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O Brasil foi o refúgio preferido pelos portugueses que procuraram escapar das malhas da
Inquisição portuguesa, e sua história, apesar de inseparável de sua cultura portuguesa de
origem, apresenta aspectos e características que devem ser entendidas e estudadas dentro
do contexto brasileiro colonial. De uma maneira geral, a postura dos portugueses na
América colonial em relação à condição feminina, foi mais dura, rigorosa e conservadora
do que a dos espanhóis.
Essa postura se aplica não somente à situação da mulher, mas também a todo sistema de
organização colonial, que não permitiu nas colônias lusitanas, imprensa, Universidade,
ou a livre leitura. A mulher no Brasil nunca alcançou o "status" da mulher da América
Espanhola, apesar das leis discriminatórias terem sido violadas ininterruptamente pelos
colonos, nas suas vivências quotidianas (4).
Havia uma rigorosa punição aos candidatos a postos oficiais e honoríficos, de se casarem
com mulheres de ascendências judaica, porém o comprometimento sangüíneo foi uma
constante em todo o império espanhol e português. Todas genealogias de famílias cristãs-
novas que analisamos mostram que estavam mescladas com cristãs-velhas. Apesar de não
possuirmos ainda material suficiente para podermos construir modelos e estruturas sobre
a mulher e a família cristã-nova no Brasil, podemos, na base de processos conhecidos,
erguer algumas hipóteses e propor algumas reflexões teóricas.
Um estudo sobre as famílias cristãs-novas do Rio de Janeiro, presas no século XVIII, nos
fornecem dados que nos permitem reconstruir a estrutura da família nuclear, onde pai,
mãe e filhos solteiros viviam numa mesma casa, e os casados em outras, assim como da
família patriarcal, residentes nas áreas rurais, em seus grandes engenhos de açúcar (6).
Focalizando a família cristã-nova do Rio de Janeiro nesse período, não encontramos na
sua organização familiar diferenças consideráveis da família crista-velha.
A maioria dos cristãos-novos que viveram no Brasil na época colonial não eram cripto-
judeus. A perseguição inquisitorial teve um cunho racista apoiando-se em informações
obtidas sobre a origem étnica dos portugueses. Isso obrigava os cristãos-novos a jogar
com a sorte, e construir "um mundo dentro do mundo", onde se resguardavam, se
apoiavam e se ajudavam mutuamente (8).
Uma questão premente que se propõe diz respeito aos mecanismos e ferramentas mentais
que permitiram a transmissão do judaísmo durante três séculos nas selvas brasileiras. A
história dos cristãos-novos no Brasil é totalmente diferente da história das comunidades
portuguesas da Europa, Amsterdã, Hamburgo, Florença, Veneza, Salônica, Bayone, etc.,
assim como do Norte da África e Levante, onde o retorno ao Judaísmo moldou um novo
comportamento entre os cristãos-novos ou marranos. As novas comunidades judaicas
consolidaram-se e adquiriram uma estabilidade que durou até o extermínio dos judeus
durante o hitlerismo.
Na América do Sul, o quadro que encontramos é diverso, a começar pelo fato de que nem
discretamente a religião judaica era permitida. Queremos esclarecer en passant que os
portugueses cristãos-novos dispersos pelos quatro cantos do mundo, não podem ser
chamados marranos nem cripto-judeus apesar de descendentes deles. Foram marranos
apenas aqueles que viveram no império espanhol e português.
APÊNDICE
Treslado do papel que se achou na algibeira dos calções de Antônio Rodrigues * Senhôr,
Deus de Abraão, de Isaac, Deus de Jacó, rei e amparo de sua semente e filhos, Senhor,
Deus de todo (.....)Vós fostes chamado Deus das Maravilhas pelas que usastes com nossos
pais em os tirar do cativeiro do Egito e poder do Faraó.
