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Ler história | N.º 59 | 2010 | pp.

205-225

A REPÚBLICA NO SEU ESTADO COLONIAL: COMBATER A ESCRAVATURA,


ESTABELECER O «INDIGENATO»

205
Maria da Conceição Neto
| Universidade Agostinho Neto (Luanda)

Liberdade, igualdade e fraternidade são, por definição, inconciliáveis com


a situação colonial e não há volta a dar-lhe: ou termina esta ou definham
aquelas. A passagem ao regime republicano em Portugal trouxe muito debate
e legislação mas pouca novidade às doutrinas coloniais já correntes na recta
final da monarquia constitucional, ou melhor, as divergências sobre como
governar as parcelas do império corriam transversais aos campos monárqui-
co e republicano. Em ambos havia detractores e defensores dos métodos e
resultados da nova expansão em África, mas não se punha em causa o direito
de subjugar e administrar, com a violência necessária, povos considerados
inferiores. Enquanto alguns remetiam as razões da dita inferioridade para
a genética, logo irremediável, outros confiavam na possibilidade de (lento)
progresso civilizacional, sob a sábia orientação dos colonizadores. Mas mesmo
essas diferenças filosóficas se diluíam no terreno, na hora das campanhas
militares, do compulsivo recrutamento de mão-de-obra ou da cobrança de
impostos àqueles que leis específicas iam enredando, progressivamente, na
categoria de «indígenas», em Angola, Moçambique e Guiné.
Além da crescente historiografia sobre o império português, o acesso via
internet às actas das sessões plenárias parlamentares e a publicações da época
veio facilitar, enormemente, o estudo das opiniões e argumentos cruzados na
arena política, sejam manifestações ideológicas, doutrinas coloniais ou medidas
políticas e económicas1. O presente artigo procura apenas chamar a atenção para
fontes mais «locais» e avaliar as consequências da viragem de 1910 em Angola,
destacando dois pontos centrais da agenda colonial republicana: a abolição
da escravatura (por vezes diluída na questão da mão-de-obra) e a gestação do
«indigenato», consagrado em 1926 num estatuto político, civil e criminal que
definiu o essencial da política de segregação vigente até 19612.

1 Dois guias essenciais: Alexandre, Valentim, A Questão Colonial no Parlamento (1821-1910), Lisboa, Assembleia
da República/D. Quixote, 2008; e Proença, Maria Cândida, A questão colonial no Parlamento (1910-1926), Lisboa,
Assembleia da República/D. Quixote, 2008.
2 Publicado depois do golpe militar de 1926, o Estatuto foi obra do regime republicano que o Estado Novo aprimorou:
«Estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique» (Decreto 12.533, 23-10-1926); incluindo
a Guiné em 1927 (Decreto 13.698, 30-11-1927); ligeiras modificações em 1929 (Decreto 16.473, 6-02-1929) e um
«Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e não Indígenas» (Decreto16.474, 6-02-1929);
após 1930, regulamentações locais definiram melhor o «indígena»; finalmente, em 1954, «Estatuto dos Indígenas
Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique» (Decreto 39.666 20-05-1954).
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Do ponto de vista de Angola, o período 1910-1926 não foi, certamente,


de declínio imperial, por mais confusa que fosse a situação em Portugal:
campanhas militares, incluindo uma de dimensão sem precedentes, no sul,
206 para subjugar os Ovambo; generalização do «imposto de cubata», depois
«imposto indígena»; avanço de caminhos-de-ferro e expansão da rede de
estradas, com recurso a trabalho forçado, muitas vezes gratuito; entrega
do nordeste a uma companhia mineira que ali consolidou a ocupação
económica e política; e um renovado interesse pela imigração de colonos
portugueses e outros europeus, confirmando a Angola o destino de «colónia
de povoamento»3.

Inimigos, inimigos, império à parte


Os períodos de governo de Henrique de Paiva Couceiro (1907-1909)
e José Norton de Matos (1912-15 e 1921-24) ilustram a possibilidade de
convergência de monárquicos e republicanos em aspectos chave da adminis-
tração colonial, a despeito de a experiência africana de ambos ter sido muito
diferente e de, na metrópole, terem militado em campos políticos opostos.
Paiva Couceiro, homem de expedições geográficas e campanhas militares,
conhecia Angola desde 1889, enquanto Norton de Matos a «descobriu»
como Governador, tendo antes moldado a sua visão colonial no contacto
com a Índia sob domínio britânico. Se a conquista militar parecia mais
ao jeito de Couceiro e se Norton foi o executor convicto de reformas que
expandiam a administração civil, não deixou este de reprimir militarmente
a revolta no «Congo Português» e de preparar a conquista do Cuanhama
ainda independente, realizada pelo seu sucessor em 19154.
Entre Couceiro e Norton, sendo verdade que o segundo pôde realizar
incomparavelmente mais, ressaltam afinidades: os ambiciosos e irrealistas
projectos estatais de povoamento europeu do «planalto colonizável» no
centro de Angola; a tentativa de valorização da agricultura e do campesinato

3 Clarence-Smith defendeu a tese do declínio baseando-se na situação financeira e no comércio com as colónias mas,
como Valentim Alexandre tem sublinhado, há outros elementos a ter em conta. Clarence-Smith, Gervase, The Third
Portuguese Empire, 1825-1975. A study in Economic Imperialism, Manchester, Manchester University Press 1985
[ed. em Português 1991] e, Alexandre, Valentim, «Situações Coloniais: II – O Ponto de Viragem: As Campanhas de
Ocupação (1890-1930)», História da Expansão Portuguesa., vol. 4, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 182-211. Uma
boa síntese da história de Angola neste período: Freudenthal, Aida, «Angola», O Império Africano 1890-1930, coord.
A. H. Oliveira Marques, Lisboa, Estampa, 2001, pp. 259-467.
4 Em 1911 (Decreto 27-05-1911) foram estabelecidas em Angola as circunscrições civis, com Regulamento por Portaria
Provincial (8-08-1911) e novo Regulamento em 1913 (P.P. 375, 17-04-1913) já com Norton de Matos. A espinhosa «questão
do Cuanhama», agravada pelo receio do avanço alemão, levou Portugal a uma mobilização extraordinária de recursos
para derrotar Mandume Ndemufayo. Para campanhas militares Pélissier, René, História das campanhas de Angola.
Resistências e revoltas 1845-1941, 2 vols., Lisboa, Estampa, 1986. Um testemunho pessoal: Keiling, Mons. Luiz Alfredo,
Quarenta anos de África, Fraião (Braga), Missões de Angola e Congo, 1934, pp. 154-74.
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africano; o papel central do imposto colectado aos «indígenas», pela impor-


tância política (símbolo da sujeição a Portugal) e «civilizadora» (forçando
a monetarização da economia rural e o trabalho assalariado), além do seu
inegável valor financeiro; a pressão sobre o governo central para que se 207
retivesse parte daquele imposto para melhoramentos locais, legitimando-o
aos olhos dos contribuintes (a Lei Orgânica de 1914 assim estabeleceu, sem
efeito prático). Nem o monárquico Couceiro nem o republicano Norton
encontraram eco suficiente nos corredores ministeriais de Lisboa, a não ser
no que convinha ao reforço do controlo militar e administrativo, e ambos
terminaram os seus mandatos frustrados5.
As relações do Estado com a Igreja Católica na importante frente mis-
sionária revelam também a continuidade no projecto imperial português,
passados os primeiros momentos de surto anticlerical republicano que, em
Angola, pouco extravasou dos principais centros urbanos. A agressividade
verbal, directa e na imprensa, a par de encerramentos de paróquias e da
saída de Luanda em 1911 de congregações femininas que trabalhavam no
ensino (Irmãs de S. José de Cluny) e nos hospitais (Irmãs Hospitaleiras),
criaram algum pânico entre o pessoal das missões católicas no interior. Houve
também casos de missionários agredidos ou detidos por cidadãos exaltados
e missões temporariamente evacuadas. Mas, mesmo no auge da agitação, o
maçónico Partido Reformista de Angola, certamente não «reaccionário, beato
ou clerical», opunha-se no seu jornal aos excessos, alertando para os acordos
internacionais protectores da missionação cristã e para o indesejado avanço
das missões protestantes que adviria da perseguição às missões católicas.
Estas, consideradas nas leis e no orçamento «como instituições auxiliares
da soberania portuguesa em África», deviam ser tratadas como caso à parte
no confronto com a Igreja. As reacções dos leitores de A Reforma terão sido
de tal índole que obrigaram a reiterar, em editorial, «os nossos princípios
arreligiosos» e a convicção sobre «a acção desnacionalizadora, imoral e
dissolvente» das missões, cujo pretenso altruísmo se traduzia em «dominar,
subjugar, mercadejar e perverter a consciência» e explorar «ignobilmente»
o trabalho dos convertidos. Compreendendo «a indignação da opinião

