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Associação Nacional de História – ANPUH

XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007

Agentes da Fé nas Malhas da Inquisição

Daniela Buono Calainho*

Por muito tempo, a Inquisição foi objeto de silêncio e a real


envergadura de sua ação no Brasil manteve-se restrita ao conhecimento de poucos estudiosos,
ausente de livros didáticos e de importantes obras da historiografia brasileira sobre o período
colonial, abrangendo do século XVI ao XVIII. Exceção que confirma a regra é a obra de
Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia - 1624/1654, publicada em 1972, sobre a
inquirição movida naquela Capitania em 1646, especialmente voltada para a devassa dos
cristãos-novos. Outra exceção digna de nota é o trabalho de Sônia Siqueira, Inquisição
portuguesa e sociedade colonial, versando basicamente sobre os aspectos institucionais do
Santo Ofício no Reino e na Colônia entre os séculos XVI e XVII. Citemos, ainda, José
Gonçalves Salvador que, no seu livro Cristãos-novos, jesuítas e Inquisição, estudou a ação
inquisitorial nas Capitanias do Sul do Brasil entre 1530 e 1680.
Nos anos 1980 e 1990, novos estudos revelaram a riqueza e a
potencialidade das fontes inquisitoriais, e do próprio tema, para um melhor conhecimento de
nosso passado colonial, influenciando recentes pesquisas sobre o assunto (1).
A tendência atual da historiografia sobre a Inquisição Ibérica é de
constante renovação. Já vai longe o tempo em que estes estudos privilegiavam o mero relato
indignado da aplicação de seus métodos punitivos e a contabilidade dos réus sentenciados a
arderem nas fogueiras. A problematização histórica que vem sofrendo o “Santo Tribunal”
enseja questões bem mais complexas, trabalhadas por vários historiadores espanhóis,
portugueses e brasileiros, como: o papel do Santo Ofício na formação do Estado Moderno; o
estudo das estruturas geográficas, econômicas e administrativas dos Tribunais; a análise
quantitativa e sociológica dos processados; a utilização de suas fontes como janelas para se
pensar questões como a sexualidade e religiosidade; a conduta dos réus diante dos
Inquisidores e o quadro de funcionários do aparelho inquisitorial (2).
Alguns historiadores espanhóis apontaram a necessidade e importância
de se aprofundar o estudo dos homens que fizeram a Inqusição, uma vez que as preocupações
da historiografia voltavam-se fundamentalmente ou para suas vítimas, ou para sua
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organização mais geral a nível burocrático (3). Dentro desta nova perspectiva,
desenvolvemos o estudo de uma categoria de funcionários da Inquisição portuguesa que
atuaram no Brasil no período colonial de modo permanente, já que aqui não se criou nenhum
Tribunal (4). Eram eles os Familiares, oficiais leigos do aparelho inquisitorial de todo o
mundo ibérico no Antigo Regime (séculos XV a XVIII) que, desfrutando de inúmeros
privilégios, exerciam variadas funções: delatavam, espionvam e prendiam todos os suspeitos
de heresia, como judaizantes, bígamos, sodomitas, mouros, solicitantes, falsos funcionários de
seu aparelho burocrático, blasfemadores, luteranos e feiticeiros - objetos por excelência das
perseguições deste tribunal religioso criado em 1536 no reinado de D.João III. Anita
Novinsky comparou os Familiares à Gestapo da Alemanha nazista, ao ressaltar seu papel de
informantes, investigadores e policiais.
A aparição pública destes agentes era solene, acompanhando os réus
nas cerimônias dos Autos-de-fé. Meticulosamente regulamentados e preparados,
proporcionando impressionante impacto visual e psicológico na população ávida pelo
espetáculo, a procissão dos Autos era a exibição por excelência do poderio do Santo Ofício.
Nesta ocasião, as sentenças dos réus eram lidas e aqueles condenados à fogueira ardiam na
vista de todos ao fim do evento. Destacavam-se os Familiares, trajados com toda pompa, a
pé, ladeando os penitentes, e numa tropa à cavalo, ao final da procissão, precedendo os altos
dignatários inquisitoriais e o próprio Inquisidor (5).
Mas o que representava, de fato, ser um Familiar do Santo Ofício? O
ideal inquisitorial de “Misericordia et Justitia” - famoso lema do Tribunal -, necessitava de
uma complexa rede hierárquica de ministros e funcionários cujas funções foram objeto de
legislação específica, contida nos Regimentos da Inquisição portuguesa. O de 1640
determinou explicitamente que os Familiares deveriam denunciar os hereges judaizantes,
blasfemos, feiticeiros, sacrílegos, adivinhadores, bígamos, sodomitas, falsos sacerdotes e
solicitantes, além dos que simulassem ser funcionários da Inqusição e dos penitenciados que
não estivessem cumprindo suas penas (6). Deveriam, ainda, executar prisões com sequestro
de bens mediante mandato do Inquisidor e substituir funcionários, quando necessário, como
no caso dos Visitadores das Naus (7).
O afã de se obter uma Carta de Familiatura ligava-se, no mais das
vezes, ao grande status social e aos privilégios conferidos pelo cargo, adquiridos ainda no
século XVI. Eram isentos do pagamento de impostos e recrutamento militar; eram julgados
em tribunal especial; tinham porte de armas, alimento e alojamento gratuito em viagens e
ganhavam por dia de serviço. De fato, o cargo era tão cobiçado que em várias ocasiões foi
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distribuído em troca de favores ou presentes. D.Fernando Martins Mascarenhas, por exemplo,


