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OS CARTUXOS PORTUGUESES LEIGOS

A Cartuxa, os Cartuxos, fazem pensar. E a mim, para os


compreender, fizeram-me sempre investigar.
Não os procurei. Encontrei-os porque eram meus vizinhos.
Estavam em Jerez de la Frontera y eu era professor na vila mais
próxima, El Puerto de Santa Maria. A todos fazia-nos pensar a
sua vida tão diferente e original, suposta mais do que conhecida
por causa da sua clausura. Repito que a minha admiração levou-
me a investigar, e isso satisfez-me até hoje com admiráveis
descobertas. Do segredo mais místico e sublime como a luxuosa
“cela” (o sacrário) onde hospedam o seu amado Jesus ao mais
vulgar como as suas chaves, chaves aliás nada vulgares…
Graças a essas investigações minhas, quando agora os Amigos da
Cartuxa de Lisboa me pediram para escrever dos Cartuxos, eu já
sabia o número exacto, 214, dos Brunos (como eram chamados).
E ainda o nome de cada um deles. E sabia que na história dessa
Ordem esses nomes tinham sido originais, diferentes dos outros
filhos de São Bruno. Pois acrescentavam um santo: Frei Joaquim
de São José ou Frei Francisco de Sant´Ana. Quanto desfrutei com
esse obituário! Como também sabia da originalidade com tinham
tratado o seu escudo da Ordem. Enfim, a minha preparação e a
minha afeição moveram-me a aceitar a encomenda.
Uma vez decidido, inclinei-me a informar da vida, não de todos
os Cartuxos Portugueses, senão especialmente dos Leigos, dos
que não foram sacerdotes. Um motivo é serem menos
conhecidos. Outro, ter sido a vida deles diferente nas duas
etapas da Cartuxa em Portugal. Novidade nada estudada nem
explicada.
Na Ordem Cartusiana há uma única vocação em duas
modalidades, sacerdotal e laical. As sete estrelas lembram os
sete fundadores, cinco clérigos e dois leigos. Todos com o
mesmo intuito: viver cada um sozinho com Deus. O que os
diferenciou foi a ocupação: os clérigos dedicaram-se a copiar
códices, os leigos a lavrar a terra para todos comerem. Isso fez
que no mosteiro uns ocupassem um claustro com os escritórios
pessoais, os outros outro espaço com as oficinas, que eles
chamam “obediências” porque cada Irmão trabalha como lhe
encarrega o Prior. Mas cada um vivendo e trabalhando sozinho.
Outras Cartuxas foram fundando-se com o mesmo espírito e a
mesma divisão em duas partes. E cada modalidade da vocação
cartusiana foi amadurecendo os seus costumes. O tempo de
trabalho foi adaptado a cada ocupação, intelectual ou manual.
Todavia, sendo a vocação comum contemplativa, o tempo
essencial era o da Liturgia. E esta, naturalmente, era presidida
por um sacerdote. Isto teve duas consequências: a autoridade
interna e a representatividade externa recaiu no Padre Prior. O
hóspede eventual era atendido por este, participava talvez nas
Vésperas, e abalava ignorando os Irmãos Leigos.
Com estas explicações será mais compreensível que os Irmãos
Leigos Cartuxos sejam menos conhecidos que os Padres. Ainda
agora as televisões filmam a arte, o claustro, a Liturgia e nunca a
carpintaria ou a serralharia duma Cartuxa.
Isso me moveu a escrever algo sobre os Portugueses que em
quatro séculos se santificaram por esse caminho e vocação laical.
Esta exposição é ajudada pelo facto histórico de ter havido duas
vezes Cartuxos em Portugal. Coexistiram primeiro Scala Coeli,
1587-1834, e Vale da Misericórdia, 1598-1833. E depois houve
uma segunda Scala Coeli, 1960-2019. Ora, nesta segunda etapa a
vida dos Leigos foi melhorada graças ao Concílio Vaticano II. E a
comparação das duas histórias vai ensinar-nos muito.
Antes vejamos os números, ordenhemos as estatísticas. Nas duas
cartuxas portuguesas santificaram-se 214 “brunos”: dois terços
deles, 139, na principal. Nessa, Scala Coeli, nos 247 anos da sua
primeira etapa, houve o duplo de padres, 97, do que de irmãos,
enquanto nos sessenta da sua segunda etapa professaram tantos
irmãos como padres. Do duplo à igualdade. Isto merece uma
reflexão. Nos primeiros séculos medievais da Chartreuse os
Padres não chegavam à dúzia e os Irmãos a ultrapassavam
largamente. Nos séculos barrocos a cultura era maior e isso
facilitava que alguns se formassem para o sacerdócio já dentro
da Ordem, o que antigamente era difícil e raro. Essa
desproporção, com a consequente inferioridade dos leigos, vai
ajudar-nos a compreender o benefício aportado pelo Concílio
Vaticano II. Parece que a vida pós-conciliar da segunda Scala
Coeli facilitou a vocação aos leigos.
Começarei por vingar que a vida cartusiana foi substancialmente
a mesma nas duas Scala Coeli. Conservaram-se os valores
tradicionais da clausura, prevalência da oração e da liturgia,
pobreza, manutenção da casa pelos irmãos. Durante a segunda
etapa a Ordem duvidou da pervivência dessa Casa mas
mantiveram-na graças aos informes dos Visitadores sobre o
fervor e união da Comunidade. Os Cartuxos Portugueses do
século XX, e entre eles os Leigos, foram tão bons Cartuxos como
os dos séculos XVII e XVIII. Mas foram mais parecidos com os
Padres.
A primeira diferença entre as duas etapas em Évora é física,
material. Consiste no habitat dos leigos. Scala Coeli foi
restaurada sem ter os planos originais e no terreno tinha
desaparecido o claustro das obediências. O Conde levantou novo
claustro dos Irmãos na antiga cavaleiriça. E cada nova cela teve o
seu jardim e o seu serviço higiénico. Impensável nos séculos
passados. Uns Irmãos cavavam a horta e não precisariam de
jardim pessoal, embora pequeno, mas sim o carpinteiro ou o
alfaiate, e todos gostariam de cultivar flores para a Mater
Singularis Cartusianorum, a Virgem Maria.