5 De Norton de Matos, além das Memórias e trabalhos da minha vida (2.ª ed., 4 vols Lisboa, Editora Marítimo Colonial,
1944-45), ver A Província de Angola (Porto, Maranus, 1926).
Couceiro publicou em 1910 um relatório a que Norton não poupou elogios no preâmbulo à reedição póstuma (Couceiro,
Henrique de Paiva, Angola (Dois anos de Governo Junho 1907-Junho 1909). História e comentários, [1910], 2.ª ed.
Lisboa, Edições Gama, 1948). Sobre ambos existem vários ensaios biográficos em Portugal e, para Norton, também
Wheeler, Douglas, «José Norton de Matos (1867-1955)», in Gann e Duignan (eds), African Proconsuls. European
Governors in Africa, New York, 1978pp. 445-463. Sobre o «planalto colonizável», Neto, Maria da Conceição, «Grandes
projectos e tristes realidades. Aspectos da colonização do planalto central angolano (c.1900-c.1931)», in A África e a
Instalação do Sistema Colonial (c.1885-c.1930), Lisboa, IICT, 2000, pp. 513-525 e o relatório da Missão de Estudos
do tempo de Couceiro em Nascimento, J. Pereira do, Relatório da Missão de Estudos da Colonização do Planalto de
Benguella 1907-1909, Loanda, Imprensa Nacional, 1910.
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pública», o jornal insistia na cautela para não prejudicar internacionalmente


«a jovem República»6.
Ao fazer o balanço poucos anos depois, um autor insuspeito de anti-
208 clericalismo afirmava que as missões não sofreram em Angola «metade dos
infortúnios que temeram quando se ouviu da Revolução de 1910» porque,
apesar de casos pontuais, como a evacuação temporária dos missionários
de Caconda e do Bailundo, as autoridades em geral apoiavam as missões.
E graças ao pessoal vindo dos estabelecimentos encerrados na metrópole,
«as missões atravessaram, antes, uma era curiosa de prosperidade, que era
pena tivesse de ser efémera7». Os Espiritanos, de longe a maior congregação
católica em Angola, instalaram novas missões no Cuando (1911), no Sam-
bo (1912) e nos Bângalas (1913) e várias outras nos anos vinte. A Igreja
Católica viu com ressentimento a perda de privilégios consignada na Lei
da Separação de 1911 mas, quando em 1913 esta se aplicou às colónias
(Dec. 233, 22-11-1913), os governadores coloniais podiam apoiar missões
religiosas que trabalhassem com os indígenas (todas elas), com obrigação
de ensinarem a língua portuguesa. A partir de 1919 as missões católicas
ganharam personalidade jurídica (Dec. 5.239, 10-03-1919) e equiparação às
«missões civilizadoras laicas», com apoio financeiro do Estado (Dec. 5.778,
10-05-1919), situação bem diferente da da metrópole. Embora longe do
favorecimento e apoio do Estado Novo, o poder republicano valorizou o
papel das missões católicas como «civilizadoras» e «portugalizadoras» dos
povos subjugados.
Sublinhar continuidades na política imperial portuguesa não significa
desvalorizar o impacto que a proclamação da República teve em Angola,
quer por medidas finalmente implementadas, quer pelo momento de exal-
tação política e de expectativa de mudança que gerou. Mas o que trouxe
ela, afinal, à grande maioria da população, cuja diversidade se encobria na
designação de «gentios» ou «indígenas»?

A República e o fim da escravatura


No final dos anos setenta, com uma equipa da Televisão Popular de
Angola que trabalhava na Kizenga (entre Ndalatando e Malanje) para uma
série de programas sobre a memória da escravatura e do trabalho forçado,
ouvi pela primeira vez a afirmação taxativa de que só em 1910 tinha sido

6 A Reforma. Orgão do Partido Reformista de Angola, n.º 4 (24-12-1910), p. 1. Ver também os n.º 3 (17-12-1910), p. 1 e
n.º 5 (31-12-1910), pp. 1 e 2. Sobre o PRA, Freudenthal, Aida, «Um Partido Colonial. O Partido Reformista de Angola.
1910-1912», Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 8-9, 1988, pp. 13-57.
7 Correia, Pe. Joaquim Alves, Civilizando Angola e Congo: os Missionários do Espírito Santo no padroado espiritual
português, Braga, 1922, pp. 73-76.
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proibida a escravatura em Angola8. Uma surpreendente informação para


quem fora instruída desde a escola primária salazarista no mito da abolição
da escravatura em 1836, embora já tivesse aprendido, entretanto, que nessa
data apenas foi proibido o tráfico transatlântico dos escravos, não o inter- 209
no, e só várias décadas depois se libertaram oficialmente todos os escravos.
Talvez estivessem os mais-velhos que entrevistávamos a confundir a escra-
vatura antiga com o recrutamento de trabalhadores para S. Tomé ou com
o trabalho forçado nas estradas?... Não, não, estavam a falar de escravos, de
pessoas compradas longe, muitas vezes em criança, que passavam de dono
para dono, vendidas ou oferecidas. Escravos mesmo, «esses que depois da
República foi proibido ter». Estariam eles a falar da sobrevivência de formas
de servidão e escravatura das sociedades africanas? Não, não, isso também
havia alguns, mas aqueles eram mesmo escravos «dos brancos». Verifiquei
posteriormente que era «do conhecimento geral» que o fim da escravatura
fora obra da República…
A memória social estava aqui bem informada e, como noutros casos
sucede, bastaria ter ido ler com atenção os contemporâneos para encontrar
relatos, comentários e denúncias de situações reconhecidas como pura e
simples escravatura. Na primeira década do século XX ocorria ainda a captura
e comércio de pessoas para uso na produção, no transporte e nos serviços
domésticos, tal como existia o «resgate» feito por missionários cristãos,
católicos ou protestantes, que com rapazes e raparigas assim comprados e
libertos iam reforçando as hostes de fiéis e as suas aldeias cristãs. O tráfico
de escravos prosseguia numa vasta zona da África central, embora sem
comparação com a intensidade de outrora9.
A recorrente menção da escravatura em reuniões internacionais com-
prova que o problema não era exclusivo das colónias portuguesas, embora
tenham ganho notoriedade internacional os «serviçais» embarcados para S.
Tomé, muitos deles comprados algures no interior africano como antes se
compravam escravos, transportados como estes sob coacção e sem esperança
de regresso a casa e, com toda a probabilidade, sentindo-se escravos. O facto
de algumas sociedades africanas continuarem a alimentar esse comércio servia

8 A equipa da TPA, chefiada por Henrique Alves (Ritz), já falecido, tinha como operador de câmara Manuel Tomás
(Fininho), natural daquela zona. Dos programas e reportagens da época, feitos com equipamento semi-profissional e
guardados em condições precárias, poucos ou nenhuns existem.
9 O «resgate» tinha um efeito perverso, pois os missionários viam-se identificados como compradores de escravos
e acabavam por alimentar o tráfico que queriam suprimir. Martin, Phyllis M., Catholic Women of Congo-Brazzaville.
Mothers and Sisters in Troubled Times, Bloomington & Indianapolis, Indiana University Press, 2009, pp. 41-50, 67, 82.
Em 1897 na Missão da Huíla «O internato das meninas [era] … frequentado por 175 pequenas … Três quartas partes
delas foram resgatadas pela Missão a seus antigos donos». Brásio, P. António, A Missão e o Seminário da Huíla,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1940, p. 70.
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de desculpa aos compradores e utilizadores, camuflando também formas


