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A CULTURA MATERIAL

EM PRÁTICAS
FUNERÁRIAS NO OESTE
AFRICANO (SÉCULOS
16 -17)*

DOSSIÊ
VANICLÉIA SILVA SANTOS**, ROBERTH DAYLON***

Goiânia, v. 21, n.2, p. 453-477, ago./dez. 2023.


Resumo: o objetivo deste artigo é analisar a materialidade das práticas funerárias no
Oeste africano no Baixo Casamansa nos séculos 16 e 17. A importância da vida após a
morte era o fio condutor das práticas funerárias. Neste texto discutimos os contextos histó-

DOI 10.18224/hab.v21i2.13628
ricos em que aconteciam os ritos funerários, bem como os materiais que os mortos levavam
consigo para o outro mundo. Esta análise do rito e das práticas de sepultamento permite
compreender uma série de articulações de cunho político, econômico, social e cultural das
realidades locais. As práticas cerimoniais na região de Cacheu e em Serra Leoa eram
diferentes. Apesar disso, argumentamos que, nas duas regiões, os sepultamentos estavam
no centro das relações de sociabilidades entre vivos e ancestrais, bem como entre pessoas
do mesmo grupo.

Palavras-chave: Sepulturas. Cultura Material. Insígnias de Poder. Serra Leoa. Bissau.


Caheu.

* Recebido em 15.08.2023. Aprovado em 26.11.2023.


** Doutora em História pela USP, curadora da Coleção Africana do Penn Museum. Professora do De-
partamento de Africana Studies da Universidade da Pensilvânia. Professora colaboradora do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: vsantos@upenn.edu
*** Doutorando no Programa de História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, conta com bolsa da CAPES para desenvolver a pesquisa sobre as
expansões Mane-Sumba e Kru-Kquoja na Costa Ocidental Africana (Séc. 16 e 17). Orientando de
453 Vanicléia Silva Santos na UFMG. E-mail: roberthdaylon@gmail.com
H á poucas pesquisas sobre práticas de sepultamento e sua materialidade na região que
se estende do rio Cacheu até Serra Leoa. Os poucos trabalhos abordam práticas con-
temporâneas de sepultamentos, a partir da antropologia. Dentre as pesquisas antropo-
lógicas sobre os sobre ritos funerários e as práticas de sepultamento na referida região,
destacamos os trabalhos de Jill Dias (1992) Clara Saraiva (2004 e 2013) e Leonardo
Cardoso (2004), que examinam a construção da ancestralidade a partir da materialida-
de dos sepultamentos. Por outro lado, os trabalhos de Saraiva (2013) e George Brooks
(1984), indicam a importância de compreender as concepções de morte na referida
região em longa duração. No âmbito da história, também há poucas pesquisas para o
período Moderno (1500-1800). De todo modo, estas investigações são essenciais para
compreender como a morte e os sepultamentos ocuparam um lugar central das práti-
cas culturais de diversos grupos da “Senegâmbia”. As investigações de Jeocasta Freitas
(2016) e Clara Pereira (2021), por exemplo, tratam das concepções sobre a morte na
região e da circulação de agentes e de bens durante os sepultamentos a partir dos relatos
de viajantes dos séculos 16 e 17. Ambas as abordagens focaram nos significados atribuí-
dos à morte e aos sepultamentos. Enfim, ainda faltam trabalhos sobre a cultura material
nos sepultamentos da região nos séculos 16 e 17. Então, este ensaio busca contribuir
com a historiografia sobre artefatos usados nos sepultamentos no Baixo Casamansa,
desde o rio Cacheu até Serra Leoa (Figura 1).
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Figura 1. Vilas e Povos desde o Rio Cacheu até a Serra Leoa, indicando povos, vilas e rios mencionados
neste texto. Séculos 16-17
Fonte: mapa dos autores.

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FONTES E METODOLOGIA

Para este artigo, selecionamos uma documentação textual capaz de evidenciar


como pessoas da região entre Cacheu e Serra Leoa utilizaram artefatos em contextos
funerários para expressarem suas visões de mundo, valores, ideias e distinções sociais.
Este ensaio tem como base quatro tipos de documentos: 1) relatos de comerciantes
e missionários que estiveram na costa ocidental da África nos séculos 16 e 17, que
apresentam descrições e representações sobre a cultura material empregada nos ritos
funerários1; 2) objetos presentes na documentação textual; 3) duas imagens de objetos
contemporâneos (a gravura de um esquife e uma fotografia de local de enterramento);
4) e uma escultura (figura nomoli referente aos sacrifícios aos espíritos ancestrais, pro-
duzida em Serra Leoa, entre os séculos 16 e 18). Os artefatos que selecionamos estão
presentes em diferentes contextos arqueológicos, em museus, em paisagens, e em do-
cumentos textuais.
As fontes escritas deste artigo compreendem relatos escritos por comerciantes,
religiosos e compiladores, produzidos entre os séculos 15 e 17. Os nove autores dos
relatos foram selecionados porque escreveram sobre práticas funerárias. O objetivo dos
missionários era noticiar à Coroa Portuguesa e suas respectivas ordens religiosas sobre

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as possibilidades de avançar com as ações missionárias, as quais tinham a função de
facilitar o estabelecimento das relações comerciais na região. Os comerciantes preten-
diam informar sobre os povos, seus costumes e tipos de mercadorias que comercia-
lizavam. Estes são os nove autores dos relatos e a respectiva data em que escreveram
os registros utilizados neste texto: Duarte P. Pereira. Esmeraldo de Situ Orbis [1480];
Valentim Fernandes, O Manuscrito Valentim Fernandes [1506]; André Á. Almada,
Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os Baixos de
Santa Ana [1594]; Manuel Álvares, Etiópia Menor e Descrição Geográfica da Província
da Serra Leoa [1616]; cartas do jesuíta Baltazar Barreira, escritas entre 1608 e 1609;
cartas do Bispo Vitoriano Portuense [1696]; André de Faro, Relação de Frei André
de Faro sobre as Missões da Guiné [1663-1664]; André Donelha, Memorial de André
Donelha a Francisco Vasconcelos da Cunha [1625]; e Francisco L. Coelho, Descripção
da Costa de Guiné desde o cabo Verde athe a Serra Lioa com todas as ilhas e rios a que
os brancos assistentes nella navegação [1669]. Com exceção de Valentim, que não foi ao
continente e escreveu o livro baseado em informantes que estiveram na costa ocidental
africana, as demais pessoas estiveram na região.
Em termos metodológicos, as imagens e artefatos passaram pelo mesmo cri-
tério de análise das fontes escritas. Europeus e cabo-verdianos fizeram vários registros
sobre ritos funerários na região entre o rio Cacheu e a Serra Leoa, nos séculos 16 e 17.
Estes relatos possuem uma perspectiva bastante depreciativa, portanto, devem ser lidos
e interpretados como representações do real. Como os costumes de sepultamentos na
região se diferenciavam dos costumes na Europa, os estrangeiros escreveram exten-
sivamente sobre os contextos funerários na região, a partir de seus filtros culturais e
estereótipos. Assim, para acessar os costumes a partir de uma perspectiva africana,
reexaminamos criticamente os documentos europeus. Para tal, usamos dois critérios
metodológicos. O primeiro consistiu em identificar e separar as informações sobre os
artefatos, e em seguida, análise dos significados que a comunidade atribuía aos objetos
nos contextos funerários. O segundo critério foi evitar que os olhares estereotipados
455 dos relatos dos viajantes, que, em geral, demonizavam as práticas funerárias, contami-
nassem a nossa análise das práticas de sepultamento. Ressaltamos ainda que religiosos
e comerciantes estrangeiros na região descreveram túmulos de governantes, devido ao
interesse no tráfico de pessoas. A tríade sepultamento - sacrifícios e comutação de pena
de morte por escravidão estava diretamente relacionada à conversão dos reis e ao tráfico
de escravizados na região. Essa observação é essencial para a análise que empreendemos,
pois este foi o contexto de produção dos documentos.
O conceito de cultura material deste artigo abrange artefatos, estruturas, lu-
gares, paisagens, distribuição do espaço, animais, corpos, modos de produção e consu-
mo, cerimônias públicas e outras atividades e objetos relacionados às ações humanas.
Por fim, consideramos que a cultura material é essencial para historiadores e demais
profissionais das teorias, ciências sociais, humanas e outras disciplinas entenderem me-
lhor a relação entre as sociedades e seus artefatos, em diferentes temporalidades (LIMA,
2011; SILVA-SANTOS, SYMANSKI, 2019, p. 27; SILVA et al., 2023, p. 42).
Este artigo é uma abordagem histórica sobre a potencialidade da documenta-
ção escrita para o estudo da cultura material em contextos funerários. Profissionais que
examinam a documentação material (artefatos em si) e a documentação textual (em
papel) trabalham com amostragens sobre determinados processos históricos. Assim,
a documentação textual que levantamos sobre os contextos funerários é fundamental
para compreender parte de configurações sociais, tais como status, diferenciação social
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e econômica, hierarquias e transformações na região. Além disso, a partir do método