Inquisidor Geral de Portugal entre 1626 e 1628, foi acusado de vender a um preço fixo
milhares de familiaturas (8).
Símbolo de status social, de honra, de poder e de conduta irreproxável,
o Familiar foi um dos “braços” mais fortes do Santo Ofício no Brasil. E a partir destes
indivíduos, procuramos não só estudar a instituição inquisitorial, mas também os
comportamentos, os valores sociais, os critérios de valorização ou degradação dos indivíduos
no mundo ibérico, atentos às peculiaridades do cenário colonial. E a questão do preconceito
racial aparece flagrante, uma vez que a Inqusição foi uma das principais instituições
estimuladoras da disseminação do racismo em toda a sociedade portuguesa e, com a expansão
ultramarina, em todas as suas colônias (9).

Refletindo os valores da Europa do Antigo Regime, a sociedade


colonial brasileira via na investigação de seus antepassados um traço fundamental de
hierarquização na escala social. A genealogia era, pois, um saber vital ao olhos do poder,
utilizando-se de critérios classificatórios baseados na etnia e na religião (10). Assim, o mito
da pureza de sangue, presente desde a Idade Média nos países ibéricos, foi ganhando
progressivamente características legais entre os séculos XV e XVIII. De um lado, os “limpos
de sangue”, isto é, brancos e cristãos-velhos, e de outro, os grupos portadores do estigma das
“raças infectas”, como então se dizia: judeus, cristãos-novos, negros, mulatos, índios e
ciganos. Uma vez postulada a entrada em qualquer instituição pública, religiosa ou militar, o
candidato sujeitava-se a longas averiguações de sua genealogia, e somente após as chamadas
“provas de sangue” ou “inquirições de gênere” podia ver-se contemplado com o benefício
pretendido, desde que não se apurasse algum traço comprometedor em sua pessoa ou família
(11).
Gostaríamos de ressaltar, portanto, que foi notória a importância da
Inquisição ibérica enquanto uma das instituições responsáveis pela cristalização do mito da
pureza de sangue, não só em relação às perseguições raciais que moveu - principalmente
contra os cristãos-novos -, mas também em função da metodologia que adotava para o
preenchimento de seus cargos, fiéis aos critérios raciais. Tivemos, deste modo, a
oportunidade de verificar como isto se deu no que se refere aos Familiares.
Uma vez postulado o cargo, iniciava-se uma verdadeira devassa a
respeito da vida pregressa do indivíduo, e Comissários do Santo Ofício cruzavam o Reino e
colônias muitas vezes na busca de uma única informação de um habilitando. Tivemos a
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oportunidade de examinar vários destes processos de habilitação, verificando assim o que


