutíveis, todavia bastante
matar a heroína em cena na tragédia eficazes. Uma delas – o factótum –
Mariamne. Porém, era a alegação de que uma obra sua
era de outro, ou que se tratava de
estava convencido que as palavras rascunho roubado e adulterado pelo
podiam dizer tudo aos que soubes- editor. A polêmica acerca da veraci-
sem ler, por pouco que fosse o ta- dade dessas afirmações chamavam a
lento de quem as manejasse. Seu atenção do público, ficando mais que
grande desafio vinha dessa total divulgada a obra em questão. Outro
confiança nos poderes da literatu- artifício era o costume que tinha de
ra. A ela caberia derrubar os obs- imprimir a mesma obra em Londres e
táculos entre o mundo dos doutos Amsterdã (onde não era proibida) e
e o das pessoas comuns. O escri- em Rouen ou Paris (onde era proibi-
tor cuidaria de manter abertas as da). Então acusava o editor francês
passagens, aboliria as fronteiras de pirataria e apropriação indébita, o
entre a ciência dos eruditos e um que podia levar o editor à prisão. En-
público ainda governado pelos pre- quanto a polícia se empenhava em
conceitos e emoções. (Lepape, descobrir e apreender a edição fran-
1995:107) cesa, a edição feita no exterior pas-
sava pela fronteira. A perseguição
Utilizou com perfeição os gêneros dava fama ao livro e o público o dis-

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
58 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

putava. Outras vezes, apresentava 1759, que Voltaire desistira da alian-


alguns trechos de suas obras aos ça com o rei. Voltar-se-ia para a opi-
amigos. Alguns copiavam cantos, o nião pública, da qual esperava ajuda
autor fingindo que não via. A história para sobreviver. Com Cândido, Vol-
se espalhava e todos queriam conhe- taire inaugurou uma terceira fase – a
cer a obra. Saíam edições que Voltai- de divulgador de idéias para um pú-
re adiantava-se em negar que fossem blico diferenciado, não mais para a
suas. Fazia questão de negar a auto- nobreza e a intelectualidade. Sua
ria de um texto até ter certeza de que meta era o cidadão comum, geral-
estava sendo bem recebido. mente da burguesia, parcela já letra-
da mas que ainda não tinha acesso
Quando os irmãos Cramer passaram às grandes divagações filosóficas. O
a ser os novos editores de Voltaire, terremoto de Lisboa, que atingiu tam-
acataram como estratégia para difu- bém Cadiz, Tanger e Meknes, deixou
são em toda a Europa a impressão Voltaire impressionado. A providência
de obras pouco volumosas, que po- caiu de quatro, o tudo vai bem e o
deriam atravessar as fronteiras em otimismo estão de crista baixa. Esta-
pequenos pacotes e serem escondi- va pronto o refrão do melhor dos
das nas capas dos livreiros, que mundos possíveis que iria pontuar
costumavam levar as encomendas à ironicamente o Cândido, segundo
casa do cliente. Isso permitia também Lepape (1995). Esse livro
um preço mais acessível. Voltaire
começou a escrever o Dicionário Fi- marcava a adesão de Voltaire ao ro-
losófico com o intuito de ultrapassar mance, um gênero classicamente con-
Diderot naquela área que realmente siderado menor na hierarquia da pro-
interessava – a das idéias. O formato dução literária. O grande poeta clássi-
dado ao dicionário, e daí o fato de tê- co, cujas peças e poemas os leitores
lo chamado Portátil, era mais uma de cultos sabiam de cor, escolhia como
suas estratégias e dos editores Cra- arma para a batalha filosófica as bana-
mer para divulgar a obra em toda a lidades da matéria romanesca: amo-
Europa. Segundo Chauí (1988), o res, tempestades, naufrágios, atos de
sucesso conferido ao livro foi não gratidão, prisões, ressurreições, due-
somente sua fácil circulação devido a los, galeras, perseguições, escravidão.
seu formato. O principal motivo de O objetivo não era suscitar a admira-
sua aceitação foi seu conteúdo, que ção dos colegas, nem aperfeiçoar a
constituía um sólido alimento inte- imitação dos modelos tradicionais, po-
lectual para todos os descontentes rém tocar o coração do grande público,
com a ordem então vigente. Foi o emocioná-lo, provocar-lhe o riso e le-
primeiro livro de bolso e constituiu-se vá-lo à reflexão, mediante a explora-
num poderoso instrumento revolucio- ção de mil variações agradáveis ou
nário (...). dramáticas de um tema simples: a li-
qüidação de todas as ideologias enga-
Vemos em Cândido, publicado em nosas, que procuravam esconder do