de “escavação” das fontes escritas, isto é, buscar a cultura material nos documentos
escritos, identificamos artefatos orgânicos em contextos funerários dos séculos 16 e 17
difíceis de encontrar em escavações arqueológicas, devido à especificidade dos sepulta-
mentos nas casas, nas florestas, nas estradas e no leito dos rios.
Em geral, estudos sobre as visões de mundo e as transformações culturais
nas regiões da África Ocidental, marcadas pelo comércio e o contato com os europeus
levam em consideração a linearidade e a suposta rapidez com que as pessoas nascidas
localmente teriam aprendido a cultura dos europeus que chegaram ao oeste africano.
Apesar das transformações provocadas por fatores internos e externos, moradores de
sociedades da costa ocidental Atlântica da África continuaram empregando artefatos
locais nos sepultamentos, conforme as tradições antigas, bem como adicionaram ar-
tefatos europeus. Este é o foco deste texto. Para mostrar tais continuidades e trans-
formações, este artigo está organizado em três partes: a primeira trata da importância
da pós-vida, a segunda aborda a centralidade dos artefatos nos sepultamentos e, por
fim, a materialidade dos túmulos. Essa organização segue o nosso argumento de que
a introdução ou a subtração de artefatos nos sepultamentos modificou a relação entre
grupos da região, mas não a dependência entre viventes e os mortos, já que estes tinham
a potencialidade de proteger os vivos.
Por fim, a Figura que apresentamos neste artigo (Figura 1) é essencial para
compreender os povos mencionados nas fontes e a fluidez das fronteiras espaciais da
região. Do Baixo Casamansa ao Rio Pongo, destacamos neste artigo os povos Banhuns,
Casssangas, Papeis, Beafares, Nalus, Cocolis e Bagas; e para a antiga região de Serra
Leoa, os povos sapes2 e Manes. A preservação destes termos das fontes é fundamen-
tal para futuras pesquisas sobre práticas funerárias na diáspora africana. Não usamos
conceitos do século XIX como “etnia” ou “grupos étnicos”, uma vez, que muitos deles
são invenções coloniais, que não se aplicam aos séculos 16 e 17. Logo, usamos o termo
“povo”, que se aproxima de “nação”, o mesmo que era e é aplicado aos europeus e povos 456
daquela região no período abordado neste texto. Em suma, é importante ressaltar que,
muitas vezes, os viajantes não mencionam o povo, mas apenas a localidade onde eles
viram ou ouviram sobre determinada prática funerária. Além disso, pessoas circulavam
de um lugar para o outro, mudavam-se de uma cidade para outra, onde aprendiam
novos costumes e/ou mantinham as tradições de seus antepassados. Desse modo, nesse
espaço também circulavam objetos, práticas e saberes que influenciavam no modo de
se enterrar. Como mostraremos a seguir, as práticas funerárias nesta região tinham
diferenças e semelhanças. Os principais aspectos em comum eram: os mortos levavam
consigo seus bens mais importantes, presentes que recebiam da comunidade e, por fim,
os descendentes ofereciam cuidados aos falecidos como potenciais espíritos da comu-
nidade.

PRESENTES E PÓS-VIDA

Nas regiões entre os rios Cacheu e Serra Leoa, as cerimônias de sepultamento


e os presentes que a comunidade doava aos mortos eram essenciais para celebrar a tra-
jetória e, principalmente, cuidar da pessoa na pós-vida. O sepultamento era uma etapa
da vida, semelhante ao nascimento, amadurecimento e casamento. Agradar o morto

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no sepultamento era necessário devido à potencialidade da pessoa se tornar um espírito
protetor dos descendentes e da comunidade. Para tanto, era necessário ofertar diversos
tipos de presentes, sacrifícios e libações ao falecido e o enterrar com seus bens em um
lugar específico. Assim, os sepultamentos com as ofertas marcam o início de uma nova
etapa da vida do indivíduo, pois reafirma a relação deste com os vivos.
O equilíbrio das sociedades de que tratamos passava pela relação com os
espíritos dos ancestrais, parentes e membros da comunidade que foram para o outro
mundo. Ancestrais podem se tornar espíritos com muitos poderes, pois alcançaram
o mundo invisível e podem assistir os que ficaram na terra. Na pós-vida, os espíritos
dos ancestrais protegem colheitas e os viventes de infortúnios provocados por come-
dores de alma, doenças, guerras e outros problemas. Os espíritos dos ancestrais, em
geral, são benevolentes e para que continuem atuando em favor da comunidade pre-
cisam ser lembrados e agradados com oferendas pela família ou comunidade. Assim,
a recuperação da saúde, a gravidez, o sucesso da colheita e dos negócios, a descoberta
dos comedores de alma e a vingança contra malfeitores dependem da boa vontade dos
espíritos (SILVA-SANTOS, 2023). Em outras palavras, os presentes no rito funerário
e depois dele são fundamentais para o equilíbrio entre mortos e vivos. A falta dos
presentes pode deixar os espíritos dos ancestrais insatisfeitos. Por exemplo, na região
do rio Cacheu, no século 16, em seu leito de morte, um rei ordenou que seu filho
cumprisse uma promessa feita. Caso o filho não a cumprisse, o espírito do pai voltaria
para cobrá-lo (ALMADA, 1964 [1594], p. 261-262). Outro exemplo bastante comum
se refere ao costume guardado até os dias atuais na mesma região de preparar vasilhas
com água e deixá-las perto da cama ou fora da casa para os mortos saciarem a sede
ao visitarem seus parentes à noite. Do contrário, os espíritos podem se manifestar
por meio de barulhos dentro e fora da casa. Os exemplos mostram uma ambivalên-
cia entre as benesses que os espíritos podem trazer; e, ao mesmo tempo, o medo de
desagradá-los (FREITAS, 2016, p. 119). Assim, homenagens, ofertas destinadas ao
morto e a realização de seus últimos desejos, buscavam manter os bons termos com
457 os espíritos ancestrais na pós-vida.
A CENTRALIDADE DOS ARTEFATOS NOS SEPULTAMENTOS

Os sepultamentos na região entre os rios Cacheu e a Serra Leoa incluíam sete


etapas, nas quais a materialidade ocupava um lugar central nas relações de sociabili-
dades entre vivos e espíritos de ancestrais. O interrogatório do morto, a comunicação
da morte para outras localidades, a preparação do cadáver, a organização dos bens do
morto que iriam acompanhá-lo na outra vida, os sacrifícios para o defunto, as homena-
gens e sepultamentos eram as etapas, que, não eram necessariamente realizadas nesta
sequência em ambas as regiões. O fato é que essas etapas reafirmam os cuidados com
os sepultamentos, a dimensão coletiva da morte e indicam a centralidade da materia-
lidade para a passagem de uma pessoa da vida terrena para o mundo espiritual. Em
suma, os artefatos usados em cada etapa evidenciam aspectos centrais da vida social,
política e econômica das realidades locais nos séculos 16 e 17, suas transformações e
continuidades.

Interrogatório do Morto

Nas comunidades em torno dos rios Cacheu e Grande, após o falecimento, os


jambacousses administravam o interrogatório do morto, junto com moradores. O inter-
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rogatório era a primeira etapa após o falecimento, pois as doenças e a morte na região de
Cacheu não eram vistas como algo natural, mas desejadas por alguém que tinha inveja
do sucesso de outrem. Os jambacousses eram sacerdotes que tinham papel central na
comunidade por causa dos excepcionais poderes de se comunicar com os espíritos/di-
vindades, interpretar as mensagens dos espíritos e transmiti-las às pessoas. Além disso,
os jambacousses desempenhavam funções como curandeiros, tomavam parte nas audi-
ências jurídicas da comunidade, realizavam cerimônias de iniciação, o “choro” (funeral),
faziam oferendas para os espíritos, conduziam adivinhação para descobrir a autoria de
furtos e achar coisas perdidas, e, por fim, identificar, expor e punir os causadores de
malefícios e mortes. Como a doença e a morte eram causadas por desordem intencio-
nal, isto é, provocadas por um ser humano, o jambacousse podia descobrir quem eram
os “comedores de alma” e, em alguns casos, podiam providenciar a cura daqueles afe-
tados por tais malfeitores. Pessoas também contratavam os jambacousses para mobilizar
os espíritos para alcançar benefícios pessoais, tais como conquistar um companheiro
ou uma companheira, manter as relações estáveis, obter riquezas, manter-se protegido
de comedores de alma e etc. Eles também evocavam os espíritos também nos funerais,
para descobrir quem causou intencionalmente a morte da outra pessoa.
Em 1594, André Almada, registrou uma cerimônia de inquirição de um ho-
mem da elite do povo Cassanga que faleceu para descobrir quem o matou. Neste caso,
um grupo de homens, andava nas ruas furiosos, carregando o caixão sobre os ombros, de
um lado para o outro. Em seguida, se dirigiam às casas dos suspeitos/as para que o morto
indicasse quem “comeu a alma”. O jambacousse liderava o interrogatório do morto.

