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DEBATEDORES DISCUSSANTS
Autópsia Psicológica, importante estratégia mes retrospectivos, torna-se possível alcançar im-
de avaliação retrospectiva portantes elementos referentes à compreensão do
suicídio. Este tipo de avaliação tem possibilitado
Psychological Autopsy: an important strategy identificar pistas diretas ou indiretas relacionadas
for retrospective evaluation ao comportamento letal que estava por ocorrer,
esclarecendo a intenção e o papel do falecido em
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Blanca Susana Guevara Werlang relação à sua própria morte. Através do método
que se convencionou chamar de “autópsia psico-
Pensar e abordar o tema da morte como consequ- lógica”, expressão cunhada por Shneidman no fi-
ência natural da vida é, muitas vezes, uma situação nal dos anos cinquenta2, pode-se compreender os
de difícil manejo que envolve algum grau de dificul- aspectos psicológicos envolvidos em uma morte
dade. Esta circunstância se amplia significativamente específica. A autopsia psicológica nasce como um
quando o tema específico através do qual se fala da procedimento para assessorar médicos forenses
morte é o suicídio. É difícil compreender e explicar para classificar com maior precisão o registro de
porque algumas pessoas decidem cometer suicídio, suicídio (ato de se matar intencionalmente) no cer-
enquanto outras em situação similar ou pior não o tificado de óbito. Rapidamente torna-se um pro-
fazem. Esse comportamento resulta, sem dúvida, cedimento aceito e muito utilizado. Entretanto, por
de uma complexa interação de fatores biológicos, tratar-se de uma estratégia de avaliação complexa,
psicológicos, sociais, culturais e ambientais. que carecia de um modelo de procedimento estru-
Dessa forma, torna-se evidente a importância e turado, e na ausência do objeto em estudo, a víti-
relevância de estudos sobre este tema, pois, como ma, alguns estudiosos entenderam que tanto o in-
bem destacam Werlang et al.1, o comportamento formante (familiares, amigos, médicos, etc.) quan-
suicida contempla, independente do ponto de vista to o profissional entrevistador poderiam estar
pelo qual é analisado, uma dimensão central relaci- potencialmente vulneráveis a tendenciosidades3,4.
onada ao sofrimento. Pode-se pensar no sofrimen- Ciente deste problema e explorando um aspecto
to que leva o indivíduo ao ato suicida, no sofrimen- de minha formação profissional desenvolvi uma
to resultante do enfrentamento familiar frente ao Entrevista Semiestruturada para Autópsia Psico-
suicídio de um de seus membros, assim como nas lógica (ESAP) na minha tese de doutorado5. A pro-
consequências sociais que tal ato provoca. posta foi viabilizar um estudo6,7 para diminuir o
Nessa direção, acredita-se que a ideia básica viés produzido pela subjetividade no uso deste re-
que predomina entre os profissionais da área da curso de avaliação, investigando a aplicabilidade
saúde é a de fazer o possível e até o impossível em desse instrumento para a autópsia psicológica, cujos
beneficio das pessoas em sofrimento, objetivando dados demonstrassem permitir um grau razoável
sempre a vida por ser esta o bem maior de todo ser de concordância entre avaliadores. Outras produ-
humano. Entendo que certamente este seja o moti- ções8-10 decorreram desta Tese e a ESAP já foi adap-
vador de Fátima Cavalcante e Maria Cecília Mi- tada para o espanhol11 num estudo desenvolvido
nayo para se envolverem com a temática do suicí- na Espanha.
dio e a operacionalizar um estudo multicêntrico Então, a autópsia psicológica é uma estratégia
com o objetivo de identificar e compreender as utilizada para delinear as características psicológi-
variáveis que interagem e alimentam a associação cas de vítimas de morte violenta, sendo utilizada
do evento suicídio com a velhice. durante o curso de uma investigação de morte,
O artigo Autópsias psicológicas e psicossociais de para auxiliar a determinar o modo de morte de
idosos que morreram por suicídio no Brasil retrata um indivíduo, especialmente em casos duvidosos.
um estudo de pertinência cientifica, clínica e social. Com o passar do tempo, este recurso que muito
O texto traz informações muito importantes rela- auxiliou a médicos legistas e profissionais da área
cionadas a fatores de risco e de proteção que po- do direito penal e cível3,4, passou, também, a con-
dem possibilitar a implementação de ações para a tribuir na corroboração e/ou identificação de no-
prevenção do suicídio em idosos. Vários aspectos vos fatores de risco e correlatos sociodemográfi-
do artigo poderiam ser comentados, mas optei cos do suicídio. É com esta finalidade que Fátima
problematizar alguns deles. Cavalcante e Maria Cecília Minayo desenvolveram
Entendo que o ponto principal do artigo é a
estratégia utilizada para a coleta dos dados. A mais
de uma década que estudo problemáticas relacio-
1
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia
nadas ao suicídio e utilizo a autópsia psicológica Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS).
por entender que, por meio deste recurso de exa- bwerlang@pucrs.br
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Welang BSG et al.