mais directas de os obter (raptos, falsa contratação de carregadores etc.)10.
Além da obtenção, transporte e utilização de «serviçais» por métodos
210 que se confundiam com os do anterior tráfico, e do «resgate» contra paga-
mento (a compra, portanto), eram usuais na sociedade colonial as «ofertas»,
geralmente crianças ou jovens mulheres para serviço doméstico. Quando,
em Benguela, as práticas esclavagistas foram denunciadas como grande-
mente responsáveis pela revolta de 1902 no Bailundo, houve protestos de
que o «resgate» não só não era ilegal como era prática corrente. Balthasar
d’Aguiam, conhecido advogado, não via escândalo em se «resgatar» gente
a troco de aguardente e panos, ou trocar armas por géneros e «moleques»,
ou «resgatar» a dinheiro serviçais domésticos, se afinal os que iam para
S. Tomé eram comprados em Angola com aprovação do governo. Aliás, havia
em boas casas de Lisboa muitos rapazes e raparigas enviados de presente
ou para satisfazer pedidos, e o «resgate» chegava a ser acto de humanidade,
dizia, por muitos dos resgatados no sertão serem prisioneiros de guerra dos
Bailundos e Bienos ou acusados de feitiçaria11.
Entre 1904 e 1913, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Luanda
aparecem 87 crimes de cárcere privado ou cativeiro com ofensas corporais
graves, e 40 de práticas de compra e venda de pessoas. O registo destes
crimes decresce após 1906 e a documentação mostra a determinação do
tribunal em puni-los exemplarmente mas, como lembra Adelino Torres, o
Tribunal da Relação funcionava como «Tribunal Supremo» e a maioria dos
casos nem chegaria aos tribunais de Comarca. Ainda em 21 Fevereiro de
1912, num processo por ofensas corporais, se refere a profissão de «captor
de serviçais» como abundante nos «trilhos do sertão»12.
De facto, o combate à escravatura e similares ganhara visibilidade nos
últimos anos da monarquia, graças à guerra no centro de Angola em 1902, aos
protestos em Luanda e Benguela contra a exportação de serviçais (sobretudo
porque fariam falta…) e às pressões internacionais a propósito do cacau de
S. Tomé. Em 1903, contra o «Regulamento» que autorizava a contratação de

10 Segundo um bem informado residente, em 1908 havia na Catumbela duas «agências de emigração» para S. Tomé
(nesse ano, 907 serviçais) e «alguma emigração» para o litoral a sul de Benguela. A maior parte dos serviçais tinha
sido trazida por outros africanos desde as áreas da «Luva [Luba], Lunda e Ganguelas», sendo já muito menos os
do Bié, Bailundo e Huambo. Bastos, Augusto, Monographia de Catumbella, Lisboa, Sociedade de Geografia, 1912,
p. 69. Ver também Duffy, James, A question of Slavery, Oxford, Clarendon Press, 1967; Heywood, Linda M. (1988),
«Slavery and Forced Labor in the Changing Political Economy of Central Angola, 1850-1949», in Miers e Roberts
eds., The End of Slavery in Africa, Madison, Univ. of Wisconsin Press, 1988, pp. 415-436; e a colectânea do Centro
de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Trabalho forçado africano. Experiências coloniais comparadas, Porto,
Campo das Letras, 2006, nomeadamente Jelmer Vos e Douglas Wheeler.
11 Aguiam, Balthasar d’ (org.), A revolta do Bailundo e os Conselhos de Guerra de Benguella, Lisboa, 1903, pp. 14, 15,
17 e 59-60.
12 Torres, Adelino, O império português entre o real e o imaginário, Lisboa, Escher, 1991, p. 202 e todo o capítulo.
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serviçais «até o número suficiente para satisfazer as necessidades de trabalho»


naquela ilha, dezenas de conhecidos cidadãos luandenses subscreveram um
opúsculo de protesto, com frases dramáticas: «Estão autorizados novamente
em Angola os antigos usos condenados pelas sociedades modernas!» e «os 211
portugueses de hoje como os de ontem sustentam com o mesmo ardor
e fé a gloriosa bandeira da emancipação do homem»13. Por outro lado,
as viagens a Angola de Nevinson (1904-1905) Burtt e Hodson (1906) e
Swan (1908) resultaram em tais denúncias que forçaram os beneficiários
dos lucros do cacau a agir e colocaram Portugal em evidência na questão da
escravatura. Nova legislação incidiu sobre repatriamento, bónus, condições
de habitação e saúde nas roças santomenses (Dec. 31-12-1908), e também
reduziu o tempo limite dos contratos e estipulou zonas de recrutamento em
Angola, número anual de trabalhadores, itinerários e estações de descanso
(Dec. 17-07-1909) mas sem liquidar totalmente a questão14.
Em 1911 foi aprovado um «Regulamento Geral do Trabalho dos Indí-
genas nas Colónias Portuguesas» (Dec. 27-05-1911), pouco diferente do de
1899 mas que reduzia os contratos para dois anos, permitia às autoridades
coloniais banirem as exportações de mão-de-obra de certas regiões por
conveniência política ou económica, proibia expressamente o tratamen-
to violento e o uso de correntes, algemas e gargalheiras. Na opinião do
Secretário dos Negócios Indígenas, Ferreira Diniz (e, certamente, Norton
de Matos) o Regulamento era inadequado à colonização moderna: «Não
se exigia [a todos] o certificado de trabalho, não se compelia o indígena
a trabalhar a terra por sua conta e considerava-se como trabalho indígena
unicamente o das fazendas agrícolas». Além disso, «o indígena angariado
pela autoridade tinha o trabalho como uma espécie de serviço militar, de
que se desejava desembaraçar». Legislação local fez as possíveis alterações
e determinou que as autoridades administrativas continuassem a recrutar
para o serviço do Estado mas, quanto aos particulares, limitassem a acção

13 Ao Paiz. O povo de Loanda contra o renovamento dos contractos de serviçaes. Luanda, 1903. A autoria terá sido
do grupo apoiante de A Defeza de Angola, jornal José de Macedo (maçon, republicano, socialista e federalista) foi
dirigir a convite de Sebastião de Magalhães Lima e do Grémio Português de Luanda. Os fundos para oficinas de
composição e impressão do jornal vieram de políticos e comerciantes de Luanda. Lopo, Júlio de Castro, Jornalismo
de Angola. Subsídios para a sua História, Luanda, CITA, 1964, pp. 51-56; Macedo, José de, Autonomia de Angola,
[1910], 2.ª ed. Lisboa, CSE/IICT, 1988.
14 Os artigos de Henry Nevinson no Harper’s Magazine deram origem ao livro: Nevinson, A Modern Slavery, London,
Harpers, 1906. O relatório de Joseph Burtt («Report on the Conditions of Coloured Labour on the Cocoa Plantations
of S. Thomé and Principe, and the Methods of Procuring it in Angola»), apresentado ao governo português em 1907,
foi publicado em Cadbury, William A., Labour in Portuguese West Africa, Second Edition with an Added Chapter,
London, George Routledge & Sons, 1910, pp. 103-131. O livro de Charles Swan saiu em 1909 (Swan, Charles A.,
The Slavery of Today or the Present Position of the Open Sore of Africa, Glasgow, Pickering & Inglis, 1909). Para um
estudo recente, Jerónimo, Miguel Bandeira, Livros brancos, almas negras: A «missão civilizadora» do colonialismo
português c. 1870-1930, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2010, pp. 89-139.
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a «fiscalizar, auxiliar ou favorecer o recrutamento, castigando severamente


os indígenas que se entregarem à ociosidade ou vadiagem»15.
As reformas agitavam os colonos e não só em Moçâmedes, região famo-
212 sa como refractária às medidas da República. No Jornal de Benguela, em
1913, escrevia-se que a lei não só deixava implícito que a escravatura ainda
existia, como era incompatível com a realidade angolana e dava demasiada
protecção aos indígenas a quem os patrões não podiam aplicar os devidos
correctivos. Ferreira Diniz lamentava que trabalhadores abandonassem o
serviço e outros se evadissem, reagindo à notícia da liberdade, ou que se
confundisse o direito a escolher o trabalho com o de não trabalhar, ou que
se tivessem desrespeitado patrões perante trabalhadores, mas atribuía a maior
culpa ao tratamento sofrido por estes16.
Uma outra forma de trabalho forçado, as corveias impostas à população
rural na construção e conservação de pontes, estradas e edifícios admi-
nistrativos, eram denunciadas como causa de despovoamento e nocivas à
produção agrícola. Mas as «obras públicas» continuaram dependentes dessa
mão-de-obra e Norton de Matos, paladino do trabalho livre, foi na verdade
responsável, com o seu programa de expansão das estradas, pelo abuso desse
trabalho forçado, gratuito e em condições terríveis, muitas vezes feito por
mulheres e crianças. Quanto ao trabalho correccional foi sucessivamente
confirmado como punição específica dos «indígenas», nos códigos de tra-
balho de 1899, 1911, 1914 e 192617.
Apesar da violência e das dramáticas consequências, individuais e
sociais, das modalidades de trabalho forçado, compelido ou correccional,
que continuaram vigentes depois de 1910, seria erro rotulá-las como «escra-
vatura», com risco de banalizar a escravatura do período anterior e sem
benefício visível para a análise da sobre-exploração do trabalho «indígena»
nas colónias europeias do século vinte. Há que distinguir a análise histórica
e sociológica da linguagem da denúncia e do combate à exploração e, neste
caso, os próprios explorados reconheciam a diferença. Parece justo, pois,
associar a República ao término da escravatura em Angola.