(...) quando morre alguém, antes de o enterrarem, depois de posto em uns paus que servem
de tumba, cobertos com panos negros, em ombros de negros, andam estes com o morto esca-
ramuçando de uma parte para a outra, ao som de muitos instrumentos de atambores, trom-
betas de marfim e buzinas. (...). E há outros negros, a que chamam Jabacoses, que falam
com o morto e lhe faz [em] pergunta que diga quem o matou (ALMADA, 1594, p. 294). 458
O mesmo tipo de interrogatório do morto ocorria entre o povo Banhun. As-
sim que a pessoa falecia, dava-se início à interrogação dela para identificar quem “co-
meu a alma”. Quatro pessoas carregavam no esquife o morto enrolado no pano em que
este faleceu e as pessoas o interrogavam sobre a identificação da casa onde morava a
pessoa suspeita de ter provocado o óbito. Finalizava-se a interpelação quando o morto
pendia em seu caixão para o lado da casa da pessoa culpada: “correm nos terreiros de
uma parte para outra, e para onde os oficiais do diabo declinam, ali dizem eles o vendo
falsamente que o comeram.” (ÁLVARES, 1616, p. 29). Neste excerto do padre jesuíta
Manuel Álvares, que chegou à Guiné no início do século 17, ele lançou um olhar de-
preciativo e demonizador sobre os costumes locais.
Em relação à Serra Leoa, não há descrições da inquirição do morto durante os
sepultamentos, contudo, também havia a prática de culpabilizar “comedores de alma”.
No início do século 17, acusaram uma mulher de dois graves infortúnios: “comer a
alma” de uma jovem e impedir navios de chegarem nos portos locais. Assim, ela foi
assassinada, mas a documentação não esclarece a circunstância do julgamento (ÁL-
VARES, 1990 [1615], v2, c 5, p. 11). Na região, os “comedores de alma” e assassinos
tinham execuções cerimoniais (FERNANDES, 1958 [1506], p. 734). Isso mostra que
os povos da Serra Leoa estavam engajados em descobrir e punir comedores de alma e

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assassinos responsáveis pelas mortes que ocorriam na região, mas estes processos esta-
vam desconectados dos rituais de sepultamento.

Comunicação da Morte

A outra etapa do funeral era a ampla comunicação da morte por meio de tam-
bores para garantir a presença dos parentes do morto e de pessoas com quem ele esteve
ou não relacionado em vida. A comunicação da morte ia além do local onde o falecido
morava, atingindo as localidades vizinhas. Manuel Álvares afirmou que “quando al-
guém morria, moradores imediatamente mandavam as notícias da cidade onde a pessoa
morreu para todas as cidades onde seus parentes podiam ser encontrados” (ÁLVARES,
1990 [1615], v. 2, c. 8, p. 5). Assim, o falecimento de alguém iniciava uma série de mo-
bilizações logísticas para avisar sobre o sepultamento à rede de sociabilidade da família.
Para facilitar o processo de comunicação entre lugares distantes na região entre
os rios Cacheu e a Serra Leoa utilizava-se os bombalos, grandes tambores de madeira que
funcionavam a partir de um esquema de código e repetição. Ao receber a mensagem,
os tocadores de tambor a replicavam em seus próprios instrumentos para ampliar seu
alcance. As mensagens poderiam ser sobre a fuga de uma pessoa escravizada, a chegada
de navios estrangeiros na costa, a convocação para guerra e a morte de pessoas notáveis.
A comunicação por bombalos poderia alcançar até três léguas de onde a mensagem se
originou e alcançar até 20 léguas em uma hora3 (ALMADA, [1594], 326; DONELHA,
[1625], p. 108; ÁLVARES [1616] p. 28). Quando a notícia do falecimento chegava nas
comunidades vizinhas, os moradores demonstravam comoção pelo acontecimento, cho-
ravam copiosamente, como “se o homem que morreu fosse um nativo [daquele lugar]”
(ÁLVARES, 1990 [1615], v2, c8, p. 5). A reação dramática sobre o falecimento atesta a
dimensão social dos sepultamentos enquanto uma instituição que reafirma as solidarie-
dades entre membros de um grupo familiar e os habitantes de lugares vizinhos. Deste
modo, os bombalos eram um dos primeiros artefatos mobilizados nos sepultamentos de
459 pessoas notáveis para ampliar e acelerar a comunicação entre as localidades.
Banhos e Embalsamentos do Corpo

A etapa seguinte do sepultamento eram os banhos e embalsamentos com ma-


teriais orgânicos locais. Na região do rio Grande, o rei de Bissau foi lavado com vinho
de palma antes de ser introduzido na tumba (ÁLVARES [1615] apud MOTA, 1974, p.
61). Nesta região, a limpeza do corpo ficava a cargo dos jambacousses, familiares e espe-
cialistas em sepultamentos. Na Serra Leoa, o lobo, o especialista em cerimônias de se-
pultamento, organizava o funeral e preparava os banhos do morto com óleo e azeite de
palma. O embalsamamento foi uma técnica desenvolvida pelos grupos da região para
preservar o corpo. Na Serra Leoa, o embalsamento de uma pessoa da elite demandava
técnicas sofisticadas de preservação, como a lavagem, remoção dos órgãos e o enchi-
mento do interior com “ervas que parecem hortelã e cheiram muito bem, [...] farinha de
arroz e untado com azeite de palma” (FERNANDES 1958 [1506], p. 732). O comer-
ciante André Donelha (1979 [1625], p. 114) indicou que os óleos tinham o objetivo de
não deixar o corpo se corromper. A prática de embalsamento também ocorria na região
de Cacheu e Bissau no período moderno, como indicam as fontes indiretamente, mas
ainda não identificamos os detalhes dos materiais usados. Por fim, os estrangeiros con-
seguiram perceber e registrar apenas aspectos técnicos do embalsamento e suas finali-
dades práticas. Contudo, ainda precisam ser investigados os significados dos materiais e
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técnicas empregados na preparação do corpo que justificavam a manutenção da prática.

Bens do Morto

A etapa seguinte do rito funerário referia-se à organização dos bens e presentes


que os mortos levavam para a outra vida. A análise dos bens dos mortos é fundamental
para compreender aspectos da vida social e política, bem como a influência dos novos
materiais introduzidos pelos europeus na região. A maior parte dos relatos deixados por
estrangeiros refere-se muito mais aos bens que membros da elite carregavam consigo
para a outra vida do que às pessoas comuns. De todo modo, por meio da leitura aten-
ciosa das fontes, mostramos que pessoas comuns também levavam bens proporcionais
às condições econômicas da família. Os materiais colocados nos túmulos eram “bens
de prestígio”. Estamos propondo este conceito, para definir alguns elementos da cultura
material, como mercadorias, presentes e outros bens com consideráveis valores sociais
e de mercado, que moradores utilizavam para mediar suas relações sociais uns com os
outros e com os espíritos ancestrais. Assim, os sepultamentos mobilizavam objetos que
tinham duas origens principais: alguns eram presentes oferecidos ao morto e outros
eram bens acumulados individualmente durante a vida.

Serra Leoa

A principal forma de aquisição de bens de prestígio eram os presentes que as


pessoas levavam para o enterro. Dada a importância dos presentes e dos bens, primei-
ramente trataremos dos presentes que o morto recebia e, posteriormente, dos bens que
ele acumulava. Na Serra Leoa, os mortos recebiam joias, panos, comida, vinho e outros
bens de prestígio (FERNANDES, 1958 [1506], p. 732; DONELHA, 1979 [1625], p.
115; ÁLVARES, 1990 [1615], v 2, c 8, p. 6-7). Parentes, amigos, parceiros de negócios
e todos que presenciavam os sepultamentos deveriam levar presentes e oferecê-los ao 460
morto e sua família. Contudo, havia uma diferença significativa na quantidade e quali-
dade dos presentes recebidos pelos falecidos da elite e do povo. Boa parte dos presentes
era enterrada com o morto, como joias e panos. Os organizadores da cerimônia ofere-
ciam comidas e bebidas aos espíritos ancestrais e a todos que participavam do funeral.
Os presentes indicavam a continuidade e ampliação das redes de sociabilidade que o
indivíduo desenvolveu em vida e nas quais continuaria a atuar na pós-vida.
Sobre os bens de prestígio acumulados individualmente, pessoas de todas as clas-
ses sociais acumulavam e guardavam bens de prestígio. Cada bem tinha significado próprio
para cada grupo, considerando as respectivas posições hierárquicas de cada pessoa na socie-
dade. Na Serra Leoa, alguns dos bens de prestígios acumulados para os sepultamentos eram
ouro, crânios, esteiras de ráfia e armas. Estes bens eram indicadores do prestígio em vida.
Nas fontes primárias, o ouro é o exemplo mais aparente de bens de prestígio
para o sepultamento (ALMADA, 1964 [1594], p. 343; BARREIRA, 1606, p. 171;
DONELHA, 1979 [1625], p. 105). Na Serra Leoa, as pessoas acumulavam ouro em
forma de joias e escondiam-no para mantê-los seguros para o enterramento. Utilizava-
-se o ouro nos sepultamentos, geralmente, na forma de manilhas e massucos (pequenas
barras de ouro fundido, usadas como joias em pequenos furos da orelha e nariz) (DO-
NELHA, 1979 [1625], p. 114). Sobre o costume de esconder ouro, um português que