Vós sois chamado Deus das Grandesas, pelas que com os mesmos usastes, no deserto,
por espaço de quarenta anos. Vós sois Senhor chamado Deus da Justiça pelo que lhe
fizestes, em lhes entregar a terra que a seu pai Abraão prometeste.
Sois Senhor chamado Deus das Vinganças, pelas que com o mesmo povo usastes tantas
vezes até de todo o tirar de sua terra, e levar captivo para a Babilonia pelos grandes
pecados ; vós Senhor chamado Deus das Misericordias, porque todas as vezes, que nestes
trabalhos chamaram por vos lhes acudistes e os livraste, como nesta Babilonia se viu e os
trouxestes a suas casas, em pocessão de suas terras, tanto apesar de seus inimigos, por
caminho só a vós licito.
Vós Senhor chamado Deus das Iras. Porque finalmente irado contra eles , por seus
nefandos e abominaveis pecados , sem algum conhecimento dos beneficios de vós
recebidos, dados de todo a ingratidão e desconhecimento de vosso Santo Nome,
abominavelmente reverenciando os demonios, de todo os destruistes, cansastes e
espalhastes pelas regiões do mundo, captivos e sujeitos, a tantos trabalhos e miserias,
como padecem até agora e padecemos hoje vendo que todas as gentes, tem recolhimento
e terras, onde cabem eles seus filhos , nós de todas as gentes, terras, nações, fomos
aborrecidos, sopeados cativos e odiados, submetidos as que vos vedes, todos os dias
presos, forçados, desterrados, penitenciados e açoitados e queimados: sem a isto nem ao
que mais padecem nossos filhos de vituperio e nossos de deshonra,e, assim toda nossa
geração miseravel e triste posta ao extremo que está , deixada de vosso amparo, submetido
ao cruel e carniceiro inimigo nosso, que é toda a geração terrestre, sem termos, quem no
valha , que nos acuda, se vos bom Deus não sois ; vivo sois vós Senhor vivo por certo o
vosso Santo Nome, bem vedes nossos trabalhos e miserias, baste Senhor o castigo que
temos padecido ,baste o tempo de vossa ausência, baste o mal de nossa peregrinação,
acudi Senhor pois sois chamado, Pai e Deus de misericórdia, olhai que somos vossos
filhos, olhai que somos vosso povo, olhai que somos semente de vossos servos Abrão,
Jaco, Isaque. Não permitais que sejamos consumidos, não permitais que sejamos
acabados pelas mãos de cães que não conhecem vosso Santo Nome, que vós não
reverenciam nem fazem obras de vós servirem, nem merecem tratar e, vosso Santo Nome
tão abominavelmente como fazem, venha-lhes Senhor o que merecem , usai com eles de
justiça e não permaneçam mais, não deis ocasião a que de todo pereçamos em suas mãos
e posto que nossos pecados merecem muito mais, confessamos Senhor que não
merecemos nossos bens por nossos males, nem merecemos levantar os olhos, a vossa
celestial morada, mas Senhor Deus das piedades, com quem as haveis de usar senão com
os filhos de vosso povo; a quem não vos conhece mostrai já quem sois e o poder de vossas
obras, santificando vosso santo nome e mandando-nos nossa saúde para que o mundo veja
seu engano, e o vos demos louvores, pois não aguardando nossa conversão senão em meio
de nossos pecados, chegais ao vosso poderoso (...) e nos arrebatais de meio deste lago, de
onde não poderiamos nunca sair, nem levantar os olhos a vós, com limpeza, se com vossa
extremada bondade e grande misericordia nos não livrais,para que em vossa casa e nossa
terra, debaixo de Nosso Rei e a sombra de vossos ministros vos louvemos com tanta razão
não tendo mais que dizer, que com os corações cheios de alegria darmos graças cantando
(...) para sempre. Amen. Com as armas de Abraão andarei armado, com seu manto
(cobejado ?...)Abraão estava no meu corpo, que nunca me vereis preso nem morto nem
em mãos de meus inimigos posto. Seja comigo Abraão meu guardador, não me ponhas
em olvido, que sou grande pecador, da-me graça e favor para te poder servir e tuas
carreiras, servir Abraão meu gram Senhor – laus Deo. *Fonte : Inquisição de Lisboa.
