Você está na página 1de 13

EM TORNO DO SUJEITO NORMAL1

Benilton Bezerra Jr.

A invenção da normalidade

O conceito de normal, tal como o usamos na vida cotidiana, entrou


muito recentemente nas línguas ocidentais, em meados do século XIX.
Acoplados a ele, vieram outros termos a ele associados ─ norma,
normalidade, anomalia, anormalidade, normatividade ─ igualmente
importantes na maneira como avaliamos formas corporais, estilos de vida,
modos de organização subjetiva, tipos de relacionamento interpesssoal,
práticas sexuais, laços familiares, e assim por diante. O surgimento do que
chamamos modernamente de normalidade refletiu o interesse político voltado
para o conhecimento estatístico da população, base para o estabelecimento
das novas formas de exercício do poder sobre as populações, que começou
a surgir na passagem do século XVIII para o XIX na Europa. O nascimento
da idéia de normalidade é contemporâneo da criação da figura do homem
médio, a partir dos procedimentos de mensuração estatística das
características biológicas da população, necessária para os fins de saúde
pública, educação, controle demográfico, etc.

Aos poucos, o que era um simples procedimento de ordem burocrática


foi se configurando no imaginário da época como a maneira de conhecer de
forma objetiva e palpável o que seria a expressão mais bem sucedida da
natureza humana. O normal seria aquele conjunto de medidas para as quais
naturalmente confluía a maior parte de uma população. O desvio, tudo aquilo
que, por uma razão outra, escapava a essa vocação natural. O médio, um
dado objetivamente encontrado na aferição estatística, foi sendo
gradualmente recoberto de um valor altamente positivo, o de expressar a
forma natural humana em sua versão mais bem realizada. Um corolário
inevitável desse processo foi o valor negativo progressivamente atribuído a
tudo que se situava para aquém ou para além dos limites médios de maior
freqüência. Se o normal indicava a expressão bem sucedida de uma

1
Textoproduzidopara o Museu do Amanhã, em 2012.
essência, o desvio em relação a ele denunciava insucesso, falha,
degeneração.

Um poderoso deslocamento se consolidou nesse movimento, pois se


até então os indivíduos eram instados a medir seu valor frente a padrões
ideais de beleza física, performance corporal ou capacidade mental,
(personificados nas figuras míticas, nos deuses ou em indivíduos
extraordinários), a partir desse deslocamento, esse lugar foi sendo ocupado
pelas figurações do normal. A difusão do conceito de normal nos imaginários
teórico e social trouxe como implicação a idéia de que todos os indivíduos
podem (e devem) se situar dentro de seus limites, ao contrário do que ocorria
em sociedades reguladas por ideais, nas quais todos os indivíduos, tinham,
por definição, características não-ideais. O processo de normalização
ocupou, sobretudo a partir do século XIX, quase todas as esferas sociais,
desenhando os espaços da normalidade e seus desvios. Dos inúmeros
exemplos, dois podem ser lembrados, pela repercussão que têm até hoje: a
exclusão dos loucos nos espaços manicomiais e a patologização da
homossexualidade, transformada em perversão sexual. Nos dois últimos
séculos, a idéia de que é preciso perscrutar a natureza e a experiência
humana para delimitar o que nelas pertence ao campo do normal e o que
dele escapa jamais deixou de impregnar o imaginário social, com imensas
repercussões sobre o modo como as sociedades puderam lidar com a
diferença, a diversidade, a alteridade.

Ocorre, porém, que o processo histórico de normalização progressiva


da vida em sociedade se deu ao mesmo tempo em que o individualismo se
consolidou como um valor fundamental nas culturas ocidentais. Este fato
implicou uma dinâmica social complexa, na qual acabaram por se engendrar
também as condições que propiciaram o surgimento de diversas formas de
contestação à chamada ideologia da normalidade. No século XX surgiram
diversos movimentos cuja força derivou justamente da contestação à idéia de
uma normalidade naturalmente dada, à qual todos deveriam estar
submetidos. Os exemplos são expressivos: os surdos reivindicando o seu
reconhecimento como uma comunidade lingüística com características
próprias, ao invés de serem vistos como um conjunto de pacientes; os
diversos movimentos de afirmação de sexualidades não hegemônicas (gays,
transexuais, transgêneros, intersexuais); as proposições em torno da
neurodiversidade sustentadas por autistas que não querem ser vistos como
doentes, e sim como uma expressão da diversidade humana; o movimento
das desabilidades (deficiências), que afirma a desabilidade como algo
inerente à condição humana, e não como uma tragédia pessoal que se abate
apenas sobre alguns indivíduos; as iniciativas em torno de novas formas de
parentalidade biológica e de filiação, que ganham contornos mais complexos
e insólitos à medida que novas tecnologias possibilitam formas inéditas de
reprodução, levando a sociedade ao reconhecimento de formas inusitadas de
parcerias parentais e laços familiares.