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esteve na Serra Leoa anotou uma história que ouviu sobre um rei dos bolões que morreu
subitamente sem indicar aos familiares onde estavam enterrados os bens que guardou
para o sepultamento, assim, todo o ouro que ele acumulou se perdeu (ANDRÉ, apud
HAIR, [1606], p. 44). Este registro indica dois aspectos sobre os bens: o local de ar-
mazenamento das riquezas poderia ser secreto inclusive para os parentes do morto.
Ademais, a recuperação de bens acumulados em vida, por meio de escavação, era parte
dos ritos do sepultamento.
No que se refere aos usos de crânios humanos nos sepultamentos, esses objetos
eram um bem de grande valor social entre os povos sapes da Serra Leoa, pois indicavam
prestígio e honra. Havia duas maneiras de adquirir crânios. Uma era em combates en-
tre dois indivíduos, de modo que o vencedor ficava com o crânio do vencido. A outra
maneira de conseguir crânios era através da compra de pessoas condenadas à morte. A
compra era uma alternativa àqueles que não adquiriram honra de matar os inimigos
em guerras ou em combates: “[...] alguns que ainda não alcançaram estas honras por
suas pessoas, compram aos condenados por pouco preço, que não passa de cinco ou seis
cruzados de ouro, e os matam, e ficam honrados” (ALMADA, 1964 [1594], p. 349). O
excerto ainda aponta que apesar do baixo preço dos crânios dos condenados, esses ob-
jetos não tinham menos valor simbólico que os demais. Argumentamos que pelo baixo
preço os crânios eram bens de prestígio presentes nos sepultamentos da elite e do povo.
A posição que a vítima ocupava em vida influenciava no baixo ou alto valor atribuído
ao seu crânio enquanto um bem de prestígio: “se é cabeça de homem branco ou preto
cristão, ou de algum senhor de terras ou de pessoas nobres, que matam por suas mãos,
as tais taças são muito estimadas” (DONELHA, 1979 [1625], p. 105). Em outras pala-
vras, quanto maior o poder da vítima que perdeu o crânio, maior a honra e o prestígio
do proprietário. Deste modo, os crânios eram bens de prestígio de sepultamentos de
guerreiros, governantes e de qualquer indivíduo que os pudesse comprar.
Governantes e guerreiros sapes usavam crânios em seus sepultamentos de ma-
neira ostentatória. Alguns crânios eram dispostos aos pés da pessoa morta como parte
461 dos bens que carregariam na pós-vida. Outros crânios eram colocados na cova em volta
do morto (FERNANDES, 1958 [1506], p. 731). No início do século 17, dependendo da
quantidade de crânios que governantes acumulavam, era possível diminuir a necessidade
de pessoas sacrificadas no sepultamento deles. Esse foi o caso de uma rainha da Serra
Leoa que adquiriu tantos crânios durante a vida, que não precisou sacrificar mais que
uma pessoa para reafirmar o prestígio dela no sepultamento (BARREIRA, 1607, p. 238).
No sepultamento de guerreiros depositava-se uma quantidade de crânios
equivalente ao número de pessoas que eles mataram (FERNANDES, 1958 [1506], p.
731). Além da documentação textual, esta evidência está presente em alguns artefatos
da cultura material da Serra Leoa, como em objetos de marfim4 e nas chamadas “figu-
ras nomoli”, feitas de pedras. A Figura 1 foi encontrada no século XX, em Serra Leoa, e
faz parte da coleção do Musée du quai Branly, em Paris. Esta escultura representa uma
figura masculina sentada, carregando bens de prestígio como uma adarga (escudo) em
formato circular e a carapuça (Figura 2). Talvez tivesse na outra mão uma azagaia. Ele
olha firmemente para a frente, enquanto ao redor dos pés e pernas descansam quatro
cabeças, aparentemente humanas. Esta figura remete aos tempos antigos quando se
usavam os crânios nos sepultamentos e corresponde à descrição de viajantes sobre se-
pultamentos do início do século 16 na Serra Leoa, transmitida à Valentim Fernandes:

Então põe o morto assentado em uma cadeira com seus melhores vestidos que ele tem [...] E
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põe-lhe uma adarga na mão e em outra uma azagaia e uma espada na cinta. E se é homem
que tem mortos muitos homens em guerra põe-lhe tantas caveiras de homens diante
dele quanto tem mortos (FERNANDES, [1506], p. 731, grifos nossos).

Figura 2. Escultura de guerreiro sentado, segurando escudo na mão esquerda e com cabeças ao seu redor
dos pés. Pedra. Serra Leoa. C. séculos 16-17
Fonte: Artista não documentado. Acervo do Musée du Quai Branly, Paris. Fotografia por Roberth Daylon (2023). 462
A figura nomoli representa um guerreiro, cujos crânios em seus pés referem-
-se ao prestígio que ele adquiriu em vida como uma pessoa combativa e valente. Neste
sentido, os crânios tinham valor social como troféus de vitórias em combate. Ou seja,
um guerreiro guardava os crânios dos inimigos que matou em guerra ou emboscadas
para reafirmar sua honra nos sepultamentos.
As esteiras de ráfia, por sua vez, se constituíam como um bem de prestígio na
região do rio Grande e na Serra Leoa, pois eram as “camas” onde os indivíduos eram
sepultados (DONELHA, 1979 [1625], p. 115). Os bolões chamavam as esteiras de bicas
e os Nalus do rio Nunes as chamavam de cocali [cocoli]. Mais que uma diferença de
grupos, a nomenclatura indicava diferentes estilos e técnicas empregadas na produção
desse artefato. As esteiras eram bem coloridas e de diferentes materiais. Os usos das
esteiras iam além dos ritos funerários, de modo que as pessoas usavam para se sentar
e dormir. Nas casas de governantes de Serra Leoa e nos locais onde se realizavam os
julgamentos dos Sapes utilizavam-se peles de grandes animais e esteiras (ALMADA,
1964 [1594], p. 349). Desse modo, as bicas e cocalis são consideradas bens de prestígio
(ÁLVARES, 1990 [1615], v2, cap 4, p. 4) essenciais para a compreensão da materialida-
de dos sepultamentos de Serra Leoa, devido ao seu valor social.
Por fim, as armas também eram um bem fundamental na composição dos bens

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do morto, devido a sua função como insígnia de poder. No sepultamento de um guerreiro
da Serra Leoa, ele tinha uma adaga na mão direita, uma azagaia na esquerda e uma espada
na cinta (FERNANDES, 1958 [1506], p. 731). Posteriormente, arcos e flechas também
aparecem na lista de armas portadas pelo morto (DONELHA, 1979 [1625], p. 115). Esses
instrumentos estavam associados a três usos: o bélico nas guerras, o instrumental na caça
e o cerimonial de cunho religioso, como o sepultamento ou político como o diálogo entre
embaixadores. Em toda a região entre os rios Cacheu e Serra Leoa, as armas eram parte
essencial de cerimônias militares, políticas, religiosas e sociais (DAYLON, 2022, p. 161).
Deste modo, no sepultamento, as armas eram um elemento de distinção que reafirmava
valores sociais do objeto e da pessoa antes de morrer.

Região do Rio Grande

Alguns bens enterrados com os governantes da região do Rio Grande são


diferentes daqueles de Serra Leoa. Os profanadores do túmulo de Bocampolo Có, en-
contraram cerca de quinze artefatos enterrados com ele, que revelam a impressionante
diversidade de bens sepultados com o rei de Bissau, em 1696.

(...) dois caldeirões, um terçado, um dardo, uma partazana, uma azagaia, uma trombeta
e um cabaço de dinheiro com cristal, e alambre, umas contas de cristal com uma verônica
de ouro, panos, e outras coisas que ficaram dentro. E tirando se para fora o corpo envolto
em muitos panos, e por cima um [pano] de damasco, abrimos tudo por lhe tirar os sinais de
gentio, nas duas arrecadas de ouro que nas orelhas tinha, dez ou doze manilhas de prata em
cada braço, e quantidade de corais ao pescoço. Tirando tudo entregue ao coveiro por reco-
mendação do rei, tornamos embrulhar o corpo (...) (PORTUENSE [1696], apud MOTA,
1974, p. 108).

Os bens de Bamcapolo Có eram compostos por insígnias de poder, como a


463 trombeta, contas valiosas e adereços colocados juntos ao corpo do rei. O instrumento
musical no túmulo do Bacampolo Có, era certamente uma trombeta de marfim de
elefante como se usava na região. Em 1594 Almada registrou que se usavam costumei-
ramente trombetas de marfim nos enterros de pessoas da elite (ALMADA, 1594, p.
294). A outra parte das insígnias referia-se a armas brancas utilizadas pelos antigos reis.
O terçado era um tipo de espada larga e curta. A partazana é um tipo de arma de haste
de madeira ou metal com lâmina fixada na ponta, que servia para ataque corporal e não
para arremesso. A azagaia e o dardo eram armas de arremesso, com ponta de metal. Em
Bissau, a insígnia de poder mais importante era a azagaia. Em 1616, o padre Manuel
Álvares (apud MOTA, 1974, p. 60) descreveu a insígnia do rei de Bissau, como “uma
azagaia pequena, cuja hóstia é de ferro; e no remate é como uma ‘rapadoura’ do metal”.
Oitenta anos depois, em 1696, o bispo de Cabo Verde, durante o primeiro encontro
que teve com o governante de Bissau, o viu portando a mesma insígnia e usando roupas
europeias bem ostentatórias:

Trazia vestido um casacão estrangeiro de pano fino, cabeleira postiça [peruca], chapéu par-
do, meia de seda e chinelas, com suas luvas, e na mão direita trazia uma zagainha pequena,
costume que tem os reis gentios de trazer na mão, por sinal de grandeza e poder (POR-
TUENSE [1696] apud MOTA, 1974, p. 69).
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Assim, quando o governante falecia, levavam-no enrolado em panos para a


sepultura e colocavam a azagaia no esquife, que era aberta. Ao final da cerimônia, a
azagaia voltava ao sucessor do governante falecido. Ou seja, transferia-se a maior insíg-
nia de poder ao novo rei nomeado (ÁLVARES, [1616], p. 60)
Os adornos, insígnias de poder para distinguir o governante, eram produzidos
localmente. Metres locais fabricavam as manilhas de prata nos rios Grande e São Domin-
gos, como testemunhou o comerciante Almada “há nele [no rio] prata, ao parecer boa, e os
negros fazem dela manilhas e anéis (...)” (1594, p. 281). As duas “arrecadas de ouro” referem-
-se a brincos ou outro tipo de joia para orelhas e pescoço. Dos itens da cabaça, somente o
alambre (âmbar cinza produzido pela baleia cachalote e coletado nas praias da região) era
um material local (MALACCO, 2023, p. 161-162). Os panos podem ter sido produzidos
localmente e importados de Cabo Verde e da Europa. A citação acima indica que o rei se
vestia também com panos importados da Europa no cotidiano e no sepultamento.
Dentre os bens encontrados no túmulo de Bacampolo Có, havia cinco objetos
que ele adquiriu dos estrangeiros negociando na região. As contas de cristais e os corais
faziam parte das mercadorias levadas pelos europeus para negociar com comerciantes
naturais da região, pois havia alta demanda por esses produtos. O coral era uma merca-
doria especial que comerciantes vendiam ou presenteavam aos governantes e suas espo-
sas. Desde o rio Gâmbia até a Serra Leoa, moradores apresentavam uma alta demanda
aos comerciantes da região por cristais e contas (MALACCO, 2023, p. 202-208).
O “cabaço” de dinheiro com cristais e um colar de cristal com a verônica (medalha com
a figura de um santo, impresso em metal e outros materiais) certamente foi presente de
missionários europeus que estiveram na região, tentando convencer Bomcapolo Có de
aceitar o batismo. O damasco era um tecido importado da Europa, bastante requisita-
do por governantes, devido à sua beleza e destaque. Por fim, os dois caldeirões, podiam
ser vasilhas de cobre vendidas por europeus ou testos de cerâmica feitos pelas mulheres
da região para servir bebidas e comidas aos ancestrais. Os bens de Bacampolo Có eram
compostos por itens locais e importados que lhe imprimia distinção e prestígio. 464
Os panos eram artefatos indispensáveis nos sepultamentos. Portanto, tanto
nos enterros de pessoas da elite quanto nos das pessoas comuns usavam-se panos. Exce-
to criminosos, todos os moradores eram enterrados com panos. Na Serra Leoa, vestia-
-se os falecidos com seus melhores panos, mas, se a família não tivesse bons panos, os
familiares do morto pegavam panos emprestados para que o morto fosse sepultado dig-
namente (FERNANDES [1506], p. 731). Inferimos que os empréstimos fossem para
pagamento posterior. Outrossim, na epidemia que afetou Bissau, entre 1695 e 1696,
o rei Bamcapolo Có doou panos às famílias que não tiveram tempo ou recursos para
adquiri-los. Nesta epidemia, faleceram muitas pessoas em um curtíssimo espaço de
tempo, inclusive o filho do rei, batizado em Portugal, outros membros da família real e
dezenas de moradores conforme o excerto:

(...) as mortes gerais dos gentios por toda esta ilha, que ficaram casas inteiras despovoadas
(...) [fez] preciso conforme ao seu costume dar o rei mortalhas a todos e assistir
nos choros, e juntamente por lhe morrer um jagra seu irmão herdeiro do Reino, e mais de
trinta mulheres do dito rei e outros parentes e finalmente por lhe vir a nova do falecimento
do príncipe seu filho (PORTUENSE [1696], apud MOTA, 1974, p. 99, grifos nossos).

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Em suma, os bens em posse do morto no sepultamento indicavam um pres-
tígio derivado do valor social e de mercado desses objetos. A quantidade e a qualidade
dos bens dependiam do status social de cada pessoa. Os artefatos mobilizados para os
sepultamentos nas duas áreas eram bens de prestígio devido às origens, materiais, tipos,
usos e significados dos objetos em cada contexto. Alguns artefatos possuíam altos valo-
res de compra e venda em seus contextos. Por fim, os principais bens que se enterravam
as pessoas na região eram armas cerimoniais, instrumentos musicais, crânios, joias de
ouro, cristais e corais, âmbares, esteiras de ráfia, panos especiais locais e importados,
panelas, comidas, vinho de palma e outros materiais não mencionados pelos viajantes.

Sacrifícios e Homenagens

Outra etapa do sepultamento consistia na realização de homenagens ao mor-


to e aos espíritos ancestrais, na forma de cortejos com músicas, cerimônias militares e
sacrifícios. Na região, realizava-se uma série de performances com cantos e danças para
o morto. Na Serra Leoa, se acreditava que a grandiosidade dos “choros” e dos cortejos
faziam com que os corofins, espíritos dos ancestrais, dissessem “Eu tenho alguém que se
lembra de mim e lamenta por mim” (ÁLVARES, 1990 [1615], v2 c 8, p.6).
Os habitantes organizavam cortejos que, junto com os “choros”, eram home-
nagens ao morto. Os instrumentos musicais ocupavam um lugar considerável nos se-
pultamentos, sendo que os tipos e os materiais variavam conforme a localidade. Entre
os Cassangas, no rio Grande, utilizavam-se tambores, trombetas de marfim e buzinas
nos sepultamentos. Na Serra Leoa, os instrumentos musicais eram bombalos, tambores
grandes e pequenos, instrumentos de corda feitos com cabaça (parecidos com violas e
harpas) e as trombetas. A última era de uso exclusivo de governantes (ÁLVARES, 1990
[1615], v2 c 2, p. 11). Apesar dos relatos não mencionarem os usos desses instrumentos nas
exéquias da Serra Leoa, havia música nos sepultamentos, semelhantes às campanhas mili-
tares (Fernandes, 1958 [1506], p. 731). Músicos de Serra Leoa usavam “pregomis, buzinas,
465 bombalos, tambores e flautas” como instrumentos musicais em combates (DONELHA,
1979 [1625], p. 112). A maior parte desses instrumentos era de madeira e couro, outros
eram de cobre ou de marfim, como as trombetas. O uso de cobre e marfim na confecção
de instrumentos musicais na região reafirma a relevância dos materiais e dos instrumentos
tocados nos sepultamentos para se comunicar com os espíritos dos ancestrais.
Em relação aos sacrifícios, estes aconteciam em toda a região costeira, do rio
Cacheu até Serra Leoa e tinham o objetivo de homenagear os espíritos dos ancestrais.
Neste caso, os corpos de pessoas e animais se tornaram parte da cultura material em-
pregada nos sepultamentos. A seleção, a quantidade e o tipo de seres sacrificados de-
pendiam da condição social e hierárquica de cada pessoa. Pessoas comuns sacrificavam
animais, aves e faziam libações com vinho. Entre os Banhuns, que viviam perto de
Cacheu, as oferendas incluíam aves, cabras, cachorros, galinhas, libações com arroz,
vinho de palma, sangue e pequenas partes de galinhas. Em 1615, o padre Manuel Álva-
res (1616, p. 29) registrou que depois do enterro dos Banhuns, colocavam-se oferendas
na parte exterior da cova para o morto: “Depois do enterramento lhe vão meter sobre a
cova algumas galinhas, ficando nela só o sangue, e cabeça; derramam também algum
vinho de palma, põem-lhe panela de arroz (...)”. No dia seguinte, os familiares iam
conferir se o morto havia consumido as oferendas. A ausência da comida indicava que
o morto as havia recebido bem. Contudo, se a oferenda não fosse consumida, as pessoas
continuavam a cerimônia, temerosas de não terem agradado aos espíritos ancestrais e
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que, consequentemente, algo ruim pudesse acontecer com elas.


Nos séculos 16 e 17, na região do rio Cacheu, membros da elite sacrificavam
animais de pequeno e grande porte e também pessoas, relatadas como escravos, pajens
e mulheres próximas ao rei. A quantidade e o tipo de sacrifício dependiam do poder de
cada pessoa e do olhar do viajante. Por volta de 1616, o padre Manuel Álvares sugeriu
30 a 40 sacrifícios de pessoas por funeral. Nos anos 1660, Lemos menciona que, desde
o falecimento do rei Mahana de Bissau, até completar um ano da morte, sacrificaram-
-se mais de 104 pessoas em honra dele. André de Faro anotou mais de 40 pessoas sacri-
ficadas. Por fim, nos anos 1690, o bispo Portuense chutou que 40 a 50 pessoas seriam
sacrificadas ao rei de Bissau, caso este não tivesse se convertido. Segundo o mesmo
bispo, quando Bacampolo Có faleceu já batizado, os moradores de Bissau sacrificaram
de oito a nove pessoas. Contudo, quando o bispo profanou o túmulo de Bacampolo
Có, havia apenas quatro pessoas enterradas com ele (ÁLVARES, [1616], apud MOTA
1974, p. 61-623; COELHO ([1669], 1990, p. 41; PORTUENSE [1696], p. 100; FARO
[1664], 2011, p. 199). Assim, não é possível presumir pelas fontes escritas a quantidade
de pessoas sacrificadas nos sepultamentos de governantes, pois alguns viajantes não
apresentaram números e outros sugeriram cifras absolutamente diferentes em suas ano-
tações. Tudo indica que padres e comerciantes exageraram na quantidade de vítimas
sacrificadas para justificar o aumento do tráfico de pessoas condenadas por “feitiçaria”
sem precisar observar as normas legais para o comércio de seres humanos5. De todo
modo, o investimento nos sepultamentos era notório para os estrangeiros. Manuel Ál-
vares, informou que no enterro de Fená, comerciante local, morto pelos franceses em
Bissau, no início do século 17, vendeu-se mais de duzentas pessoas para comerciantes
transatlânticos para cobrir as despesas. Apesar das divergências e exageros presentes nos
relatos, argumentamos que os sacrifícios revelam dois aspectos importantes do funeral:
o primeiro refere-se a centralidade das libações com sangue para a comunicação com
os espíritos dos ancestrais. O segundo relaciona-se às mudanças e permanências desta
prática, decorrentes da presença europeia na região. 466
A prática de sacrifícios humanos nos sepultamentos em Serra Leoa não apare-
ceu nos relatos dos séculos 15 e 16 de autores como Duarte P. Pereira (1480), Valentim
Fernandes (1506) e André Almada (1594). Estes relatos, mencionaram apenas sacri-
fícios de animais. Entretanto, a partir de meados do século 17, os sacrifícios na Serra
Leoa apareceram nos relatos de Baltazar Barreira (1606-1608), Manuel Álvares (1615)
e André Donelha (1625). Nessas descrições sacrificavam-se algumas esposas do “rei” e
pessoas escravizadas em Serra Leoa. A ausência dos sacrifícios humanos nas descrições
do início do século 16 pode indicar a ausência dessa prática na região. Neste caso,
argumentamos que houve uma alteração nas práticas de sepultamento e nos materiais
empregados nos sepultamentos em Serra Leoa, provocada por eventos internos e exter-
nos. Segundo Roberth Daylon, alterou-se a prática de sacrifício na Serra Leoa por causa
da “conjunção entre a consolidação do tráfico atlântico e a chegada dos Mane-Sumba
[que] transformou os indivíduos escravizados em bens de prestígio” (DAYLON, 2022,
p. 92). Deste modo, moradores passaram a incluir pessoas escravizadas entre os bens
enterrados com os mortos, a partir do fim do século 16.
Por fim, os moradores faziam sacrifícios para os espíritos dos ancestrais sobre
objetos específicos, chamados de china na região dos rios Cacheu e Grande e de corofins
na Serra Leoa. Em termos materiais, as chinas eram esculturas de madeira com formato