15 Diniz, José de Oliveira Ferreira, Negócios Indígenas. Relatório do ano de 1913, Luanda, Imprensa Nacional de Angola,
1914, pp. 53-55 e passim.
16 Diniz, Negócios Indígens…, p. 77. Francisco Cipriano Pio, Jornal de Benguela, 19-03-1913, p. 1. Exemplo dos protes-
tos dos empresários de Moçâmedes: Viúva Bastos & Filhos, A derrocada! Carta aberta ao Sr. Ministro das Colónias,
Doutor Almeida Ribeiro, por Viúva Bastos & Filhos, agricultores e industriaes de Mossâmedes, Lisboa1913. Para um
enquadramento histórico: Clarence-Smith, Gervase, Slaves, peasants and capitalists in southern Angola 1840-1926,
Cambridge, Cambridge University Press, 1979.
17 O Código de Trabalho de 1911 foi substituído em 1914 (Decreto 951, 14-10-1914). Para uma análise coeva, Rego,
A. A. Fernandes, A mão d’obra nas Colonias Portuguezas d’Africa, Lisboa, 1911, pp. 73, 50-74. A violência do trabalho
nas estradas impressionou o sociólogo norte-americano Edward Ross, numa viagem a Angola em 1924 de que resultou
o relatório para a Comissão da Escravatura da Sociedade das Nações. Ross, Edward A., Report on employment of
Native Labour in Portuguese Africa, New York, 1925, pp. 6-61.
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Em Maio de 1912, antes de partir para Luanda, Norton de Matos foi


iniciado na Loja maçónica «Pátria e Liberdade» (do Rito Escocês) e escolheu o
combate à escravatura como uma das suas missões. Contra muitos opositores,
a legislação que localmente produziu era coerente com um projecto colonial 213
assente no livre trabalho assalariado e na produção camponesa dos «indígenas»,
tecnicamente apoiada. Em 1915, já demissionário, Norton refere em termos
duríssimos a situação encontrada em 1912, orgulha-se de terem cessado «quase
por completo as práticas de escravatura» e acusa o governo central de não lhe
ter dado «as atribuições, as faculdades e sobretudo os recursos» necessários
para o seu projecto. Terá uma segunda oportunidade e muito mais poderes,
como Alto-Comissário (1921-1924), de novo saindo desanimado18.
É legítimo questionar se a boa-nova republicana da libertação dos escra-
vos chegou a quem mais dela precisava, fora dos principais núcleos urbanos.
A julgar por reacções como as que se seguem, assim deve ter acontecido.
Em Março de 1911 o chefe do Comando Militar do Huambo, com sede
no pequeno fortim da Quissala (a cidade ainda não existia), informava o
Curador dos Serviçais em Benguela que tinha sido procurado por indivíduos
que «não estando obrigados a contrato algum, não desejam continuar ao
serviço dos patrões, por quem não eram bem tratados.» Fazendo um regis-
to da sua identificação e razões, o Comandante declarou-os «livres» e deu
«destino provisório» a cada um, sujeito à decisão do Curador19:
Nanga-Covía, pais desconhecidos, natural do Bié, 16 a 18 anos prováveis,
«doméstico do europeu de apelido Costa (cujo nome ignora), estabelecido
na Chindonga […] região do Sambo, ao serviço de quem está desde os 8
anos, talvez.» Decisão: «Declarou-se-lhe livre, podendo, como tal, angariar
a sua vida. Atendendo, porém, a achar-se doente, permita-se-lhe descansar,
querendo, neste lugar da Quissala até se restabelecer.»
Quissongo Catraio, filho de João e de Tuluba, natural da Luba,
22 anos idade provável, «desde os 8 anos pouco mais ou menos ao serviço
de Júlio Coutinho, da Catumbela, tendo anteriormente servido a um tal
Raphael, ex-escrivão do Bihé, e a D. Thereza Brandão, sogra do referido
Júlio Coutinho, por morte da qual passou ao serviço deste, evadiu-se porque
estando [doente] e não podendo por tal motivo trabalhar, o patrão [não]
atendia ao seu estado e compelia-o ao serviço. Não tem contrato …» Deci-
são: «Declarou-se-lhe que podia angariar livremente a sua vida, até ulterior
resolução de sua Exa. o Sr. Curador.»

18 «9.º Relatório confidencial para Sua Exa. o Ministro das Colónias, Lobito 23 de Fevereiro de 1915» (terminado a 6
de Março), publicado in Norton de Matos, Memórias…, vol. IV, pp. 237-97. Ver «Relatório sobre a situação política,
administrativa, económica e financeira», 10-02-1924, in Norton de Matos, A Província…, pp. 70-209.
19 Do Comandante Militar do Huambo, Cap. Joaquim Duarte Silva, ao Curador dos Serviçais em Benguela, 03-03-1911,
Arquivo Nacional de Angola, Códice 9512, fls. 146-7.
Maria da Conceição Neto | A República no seu estado colonial...

José, do Seles, pai desconhecido, mãe Chinanga, 11 anos idade provável,


«doméstico do secúlo Uácahúa Canjongo». Decisão: «Declarou-se-lhe que
era livre, mas que, atendendo à sua pouca idade, ficava sujeito à tutela da
214 autoridade, depositado no Comando Militar do Huambo e à disposição
de sua Exa. o Sr. Curador»
Os dados são elucidativos: todos tinham ficado ao serviço de outros
desde a infância e um deles não podia sequer indicar o nome dos pais; um
outro viera «da Luba», para lá das fronteiras de Angola, famosa como fonte
de escravos; o terceiro tinha pertencido a um sekulu (chefe de aldeia). Mas,
sobretudo, tanto eles como o Comandante do Posto parecem levar a sério a
questão da sua libertação da anterior sujeição, de acordo com normas que,
não sendo novas, passaram a ser impostas com mais convicção, espalhando-
-se a notícia de que era possível obter apoio das autoridades coloniais contra
os seus senhores.

A República e a criação do «indigenato»


Combater o que restava da velha escravatura, promover o trabalho
assalariado e melhores condições laborais era uma coisa; advogar a igualdade
perante a lei civil e criminal, era outra bem diferente. Alargar a cidadania
aos habitantes do império estava fora de causa, numa época em que por
toda a África se reduziam os direitos antes adquiridos por algumas minorias
sociais locais, direitos que se recusavam, desde logo, às populações recente-
mente incorporadas nos espaços imperiais. Abandonavam-se as doutrinas
assimilacionistas de quando as colónias em África eram muito poucas e
relativamente pequenas e os naturais da terra essenciais à administração
colonial. A mestiçagem passou a ser, no mínimo, um «problema» e, no geral,
rejeitada como prova de degenerescência das «raças». As doutrinas dominantes
na primeira metade do século XX viam na «assimilação» mais perigos que
vantagens e, onde houvesse significativa presença europeia, consideravam
a discriminação racial essencial à ordem imperial. O «indigenato» foi uma
das soluções encontradas20.