pensamos ser uma inquisição dentro da Inquisição, isto é, a presença de critérios
discriminatórios e de práticas inquisitoriais na formação dos quadros do Santo Ofício,
revelando uma suspeição crônica e generalizada da “má progênie” imposta a todos os súditos
do mundo português. As exigências ligadas à pureza de sangue e à conduta ilibada fornecem
um modelo de sociedade ideal, católica, pura, sem máculas morais, afinada com os valores do
Estado e da Igreja na Península Ibérica no Antigo Regime.
Por outro lado, o processo de habilitação, pela via das inquirições
sobre a vida dos postulantes, revelava-se um poderoso mecanismo de ativação de
preconceitos na sociedade colonial. A Inquisição penetrava profundamente no quotidiano
da população, e a chegada de seus agentes com questionários e interrogatórios sobre
determinada pessoa impunham o medo e o ímpeto acusatório.
Quem eram, no Brasil, as pessoas que, investidas desta tão grande
honraria, colaboravam de modo permanente com o Santo Ofício no policiamento das atitudes
e idéias da população colonial ? Em nossa pesquisa, arrolamos um total de 1708 indivíduos
habilitados ao cargo, brasileiros ou não, que atuaram na Colônia, sendo classificados por
capitania e por século. Constatamos que sua distribuição regional obedeceu, em todo o
período colonial, às oscilações econômicas das capitanias, sendo as áreas mais prósperas e
desenvolvidas as melhores vigiadas pelo Santo Ofício. Verificamos também que foi no
século XVIII que houve o maior número de expedições de familiaturas (90,5%), sugerindo o
ápice da atuação da máquina inquisitorial em terras brasileiras, fenômeno ocorrido em estreita
conexão com a multiplicação de diosceses e prelazias, com a regulamentação das Visitas
episcopais e com o fortalecimento da estrutura eclesiástica colonial e do controle régio sobre a
América portuguesa.
Constatamos, por fim, que a imensa maioria destes agentes estava
ligada ao comércio. Eram desde proprietários de modestos armazéns e lojistas até
mercadores de grosso trato, vinculados à exportação de açúcar e outros produtos, e traficantes
de escravos. Como explicar, pois, esta predominância ?
De acordo com seu Regimento, os Familiares deveriam ter recursos
suficientes para que pudessem “viver abastadamente”, pré-requisito essencial para abertura
do processo de habilitação, que implicava num depósito em dinheiro, e para a realização das
provas de sangue, muitas vezes demoradas e onerosas. Anita Novinsky afirma, inclusive, que
uma vez aprovados, os candidatos se viam obrigados a oferecer generosos donativos à
Inquisição ! Vale lembrar que um de seus muitos privilégios era a insenção de impostos,
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animando a muitos a requerem uma familiatura, sujeitos que eram ao peso esmagador do
fisco régio e do exclusivo mercantil colonial.
Ser um Familiar era por si só prova de ascendência limpa e sinônimo de
honra e status social. E aos comerciantes, faltava-lhes o enobrecimento, minorando bastante
o estigma inerente à atividade mercantil. Sem dúvida que o ingresso no aparelho burocrático
inquisitorial, particularmente no caso dos Familiares, foi uma das vias pelas quais o
comerciante cristão-velho estabelecido na Colônia procurou o status de nobreza tão caro ao
Antigo Regime.
No exercício do controle político e social, a Inquisição ibérica,
enquanto estrutura institucional do Estado, organizou-se administrativamente através dos
Tribunais distritais, células fundamentais para este controle. A perpetuação da imagem
terrificante do Santo Ofício no Brasil não contou, porém, com a existência de um Tribunal
permanente, nem muito menos com a pompa dos espetáculos públicos dos Autos-de-fé,
avidamente assistidos pelo povo no Terreiro do Paço ou em São Domingos. Portanto, a
Inquisição logrou impor sua sinistra presença no Trópico, enviando Visitadores mas,
sobretudo, investindo em mecanismos intimidatórios permanentes, como foram os Familiares.
Muito mais instigadores da delação do que propriamente delatores, consideramos esses
funcionários como um dos alicerces principais no Brasil do que o historiador Bartolomé
Bennassar chamou de pedagogia do medo (12). O Familiar era a presença viva, a
personificação das práticas que vimos atormentar as populações no mundo ibérico.
Prendendo suspeitos, sequestrando-lhes os bens “em nome do Santo Ofício”, espionando
presos, acompanhando os condenados e entregando os “relaxados” (condenados à fogueira) à
beira do cadafalso, o Familiar representou o elo de ligação entre o Tribunal e o réu.
Para analisarmos a atuação propriamente dita destes agentes na
sociedade colonial, utilizamos alguns processos contra réus do Santo Ofício onde aparecem
no exercício de suas funções. No entanto, estas fontes não foram as principais, pois, a rigor,
teríamos que analisar um número infindável de processos sem a certeza de que eles teriam
referências explícitas aos Familiares.
Por estas razões, e certos de que o impacto avassalador de sua presença
nas ruas, nas casas e nas mentes da população colonial foi bem maior do que o sugerido pelos
processos ordinários, usamos como fonte principal os processos de indivíduos que se
forjaram titulares do cargo e daqueles que o eram e extrapolaram suas funções, abusando
de seu poder. Paradoxalmente, foram nestas duas circunstâncias que pudemos melhor
conhecê-los, percebendo como inspiravam medo e respeito no quotidiano social da Colônia.
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Consultando as listas de Autos-de-fé do Tribunal de Lisboa,