Quando pensamos na sociedade que esperamos ver surgir no futuro


próximo, projetamos sobre ela nossas melhores expectativas: imaginamos
uma sociedade aberta, livre, justa e tolerante em relação à variedade de
formas de vida, tipos de crença e estilos de satisfação pessoal, ou seja, uma
sociedade capaz de equilibrar os anseios de liberdade e auto-realização dos
indivíduos, por um lado, e as exigências impostas pela convivência social, por
outro. Ora, este equilíbrio não virá automaticamente. Transformações sociais
e inovações tecnológicas engendram muito mais do que pode supor quando
começam. Se podemos sonhar com um mundo de maior tolerância para com
a diversidade da experiência humana, é preciso nos precavermos contra
novas formas de exclusão e intolerância. A experiência de pessoas obesas
no mundo atual serve como advertência. O que durante quase toda a história
da humanidade foi visto com um traço característico sem peso normativo
negativo, passou de maneira rápida e quase imperceptível a ser considerado
como um desvio condenável, não apenas uma patologia, mas quase uma
falha moral. Um futuro mais tolerante, mais aberto à diversidade e ao outro,
só ocorrerá se este for um valor discutido, negociado e transmitido em cada
formação social, em cada universo cultural, num processo global em que os
valores democráticos consigam se enraizar progressivamente (mesmo que
em velocidades diferentes) em todo o planeta.

Toda sociedade tem normas que demarcam a diferença entre o que é


permitido e o que é proibido, entre o que se considera desejável o que se
julga repulsivo, entre o que é normal e o que não é. Porém, como a
característica fundamental da condição humana é a sua abertura ontológica,
os modos de ser humano se transformam junto com a história, fazendo com
que o processo de demarcação entre o prescrito e o proscrito, entre aquilo
que na experiência humana consideramos digno de proteção (porque
valoramos positivamente) e aquilo que recusamos (porque valoramos
negativamente) seja incessante. O que durante milênios foi universalmente
aceito como natural e legítimo (a escravidão, por exemplo), se torna repulsivo
e criminoso. O que por muito tempo, em muitos lugares, era considerado
patológico, desviante ou criminoso (práticas homossexuais) passa a ser visto
como uma possibilidade legítima da experiência sexual humana. A história
das sociedades é, em grande medida, a história dos valores, regras, normas,
hábitos e leis que, ao longo do tempo, vão traçando e retraçando as
sucessivas cartografias que orientam os indivíduos a distinguirem o que
pertence à norma e o que foge a ela, entre o que é aceito como normal e o
que é repelido por confrontar a norma vigente.

Na maioria das sociedades, e há até pouco tempo atrás, essas


demarcações eram estabelecidas com base em discursos e práticas que
dispunham de um poder simbólico inquestionável, como a tradição ou a
religião, e que se impunham à consciência dos indivíduos. Nas sociedades
atuais, porém, não há discurso ou valor algum que disponha dessa força
simbólica. Não há valor mais alto que se alevante, impondo silêncio e
submissão. A disputa em torno dos critérios de distinção entre normal,
diferente, patológico, monstruoso, etc, se tornou mais laica, pública, política.
E no futuro próximo esse movimento deve se acentuar, impulsionado pela
força do individualismo, por um lado, e pela explosão de novas possibilidades
humanas advindas das descobertas científicas, das inovações tecnológicas,
e das mutações sociais, econômicas e políticas. Pensar sobre nosso futuro
significa, portanto, pensar em como responder aos desafios impostos pelas
inúmeras transformações nas formas de vida individual e de convivência
social que se vislumbram à nossa frente.
O normal, o diferente, o patológico

Antes porém, é importante nos determos um pouco sobre as


ferramentas para pensar que utilizamos para tratar desse tema: os conceitos
de normal, anômalo (diferente) e anormal (patológico). À primeira vista
simples e inequívocos, esses termos escondem, na verdade, uma riqueza e
profundidade semântica imensa que é preciso dominar para que se possa
discutir cenários futuros sem preconceitos espontâneos nem tampouco
condescendência irresponsável frente a toda e qualquer novidade.