e utilizaram o “Roteiro de entrevista semiestrutu- na velhice, a repercussão e os questionamentos além


rado para autopsias psicológicas e psicossociais”. de serem muito inquietantes dão voz à visão antiga
Com base na literatura científica organizaram um da velhice como aquela etapa em que predomina
roteiro composto por 43 perguntas que avaliam unicamente um contexto de declínio e perdas. Por
aspectos sociais, modo de vida, estado mental, des- que uma pessoa idosa que alcança a possibilidade
crição do suicídio e aspectos familiares. Fico muito da longevidade decide dar cabo de si mesmo? Todas
feliz frente à constatação de que profissionais qua- as experiências acumuladas ao longo dos anos não
lificadas e identificadas com a preocupação e a ne- foram suficientes para instrumentalizá-las no en-
cessidade de auxiliar na promoção da saúde, este- frentamento de suas dificuldades?
jam empenhadas em qualificar a estratégia de au- A questão que se impõem à reflexão, diz res-
tópsia psicológica. Trabalhos científicos como este, peito à constatação do fato de que além do valioso
contribuirão com a qualificação da estratégia de avanço científico que facilita uma maior expectati-
autópsia psicológica para que esta deixe de ser vis- va de vida, cada vez mais é necessário aportes que
ta como um recurso subjetivo, não fidedigno e com venham a contribuir e garantir a melhoria da qua-
dificuldades para chegar a ser um instrumento lidade de vida das pessoas. Neste sentido, entendo
adequadamente validado. que não se pode compreender a singularidade da
Entendo que um dos problemas que os profis- velhice sem se fazer um recorte de suas interfaces
sionais da área da saúde enfrentam é saber como com o contexto social, político e cultural no qual o
predizer que indivíduos potencialmente suicidas, idoso habita. No Brasil o processo de envelheci-
vão transformar suas fantasias e/ou ideações em mento, não é acompanhado de melhorias no aten-
atos concretos5. Mas, estudos como o realizado dimento no sistema de saúde, nas condições de
por Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo, habitação, trabalho e alimentação. O contexto é de
colaboram, em muito, no sentido de alertar para desigualdade social e da falta de estruturas para
os sinais que devem ser procurados na história de responder adequadamente às demandas do idoso.
vida e no comportamento das pessoas como indi- Os dados identificados por Fátima Cavalcante
cativo de risco de atos autoinfligidos fatais. e Maria Cecília Minayo são claros e denunciam a
Outro aspecto importante do texto é a questão vulnerabilidade de 51 idosos de dez municípios
do entendimento da morte por suicídio em uma brasileiros. Estes cometeram suicídio atormenta-
determinada etapa do ciclo vital. Sabemos que o dos pela sobrecarga financeira/endividamento pes-
evento morte pode ocorrer a qualquer momento, soal ou familiar, abusos e desqualificações, morte
contudo a maioria das pessoas deseja e espera al- e adoecimentos de parentes, doenças físicas/limi-
cançar e usufruir a longevidade. A ciência progre- tação da capacidade funcional, sintomas/transtor-
diu e os avanços alcançados em todas as áreas do nos mentais, isolamento social/solidão/falta de
conhecimento têm contribuido para aumentar a apoio e ideações, tentativas e suicídio na família.
duração média de vida. Assim, na sociedade atual Urge pensar em ações e políticas públicas de
o número de pessoas idosas tem aumentado signi- saúde que possibilitem aproximar os benefícios da
ficativamente. Acabou, portanto, a vigência da ideia ciência, aos idosos de todos os contextos socioeco-
de que um idoso não tem futuro. As pessoas estão nômicos de nosso país. Devemos compreender o
vivendo mais e os cuidados com a saúde têm pos- idoso em seu processo de vida, conhecer suas po-
sibilitado diminuir as limitações e as incapacida- tencialidades e fragilidades e colaborar para que
des típicas deste momento da vida. A velhice, não é este mantenha sua posição junto ao grupo fami-
mais vista apenas como um processo desfavorável liar e à sociedade.
de perdas fisiológicas, psicológicas e sociais que Um ponto alto do texto de Fátima Cavalcante e
levava rapidamente a morte. Maria Cecília Minayo é a descrição mais detalhada
Mas, embora os avanços científicos sejam evi- de seis casos, dos 51 estudados com o Roteiro de
dentes e tenham contribuído para incrementar os entrevista semiestruturado para autopsias psico-
anos de vida da população, em termos mundiais e lógicas e psicossociais. A estratégia de autópsia psi-
nacionais, o crescimento do risco de suicídio tem cológica possibilita reconstruir a biografia da pes-
aumentado com a idade. O suicídio, em qualquer soa falecida focando a intenção do morto em rela-
faixa etária, é um fenômeno trágico, doloroso, que ção a sua própria morte5. Nos casos apresentados
impressiona, choca e coloca o indivíduo frente a é clara a vivência de uma dor psicológica insupor-
uma situação sem ponto de retorno, afetando emo- tável, o que possibilita afirmar que o suicídio, não
cionalmente a todos os que estão relacionados, di- é um ato aleatório, sem finalidade, pelo contrário,
reta ou indiretamente, a este fato12. Quando a ocor- é vivenciado como a melhor saída disponível fren-
rência de um comportamento autodestrutivo se dá te a uma situação conflituosa para o sujeito e tem
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Ciência & Saúde Coletiva, 17(8):1955-1962, 2012