20 Para Moçambique, Zamparoni, Valdemir, «Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’. Colonialismo e paisagem social em Lou-
renço Marques», Universidade de São Paulo, 1998.; Para colónias não portuguesas, Boelaert, E., «L’histoire de
l’immatriculation», AEquatoria, 14.e Année, 1951, n.º 1, pp. 6-12; Summers, Carol, From Civilization to Segregation.
Social Ideas and Social control in Southern Rhodesia, 1890-1934, Athens, Ohio University Press, 1994; Mamdani,
Mahmood, Citizen and Subject. Contemporary Africa in the Legacy of Late Colonialism. London, James Curry, 1996;
Saada, Emmanuelle, Les enfants de la colonie. Les métis de l’Empire français entre sujétion et citoyenneté, Paris, La
Découvert, 2007; Mann, Gregory, «What was the indigénat? The ‘Empire of Law’ in French West Africa», Journal of
African History, 50, 2009, pp. 331-353. Para o império português no século XIX, Silva, Cristina Nogueira da, Consti-
tucionalismo e Império: a cidadania no Ultramar português, Coimbra, 2009.
Ler história | N.º 59 | 2010 | pp. 205-225

O etnólogo Ferreira Diniz, um dos homens mais influentes na definição


da política colonial em Angola desde que Norton de Matos o escolheu, em
1913, para chefiar a Secretaria dos Negócios Indígenas, lembrava que a
«nefasta política de assimilação» estava «sendo combatida pelos principais 215
tratadistas coloniais e posta de parte até pela própria França, onde teve o
seu berço», sobretudo pelo «perigo inconveniente de envolver a vida das
colónias com a da metrópole, criando entre estes organismos heterogéneos
e o Estado uma solidariedade tão perniciosa quanto artificial». E apelava
a «uma activa propaganda contra a errada orientação de considerar os
indígenas como cidadãos portugueses, com iguais direitos e deveres» e à
urgência de distinguir o pequeno grupo dos que «pelo seu trabalho e atu-
rado estudo, atingiram uma civilização que, se não é igual à nossa, é pelo
menos paralela» da massa de «súbditos» para os quais «não há necessidade
nem conveniência de impor direitos e deveres que não desejam»21. Advogava
ainda a «absoluta necessidade de definir o indígena de Angola, o que não
está feito em termos claros e precisos nos nossos textos legais, dando lugar
a dúvidas e confusões as definições estabelecidas nas diversas disposições
da lei.» Segundo a Lei Orgânica de 1914, caberia ao governador da colónia
definir e regular o estatuto civil, político e criminal dos indígenas. Na pro-
posta de Ferreira Diniz, seriam cidadãos de pleno direito «os indivíduos de
cor nascidos na província, que falem correntemente o português e tenham
hábitos e costumes europeus»22.
Incertezas na definição legal não impediam a catadupa de legislação
sobre os presumíveis «indígenas», desde as condições de trabalho ao vestuá-
rio, à interdição do fabrico de bebidas alcoólicas e de compra de pólvora
e armas, à organização das aldeias, à imposição do Português como língua
única nas escolas missionárias etc. O documento que materializou o estatuto
de «não cidadão» antecedeu o próprio Estatuto: a «caderneta de trabalho»,

21 Tal como no Acto Colonial de 1930 e na Constituição de 1933, os «indígenas» estão submetidos à protecção do Estado
português mas não fazem parte da Nação. No Estatuto de 1954, a ficção de uma nação «do Minho a Timor» levou à
caricata fórmula de «indígenas portugueses» distintos de «cidadãos portugueses». Para «indigenato» e «assimilação»
em Angola é fundamental Messiant, Christine, 1961. L’Angola colonial, histoire et société. Les prémisses du mouvement
nationaliste, Bâle (Suisse), P. Schlettwein Publishing,2006 (tese de 1983). Ver também Moutinho, Mário, O indígena
no pensamento colonial português 1895-1961, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000; Cruz, Elizabeth Ceita
Vera, O Estatuto do Indigenato. Angola – a legalização da discriminação na colonização portuguesa, Lisboa, Novo
Imbondeiro, 2005; e Barbeitos, Arlindo, Angola/Portugal: des identités coloniales équivoques. Historicité des représen-
tations de soi et d’autrui, Paris, L’Harmattan, 2009. Ver Keese, Alexander, Living with Ambiguity. Integrating an African
Elite in French and Portuguese Africa, 1930-61, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 2007, para um estudo comparativo
França-Portugal.
22 Diniz, Negócios Indigenas…, pp. 27-30 e 107-118. Alinhado com as teorias da época, Diniz fez uma classificação
«étnica» dos povos de Angola com vista à pretendida (e nunca feita) codificação de «usos e costumes»; Diniz, Fer-
reira, Populações indígenas de Angola, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918. Em 1923 apresentou um projecto
de Estatuto dos Indígenas que Norton transformou em proposta de decreto mas não avançou, provavelmente pela
exoneração do Alto-Comissário: Norton de Matos, A Província…, pp. 269-275.
Maria da Conceição Neto | A República no seu estado colonial...

sucessora do certificado de trabalho, impôs-se em Angola no início dos


anos vinte e evoluiu até à «caderneta indígena», um complexo documento
de identificação de várias folhas, com dados pessoais e familiares, informa-
216 ções de rendimento (agricultura, gado, profissão ou ofício remunerado),
comprovativos anuais do pagamento do imposto e registo dos contratos de
trabalho e das autorizações administrativas para deslocação fora da área de
residência. Como dizia o Código de Trabalho dos Indígenas de 1928, tudo
que interessasse à administração, à estatística e à segurança23.
A tributação foi a outra forja jurídica do «indigenato» e razão de peso
(financeiro) para a longevidade do Estatuto. O «imposto de cubata» ou «de
palhota» de 1906 foi em 1919 substituído pelo «imposto indígena», dito «um
imposto pessoal e político, uma capitação e uma subordinação», totalmente
diferente «da noção de imposto nos Estados civilizados» e aplicando-se a
indivíduos «cuja necessidade intelectual nos não permite deixá-los sem
tutela, ainda quando esta os contrarie nos seus hábitos e tendências de
incivilizados». Incidia sobre «todos os habitantes, pretos ou mestiços, de
Angola e que, pela sua educação, hábitos ou procedimentos, não se afastem
do comum das raças africanas», ficando isentos os inválidos, os menores
de 16 anos e as mulheres dependentes menores de 21, as mulheres casadas
(nos polígamos, só uma), os praças e cipaios, os sobas e outras autoridades
gentílicas, aqueles com contribuição industrial superior a 50% da taxa do
imposto e os empregados domésticos trabalhando mais de dois anos seguidos.
O Estado Novo, após a Concordata, estendeu a isenção aos professores e
catequistas das Missões Católicas, se falassem português24.
A categorização do «indígena» começou, pois, com a legislação labo-
ral e fiscal e a elas continuou associada, permitindo ao Estado controlar a
movimentação da mão-de-obra e extrair o máximo da produção camponesa,
mediante legislação específica e retrógrada à luz das normas e princípios
da legislação metropolitana. Porém, a paulatina construção de um estatuto
legal diferenciado teve objectivos mais amplos no quadro das doutrinas
coloniais. No caso de Angola, colónia portuguesa onde, historicamente, era
mais numerosa a população negra influenciada por «usos e costumes» de

23 A Portaria Provincial 491 (10-05-1913) obrigava a passar «Certificados de trabalho» em todos os contratos sem a
intervenção da autoridade. Diniz, Negócios Indígenas…, pp. 184-185. Em 1921 e 1922, Circulares da Secretaria
de Colonização e Negócios Indígenas (29-12-1921 e 10-02-1922) definiam as condições de obrigatoriedade das
«Cadernetas de trabalho». A Portaria Provincial de 16-01-1925 estabelecia que na «Caderneta indígena» se registasse
o trabalho e o pagamento do imposto anual. Arquivo Histórico de Angola, Avulsos, Huambo, Caixa 466.
24 Preâmbulo à Portaria Provincial de 21-03-1919 in Diniz (1914), p. 154. O «Regulamento do recenseamento e co-
brança do imposto indígena» (14-02-1920) confirmava e aperfeiçoava a portaria anterior. Isenção dos catequistas:
Decreto 33.303, Boletim Oficial 1.ª série, n.º 1, 5-01-1944. Sobre o imposto, Diniz, José de Oliveira Ferreira, «Da
política indígena em Angola - os impostos indígenas», Boletim da Agência Geral das Colónias, Ano 5.º, 1929, n.º 47,
pp. 136-165.
Ler história | N.º 59 | 2010 | pp. 205-225