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 59

homem o absurdo de seu destino, e a utilizar-se das cartas para difundir


construção lenta, trabalhosa, modesta suas idéias. Era corriqueiro o fato de
de uma sociedade relativamente feliz, divulgar e publicar tanto as cartas
um jardim a ser cultivado. A fim de que enviava quanto as que recebia.
passar adiante as suas mensagens, Nas mais de 10 mil cartas que dei-
Voltaire valeu-se da ironia, da calma xou, enviadas a personalidades as
desmistificação da vida, do burlesco, mais distintas – abades, intelectuais,
do picaresco e da imaginação; desse reis e até mesmo o papa – trata das
modo, punha claramente em cena uma mais diversas questões, no tom que
política do estilo: não ganharia a opini- convém a cada um deles. Faz políti-
ão pública com livros volumosos, caros ca, lisonjas, intrigas, guerra declarada
e repletos de elevados conhecimentos, contra a intolerância e o fanatismo.
de tratados ou discussões filosóficas;
uma vez tomada a decisão de apoiar- Em 1760, Voltaire mudou-se definiti-
se no público, convinha dar aos textos vamente para Fernex, que batizou de
as melhores condições de divulgação. Ferney, na fronteira da França com a
(Lepape, 1995:219). Suíça. Enfim, pôde pôr em prática um
modo filosófico de ser fidalgo rural:
O livro foi impresso em sigilo, remeti- plantava, fazia experiências agríco-
do para Paris e impresso simultane- las, introduziria o bicho-da-seda
amente em Lyon, Avignon, Liége, (confiou a manufatura ao filho de
Londres e Amsterdã. Voltaire negou Calas), dirigia ele mesmo o corte da
ser o autor do livro. Cândido é o madeira destinada a suas constru-
grande clássico do autor, obra em ções, difundia normas de higiene,
que combate o otimismo metafísico e encorajava a vacinação, promovia a
a teoria da harmonia preestabelecida. confecção de rendas e a fabricação
de relógios. Ferney transformou-se
Voltaire foi o mais fecundo corres- em uma espécie de principado, no
pondente de todo o século XVIII. Em qual ele se esforçou para reinar,
sua Correspondência (treze volumes como senhor, como proprietário,
na edição da Pléiade), retrata não só como legislador e até mesmo como
suas idéias, mas também descreve uma espécie de pároco.
seu cotidiano e seu lado romântico,
nas cartas que escreve para sua so- Segundo Lepape (1995), Ferney tor-
brinha e companheira, Mme. Denis. A nou-se a Roma da Filosofia, de onde
carta, no século XVIII, era um gênero se expediam bulas, encíclicas e ex-
literário como outro qualquer, não se comunhões; era também o seminário
constituía apenas em um meio de em que os jovens noviços recebiam a
troca de idéias entre duas pessoas. A unção ‘voltaireana’ antes de sair ao
menos que fosse previamente esta- mundo a fim de pregar a verdade.
belecido o seu caráter confidencial, Também representava o ponto de
eram escritas, difundidas e muitas partida dos ataques do filósofo contra
vezes publicadas. E Voltaire soube a intolerância, o fanatismo e todas as