o propósito de viabilizar uma solução para um 5. Werlang, BSG. Proposta de uma entrevista semi-es-
sofrimento muito intenso. O alvo é interromper o truturada para autópsia psicológica em casos de sui-
cídio [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual
fluxo doloroso de consciência, parando com o sen- de Campinas; 2001.
timento invasor de desesperança que deixa o indi- 6. Werlang BSG, Botega NJ. A Semi-Structured intervi-
víduo derrotado e sem saída para a vida3,4. ew for psychologycal autopsy an inter-rater reliabili-
Mas, não podemos perder de vista que o suicí- ty study. Suicide Life Threat Beh 2003; 33(3):326-331.
dio, em qualquer faixa etária, pode ser prevenido. 7. Werlang BSG, Botega NJ. A semi-strutured interview
for psychological autopsy in suicide cases. Revista
Os fatores identificados por Fátima Cavalcante e Brasileira de Psiquiatria 2003; 25(4):212-219.
Maria Cecília Minayo relacionam-se a: doenças e 8. Sperb IW, Werlang BSG. Suicídio em uma população
deficiências, depressão e estados depressivos, con- rural e urbana de pequeno porte. Boletim de Psicolo-
flitos familiares e crises conjugais. Concordamos gia 2002; 117(LII):159-182.
que os esforços de prevenção do comportamento 9. Sá SD, Werlang BSG. Homicidio Seguido de Suicidio.
Universitas Psychologica 2007; 6(2):231-244.
suicida devem estar pautados no conhecimento 10. Sá SD, Werlang BSG. Homicídio seguido de Suicídio:
desses e de outros fatores de risco, sendo funda- na cidade de Porto Alegre. Estudos de Psicologia (Cam-
mental que as ações12 se voltem ao que pode ser pinas) 2007; 24(2):181-189.
transformado, evitando aquilo que possa ser evi- 11. García-Caballero A, Recimil MJ, Touriño R, García-
tado e amenizando o que foge de qualquer possi- Lado I, Alonso MC, Werlang BSG, Jiménez J, Perez
de Albéniz MC, Losada A, Bendaña JM. Adaptación
bilidade de intervenção. Como destacam Botega et y Validación de la Semi-Structured Interview for
al.12 pensar em aspectos preventivos do suicídio Psychological Autopsy. Actas Espanõlas de Psiquiatría
significa acreditar que se possam oferecer aos indi- 2010; 38(6):332-339.
víduos outras possibilidades de enfrentamento das 12. Botega NJ, Werlang BSG, Cais CF da S, Macedo MMK.
dificuldades ou patologias que os levam a buscar, Prevenção do Comportamento Suicida. Psico 2006;
37(3):213-220.
nesse ato fatal, uma espécie de solução para seu
sofrimento. Da mesma forma, entendo que abor-
dar a temática da prevenção do suicídio conclama
a todos os profissionais da área da saúde a estudar
e a reconhecer a singularidade de fatores envolvi-
dos nesta complexa situação. Daí outro aspecto
relevante do estudo das autoras: a produção de
conhecimento científico a ser compartilhado com
outros profissionais.
Finalizando, gostaria de agradecer pela opor-
tunidade de participar deste debate e enfatizar que
estudos, como este que foi debatido, são funda-
mentais e contribuirão para estruturar ações de
prevenção e atendimento baseadas em evidências
científicas.

Referências

1. Werlang BSG, Macedo MMK, Krüger LL. Perspectiva


psicológica. In: Werlang BG, Botega JN, organizado-
res. Comportamento Suicida. Porto Alegre: Artmed;
2004. p. 45-58.
2. Jacobs D, Klein ME. The expanding role of psycho-
logical autopsies. In: Leenaars AA, organizador. Sui-
cidology essays in honor of Edwin S. Shneidman. North-
vale: Jason Aronson; 1993. p. 209-247.
3. Werlang BSG, Botega NJ. Avaliação retrospectiva (au-
tópsia psicológica) de casos de suicídio: considera-
ções metodológicas. Psico 2002; 33(1):97-112.
4. Werlang BSG, Botega NJ. Entrevista semi-estruturada
para Autópsia Psicológica (ESAP) em casos de Suicí-
dio. In: Corrêa H, Perez Barrero S, organizadores.
Suicídio: uma Morte Evitável. São Paulo: Atheneu;
2006. p. 187-195.

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