origem europeia, o papel do «indigenato» como sistema protector da pequena


minoria branca era óbvio e como tal defendido, até ao fim, pelas entidades
administrativas, com poucas excepções. A discriminação racial ganhara base
legal, já que os classificados como «brancos» eram por inerência cidadãos, 217
apesar do elevado analfabetismo, das bolsas de pobreza e da percentagem
de degredados, longe dos padrões de vida e integridade moral exigidos a
negros e mestiços para a inclusão no grupo dos «civilizados».
No Estatuto dos Indígenas de 1926 havia ainda larga margem para a
subjectividade na identificação dos «indivíduos de raça negra ou dela des-
cendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum
daquela raça» e, por isso, a classificação dependia do discernimento ou do
interesse dos funcionários. Versões posteriores, sobretudo a de 1954, trans-
formaram a concessão do «alvará de cidadania» num processo burocrático
kafkiano, dispendioso e humilhante, ainda hoje evocado com ressentimento.
Os «negros e seus descendentes» deviam provar, documentalmente e por
inspecção oficial às suas casas, «a ilustração e os hábitos individuais e sociais
pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cida-
dãos portugueses». Esposas e filhos menores deviam provar igualmente o
domínio da língua, comportamento e hábitos europeus, para beneficiarem
do estatuto do chefe de família.
Em 1940, apesar do estreitamento da via de acesso à cidadania, o
Censo populacional revelou que os brancos não chegavam a metade da
população dita «civilizada» de Angola e, mesmo assim, o Chefe de Repar-
tição de Estatística Geral reconhecia que os restritivos critérios utilizados
excluíam «muitos dos indígenas que em certos aspectos já saíram do quadro
das instituições aborígenes» mas «não tinham contudo adoptado todos os
aspectos fundamentais por que se caracteriza a nossa civilização». E admi-
tia que, sobretudo entre os mais influenciados pelas missões cristãs, «no
grupo dos não civilizados exista volumosa massa para quem será injusta a
classificação»25.
Em Novembro de 1960, um alto funcionário administrativo insistia,
confidencialmente, na urgência de acabar com o «indigenato» (o que seria
feito em 1961, após as revoltas em Luanda e no norte de Angola), expondo
e dando resposta aos principais receios: o peso em possíveis futuras eleições
não devia preocupar «enquanto Portugal tiver o governo forte que tem»;
a perda das receitas do imposto indígena podia resolver-se se a Fazenda
arranjasse «novo nome para o mesmo imposto»; quanto à concorrência

25 Lemos, Alberto de, «Introdução ao Primeiro Censo Geral da População de Angola», in, Censo Geral da População
de Angola 1940, Repartição Técnica de Estatística Geral/Imprensa Nacional, 1941,vol. I, p. 70. Segundo o Censo, a
população civilizada de Angola (total 91 611) incluía 44 083 brancos, 23 244 mestiços, 24 221 pretos e 63 outros. A
população não civilizada (total 3 646 399) incluía 3 641 608 pretos e 4791 mestiços.
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nos lugares [de trabalho] e no comércio, era um perigo real. «Mas um


perigo que vamos ter de correr mais cedo ou mais tarde pois é inerente
ao nosso propósito civilizador. […] Em qualquer dos casos, serão sempre
218 os melhores, os mais capazes, os mais sérios que vencerão. Esperemos que
sejam os brancos26».
Esta incursão ao período do Estado Novo justifica-se para salientar
que a distinção jurídica civilizado-indígena não correspondeu a «estádios
de civilização» da população de Angola, nem surgiu para oferecer a melhor
protecção legal às populações autóctones. Cabo Verde e S. Tomé, por razões
diferentes, não tiveram «indigenato» e, em S. Tomé, os legalmente «indígenas»
eram os «contratados» de Angola e Moçambique e não os naturais da terra.
O «indigenato» não foi um regime protector que reconhecia aos autóctones
o direito de viverem segundo a sua cultura, nem o «indígena» se mantinha
à margem do desenvolvimento da economia colonial «moderna». Muito
pelo contrário, ele estava no centro de toda a economia como agricultor,
comerciante, artesão, carregador, criador de gado, ou servindo nas fazendas,
nas minas, nas pescas e nos transportes. «Sem indígenas não há colónias,
porque não há produção nem impostos para o Governo, não há agricultura
nem indústria para os colonos, nem comércio para os negociantes27.»
A distinção legal entre «cidadãos» e «indígenas» teve consequências de
longo alcance na sociedade angolana, obviamente nem todas previsíveis nos
primeiros anos da República. Mas, desde logo, à diversidade de situações no
relacionamento entre brancos, negros e mestiços, entre autoridades portu-
guesas e líderes locais, entre comerciantes e clientes, patrões e trabalhado-
res, sobrepôs-se a condição de «indígena» e correlatas obrigações. Por um
lado, ficava estabelecida a superioridade de qualquer «branco» e, por outro,
dividiam-se os «negros e seus descendentes» entre uma ínfima minoria com
«privilégios de branco» e uma vasta maioria penalizada no trabalho e nos
impostos, sem direito à livre circulação, com limites legais no que tocava
à profissão, posse de terra, educação dos filhos etc.
Então, o que trouxe a República? Sem dúvida, repressão à escravatura
e promoção do trabalho assalariado mas, também, a expansão do trabalho
gratuito nas «obras públicas». Melhorou as condições nas fazendas e pescarias
e moralizou a cobrança dos impostos mas, a despeito de vozes contrárias
(incluindo a de Norton), favoreceu a expropriação de terras a favor das

26 Major Hélio E. Felgas, «Sugestão particular e confidencial» sobre «A revisão da legislação sobre concessão da
cidadania aos indígenas do ultramar português (Guiné, Angola e Moçambique)» p. 5. AHU, Ministério do Ultramar,
GM/GNP/SR: 087, Pasta única.
27 Diniz, Negócios Indigenas…, p. 17. As exportações de Angola até c.1940, à excepção dos diamantes e das pescas,
dependiam essencialmente da produção dos camponeses (milho, algodão, oleaginosas etc.) e criadores de gado
«tradicionais» (couros).
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plantações e fazendas dos colonos. E, por fim, encurralou quase toda a


população num estatuto jurídico que a apartava da cidadania, a submetia
a um regime penal específico e discricionário, e lhe travava a mobilidade
social enquanto, paradoxalmente, as transformações económicas e a difusão 219
da educação cristã a impulsionavam.

Foi bonita a festa… mas acabou cedo


A investigação histórica sobre Angola nas primeiras décadas do século
XX é escassa mas existe, permitindo conhecer reacções à mudança de regi-
me, sobretudo de membros das elites económicas ou intelectuais locais,
originários da colónia ou da metrópole28. Parte da euforia com a queda da
monarquia não se terá devido a um militante e generalizado republicanismo
mas àquela esperança popular do «fim de todos os males» que tantas vezes
acompanha a queda abrupta de um regime. Ao definir-se como momento
revolucionário de ruptura com o passado, a República abria (ou parecia
abrir) oportunidades até então reprimidas. Razão de sobra, também, para
gerar apreensão e reacções negativas não só nas paróquias e missões católicas,
mas também entre os que temiam a «confusão» das grandes viragens.
Não seriam poucos, porém, os genuínos republicanos entre os Ango-
lenses ou «filhos do país»29. Para a elite letrada negra e mestiça, o «todos
os homens nascem iguais» do ideário republicano traduzia-se em oposição
à discriminação baseada na cor da pele, filiação ou lugar de nascimento.
Alimentada por levas de deportados políticos pós-1891 e pela influência
maçónica, crescera a expectativa de que o triunfo da revolução republicana

28 Ver: Samuels, Michael A., Education in Angola, 1878-1914. A History of Culture Transfer and Administration, New York,
Columbia University, 1970; Freudenthal, Aida, «A utopia angolense, 1880-1915», A África e a Instalação do Sistema
Colonial (c.1885-c.1930), Lisboa, IICT, 2000, pp. 561-572; Dias, Jill, «Uma questão de identidade. Respostas intelectuais
às transformações económicas no seio da elite crioula da Angola Portuguesa entre 1870 e 1930», Revista Internacional
de Estudos Africanos, 1, 1984, pp. 61-94; Ferreira, Eugénio Monteiro, As ideias de Kimamuenho (um intelectual rural
do período 1918-1922), Luanda, UEA, 1989; Rodrigues, Eugénia, A geração silenciada. A Liga Nacional Africana e a
representação do Branco em Angola na década de 30, Porto, Edições Afrontamento, 2003; Chilcote, Ronald H. (ed.),
Protest and Resistance in Angola and Brazil, California, University of California Press, 1972 (especialmente artigos de
Wheeler e Samuels); Oliveira, Mário António Fernandes de, Reler África. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1990 e
A Formação da Literatura Angolana (1851-1950). Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997; Andrade, Mário
Pinto de, Origens do Nacionalismo Africano. Continuidade e ruptura nos movimentos unitários emergentes da luta
contra a dominação colonial portuguesa, Lisboa, Dom Quixote, 1997; Bittencourt, Marcelo, Dos jornais às armas.
Trajectórias da contestação angolana, Lisboa, Veja, 1999; Barbeitos, Angola/Portugal…; Pimenta, Fernando Tavares,
Angola, os Brancos e a Independência, Porto, Afrontamento, 2008; Dáskalos, Maria Alexandre, A política de Norton
de Matos para Angola 1912-1915, Coimbra, Minerva, 2008.
29 Com a ressalva dos contornos instáveis de qualquer designação identitária, «filho do país», «angolense» e «nativo»
significam basicamente o mesmo no período analisado: negros e mestiços naturais de Angola, com influência suficiente
de educação europeia para se considerarem (e serem considerados) distintos da massa da população menos tocada por
essa influência. O indigenato irá transformar muitos «angolenses» em «indígenas», ficando outros como «assimilados»
ou «civilizados».
Maria da Conceição Neto | A República no seu estado colonial...