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de forquilha fincada no chão ou antropomórfico. A colocação de oferendas na forma de
alimentos, libações e sacrifícios sobre ou junto às chinas e corofins no local do enterro ou
na localidade onde a pessoa morava ativava as forças dos espíritos dos ancestrais. Depois
do sepultamento, era comum continuar oferecendo comida, libações, sacrifícios e panos
para o ente querido falecido, por meio das chinas. Na Serra Leoa, as pessoas realizavam
sacrifícios anuais de galinhas e de cabras aos espíritos dos ancestrais, dividiam a carne
entre os parentes, e, por fim, colocavam os ossos juntos à china (FERNANDES, 1507,
p. 732). Na região dos rios Cacheu e Grande, em 1616, quando precisavam consultar
os espíritos, as pessoas levavam uma galinha para o jambacousse, que, por sua vez, fazia
o sacrifício na china, se comunicava com o mundo invisível e apresentava uma solução
para os consultantes (ÁLVARES, 1616, p. 63).
As pessoas sacrificadas juntamente com o rei tinham a função de servi-lo na
outra vida. Os cavalos sacrificados tinham a mesma finalidade. Segundo os missioná-
rios, quando o rei de Bissau manifestou interesse no batismo, declarou que até aquele
momento era costume enterrar na sepultura do rei, de 40 a 50 pessoas, um cavalo e a
mais preciosa de suas alfaias. O rei ainda explicou que aqueles sacrifícios eram neces-
sários para o serviço dele no outro mundo. Apesar dos esforços dos missionários para
que o rei desistisse dos sacrifícios, os organizadores do sepultamento do rei seguiram a
tradição (PORTUENSE [1696] apud MOTA, 1974, p. 101; 105). A lógica do sacríficio
era clara e tinha que ser mantida para que o rei fosse servido na outra vida e pudesse
ajudar aos membros da comunidade que ficavam.

A MATERIALIDADE DO TÚMULO, ESQUIFES E COVAS

A última parte do rito trata dos sepultamentos, que incluía o transporte do


morto para o local do enterramento e a organização dos materiais que o acompanha-
riam na outra vida. Consideramos que, a escolha dos locais de enterramento, os tipos
de artefatos que se usavam para transportar o morto, a arte tumular e os objetos co-
467 locados dentro e fora dos túmulos, eram parte dos acordos com espíritos ancestrais e
a comunidade. Argumentamos que semelhante a outras sociedades africanas, como o
Egito Antigo, os materiais e pessoas escolhidas para acompanhar os governantes esta-
vam relacionados com a relevância da pós-vida e o poder dos espíritos dos ancestrais
sobre os vivos.

Locais do Enterramento

Na região dos rios Cacheu e Grande as pessoas eram, em geral, enterradas


na floresta, em diferentes locais, obedecendo a distribuição hierárquica dos espaços
destinados aos mortos. Manuel Álvares fez uma descrição etnográfica única sobre se-
pultamentos na região. Apesar do preconceito que carregava, Álvares observou que o
local do enterro dependia do status de cada pessoa: “A gente ordinária [de Bissau] tem o
seu adro em parte mais remota do real e dos nobres; mas todos ficam no mato.” Igual-
mente, os Banhuns enterravam na floresta: “Logo o vão enterrar no mato, carregado de
todo o precioso, que se lhe acha com os panos, etc.” (ÁLVARES [1615] apud MOTA,
1974, p. 60; 63). Ou seja, as pessoas comuns eram enterradas distante dos governantes,
mas todas eram enterradas na floresta, porque este era o local onde residia a força dos
espíritos ancestrais.
Na região do rio Grande, moradores de Bissau enterraram o rei Bacamapolo
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Có na floresta, em espaço exclusivo para governantes. Quatro meses após o falecimen-


to, no dia 11 de junho de 1696, o bispo e os missionários recrutaram dois “fidalgos”
para lhes guiarem ao referido túmulo. O local ficava a seis quilômetros da fortaleza
de Bissau, numa área de floresta: “dentro do mato, debaixo de umas grandes árvores,
achamos o gentílico cemitério”. Teixeira da Mota (1974, p. 25) apresenta duas hipóteses
sobre o local do enterro dos governantes. A primeira hipótese foi apresentada por um
português que vivia em Bissau e sugeriu que não havia um cemitério próprio dos reis
de Bissau, pois, enterravam-se os cadáveres onde os "Irãs" indicassem. Por outro lado,
moradores de Bissau informaram que o local chamado “Enterramento”, em Bissau, era
o local de onde se enterravam os reis de Bissau que faleceram mais recentemente e não
os antigos.
Além do cemitério do governante, que ainda não se sabe onde ficava situado,
havia outro perto dali, com covas com compartimentos nas quais se colocavam pessoas
sacrificadas. Assim, segundo este missionário, as covas eram organizadas por gênero,
pois os homens estavam “apartados”. Adicionalmente, ele também viu um sepulcro
com um cavalo, um boi e um rapaz sacrificados. Não fica claro se este outro local de
enterramento era apenas para pessoas sacrificadas ou para outras pessoas da alta hierar-
quia social.
Na Serra Leoa, por sua vez, os sepultamentos aconteciam, geralmente, no
ambiente doméstico para as pessoas comuns e em ambientes públicos para governantes.
No início do século 16, moradores enterravam seus entes nas residências: “costumam
se enterrar dentro de suas casas” (FERNANDES, 1958 [1506], p. 731). Almada confir-
mou esta prática no final do século 16: “o costume de seus enterramentos é enterrarem-
-se dentro das próprias casas”. Entretanto, os governantes eram enterrados em locais
públicos: “os reis se enterram fora da aldeia, ao longo da estrada, porque dizem que
como é pessoa real e administrou justiça, que se não há de enterrar senão em lugar pú-
blico” (ALMADA, 1964 [1594], p. 352). Além das estradas, enterravam-se alguns reis
no leito dos rios para proteger os bens enterrados dele e reforçar a ligação de seus súditos 468
com o território. Segundo Álvares, “grandes reis eram enterrados a noite em leitos de
riachos que iam para o interior, na lama, por assim dizer, ou em riachos de água doces
depois que o fluxo de água era desviado para outro curso” (ÁLVARES, 1990 [1615], v2
c 8, p. 6-7). Neste sentido, a norma era enterrar pessoas comuns dentro de suas casas,
enquanto se reservava os espaços públicos aos governantes para mantê-los em evidência
e proteger os bens de violadores de túmulos.
Por fim, pessoas que infringiram as normas sociais (mulheres adúlteras, co-
medores de alma e ladrões) não recebiam cerimônia fúnebre e nem panos para cobrir
o corpo, como era o costume. Além disso, estas pessoas condenadas socialmente não
eram enterradas. Seus corpos eram colocados sobre uma torre ou formigueiro de ba-
gabaga para serem devorados pelas formigas, até não restar “mais que os ossos limpos”
(DONELHA, [1625], p. 104). O corpo desses indivíduos também podia ser deixado
em outros lugares públicos para serem comidos por animais (ALMADA, 1964 [1594],
p. 349; ÁLVARES, 1990 [1615] v 2, c 3, p. 2-3). A proibição de cerimônia funerária
para as pessoas condenadas era parte do conjunto de punições, que incluía a negação
dos ritos que poderiam garantir a pós-vida (ALVARES [1615] apud MOTA, 1974, p.
60). Essa norma era seguida na região dos rios Cacheu, Grande e Serra Leoa. A Figura 3
mostra uma alta torre construída por formigas, na Guiné-Bissau. Apesar de a fotografia

Goiânia, v. 21, n.2, p. 453-477, ago./dez. 2023.


ser do século XX, a imagem da bagabaga sugere como seriam os formigueiros onde
algumas pessoas tinham seus corpos deixados, sem as honras do funeral, na região, nos
séculos 16 e 17.