encontramos alguns réus que, pelas mais variadas razões, como vaidades pessoais, ânsia por
status social e honra, brigas e vinganças, medo, índoles desonestas, etc., cometeram tão grave
heresia aos olhos do Santo Ofício. Emblema da autoridade inquisitorial, imagem externa da
Inquisição, os Familiares deveriam agir com o máximo de autoridade e prudência. Entretanto,
foram muitos os que não honraram papel tão caro ao Tribunal, acarrentando grande ofensa ao
seu reto procedimento. Apenas um exemplo.
Natural de Quito, Peru, irmão converso da Ordem de São Domingos,
Januário de São Pedro, falso padre e falso Familiar, chegara em 1740 aos cárceres liboetas.
Desejoso de “passar para o estado de sacerdote para ser tratado com mais estimação e
descanso como eram os sacerdotes” roubara, no convento onde morava, no Peru, a patente de
um colega dominicano. No entanto, correndo o rumor de sua falsa identidade, fugira para o
Brasil e, aportando na Bahia, obteve a autorização do Arcebispo de Salvador para aqui atuar
como presbítero. Agindo como verdadeiro ministro da Inqusição pelas terras onde passava,
recebia denúncias e confissões de culpas, fingindo ter toda a jurisdição e autoridade, dando
juramentos aos denunciantes, escrevendo depoimentos, ouvindo testemunhas e formando
verdadeiros processos inquisitoriais. Impôs penitências públicas e vexatórias e perseguia os
fugitivos da comitiva que armara em torno de si, mandando cartas para párocos e capelães
ordenando-lhes que, “da parte do Santo Ofício”, os prendessem e excomungassem, o que era
feito prontamente. Consciente da gravidade de se falsificar uma patente religiosa e agir como
Familiar, confessou depois ao Inquisidor que assim procedera porque ninguém “se atreveria
a prendê-lo e maltratá-lo”. Sincero ou não nas inteções, empunhando as insígnias de
Familiar, aproveitou-se delas o mais que pode. Atuou como verdadeiro Inquisidor, tendo a
exata noção do alto prestígio e temor que representava a figura do Familiar (13).
Acreditamos ter sido comum a prática de pequenos roubos no ato da
prisão. Investidos de tamanha autoridade, andando armados diante de suspeitos acuados e
indefesos, não hesitavam muitas vezes em fazer valer ao extremo suas prerrogativas,
abusando explicitamente de seu poder. Embora vários destes furtos passassem
desapercebidos, outros, no entanto, levaram a que seus protagonistas respondessem por eles
diante do Inquisidor.
A simples menção ao Santo Ofício, o apenas dizer-se Familiar ou
mostrar a medalha que os distinguia, mesmo toscamente falsificada, já era suficiente para
causar pânico generalizado. A população vergava-se a estas arbitrariedades, deixando-se
facilmente enganar, pressionar, prender e roubar, mostrando o quanto o Santo Ofício
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introjetava o medo, espalhava o terror e desestruturava o tecido social. Um ministro da