não só daria maior autonomia política a Angola como libertaria das peias
dos interesses metropolitanos o potencial económico do território e, não
menos importante, para todos irradiaria a «luz» essencial ao progresso da
220 humanidade: a instrução30. Essa esperança de mudança radical estava, natu-
ralmente, eivada de insolúveis contradições mas não vem ao caso discuti-las
agora. A notícia da proclamação da República deu lugar a manifestações
entusiásticas, embora a transferência de poder tenha levado semanas. O
relato é de um dos representantes da elite intelectual angolense da época,
Francisco das Necessidades Ribeiro Castelbranco, funcionário da Alfândega
de Luanda, publicista, director de jornal e líder associativo31:

«Na manhã de 6 de Outubro de 1910, circulou em Luanda que


três casas comerciais haviam recebido, telegraficamente, a notícia de
ter sido implantada a República em Portugal (…) à tarde confirmada
por um telegrama recebido pelo governo-geral. Toda a população
então, por assim dizer, exultou. (…) Organizaram-se vários grupos
que percorreram as ruas da cidade, soltando delirante e incessante-
mente vivas à República. Os estabelecimentos comerciais encerraram
as portas, as repartições públicas fecharam, a Câmara Municipal
em sessão registou o sensacional acontecimento e o Conselho do
Governo terminou a reunião com um Viva a República! À noite, um
numeroso grupo percorreu, com a banda regimental e em marcha
aux flambeaux, novamente as ruas, indo saudar os consulados, as
associações comerciais e dos empregados do comércio e o presidente
da Câmara Municipal. Entretanto, nos Paços do Conselho a convite
da municipalidade, reunia-se, para proclamar o novo regímen, elevado
número de cidadãos. O vasto salão nobre da Câmara estava cheio
de gente. Senhoras, magistrados, comerciantes, funcionários civis e
militares e muitas outras pessoas, enchiam-no por completo.
A proclamação foi feita com um entusiasmo indescritível,
usando da palavra os cidadãos José Moreira Freire, presidente da
Câmara Municipal, Dr. Manuel do Sacramento Monteiro, juiz de
direito, José Antunes Farinha Leitão, comerciante, dr. Alexandre de
Matos, conservador, Francisco Pereira Batalha, director dos telégrafos,

30 Além das lojas, triângulos e associações, a Maçonaria tinha influência nos jornais, com relevo para o bi-semanário A
Defeza de Angola (1903-1907). O semanário A Reforma (1910-1912) era o órgão do Partido Reformista de Angola.
Freudenthal, «Um Partido Colonial….», e «A utopia angolense…», pp. 407-408. Macedo, Autonomia de Angola….
Quanto à instrução, ver Samuels, Michael A., Education in Angola, 1878-1914. A History of Culture Transfer and
Administration, New York, Teachers College – Columbia University, 1970; e Freudenthal, «Angola»…, pp. 414-432.
31 Castelbranco, Francisco, História de Angola desde o descobrimento até a Implantação da República (1482-1910),
Luanda, 1932, pp. 296-99.
Ler história | N.º 59 | 2010 | pp. 205-225

Dr. Alberto de Sousa Maia Leitão, chefe do serviço de saúde, alferes


Emídio Adauta, Eduardo Osório, comerciante, Guilherme Maurício
da Rocha, um dos revoltosos de 31 de Janeiro e o oficial dos correios
natural da colónia Manuel Inácio dos Santos Torres. Por parte do 221
elemento feminino discursou a professora, também natural desta
colónia, senhora D. Domingas Lazary Amaral, que falou em nome
da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas32.
Findos os discursos, Júlio Lobato, funcionário público e jor-
nalista, apresentou o alvitre […] de seguirem todos dali para o
palácio do governo, afim de, numa das janelas, ser igualmente
proclamado o novo regímen. Durante o trajecto e no palácio continua-
ram entusiasticamente os vivas à República. Depois da proclamação,
foram lidos os telegramas de congratulação que o município dirigiu,
em nome do povo de Luanda, ao governo provisório e de saudação ao
chefe da revolta do Porto, Dr. Alves da Veiga e ao velho republicano,
Dr. Manuel de Arriaga […]. Os edifício públicos estiveram iluminados
à noite bem como algumas casas particulares, tendo havido feriado
nas repartições públicas, nos dias 7 e 8».

A nova bandeira terá sido formalmente içada no palácio do gover-


no-geral no dia 9, por um dos antigos deportados do 31 de Janeiro
de 1891, Guilherme Maurício da Rocha. O juiz Dr. Caetano Gonçalves fi-
cou governador interino até à chegada, em Janeiro de 1911, de Manuel
Maria Coelho, «que teve do povo de Luanda uma imponentíssima
recepção».
Ao regozijo sucedeu rapidamente o desejo de apresentar ao novo poder
preocupações e reivindicações: uma «Mensagem dos Filhos de Angola» foi
entregue ao Governador-geral a 19 de Novembro de 1910, enquanto uma
multidão se concentrava à frente do Palácio do Governo. Os mais de 150
subscritores, nomes bem conhecidos, «assumiam a responsabilidade moral
de levar ao conhecimento dos dirigentes do país os males de que enferma a
colónia» e entre as causas apontadas destacavam «o ódio de raça», já que a
discriminação feita pela «raça dominadora» criava uma «atmosfera de antipatia
entre os cidadãos da mesma pátria». Ora isso era incompatível com a «nova
era de liberdade, igualdade e fraternidade», como o era a escravatura cuja
definitiva abolição reclamavam. Contra o centralismo de Lisboa, os «dois
elementos – europeu e angolense – igualmente portugueses, deviam agir no
mesmo sentido e identificar as suas aspirações no bem da pátria comum.»

32 Angolana de Pungo Andongo, filha de pai português, professora primária, republicana e maçon. Agradeço a Eugénio
Monteiro Ferreira estas informações.
Maria da Conceição Neto | A República no seu estado colonial...

Com solidariedade republicana (tingida de velada advertência) afirmavam


que não usariam o «sagrado» direito de insurreição contra a República33.
Afastado o regime monárquico, também em Angola sobravam con-
222 tradições entre os defensores da República e no seio dos próprios An-
golenses, socialmente e culturalmente diversos e, politicamente, oscilantes
entre o desejo de maior autonomia e protagonismo dentro do império
e a reivindicação independentista. Rivalidades internas desembocaram
na criação quase simultânea, em 1913, da Liga Angolana e do Gré-
mio Africano, ficando naquela, entre outros, Augusto Silvério Ferreira,
Manuel Inácio dos Santos Torres, Manuel Pereira dos Santos Van Du-
nem Júnior, Maurício Rodrigues de Almeida, João de Almeida Campos,
António Joaquim de Miranda, Augusto Wilson, Jorge Gourgel, Alberto de
Lemos e António de Assis Júnior. No Grémio, que também tinha sócios
efectivos europeus, incluíam-se membros das famílias Castelbranco, Ama-
ral Gourgel, Ribeiro da Costa, Brito Teixeira, Amzalak Lima, Anapaz e
outras34.
O desencontro entre as políticas coloniais e as expectativas da elite
angolense ficava cada vez mais patente nas tensas relações entre autoridades
e «nativos» politicamente inconformistas, como testemunham os jornais da
época. A visibilidade social dessa minoria e a sua capacidade de intervenção,
na imprensa e junto da massa da população negra, faziam dela um alvo da
repressão de imaginárias revoltas armadas, nomeadamente onde a conquista
recente facilitava o pânico. A agitação de populações rurais contra o imposto
e as expropriações de terras era atribuída, por comerciantes e administradores,
à influência dos nativos mais «ilustrados» que estariam prontos a liderar
movimentos de «mata-brancos». Os casos mais conhecidos foram o de Antó-
nio Joaquim de Miranda, desterrado de Malanje para Cabinda em 1914, e
o de António de Assis Júnior, Francisco Jerónimo, Manuel Correia Vítor e
outros, presos em 1917 no distrito do Cuanza (Ndalatando). Quando, em
1915, num jornal lisboeta, Miranda provocatoriamente questionava se o
que Portugal receava era uma prematura independência de Angola «antes
que as circunstâncias permitam que seja como o Brasil, caracteristicamente
portuguesa», ou simplesmente tinha «o propósito de a manter sempre sob