Figura 3: Fotografia de Bagabaga ou formigueiro da Guiné Bissau


Fonte: Fotógrafo não identificado. Instituto de Investigação Científica Tropical/ Arquivo Histórico
469 Ultramarino. No. Acesso: AGU/DD0416.
Em suma, as fontes dos séculos 16 e 17 não indicam precisamente o local
dos enterramentos, apenas a referência aos espaços, como florestas, casas, leito de rios e
torres de formigueiros. Assim, identificamos que a escolha do local do enterro seguia as
seguintes orientações: posição social da pessoa, indicação dos espíritos e proteção dos
túmulos dos violadores

Tumbas

O transporte do corpo do morto variava pouco na região, sendo que os artefatos


dos governantes eram mais sofisticados. O tipo mais comum de traslado do morto era
uma armação feita de ripas de madeira amarradas na parte superior e inferior para ter
sustentação e manter o corpo no centro. Os portugueses que escreveram sobre os ritos
funerários chamavam tais esquifes ou caixão descoberto, de “tumbas”. Os Cassangas fa-
ziam uma estrutura de madeira, colocavam o morto depois os cobria com panos pretos:
“E é que quando morre algum, antes de o enterrarem, depois de posto em uns paus que
servem de tumba, cobertos com panos negros” (ALMADA, 1594, p. 294. Grifo meu).
Os Banhuns faziam tumbas semelhantes aos Cassangas, que eram carregadas por quatro
pessoas: “(...) carregam o defunto logo quatro gentios em umas grades de pau, ao modo de
tumba, e às vezes o pano com que morreu vestido (...)” (ÁLVARES, 1615, p. 29).
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Figura 4. Tipo de transporte feito de madeira para transportar mortos na Guiné-Bissau. Ilustração feita
a partir dos relatos
Fonte: Portuense ([1696] apud MOTA, 1975, p. 62).

Teixeira da Mota (administrador colonial e historiador português) encomen-


dou a gravura da Figura 4 para ilustrar uma parte do relato seiscentista de Manuel
Álvares relativa à Bissau, publicado em 1974. Teixeira da Mota publicou este e outros
relatos de europeus e também cartas do rei de Bissau em “As Viagens do bispo D. Frei
Vitoriano Portuense à Guiné e a cristianização dos reis de Bissau” (1974), obra que trata
dos ritos funerários e políticas diplomáticas entre Bissau e Portugal, no final do século
17. A Figura 3 refere-se ao tipo de tumba que o povo Papel usava para transportar os 470
mortos. Consistia em armação com oito varas em cada lado e três em cada extremida-
de. Para o lastro, havia 16 ripas em posição horizontal, separadas em pares pelas oito va-
ras laterais. Por cima das 16 ripas horizontais, duas ripas em formato de X dava rigidez
à estrutura. Por baixo das 16 ripas horizontais, outras três varas maiores em formato
roliço, distribuídas uniformemente, serviam para os carregadores sustentarem a tumba.
Toda a armação era amarrada com fibra vegetal.
Tudo indica que o povo seguia o modelo das tumbas dos governantes para
fazerem as suas. A tumba do rei de Bissau era de madeira grossa, com dois níveis de
compartimentos. Na parte superior colocava-se o rei e, no compartimento inferior,
colocava-se um bode e um cachorro. A tumba era ornamentada com panos, colchas,
roupas importadas, cabeças e caudas de vacas sacrificadas no “choro”. O padre Álvares
registrou essas informações da seguinte forma:

E morrendo um rei grande dos Papeis, a primeira coisa que fazem é ordenar uma grande
gaiola de canas grossas, a qual tem seu repartimento em baixo, aonde vai um chibarro
[bode] macho de grandeza espantosa, e na outra um grande cachorro. Sobre esta gaiola de-
baixo, que é maior, vai outra entretecida com a mesma, em que vai metido o rei, mui bem
vestido à portuguesa, se o rei é de terras ou portos onde residem brancos, lavando-o primeiro

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com vinho, cobrindo a tal gaiola com vários capins, colchas e outra roupa muito fina. Na
testa vão duas ou três cabeças com os rabos das primeiras vacas que matam. Correm com
esta invenção de tumba dois e três dias a aldeia, com grandes feitos de choros verdadeiros
(ÁLVARES [1615] apud MOTA, 1974, p. 60).

Em suma, esquifes da região dos rios Cacheu e Grande eram de madeira. Seus
modelos dependiam da condição social do morto, sendo que possuíam uma estrutura seme-
lhante. Em relação à Serra Leoa, não há relatos sobre artefatos de transporte de cadáveres.

Túmulos

A tarefa de construir os túmulos e depositar os objetos dentro e fora da cons-


trução cabia a pessoas especializadas neste assunto. As pessoas habilitadas para realizar
o enterramento, escavavam o solo no local que o jambacousse indicasse para ser a nova
morada na pós-vida. No caso do enterramento dos governantes da região dos rios Ca-
cheu e São Domingos, colocava-se na parte interna o morto e seus bens. Os homens
habilitados forravam a cova com panos variados, em seguida, colocavam o corpo do
morto envolto em muitos panos. Depois, distribuíam as pessoas e os animais sacrifi-
cados ao lado do corpo do governante. A distribuição dos sacrifícios atendia o desejo
do morto. O rei de Bissau tinha quatro pessoas enterradas com ele: uma pessoa do
lado de cada braço, uma acima da cabeça e outra abaixo dos seus pés. Adicionalmente,
depositavam objetos que o morto acumulou durante a vida e os presentes dados nas
cerimônias fúnebres. Nesta cova, como já discutimos acima, havia pessoas sacrificadas,
insígnias de poder (armas, panos importados, joias, contas, corais, instrumentos musi-
cais, dentre outros). Ato contínuo, fechavam a cova e colocavam dois objetos de cerâ-
mica produzidos pelas ceramistas locais para servir ao morto: um “pote feito de barro
da terra, mui curiosamente lavrado, com um texto em cima, aonde lhe põem vinho”
(ÁLVARES [1615] apud MOTA, 1974, p. 63). Em termos de formato, a cova do rei de
471 Bissau era subterrânea, redonda ou côncava e profunda, como registram os religiosos
que estiveram em Bissau (Fr. FRANCISCO DA GUARDA [1694] apud MOTA, p.
144; PORTUENSE [1696] apud MOTA, 1974, p. 108).
Por fim, dava-se início à construção da parte externa do sepulcro, onde o
morto continuaria a receber as homenagens da família e da comunidade. O sepulcro
refere-se às obras feitas para permanecerem em cima ou envolverem as sepulturas nos
locais onde as pessoas são enterradas. O sepulcro, também chamado de arte funerária,
é uma forma de construção, cujos símbolos fazem parte da cosmovisão de determinado
grupo social, considerando o contexto histórico, social e econômico. Na região do rio
Grande, usava-se madeira e panos para preparar o sepulcro. Pessoas comuns tinham
seus sepulcros na floresta, longe dos sepulcros dos nobres. Na região de Cacheu, um
relato descreve que pessoas comuns faziam um cerco com uma esteira e no meio deste
cerco, colocavam utensílios para o morto, pendurados em um pau, como uma ‘tagarra’
para comer; um cabaço para servir bebida e o vaso de azeite para untar, como registrou
Álvares ([1615] apud MOTA, 1974, p. 63). No caso do rei de Bissau, a construção era
feita de madeira e coberta de palha e designava-se uma pessoa para acender o fogo ao
lado do sepulcro todas as noites. Outras pessoas com alto poder financeiro, ‘como reis
ou fidalgos”, matavam, cavalos, vacas e cabras, em seguida, armavam “o nicho ou ermi-
da com as pontas e os cabos” (ÁLVARES [1615] apud MOTA, 1974, p. 63). Assim, no
antigo cemitério de Bissau, ossos de animais e de pessoas faziam parte da arte funerária
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da região.
Em Serra Leoa, se construía um altar para homenagear os espíritos ancestrais
acima dos túmulos dos indivíduos comuns, em suas casas, ou próximo aos túmulos
dos nobres, e em lugares públicos. Faziam uma cova grande com tamanho suficiente
para enterrar o morto, bens, pessoas e animais (ÁLVARES, 1990 [1615], v2 c 8, p.
6-7). O morto era posto na cova com os bens e as pessoas e animais sacrificados para
seu velório. A exceção aparece na descrição de Donelha onde os bens de valor e prestígio
eram queimados diante do morto e as cinzas eram postas em seu túmulo junto com o
morto deitado em sua cama, os mantimentos e os sacrifícios (DONELHA, [1625], p.
115). Fazia-se cova semelhante a uma porta para a terra não tocar o corpo do sepultado
(DONELHA, [1625], p. 115)). Para o sepulcro, construía-se uma casa ou templo em
forma de guarda-sol. No caso das famílias mais abastadas, cobria-se a casa com ricos
panos, esteiras e adornos de valor retirados da fortuna do falecido. Por outro lado, nos
sepulcros das pessoas comuns utilizava-se, palha e panos mais simples (ALMADA,
[1594], p. 352; ÁLVARES, 1990 [1615], v2 c 8, p. 6-7). Nos sepulcros posicionava-se
a china esculpida em homenagem ao indivíduo (FERNANDES, [1506], p. 731) e em
alguns relatos a própria estrutura do sepulcro era chamada de china (BARREIRA,
[1607], p. 236). Sepulcros no local de sepultamento ou próximos dele, serviam como
altar, onde se ofereciam sacrifícios aos mortos durante todo o período de luto, no ani-
versário de sua morte e em outras ocasiões especiais.

CONCLUSÃO

Parte 1.

