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organização mais geral a nível burocrático (3). Dentro desta nova perspectiva,
desenvolvemos o estudo de uma categoria de funcionários da Inquisição portuguesa que
atuaram no Brasil no período colonial de modo permanente, já que aqui não se criou nenhum
Tribunal (4). Eram eles os Familiares, oficiais leigos do aparelho inquisitorial de todo o
mundo ibérico no Antigo Regime (séculos XV a XVIII) que, desfrutando de inúmeros
privilégios, exerciam variadas funções: delatavam, espionvam e prendiam todos os suspeitos
de heresia, como judaizantes, bígamos, sodomitas, mouros, solicitantes, falsos funcionários de
seu aparelho burocrático, blasfemadores, luteranos e feiticeiros - objetos por excelência das
perseguições deste tribunal religioso criado em 1536 no reinado de D.João III. Anita
Novinsky comparou os Familiares à Gestapo da Alemanha nazista, ao ressaltar seu papel de
informantes, investigadores e policiais.
A aparição pública destes agentes era solene, acompanhando os réus
nas cerimônias dos Autos-de-fé. Meticulosamente regulamentados e preparados,
proporcionando impressionante impacto visual e psicológico na população ávida pelo
espetáculo, a procissão dos Autos era a exibição por excelência do poderio do Santo Ofício.
Nesta ocasião, as sentenças dos réus eram lidas e aqueles condenados à fogueira ardiam na
vista de todos ao fim do evento. Destacavam-se os Familiares, trajados com toda pompa, a
pé, ladeando os penitentes, e numa tropa à cavalo, ao final da procissão, precedendo os altos
dignatários inquisitoriais e o próprio Inquisidor (5).
Mas o que representava, de fato, ser um Familiar do Santo Ofício? O
ideal inquisitorial de “Misericordia et Justitia” - famoso lema do Tribunal -, necessitava de
uma complexa rede hierárquica de ministros e funcionários cujas funções foram objeto de
legislação específica, contida nos Regimentos da Inquisição portuguesa. O de 1640
determinou explicitamente que os Familiares deveriam denunciar os hereges judaizantes,
blasfemos, feiticeiros, sacrílegos, adivinhadores, bígamos, sodomitas, falsos sacerdotes e
solicitantes, além dos que simulassem ser funcionários da Inqusição e dos penitenciados que
não estivessem cumprindo suas penas (6). Deveriam, ainda, executar prisões com sequestro
de bens mediante mandato do Inquisidor e substituir funcionários, quando necessário, como
no caso dos Visitadores das Naus (7).
O afã de se obter uma Carta de Familiatura ligava-se, no mais das
vezes, ao grande status social e aos privilégios conferidos pelo cargo, adquiridos ainda no
século XVI. Eram isentos do pagamento de impostos e recrutamento militar; eram julgados
em tribunal especial; tinham porte de armas, alimento e alojamento gratuito em viagens e
ganhavam por dia de serviço. De fato, o cargo era tão cobiçado que em várias ocasiões foi
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animando a muitos a requerem uma familiatura, sujeitos que eram ao peso esmagador do
fisco régio e do exclusivo mercantil colonial.
Ser um Familiar era por si só prova de ascendência limpa e sinônimo de
honra e status social. E aos comerciantes, faltava-lhes o enobrecimento, minorando bastante
o estigma inerente à atividade mercantil. Sem dúvida que o ingresso no aparelho burocrático
inquisitorial, particularmente no caso dos Familiares, foi uma das vias pelas quais o
comerciante cristão-velho estabelecido na Colônia procurou o status de nobreza tão caro ao
Antigo Regime.
No exercício do controle político e social, a Inquisição ibérica,
enquanto estrutura institucional do Estado, organizou-se administrativamente através dos
Tribunais distritais, células fundamentais para este controle. A perpetuação da imagem
terrificante do Santo Ofício no Brasil não contou, porém, com a existência de um Tribunal
permanente, nem muito menos com a pompa dos espetáculos públicos dos Autos-de-fé,
avidamente assistidos pelo povo no Terreiro do Paço ou em São Domingos. Portanto, a
Inquisição logrou impor sua sinistra presença no Trópico, enviando Visitadores mas,
sobretudo, investindo em mecanismos intimidatórios permanentes, como foram os Familiares.