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
60 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

formas de injustiças praticadas em sentada aos salões e círculos in-


nome da religião, como os casos fluentes, a suas expensas. Mobilizou
Calas, La Barre, Sirven, que o torna- tudo e todos em sua campanha. Toda
ram popularmente conhecido. Ferney a Europa comoveu-se com a denún-
era, ainda, um modelo ideal de cida- cia de Voltaire, tornando-se favorável
de, patriarcal em sua forma de go- a Calas. Tornamo-nos motivo de
verno, moderna em sua economia, horror e desprezo na Europa, fico
tolerante no modelo de pensar e dis- indignado com isso. Para a honra da
ciplinada pelos refinamentos da cultu- França, é importante que o julga-
ra e da elegância dos costumes. mento de Toulouse seja confirmado
ou condenado.
Em 10 de março de 1762, no ano do
bicentenário da Noite de São Barto- Uma de suas estratégias foi manter
lomeu, foi supliciado em Toulouse o inédito até dezembro de 1762, o
comerciante huguenote Jean Calas, Tratado sobre a Tolerância, a fim de
acusado injustamente de ter matado que não fosse perturbado o trabalho
o filho, que pretendia se converter ao de revisão do processo. Outra era
catolicismo. Voltaire soube do caso a contrapor a província – intolerante,
partir da visita de um protestante que preconceituosa, bárbara – a Paris –
se deteve em Ferney. Estava criada a moderna, polida, culta.
ocasião propícia para Voltaire sair em
sua cruzada contra a intolerância e o Voltaire atiçava aquele parisianismo.
fanatismo, sem, entretanto, deixar Não se limitava a lisonjear aquela Pa-
explícitos os seus objetivos e sem a ris esclarecida que fremia de indigna-
necessidade de chocar-se de frente ção com as desgraças de Calas e se
com esses temíveis poderes. Dispu- insurgia contra os seus carrascos;
nha de três armas poderosas para apresentava Paris como um modelo
sair a campo: a fortuna, o temor que oposto ao da França provinciana e ru-
suas idéias suscitava e as relações ral, mal polida, ignorante, ingenua-
de que dispunha. mente manipulada pelos padres,
aberta a todos os excessos de fana-
As cartas de Voltaire saíram às cen- tismo. (...) estava também responden-
tenas, endereçadas a reis, ministros, do a Rousseau e sua exaltação do
grandes senhores e prelados. Encar- primitivismo, sua religiosidade patriar-
regou os enciclopedistas de espalha- cal, sua denúncia da decadência moral
rem inúmeras brochuras propagan- e da hipocrisia da sociedade civilizada.
distas que mandou imprimir na Suíça. (Lepape, 1995, 229)
É preciso que sejam espalhadas por
todos os lugares – diz a D'Alembert – Sua indignação se estendia a todos
que com elas se inunde Paris, que os franceses, que também deviam
todo o público fique a par desses indignar-se e combater a intolerância
horríveis acontecimentos. Fez vir a e a superstição:
Paris a viúva de Calas, que foi apre-