Esta vantagem das novas celas era natural, humana. Mais


importante, espiritual, foi outra vantagem: a proximidade dos
claustros favoreceu a integração dos dois grupos. Nas Cartuxas
medievais a separação e até afastamento das obediências deu
lugar a duas Comunidades.

No trabalho agrícola, típico dos Irmãos, encontramos em Scala


Coeli uma particularidade única na Ordem e desaparecida nessa
mesma Cartuxa no século XX. Em Évora, como noutras cidades
fortificadas, existiam tuneis para passar de dentro para fora, sob
as muralhas e as terras circundantes. Ora, sabemos que
passavam pela quinta da Cartuxa porque os cultivos pagavam um
imposto eclesiástico do qual o Arcebispo fundador eximiu os
Cartuxos “naquelas terras às quais chegam por baixo de terra”. E
outro escrito de fins do século XIX cita um passadiço subterrâneo
concretamente entre a quinta da Cartuxa e a Soeira sua vizinha.
Depois desapareceram as entradas. Mas quem hoje vai comprar
vinho Cartuxa na Adega de Valbom avança por uma azinhaga
com a Cartuxa à esquerda, a Soeira à direita, e o túnel dos
Cartuxos debaixo… Podíamos imaginar que aqueles Irmãos
sentiam especial gosto em cumprir até esse ponto o seu retiro ao
Deserto.

Falei da agricultura como a ocupação própria dos Irmãos. Mas se


queremos repassar todas as diferenças entre a vida dos Leigos
nas duas etapas da Cartuxa eborense, comecemos pelo mais
digno, a Liturgia, embora presidida pelos sacerdotes.
É sabido, ao menos por fotos, que as igrejas cartusianas tinham
dois coros: num cantavam os padres, noutro ouviam os irmãos.
Os restauradores de Scala Coeli oficiavam na antiga sacristia,
espaço único onde todos sentavam por ordem de antiguidade,
misturados padres e irmãos. Estes cantavam e até um deles foi
chantre num coro.