Inquisição era alguém impune, acima de qualquer suspeita, e a ação dos Familiares estava,
pois, não apenas no que estava prescrito em seu Regimento, mas também, na disseminação
quotidiana do pavor e da repressão inquisitorial. Ainda que estudando falsários ou abusados,
podemos perceber tudo isso: se não propriamente o Familiar em ação - que para tanto
aqueles homens não estavam autorizados - certamente a ação do Familiar - que para o povo
da Colônia bastavam as insígnias e a arrogância para se fazerem valer.
A missão inquisitorial era tarefa por vezes difícil de se administrar.
Despejando na sociedade homens investidos de tanto poder de coação, a Inquisição perdia o
controle do que ela própria criara. Fingir-se de Familiar, abusar das prerrogativas do cargo,
tudo isso espelhava, no fundo, o ponto extremo o que podia chegar o arbítrio inquisitorial.
Em nome do Santo Ofício fazia-se de tudo, e na prática eram tênues as fronteiras entre o
Familiar habilitado e zeloso, o Familiar corrupto e abusado, e o embusteiro que se fazia de
Familiar. Os três tipos causavam impacto na sociedade, espoliando alguns, seja em proveito
próprio, seja em favor do Santo Ofício. Todos a um passo do abuso de poder que o cargo
conferia, fosse ou não o indivíduo um real detendor da Familiatura. O abuso ou a simulação
do poder por Familiares faziam deles, ainda que falsos, o exemplo da ação quotidiana da
Inquisição no mundo ibérico. Ação arbitrária, deletéria, que a própria Inquisição muitas
vezes não podia controlar.
Processando, prendendo e sentenciando estes falsos e abusados agentes,
tentava-se depurar suas engrenagens dos desvios que perturbavam seu reto ministério. Ao fim
e ao cabo, a Inquisição os tratava e punia como hereges pela ousadia de terem exposto o
Tribunal ao escândalo, usando-o para fins meramente pessoais, indício inequívoco do “sentir
mal da Fé”.
O que os documentos nos dizem é que os transgressores da familiatura
buscavam, tanto quanto os Familiares legítimos, o prestígio e o privilégio de uma instituição
típica do Antigo Regime português. E que o Santo Ofício, ao puni-los, buscava em vão paliar
o arbítrio que havia engendrado, ao investir centenas de indivíduos do poder de agir em seu
nome. Ao tratar como suspeitos de heresias Familiares falsos ou abusados, cuja conduta mal
se distinguia dos habilitados a prender e sequestrar em nome do Tribunal, a Inquisição
acabava se julgando a si mesma. Condenando estes indivíduos, e o próprio arbítrio que
lhes caracterizava, a Inquisição admitia a possibilidade de também ela ver-se contaminada
pela heresia. Temos aí, novamente, uma inquisição dentro da inquisição, onde os métodos do
aparelho inquisitorial eram utilizados internamente no sentido de refrear estes mesmos
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métodos, pois o arbítrio do Santo Ofício era tão avassalador que acabava por penetrar-lhe nas
entranhas. Veneno e antídoto acabavam, pois, se misturando de forma inequívoca, e a história
dos Familiares não deixa dúvidas a esse respeito.
No entanto, apesar dos “desvios” que algumas vezes a instituição dos
Familiares expunha, estes agentes foram de suma importância para reforçar o controle do
império colonial português pela Inquisição e pela Monarquia no Antigo Regime.
Empunhando sua Familiatura, espalharam-se pelas capitanias do Brasil colonial auxiliando o
rastrear incessante de condutas e desvios heréticos, angariando para si, orgulhosamente, todos
os louros e privilégios do agir “em nome do Santo Ofício”.

NOTAS

(1) Citemos por exemplo os vários artigos de Luiz Mott sobre a perseguição dos sodomitas;
as teses de Doutoramento já publicadas de Laura de Mello e Souza, O Diabo e a terra de
Santa Cruz (1986), e de Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados (1988); a tese também de
Doutoramento de Lana Lage da Gama Lima, A confissão pelo avesso: o crime de
solicitação no Brasil no Brasil colonial (1991), e a de Ronald Raminelli, Tempo de
Visitação (1991).
(2) Escandell, Bartolomé. “La Inquisición como dispositivo de control social y la
pervivencia actual del modelo inquisitorial”. In Alcalá, Angel (Org.). Inquisición española
y mentalidad inquisitorial. Barcelona, Ariel, 1984, p.598.
(3) Contreras, Jaime. “La infraestrutura social de la Inquisición: comissarios y familiares”.
In Alcalá, A. Op.cit., p.127.
(4) Calainho, Daniela. Em nome do Santo Ofício: familiares da Inquisição portuguesa
no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado apresentada à UFRJ em setembro de 1992.
(5) Novinsky, Anita. “A Igreja no Brasil colonial. Agentes da Inqusição”. Anais do
Museu Paulista, tomo 33, 1984, p.23.
(6) Regimento do Santo Ofício da Inqusição dos Reinos de Portugal (1640). Ex. mimeo.
Livro I, tít.III, XII.
(7) Idem, Livro I, tít.XII, II.
(8) Novinsky, A. Op.cit., p.26.
(9) Carneiro, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial no Brasil colônia. Os cristãos-novos.
SP, Brasiliense, 1983, p.124.
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(10) Mello, Evaldo C. de. O nome e o sangue. Uma fraude genealógica no Pernambuco
colonial. SP, Cia das Letras, 1989, p.11.
(11) Carneiro, M.L.T. Op.cit., p.125.
(12) Bennassar, Bartolomé. “Modelos de la mentalidad inquisitorial: metodos de su
pedagogia del miedo”. In Alcalá, A. Op.cit., p.174-181.
(13) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, IL, 3693.

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