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 61

Clama-se que somos uma nação alcançar tal posição no domínio das
odiosa, intolerante, supersticiosa, letras. Tinha, afinal a posse de um
tão atroz quanto frívola, que pas- poder que não lhe fora dado por nin-
sas das noites de São Bartolomeu guém e nenhuma instituição. Era
para a ópera cômica, que sabe fruto de sua glória artística, um ates-
torturar inocentes, mas não sabe tado do apreço do público àquilo que
combater nem na terra nem no escrevia. Com seu olhar múltiplo e
mar. É triste ter de ouvir essas crí- sua sagacidade
ticas vergonhosas.
dava a impressão de estar em toda
Em 1765, Voltaire envolveu-se no parte, em todos os debates, em to-
caso La Barre. Jean François de Le dos os livros que apareciam, em
Fabvre, cavaleiro de La Barre, foi todas as peças que subiam ao pal-
acusado de mutilar um crucifixo da co, em todas as intrigas que se te-
ponte de Abeville, juntamente com ciam e desteciam. Vivenciava, as-
outros dois rapazes. La Barre foi o sim, uma de suas obrigações de
único condenado à morte. Teve a escritor-filósofo, a onipresença, que
língua retalhada antes de ser deca- se fazia ainda mais exigente em
pitado e, juntamente com seu corpo, conseqüência de seu distancia-
mandaram lançar às chamas um mento do cadinho parisiense. Já
exemplar do Dicionário Filosófico, que se pretendia a consciência de
apreendido em uma busca na casa seu público, devia ter a responsa-
do jovem cavaleiro. O envolvimento bilidade por tudo, sem no entanto
do Dicionário no caso deixou Voltaire abdicar de sua função de escritor.
amedrontado, pois ergueram-se vo- (Lepape, 1995:244)
zes pedindo que ele fosse julgado
como cúmplice e instigador do “cri- O auge da publicidade e do sucesso
me” de Abeville. Voltaire escreveu a junto ao público, inclusive a popula-
Frederico II e a outros filósofos. Pro- ção iletrada, que não acompanhava
pôs a criação de uma “colônia filosó- seus debates literários, deu-se em
fica”, onde poderiam se refugiar da função de sua indignação e do fervor
intolerância, do fanatismo e das per- com que levantou a opinião pública
seguições – bem longe de França e, nos casos Calas, La Barre, Sirven e
quem sabe, na Prússia, sob a prote- outros. Passou a ser idolatrado. Sur-
ção de Frederico II. A idéia jamais giram em abundância toda sorte de
viria a se concretizar. souvenirs – medalhões, bustos, si-
lhuetas, moedas, relógios –, que tra-
Sollers (1994) diz que Voltaire não só ziam sua figura estampada. Segundo
não temia a notoriedade como a con- Sollers, em torno de Voltaire montou-
verteu em sua principal ferramenta de se o primeiro merchandising cultural
combate. Em 1765, atingiu populari- da modernidade. A opinião pública
dade semelhante à dos astros inter- era uma nova fonte de poder, maior
nacionais de hoje. Foi o primeiro a que a genealogia, que as armas, que

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
62 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

a própria igreja. janela, na tentativa de vê-lo. Perso-


nalidades da época iam à casa onde
Depois de 30 anos longe de Paris, os se hospedava para ver, pedir conse-
amigos de Voltaire começaram a arti- lhos e incensar o novo orgulho fran-
cular seu retorno e, para concretiza- cês. Dizem que até mesmo Franklin
ção do fato, fez-se necessária a con- levou o neto, ao qual disse para pedir
cordância do rei. benção ao velho. O velho abençoou-
o em nome de Deus e da Liberdade.
Em 16 de maio de 1774 morreu Luís (La Correspondance Littéraire, fev.
XV. Luís XVI, que na época tinha 20 1778). Também recebeu uma dele-
anos, não tinha para com Voltaire gação da Loja Maçônica, a qual fez
uma disposição melhor que a de seu dele uma espécie de maçom honorá-
avô, mas, segundo o rei, não havia rio.
proibição oficial; apenas foi participa-
do a Voltaire que seria preso caso No percurso entre sua casa e a Aca-
viesse à capital. Mas, se por acaso demia Francesa, recebeu a homena-
houvesse a representação de uma gem de milhares de pessoas que se
peça de Voltaire e este fosse convi- enfileiravam ao longo do percurso.
dado a ver o espetáculo, Versalhes Paravam a carruagem, pediam a mão
ignoraria a presença dele na tempo- do filósofo para beijar e arrancavam
rada. pêlos de sua peliça. Na comédia
francesa, Irène, uma de suas últimas
Não, o aparecimento de um vidente, peças, foi apresentada em meio aos
de um profeta, de um apóstolo, não aplausos e Voltaire foi coroado de
causaria mais surpresa e admiração louros. Instalaram seu busto em um
do que a chegada de M. de Voltaire. pedestal e o cobriram de guirlandas,
Esse nosso prodígio anulou por um pétalas e fitas.
momento todas as outras atrações. O
orgulho enciclopédico pareceu cair Comentário de Voltaire a Frederico II:
pela metade, a Sorbonne estremeceu, É portanto verdade, Sire, que os ho-
o Parlamento silenciou, o mundo literá- mens terminam por esclarecer-se, e
rio ficou emocionado, Paris inteiro aqueles que se julgam pagos para
acorria para chegar aos pés do ídolo, e mantê-los cegos nem sempre são os
jamais o herói de nosso século fruiria encarregados de vazar os seus
de modo tão brilhante sua glória, se a olhos.
corte lhe houvesse dado a honra de
um olhar mais favorável ou pelo menos Voltaire morreu em Paris em 30 de
não tanto indiferente. (La maio de 1778. Tiveram que ocultar
Correspondance Littéraire, fev. 1778) sua morte à multidão estacionada
debaixo de suas janelas. Disseram
Em 30 de março de 1778, Voltaire foi ao povo que ele decidira voltar a Fer-
sagrado rei em Paris. Milhares de ney. Embalsamaram seu corpo, de-
pessoas passavam debaixo de sua pois de haverem retirado seu coração