Antes do Vaticano II a Liturgia era toda em latim (bom, ouvi que


menos o Kyrie eleison). Como o restauro dessa Cartuxa coincidiu
com esse Cponcílio, a Ordem começou a usar a língua vernácula.
Nas de origem saxónica era difícil adaptá-las ao gregoriano mas
no português foi fácil. E tiveram de fazer os seus novos livros.
Outra novidade era a presidência do sacerdote mostrando o altar
e os mistérios aos assistentes. Colocaram um altar isolado, em
granito da região, com dois prismas assimétricos de grande
beleza.
Estas melhoras não eram só cartusianas, estes monges recebiam-
nas da Igreja. Tinham e conservaram Rito próprio mas nele
introduziram estas novidades conciliares. Como a concelebração.
Contudo, eles adaptavam o que recebiam ao espírito do que já
tinham. Por isso concelebraram apenas nas festas, dias em que
eles viviam mais em Comunidade. Nos dias de solidão um só
sacerdote, por turno, presidia Missa e Ofícios.
Antes os Cartuxos, como todos, recitavam a Liturgia lendo nos
livros. O conteúdo e textos deles foi muito mais variado ao longo
do ano. Isto já era um enriquecimento para os padres. Mas os
irmãos receberam um presente totalmente glorioso. No coro
eles escutavam mas nas celas eles cumpriam com a Liturgia
dizendo painossos e avemarias, por dezenas seguidas, em lugar
dos salmos dos livros. Na segunda Scala Coeli, como no resto da
Ordem, passaram a rezar como os Padres. Os salmos são 150
obras-primas da literatura universal, alguns famosos como o
Miserere ou o De Profundis, orquestrados por compositores
geniais. A salmodia é repartida em sete momentos al longo do
dia. Os leigos medievais seriam analfabetos mas os que eu
conheci em Jerez ou Évora eram cultos e imagino a sua
satisfação.
Depois de ter investigado a renovação litúrgica, onde encontrei
muito mais disto que resumi, passei às relações humanas de uns
com os outros. E aqui a surpresa foi igual de forte e mais
compreensível para mim. A comparação da vida cartusiana
dentro do mosteiro nos séculos barrocos e no meu século foi
consoladora.
Nos antigos Estatutos li pormenores estranhos, agora
desaparecidos. Conhecemos e lembrámos o coro dos irmãos na
igreja. Já isso chocava. Mas resulta que na Quaresma o prior ia a
ele, no escuro, e flagelava sobre o hábito com uma vara os
irmãos, colocados em fila. Como teria eu dado por filmar isso,
que tanto filmei na sua bela Liturgia actual…
Nos antigos Estatutos encontrei isto que só copio e publico
porque já desapareceu. “Os conversos e donatos, lembrando-se
da sua condição por terem sido recebidos para servirem os
padres, mostrem-lhes a devida reverência em gestos e palavras.
Portanto perante eles não se cobram nem se sentem até serem
mandados”. Ou isto: “Sempre que a comunidade estiver no
claustro, os conversos não devem entrar nele”. Demorei em
entender que chamavam comunidade apenas a dos padres.
Permito-me, ou permitam-me, copiar literalmente outras
passagens em que m custou acreditar. “Se o procurador
repreende um irmão este deve prostrar-se e beijar o chão e pode
ser privado de vinho esse dia ou o seguinte”. “Proibimos
absolutamente (sic) aos nossos irmãos toda a solicitude e afeição
carnal, assim como receber visitas de parentes e amigos
seculares”. “Os conversos levem eles próprios a comida e a lenha
às suas celas”. Os padres recebiam-nas, evidentemente servidas
pelos conversos. São apenas exemplos mas chegam para nos
alegrarmos da humanidade introduzida nos Estatutos com a
renovação pós-conciliar.
Essas frases impressionantes têm um valor e efeito que diríamos
jornalístico. Mas vejamos os pontos mais importantes que
marcam a promoção produzida na Cartuxa para os irmãos leigos.
Comecemos pelo aspecto exterior. Antigamente usavam uma
cogula curta, agora a mesma dos padres, com esse cumprimento
tão elegante e essas bandas tão características na silhueta típica
do monge Cartuxo.
O mais importante, de direito e de facto, foi o receberem voz e
voto. A Liturgia evidentemente exige presidência sacerdotal. Mas
para o governo da comunidade os irmãos foram admitidos em
igualdade com os padres. Um irmão pode ser procurador. Pode
ser eleito membro do conselho prioral e até do definitório no
Capítulo Geral. Pode participar nas eleições, mesmo do seu prior,
e nas admissões de noviços e professos. Podem estar com os
padres nos recreios e passeios, coisa antes
incompreensivelmente proibida.
Tudo isso diz respeito às relações mútuas e portanto ao nível da
sua presença comunitária. Na sua vida privada, aliás para um
solitário mais frequente e mais importante, as melhoras foram
ainda mais estimadas. A dedicação ao trabalho não estava
legislada e por isso era exagerada. Considerados, como copiei,
“ao serviço dos padres”, trabalhavam até nove horas diárias e
iam tarde e muito fatigados à cela. Até por isso esta era pequena
e incômoda. Depois do Vaticano II, os irmãos da segunda Scala
Coeli, tiveram melhores celas, como já comentei, e até mesmo
puderam ocupar celas do claustro, o que fizeram quando o
número dos membros diminuiu.
Quando nós lemos aqueles antigos Estatutos devemos ter
pressente o nível social e cultural dos leigos candidatos à
Cartuxa. Sabemos que aqueles irmãos não deviam entrar na
biblioteca mas é que nem queriam… pois não sabiam ler. Pelo
contrário no século XX os irmãos que eu conheci e conheço são
capazes de rezar melhor e de ler mais. Trabalham menos tempo
graças às máquinas. De modo que são mais contemplativos e
portanto mais Cartuxos que os seus antepassados. Eu via-os
felizes e quero pensar que ainda mais felizes…