33 Citado por Freudenthal, «A utopia angolense…», p. 567 que, na senda de outros autores, assinala a ambiguidade
e a ambivalência dos Angolenses. Citações do documento também em Cruz, O Estatuto do Indigenato…, p. 71,
n.º 157 e, Dáskalos, A política de Norton de Matos…, p. 141.
34 Estatutos da Liga Angolana in Boletim Oficial, n.º 10, 08-03-1913, e do Grémio Africano in Boletim Oficial n.º 13,
29-03-1913. Ferreira, As ideias de Kimamuenho…, p. 49, n. 32, Rodrigues, A geração silenciada…, p. 28. Almeida,
Luísa d’, «Nativo versus gentio? – o que nos dizem algumas fontes africanas nos anos 1914-1922», A África e a
Instalação do Sistema Colonial (c.1885-c.1930), Lisboa, IICT, 2000, pp. 645-654; e Bittencourt, Dos jornais às armas...,
utilizaram as Actas da Liga e outra documentação do Arquivo Histórico de Angola.
Ler história | N.º 59 | 2010 | pp. 205-225

o domínio de Portugal», já chegara ao fim o período de graça nas relações


entre as novas autoridades e um largo sector dos Angolenses35.
Em 1922, Norton de Matos, que apoiara em 1913 a criação das
associações de nativos, dissolveu-as na sequência de alguns incidentes em 223
Catete, próximo de Luanda. O jornal Angolense foi encerrado e foram
desterrados António de Assis Júnior, Custódio Bento de Azevedo, Manuel
Van-Dunem, Narciso do Espírito Santo, António Botelho do Nascimento,
António Ferreira Lacerda, José Manuel da Silva Lameiras e Paulo da Silva
Feijó. A vaga repressiva é ainda hoje evocada no seio de muitas famílias
angolanas como a «marca» desse período36.
Perante o Conselho Legislativo, o Alto-Comissário vilipendiou os que
«traindo a Pátria que nós lhes constituímos, desprezando a civilização que
lhes trouxemos e tudo o que estávamos e vínhamos fazendo para a sua ins-
trução e para melhorar as suas condições materiais e morais» abusaram dos
direitos concedidos e «abalançaram-se a propagandas, a ambições de mando
e de predomínio que de forma alguma podemos admitir». Aos «nativos de
Angola», lembrava, «não basta saber falar, ler e escrever o português e ter
umas ligeiras noções literárias e científicas, para se elevarem a uma civili-
zação que levou milhares de séculos a formar e para poderem desempenhar
altas funções no organismo nacional37.» Norton repetiu noutras ocasiões
essa acusação aos que «incompletamente instruídos e insuficientemente
educados, não compreendem a grandeza e altruísmo dos nossos propósitos
e lançam com pretensões extravagantes a perturbação no evolucionar normal
dos restantes indígenas38.»
Para os «nativos de Angola» que, não poucas vezes, proclamaram a
sua lealdade à Pátria e à República portuguesas, era evidente que o ideário
republicano vinha muito incompleto na bagagem dos governantes enviados
para Luanda.

35 O eco d’Africa, n.º 10, Fevereiro 1915, p. 2, in Rodrigues, A geração silenciada…, p. 32. Ver também Freudenthal,
«A utopia angolense…», pp. 569-570 e Dáskalos, A política de Norton de Matos…, pp. 139-155. Assis Júnior, António
de, Relato dos Acontecimentos de Dala Tando e Lucala (1917), 2.ª ed. Luanda, UEA, 1985, para um testemunho
directo.
36 Os desterrados foram amnistiados em Outubro de 1925 pelo Alto-Comissário Rego Chaves. A história da Liga Ango-
lana, contada pelos actuais descendentes dos fundadores, quase sempre omite o apadrinhamento inicial por Norton
de Matos, mas refere as humilhações, prisões e desterros, como pessoalmente observei. Para Custódio Bento de
Azevedo (Kimamuenho) ver Ferreira, As ideias de Kimamuenho….
37 Província de Angola. Actas do Conselho Legislativo. Sessão de encerramento em 14 de Setembro de 1923,
pp. 3-4.
38 Matos, A Província de Angola…, p. 233.
Maria da Conceição Neto | A República no seu estado colonial...

Uma nota final


Os projectos imperiais europeus que ganharam ímpeto no final do
século XIX não foram doutrinariamente monolíticos, nem os interesses
224
económicos e políticos que os moviam eram em tudo coincidentes. Mas
fossem Monarquias ou Repúblicas, regimes democráticos ou ditaduras, eco-
nomias mais ou menos industrializadas, até à Segunda Guerra Mundial esses
impérios foram unânimes em apostar na produção da diferenciação social
e na discriminação, não na integração, excepto para um ínfimo segmento
da população não originária das metrópoles.
Por outro lado, entre os projectos coloniais e a sua concretização
interpuseram-se sempre «as circunstâncias», ou seja, a realidade no terreno.
A análise de uma dada situação colonial39 será mais apurada se, além da
ideologia dominante («o fardo do homem branco» ou um racismo mais
frontal) e das doutrinas e «escolas» de governação diversas, considerarmos
que a política realmente aplicada em cada colónia (ou diferentes regiões
da mesma colónia) deixa marca mais duradoura que os discursos públicos
e os «preâmbulos» à legislação.
Foi principalmente através do exercício quotidiano do poder admi-
nistrativo, com maior ou menor violência, que a maioria dos colonizados
conheceu e se relacionou com o Estado colonial. Aos representantes deste,
do Governador-geral ao mais simples Chefe de Posto, cabiam não só fun-
ções executivas como poderes judiciais, sendo também sua a prerrogativa
de produzir legislação local ou, simplesmente, impor normas e determinar
sanções, sem necessidade de justificação quando os governados não eram
«cidadãos». No campo político, foi esse o impacto maior nas sociedades
colonizadas, não os argumentos dos juristas nem eventuais boas intenções
de ilustres coloniais.
As celebrações do fim do caduco regime monárquico e o relevo dado
ao melhor da herança republicana não devem fazer esquecer que a primeira
República portuguesa merece tanto o rótulo de colonialista como a Monar-
quia ou o Estado Novo, embora os «ventos da liberdade e do progresso»
também soprassem um pouco nas colónias, sobretudo nos momentos ini-
ciais. Os Republicanos no poder não puseram em causa o império, antes o
ampliaram pelas armas e o promoveram como parte da identidade nacional
portuguesa; recuaram quanto às autonomias que alguns tinham preconizado

39 Entendida como «uma totalidade», condicionando toda a vida social, inseparável das relações de poder ancoradas
no específico processo histórico que as gerou e, portanto, bem diferente de um estimulante «contacto de culturas». O
texto de Georges Balandier de 1951 «La situation coloniale» é a referência óbvia, mas para uma discussão actual mais
ampla ver Cooper, Frederick, Colonialism in Question. Theory, Knowledge, History, Berkeley, University of California
Press, 2005.
Ler história | N.º 59 | 2010 | pp. 205-225

e não quiseram ou não conseguiram impor políticas coerentes de desenvol-


vimento económico; optaram pela discriminação jurídica da imensa maioria
da população em Angola, Moçambique e Guiné, para garantir a supremacia
e os interesses da minoria originária de Portugal, alargando o fosso entre 225
os «brancos» e os «negros e seus descendentes». Nas colónias, a julgar por
Angola, 1910 não foi uma revolução e a festa durou pouco.
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