Muito mais instigadores da delação do que propriamente delatores, consideramos esses
funcionários como um dos alicerces principais no Brasil do que o historiador Bartolomé
Bennassar chamou de pedagogia do medo (12). O Familiar era a presença viva, a
personificação das práticas que vimos atormentar as populações no mundo ibérico.
Prendendo suspeitos, sequestrando-lhes os bens “em nome do Santo Ofício”, espionando
presos, acompanhando os condenados e entregando os “relaxados” (condenados à fogueira) à
beira do cadafalso, o Familiar representou o elo de ligação entre o Tribunal e o réu.
Para analisarmos a atuação propriamente dita destes agentes na
sociedade colonial, utilizamos alguns processos contra réus do Santo Ofício onde aparecem
no exercício de suas funções. No entanto, estas fontes não foram as principais, pois, a rigor,
teríamos que analisar um número infindável de processos sem a certeza de que eles teriam
referências explícitas aos Familiares.
Por estas razões, e certos de que o impacto avassalador de sua presença
nas ruas, nas casas e nas mentes da população colonial foi bem maior do que o sugerido pelos
processos ordinários, usamos como fonte principal os processos de indivíduos que se
forjaram titulares do cargo e daqueles que o eram e extrapolaram suas funções, abusando
de seu poder. Paradoxalmente, foram nestas duas circunstâncias que pudemos melhor
conhecê-los, percebendo como inspiravam medo e respeito no quotidiano social da Colônia.
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métodos, pois o arbítrio do Santo Ofício era tão avassalador que acabava por penetrar-lhe nas
entranhas. Veneno e antídoto acabavam, pois, se misturando de forma inequívoca, e a história
dos Familiares não deixa dúvidas a esse respeito.
No entanto, apesar dos “desvios” que algumas vezes a instituição dos
Familiares expunha, estes agentes foram de suma importância para reforçar o controle do
império colonial português pela Inquisição e pela Monarquia no Antigo Regime.
Empunhando sua Familiatura, espalharam-se pelas capitanias do Brasil colonial auxiliando o
rastrear incessante de condutas e desvios heréticos, angariando para si, orgulhosamente, todos
os louros e privilégios do agir “em nome do Santo Ofício”.
NOTAS
(1) Citemos por exemplo os vários artigos de Luiz Mott sobre a perseguição dos sodomitas;
as teses de Doutoramento já publicadas de Laura de Mello e Souza, O Diabo e a terra de
Santa Cruz (1986), e de Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados (1988); a tese também de
Doutoramento de Lana Lage da Gama Lima, A confissão pelo avesso: o crime de
solicitação no Brasil no Brasil colonial (1991), e a de Ronald Raminelli, Tempo de
Visitação (1991).
(2) Escandell, Bartolomé. “La Inquisición como dispositivo de control social y la
pervivencia actual del modelo inquisitorial”. In Alcalá, Angel (Org.). Inquisición española
y mentalidad inquisitorial. Barcelona, Ariel, 1984, p.598.
(3) Contreras, Jaime. “La infraestrutura social de la Inquisición: comissarios y familiares”.
In Alcalá, A. Op.cit., p.127.
(4) Calainho, Daniela. Em nome do Santo Ofício: familiares da Inquisição portuguesa
no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado apresentada à UFRJ em setembro de 1992.
(5) Novinsky, Anita. “A Igreja no Brasil colonial. Agentes da Inqusição”. Anais do
Museu Paulista, tomo 33, 1984, p.23.
(6) Regimento do Santo Ofício da Inqusição dos Reinos de Portugal (1640). Ex. mimeo.
Livro I, tít.III, XII.
(7) Idem, Livro I, tít.XII, II.
(8) Novinsky, A. Op.cit., p.26.
(9) Carneiro, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial no Brasil colônia. Os cristãos-novos.
SP, Brasiliense, 1983, p.124.
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(10) Mello, Evaldo C. de. O nome e o sangue. Uma fraude genealógica no Pernambuco
colonial. SP, Cia das Letras, 1989, p.11.
(11) Carneiro, M.L.T. Op.cit., p.125.
(12) Bennassar, Bartolomé. “Modelos de la mentalidad inquisitorial: metodos de su
pedagogia del miedo”. In Alcalá, A. Op.cit., p.174-181.
(13) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, IL, 3693.