Tive muito gosto em investigar todos esses dados sobre os


Cartuxos Portugueses Laicos, em geral. Mas a satisfação foi
maior quando conheci, em pessoa ou por referências recentes,
as figuras desses Irmãos do século XX. Lembrando-os vou
regozijar-me e espero impressionar os meus leitores.
O mais famoso, o único verdadeiramente famoso fora da sua
comunidade, foi o pintor Frei Miguel. Pintor em Nápoles e Paris
antes de ser converso Cartuxo em Miraflores, Espanha. Um dos
sete que no 14 de setembro de 1960 reabriram Scala Coeli. Nela
pintou para vender, com exposições abertas pelo Presidente da
República. Tive a satisfação de escrever e falar sobre ele e
montar um disco com 450 dos seus quadros. A Direcção de
Cultura de Évora elegeu honrar a sua figura para despedir os
Cartuxos que abalavam, a Fundação editou a sua biografia e
escritos inéditos e tive a honra de preparar e apresentar tudo
isso.
Outro irmão de família conhecida foi o Frei Joaquim-Pedro
Quintella. A sua família era a proprietária da cerâmica Vista
Alegre e ele ofereceu à Cartuxa baixelas com o escudo
cartusiano. Ele próprio dizia que a sua entrada na Ordem vinha
reparar o dano feito pelo seu antepassado o Vizconde de
Farrobo. Este financiou a vitória de D. Pedro sobre D. Manuel,
cuja mais rápida consequência foi a presença de Aguiar na
Imprensa Nacional para imprimir imediatamente a expulsão de
todos os frades e portanto também dos brunos. Agora o
Joaquim-Pedro tomava esse hábito. Agora o Joaquim-Pedro
tomava esse hábito. Uma das suas afeições era o fado e na
Cartuxa obsequiava seus Irmãos, que conservaram
saudosamente a sua voz gravada.

Conhecido também antes de ser Cartuxo foi o futebolista


Fonseca, do Sporting Club de Lisboa. Amigo pessoal do Eusébio
vestiu a outra camisola. Lamentava que devia ter ido jogar o
Trofeu internacional Carranza em Cádiz mas por estar em idade
militar não pôde passar a fronteira. Considero-o Português mas
era moçambicano mestiço. Na Cartuxa Irmão Paulo, procurador.

Também meio Português, pois era de Goa, e o único ainda vivo, é


o Irmão António Maria, que tem apelido luso, Figueiredo, mas
aspecto totalmente indiano. Aludi à fama externa dos outros e
deste tenho de dizer que tem o mérito de ser famoso
precisamente como Cartuxo. Foi durante meio século o porteiro
da Casa no portão de clausura. Os eborenses ainda hoje
comentam que não conseguiam entrar, mas regressavam
cativados pela finura e delicadeza do Frei António Maria. Este
irmão será lembrado na cidade quando tiverem esquecido os
outros. Mas penso que ninguém esquecerá os Cartuxos.
Quero terminar pensando no futuro. No noviciado da Cartuxa
valenciana de Porta Coeli o prior é português e no seu noviciado
há dois portugueses formando-se, um já sacerdote e o outro
médico. Nessa Ordem dizem que “os Cartuxos não se contam
mas se pesam”. Não importa serem muitos se são bons.
Além disso temos a Cartuxa lisboeta também aberta a um futuro
cartusiano. Queira São Bruno chamar daqui mais portugueses
que tomem o seu hábito lá onde a Ordem segue viva. Deus faça!

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