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 63

e seu cérebro. O coração, retirado diz que


por Villete, está na Biblioteca Nacio-
nal de Paris. Foi enterrado às escon- por sorte, os fados, ao tornarem im-
didas na abadia de Sellières. Seu possível a sua modesta ambição pri-
derradeiro bilhete diz que morria ad- mária de conviver com aristocratas,
mirando os amigos, sem odiar os obrigaram-no a assumir um destino
inimigos e detestando a superstição. muito mais notável e distinto: conver-
ter-se em monarca sem coroa - com
Em 11 de julho de 1791, treze anos um gorro de dormir e chinelos de
depois de sua morte, seus restos quarto - de todo o seu século.
mortais foram considerados proprie-
dade da nação francesa, sendo leva- Naqueles anos, toda a França vivia
dos a Paris com grande pompa. sob vigília constante da igreja, sob a
Aproximadamente 500.000 parisien- influência de seus dogmas e presa da
ses acompanharam o cortejo. Diz-se superstição e do medo. Se para
que a multidão cantava trechos de quem professava a religião católica,
uma música composta para a ocasi- aqueles eram tempos difíceis, imagi-
ão: Que os nossos cantos de alegria nemos o que era ser protestante e
acompanhem as cinzas do mais ilus- assumir sua fé. Os huguenotes, os
tre dos Franceses. Ah, Voltaire é poucos que sobraram na França de-
concidadão de todos os mortais que pois da revogação do Edito de Nan-
não são escravos! (Sollers, 1994:59) tes em 1685, por Luís XIV, eram alvo
Foi enterrado ao lado de Rousseau e, de vigilância constante, não só por
segundo Lepape, há parte das autoridades oficiais e ecle-
siásticas, mas por todo o povo católi-
uma lenda segundo a qual os dois ir- co, que se sentia incomodado com o
mãos inimigos foram clandestinamente jeito diferente deles. Aliás, os calvi-
exumados pelos ultra-realistas em nistas franceses eram chamados
maio de 1814 e seus restos abando- pejorativamente de huguenotes, tal-
nados em um terreno baldio. A paixão vez por causa do vocábulo huguon
sacralizada nunca se extingue: ela cria (que em Turena se aplicava às pes-
seus próprios romances. (Lepape, soas que transitam à noite pela rua)
1995:285). ou da corruptela da palavra alemã
Eidgenosse (que significa confedera-
Se a corte de Luís XIV o tivesse dos) ou de Hugon (os primeiros pro-
acolhido melhor, se não o tivessem testantes se reuniam em cavernas
mandado encarcerar por duas vezes subterrâneas perto da porta de Hu-
na Bastilha, se não o tivessem exila- gon, em Tours).
do, poderia haver, simplesmente,
notícias de Voltaire por suas qualida- Toda essa intolerância religiosa mar-
des de bom versejador, por sua habi- cou profundamente a vida, a obra e
lidade estética, pela elegância de as idéias de Voltaire. Toda sorte de
suas tiradas satíricas. Sollers (1995), injustiças, mormente aquelas pratica-