Este artigo trata das práticas funerárias no Baixo Casamansa, uma aborda-
gem essencial para auxiliar pesquisas futuras sobre este tema na África Ocidental e nos
contextos das diásporas africanas nas Américas. Devido à imensa presença de pessoas 472
da região do Baixo Casamansa nas Américas, este texto poderá auxiliar pesquisas ar-
queológicas comparadas nos referidos países americanos para averiguar se as origens
das práticas funerárias de pessoas africanas e descendentes eram procedentes daquela
região. Nos séculos 16 e 17, temporalidade deste artigo, comerciantes levaram pessoas,
de forma forçada, da região entre o Baixo Casamansa e a Serra Leoa para diferentes
portos das Américas, principalmente no Peru, Colômbia, México, Portugal, Espanha
e outros lugares (BÜHNEN, 1993; WHEAT, 2011; NEWSON; MINCHIN, 2007).
Nos séculos 18 e 19, um contingente expressivo de pessoas dessa região foi transportado
para o Brasil e outras regiões das Américas (CARNEY, 2004; BARROSO JUNIOR,
2009; HAWTHORNE, 2010).
No Brasil, por exemplo, as pesquisas históricas e arqueológicas de cemitérios
de escravizados ainda são poucas e algumas conseguem inferir sobre o contexto de uso
de objetos específicos, como as contas de vidro encontradas nos corpos das sepulturas
de pessoas escravizadas. Na pesquisa arqueológica, o método mais utilizado consiste,
de um modo geral nos seguintes passos: 1) Identificar a predominância demográfica
de um grupo africano que vivia em determinada localidade na diáspora; 2) analisar
os artefatos presentes nas inumações desta localidade; e, finalmente, 3) comparar os
objetos encontrados nos cemitérios de escravizados da localidade com os objetos da

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sociedade africana à qual o grupo pertencia (BRITO, 2023, p. 168-182). Neste sentido,
os estudos de contas de vidro, encontradas nas sepulturas de escravizados em igrejas em
Salvador (Bahia) fazem referências aos grupos nagô-iorubá e ao catolicismo na cidade
(TAVARES, 2006, p. 64-69). Outros estudos sobre cemitérios de escravizados no Rio
de Janeiro identificaram esparsas semelhanças com grupos da África centro-ocidental
(PEREIRA, 2006).
Pesquisas históricas mostram que africanos realizavam funerais africanos no
Brasil (REIS, 2022). Contudo, em alguns casos, é difícil identificar a origem de um gru-
po africano nas escavações devido à forma como se realizavam os sepultamentos no con-
texto da escravidão. Em contextos urbanos do Brasil, em geral, os enterros se davam sob o
controle das igrejas que determinavam onde e como enterrar pessoas escravizadas (REIS,
2022). Muitas vezes, quando o enterro era de responsabilidade dos senhores, eles abando-
navam corpos de escravizados nas ruas e portas de igrejas, como ocorreu no Valongo no
Rio de Janeiro (NARA JÚNIOR, 2019) e no Campo Santo em Salvador (REIS, 2022).
Assim, devido aos limites de recursos, em alguns casos, dificilmente a pessoa escravizada
poderia levar consigo os bens, como ocorria na costa ocidental africana. A forma desuma-
na de enterrar pessoas escravizadas no contexto escravista brasileiro dificulta a tarefa de
identificar os grupos de origem dos mortos e dos artefatos que carregavam.
Assim, somente pesquisas comparadas, entre práticas de sepultamento entre
os dois lados do Atlântico podem responder esta pergunta: antigas práticas funerárias
e materiais do Baixo Casamansa influenciaram a forma de enterrar os povos daquela
região na diáspora africana nas Américas? Este texto é um contributo importante para
o debate sobre o estudo das práticas funerárias na África Ocidental e para futuras pes-
quisas sobre práticas funerárias na diáspora africana.

Parte 2.

A maior parte dos estudos acadêmicos sobre costumes das sociedades atlân-
473 ticas africanas, onde havia moradores europeus, examinam como as pessoas nascidas
localmente aprenderam os costumes europeus e abandonaram suas tradições. Contudo,
mostramos neste artigo que as pessoas do Baixo Casamansa, em geral, foram alterando
a cultura material empregada nos sepultamentos, sem perder elementos centrais das
práticas funerárias. Isso incluía o anúncio extensivo da morte, o interrogatório do mor-
to, as cerimônias funerárias abertas para toda a comunidade com banquete, a presença
de materiais para acompanhar o morto, e, finalmente, a preparação do enterro, incluin-
do o que colocavam dentro e fora da sepultura. Portanto, as pessoas não abandonaram
as tradições locais por causa do contato com a cultura europeia.
Apesar das semelhanças nas práticas funerárias da região, havia variações,
pois, nenhuma cultura é estática ou engessada. As principais variantes que identifica-
mos eram os materiais levados pelo morto e a ausência de alguns procedimentos em al-
gumas localidades. Por exemplo, na região do rio Grande, desde o século 17, governan-
tes adicionaram novos materiais aos enterros, como objetos importados da Europa em
seus sepultamentos; e a partir do século 18, alguns governantes passaram a substituir
sacrifícios humanos por animais. Enquanto em Serra Leoa, onde não havia registro de
sacrifícios humanos até o século 17, os moradores passaram a adotar este costume, sob
influência dos manes e do mercado de escravizado. Essas transformações resultam do
fato de a região ser um espaço dinâmico e plural, onde as pessoas intercambiavam e
ressignificavam práticas, saberes e objetos empregados nas sepulturas.
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Ao introduzir novos objetos do mercado Atlântico em seus túmulos, pessoas do


Baixo Casamansa incorporaram novas dinâmicas em suas práticas tradicionais, ao invés de
substituí-las. Assim, ao dar continuidade aos sacrifícios nos sepultamentos, as pessoas da re-
gião se recusaram a adotar os costumes impostos pelos europeus, mesmo quando adotaram
o cristianismo. Em suma, as continuidades e transformações na materialidade das cerimô-
nias de sepultamento no Baixo Casamansa revelam as agências das populações locais. Essas
pessoas se adaptaram às novas dinâmicas introduzidas pelo mercado Atlântico, incorporan-
do-as e rejeitando-as, a partir da reformulação de seus próprios valores e interesses.

MATERIAL CULTURE IN WEST AFRICAN FUNERAL PRACTICES

Summary: this article analyzes the materiality of funeral practices in Lower Casamance in
the 16th and 17th centuries. In this region, the importance of life after death was the guiding
principle of funeral practices. The article presents different historical contexts in which funeral
rites occurred and the materials the dead carried to the other world. This analysis of the burial
rite and practices allows us to understand a series of political, economic, social, and cultural
articulations of local realities. Ceremonial practices in the Cacheu and Sierra Leone regions
were different. Despite this, we argue that, in both areas, burials were at the center of socia-
bility relationships between the living and ancestors and between people from the same group.

Keywords: Graves. Material Culture. Insignia of Power. Serra Leoa. Bissau. Cacheu.

LA CULTURA MATERIAL EN LAS PRÁCTICAS FUNERARIAS DE ÁFRICA


OCCIDENTAL

Resumen: este artículo analiza la materialidad de las prácticas funerarias en la Baja Ca-
samance en los siglos 16 y 17. En esta región, la importancia de la vida después de la muerte
era el principio rector de las prácticas funerarias. El artículo presenta diferentes contextos 474
históricos en los que ocurrieron los ritos funerarios y los materiales que los muertos llevaban
al otro mundo. Este análisis del rito y las prácticas funerarias nos permite comprender una
serie de articulaciones políticas, económicas, sociales y culturales de las realidades locales.
Las prácticas ceremoniales en las regiones de Cacheu y Sierra Leona eran diferentes. A pesar
de esto, sostenemos que, en ambas regiones, los entierros estaban en el centro de las relaciones
de sociabilidad entre los vivos y los antepasados y entre personas del mismo grupo.

Palabras clave: Tumbas. Cultura Material. Insignias de Poder. Serra Leoa. Bissau. Cacheu.

Notas
1 Para facilitar a compreensão de leitores não especializados na ortografia seiscentista e setecentista,
atualizamos a grafia dos excertos para a língua portuguesa.
2 O termo “sape” era uma categoria externa de identificação dos grupos que habitavam a região entre
a Ilha dos ídolos e o Cabo do Monte. A terminologia não corresponde a uma identidade local ou à
termos de autoidentificação e não pode ser utilizada para atestar de antemão uma coesão do grupo ou
de suas práticas culturais. Apesar disso, o termo continua tendo valor historiográfico na medida em que
agrupa uma série de descrições documentais sobre a região. A nomenclatura generalizante foi descrita
para descrever povos Temnes, Bolões, Limbas, Bagas, Itales, Tagunchos, Casses, Coyas, entre outros.
3 Uma légua portuguesa equivale a 5km.
4 Referimo-nos ao saleiro de marfim do Seattle Art Museum, Estados Unidos. Em 1968, esta peça foi

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doada ao museu por Nasli and Alice Heeramaneck. Número da peça no Inventário 68.31 [número
48 no catálogo de Fagg e Bassani, 1988].
5 A punição da pessoa acusada de provocar a morte variou conforme o período e a intensificação do
tráfico de escravizados. Em 1616, o padre Manuel Álvares notou que o morto indicava a pessoa
acusada de cometer a morte. Logo, o filho do homem era escravizado (ÁLVARES, 1616, p. 29]. Na
região dos rios Cacheu e Grande com o aumento das demandas por escravizados o sistema jurídico
das sociedades locais foi adaptado para comutar penas de morte em penas de escravização das pessoas
e de suas famílias (FREITAS, 2016, p. 127).

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