Cadernos do promotor de Lisboa nº 4 .Ms. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa,
Manuscrito.
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NOTAS
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(1) Souza, Laura de Mello e , O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Feitiçaria e Religiosidade
Popular no Brasil Colonial , S.Paulo, Cia.Das Letras, 1986. Sobre a Mulher na Inquisição
portuguesa veja Silva,José Gentil da , "L'Inquisition au Feminin" in Inquisição –
I Conresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição portuguesa, 1989, vol.I pp. 303-323.
(2) Yerushalmi, Josef – From Spanish Court to Italian Ghetto – Isaac Cardoso ,A Study
in Seventeeth Century Marranism and Jewish Apologeties , New York, London. Veja
também Roth Cecil , Dona Gracia Mendes. Vida de una gram mujer, Buenos Aires, ed.
Israel 1953 e Clement Catherine, ,La Senora ,ed. Calman Levy, Paris, 1992.
(3) Boxer, Charles C.R. – Mary and Misogyny. Women in Iberian Expansion overseas,
1415-1815, ed. Duckworth , 1975.
(4) Boxer,-Mary and Misogyny , cit p. 53
(5) Novinsky, Anita – "Una Nueva vision de lo Feminin: La Mujer Marrana" in Ed. Jorge
Nunes Sanches – Historia de la Mujer y la Familia ed. Nacional, Quito, 1991 pp. 69-80
(6) Gorenstein, Lina – Uma familia cristã-nova no Rio de Janeiro . Monografia
de mestrado , dep. História , datilografada ( No prelo ed. Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro.
(7) Alberro, Solange – Inquision et Societé, 1577-1780- Mexico 1988
(8) V. Novinsky, Anita – Inquisição cristãos-novos na Bahia, 2ªª edição , ed. Perspectiva,
S.Paulo,1992.
(9 ) Mendonça, Heitor Furtado de – Visitação do Santo Oficio às Partes do Brasil.
Confissões da Bahia 1591-1593. S.Paulo, 1925 . Veja Wiznitzer , Arnold – Os Judeus no
Brasil Colonial ,S.Paulo ed. Pioneira, 1962.
(10) – Ibid
(11) – Leão, Duarte Nunes de – Descrição do Reino de Portugal, ed. 1610 apud Boxer ,
Charles, Mary and Misigyny, cit.
(12) – Baron, Salo W. A Social and Religious History of the Jews , ed. Columbia
University Press, 18 vol. 1958, vol.II p. 217 .
(13) - Baron, Ibid p. 125
(14) – Após o Rio de Janeiro, a mais numerosa comunidade cripto-judaica do Brasil, no
século XVIII, foi a Paraiba. Diversas pesquisas sobre os cristãos-novos da Paraiba
serão publicadas em breve.
(15) – V. Novinsky, Anita – Jewish Roots of Brasil in The Jewish Presence in Latin
America edit.. Judith Elkin & Gilbert W. Merks, Boston, Allen & Unwin, 1987 pp. 33-
44, e Novinsky, Anita , " Sephardim in Brazil . The New Christians in The
Western Sephardim , ed. Richard Barnett and Walter Schwab , Gibraltar Books Ltd.
Grenton , Northants 1989 pp. 431-434.
(16) – Silva, José Gentil da – L'inquisition au Feminin, cit vol I p.305-323.
(17) Nor, Pierre – Les Liews de Mémoire, vol. I ed. Gallimard 1984 p. XIX (18)
Inquisição de Lisboa . Cadernos do Promotor Lisboa num..4, Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Lisboa, Manuscrito.