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
64 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

das pela igreja e em nome da religião clopedistas, intelectuais da nobreza e


tornaram-se a principal mola propul- toda a aristocracia culta da Europa.
sora de seus ataques ferinos, de Temos nessa fase a elaboração e
seus panfletos e de suas cartas, em construção de grande parte de sua
que denunciava e convocava a opini- obra, sua participação na academia,
ão pública a tomar partido. na Enciclopédia, seus contatos com
Frederico II da Prússia, sua vida com
Vimos que não foi bem dessa forma Mme. Chatelêt, sua corrida desenfre-
que Voltaire começou a sua atividade ada pelo dinheiro e as estratégias de
literária. Na primeira parte de sua impressão e divulgação de suas
vida, quando ainda contava com as obras, bem como sua peregrinação
graças da corte, apenas manipulava pela Europa em busca de um porto
as palavras com habilidade, tendo seguro, longe da ameaça de seus
como único objetivo a sátira de cos- adversários, longe das conseqüênci-
tumes e o estar bem naquele ambi- as dos excessos de sua pena.
ente que tanto o fascinava. Com a
segunda passagem pela Bastilha e Mudou-se para Ferney, aquele porto
sua conseqüência direta – o exílio seguro que almejava desde então. Aí
para a Inglaterra – Voltaire entraria estabeleceu seu principado, de onde
em contato com uma nova visão de enviaria seus dardos com segurança
mundo. A Inglaterra fascinou o filó- e perspicácia. O filósofo, a despeito
sofo pela modernidade, pela tolerân- de estar longe da corte, comandava
cia de suas leis, pela intervenção dos uma verdadeira rede de intrigas, ten-
intelectuais na vida pública e até do Ferney como ponto estratégico de
mesmo pela constatação do valor manipulação de interesses. De Fer-
que os ingleses davam aos seus ar- ney, Voltaire via o mundo, com o qual
tistas (escritores, atores, cantores, mantinha contato por meio das visitas
etc.) e o pouco valor que lhes davam e também das cartas que enviava e
os franceses. Aí aconteceria a primei- recebia. Sabia de todas as intrigas e
ra mudança em suas idéias. O ver- se metia em todas elas, como os ca-
sejador habilidoso transformar-se-ia sos de intolerância religiosa mais
em filósofo. Não importava apenas famosos – Calas, Sirven e La Barre.
satirizar. Era necessário utilizar o O terremoto de Lisboa atingiria tam-
conhecimento adquirido a bem da bém nosso filósofo, que não preten-
razão e contra toda a espécie de dia mais ser apenas o escritor admi-
obscurantismo, de intolerância e de rado pela aristocracia do espírito,
medo. Era tempo de “luz”, e Voltaire como dizia. Importava agora difundir
podia ser considerado um desses idéias para o grande público, emoci-
focos de razão em prol da conquista oná-lo, provocar-lhe o riso e levá-lo à
humana por liberdade, felicidade so- reflexão. Ainda se valia da ironia, do
cial e civilização. Nessa fase, Voltaire burlesco e da imaginação, que soube
era o intelectual da academia. Escre- aprimorar ao longo do tempo. A opi-
via para seus “iguais”, filósofos, enci- nião pública era o que importava.

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador 65

Importava insuflar a dúvida, a des- permitiu ao homem reconhecer-se


mistificação da vida naquela parcela como parte integrante da natureza
que não comungava com os debates mas que, sobretudo, o emancipou da
sofisticados da academia e que não superstição e do dogma, promovendo
era consumidora dos grandes trata- a sua autonomia. Liberto do autorita-
dos ou das discussões filosóficas. rismo, do poder absoluto, da fé, da
Para tanto, era necessário recorrer a superstição, do medo e do dogma
um gênero que estava amplamente religioso, o homem podia alcançar a
difundido entre os cidadãos comuns crença na luz da razão humana e
– o romance –, tido como gênero com ela combater todas as formas de
inferior na “hierarquia da produção obscurantismo. O homem tornava-se
literária”. Estava feito o convite à ra- sujeito e dono do seu destino. Signifi-
zão, que levaria paulatinamente o cava também uma nova etapa na
cidadão comum a compactuar com história da civilização a partir da no-
as idéias que até então circulavam ção do progresso sob a luz da razão,
somente nos redutos da intelectuali- da ciência, da observação e da expe-
dade. Estava feito o convite ao cida- rimentação.
dão comum, que também precisava
conquistar a razão para evoluir, pro- Como disse Sollers (1995), Voltaire
gredir e tornar-se perfeito ou civiliza- faz-nos falta nesse fim do século XX,
do. Era um basta ao medo, ao obscu- decididamente surpreendente. O
rantismo, ao irracionalismo dos dog- “estalajadeiro da Europa” faz-nos
mas da Igreja Católica. falta em meio a tanta ignorância, su-
perstição, estupidez, crueldade, facé-
De maneira geral, Voltaire e as idéias cia!
iluministas significaram uma postura
crítica e combativa a todas as tradi- E Voltaire, em uma de suas declara-
ções, sendo seu objetivo principal a ções a Mme. Denis, teria dito:
libertação dos indivíduos para a des-
coberta de seu poder de manejar a “Tentaram enterrar-me, mas esquivei-
natureza, dominando-a conforme os me disso. Boa noite!”
seus próprios desejos, o que não só

Referências Bibliográficas

CHAUÍ, M. Vida e obra. In: Voltaire. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensa-
dores)
ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. Voltaire. São Paulo - Rio de Janeiro: Encyclopae-
dia Britannica do Brasil Publicações Ltda, v. 20, p. 11475.
GRANDE Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Voltaire. Lisboa - Rio de Janeiro: Editori-
al Enciclopédia Limitada, v. 36, p. 625-627.

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002
66 PIMENTA, Jussara Santos, Voltaire: O Versejador, O Literato, O Comunicador

HEUVEL, J. van. Albun Voltaire: iconographie, choisie et commentee/par J. van Heuvel.


Paris: Gallimard, 1983. 323p. (Albun de la Pleiade; 22)
LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no século das luzes. Trad. Mário
Pontes. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. 308p.
MARCONDES, Danilo. A crise de paradigmas e o surgimento da modernidade. In:
BRANDÃO, Zaia. A crise dos paradigmas e a educação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1996.
p.22-23.
MEDINA, J. Nótula Bibliográfica de Voltaire. Revista da Faculdade de Letras, Lisboa,
n.18, 5a Série, p.49-50, 1995.
NASCIMENTO, Maria das Graças do. A tentação materialista de Voltaire. Discurso 17.
Revista do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo: Polis, 1988, p. 75-88.
NOVA Enciclopédia Barsa. Voltaire. São Paulo - Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica
do Brasil Publicações Ltda, v. 14, p. 425-426.
SAVATER, Fernando. O genial homem anúncio. Revista da Faculdade de Letras, Lisboa,
n.18, 5a Série, p.57-59, 1995.

SOLLERS, Philippe. Voltaire faz-nos falta. Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, n.18,
5a Série, p.55-56, 1995.
VOLTAIRE, defensor de Calas. Disponível na Internet: JurisNet Magazine Virtual - Casos
Especiais, 1998. URL: http://www.truenetrn.com.br/jurisnet/hrobert.html
VOLTAIRE. Cartas Inglesas. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores;
23).

VOLTAIRE. Cândido, ou o optimismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1989.


VOLTAIRE. A morte de Jean Calas. In: Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte
de Jean Calas. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Disponível na Inter-
net: JurisNet Magazine Virtual - Casos Especiais, 1998. URL:
http://www.truenetrn.com.br/jurisnet/voltaire.html
VOLTAIRE. Micrômegas. Disponível na Internet: Centro de Estudos Estratégicos (CEE) -
Brasília, 1998. URL: http://www.sae.gov.br/cee/micromeg.htm
E-mail: jspimenta@mail.ufv.br

Revista Eletrônica Print by UFSJ <http://www.funrei.br/publicações/ Metavnoia >


Metavnoia. São João del-Rei, n. 4, p. 53-66, jul. 2002

Você também pode gostar