Um primeiro ponto: o conceito de normal só pode ser definido junto


com o seu contrário, o anormal, ou patológico. Um não pode ser apreendido
sem o outro. Um segundo ponto: normal e anormal são adjetivos que só
podem ser propriamente aplicados aos fenômenos da vida. Isso porque na
vida há sempre algo em jogo. No universo dos fatos físicos e químicos, as
leis que governam seus processos operam em total indiferença em relação
aos resultados dos eventos e estados que elas precipitam. No universo físico,
nada nunca está fora do lugar, nada “dá errado”. Dizemos que estrelas
nascem, envelhecem e morrem, mas esse vocabulário carregado de
conotações positivas e negativas é efeito do olhar humano, que dá um
colorido vital à descrição de processos nos quais o que de fato acontece é
apenas a transformação ininterrupta dos estados da matéria. Não há
patologia, assim como não há saúde, no movimento cósmico dos corpos
celestes ou no universo infinitesimal das partículas subatômicas. Tudo
simplesmente acontece e se transforma, passando a novas formas de
existência.

Nos fenômenos da vida, porém, não é assim, porque os


acontecimentos, do ponto de vista do ser vivo, são avaliados como sendo
favoráveis ou desfavoráveis. Há fatos que preservam e estimulam a vida do
organismo, e há outros que a contrariam, restringem ou ameaçam. É apenas
deste ponto de vista do ser vivo que eventos e estados se tornam objeto de
avaliação normativa, ou seja, de uma apreciação que os qualifica como
positivos ou negativos, conforme o seu impacto sobre a preservação, a
plasticidade e a reprodução dos organismos e das espécies. Ao contrário do
que ocorre nos eventos, estados e processos da matéria, não existe
indiferença no reino da vida. Como afirma Georges Canguilhem, a vida,
mesmo para uma ameba, é preferir ou excluir, pois a vida é, em si mesma,
“polaridade dinâmica”, “posição inconsciente de valor”. A vida, mesmo em
suas formas mais simples, é em sua essência a atividade normativa que
busca reagir às injunções e infidelidades do meio criando para si novas
formas e novos modos de funcionar, de modo a se preservar e se reproduzir.
A vida está sempre buscando o manter o que a sustenta e repelir o que a
ameaça. E é em relação a essa polaridade inerente ao vital que um fato pode
ser considerado normal ou anormal.

É preciso lembrar que o termo “normal”, em seu uso habitual, possui


dois sentidos, comporta duas acepções, que por vezes se superpõem, mas
que são muito distintas: a primeira é a do normal enquanto um fato ─ aquilo
que está presente na maioria dos casos, o mais habitual, o comum; a
segunda é a do normal como um valor ─ aquilo que expressa a
normatividade de um ser no meio em que vive, aquilo que é como deve ser. A
primeira acepção é meramente descritiva, instrumental. A segunda é
prescritiva, apreciativa. Costumeiramente, tendemos a pensar que para
chegarmos ao normal basta apreender estatisticamente o que é mais
constante, prevalente, ou habitual. Confundimos o sentido descritivo como o
sentido valorativo da palavra normal. Ou seja, pensamos que na média
encontramos a expressão do que é o normativo. Na nossa consciência
comum, se obscurece a evidência de que é justo o oposto que ocorre: é o
valor vital de uma norma (a sua normatividade) que faz com que ela se
expanda e sua presença seja expressa na média. Ou seja: não é porque uma
característica é estatisticamente comum que ela se torna normal, no sentido
de normativa. É porque ela é normal, no sentido de normativa, para um
grande número de indivíduos, que ela se torna estatisticamente comum.

Assim, é a normatividade, e não a mera normalidade estatística, que


melhor define o caráter essencial do normal. Normal é então, no seu sentido
mais forte e decisivo, tudo que permite o exercício da capacidade normativa
do ser vivo. Um traço, uma forma, um tipo reação, um comportamento, são
normais se por meio deles a normatividade do organismo individual ou do
sujeito pode se expressar. Pouco importa o fato de estarem dentro ou fora
dos padrões estatísticos habituais. O que determina sua normalidade é o
valor normativo que exibem.

Esta observação permite compreender e apreciar a diferença entre a


anomalia e a anormalidade, duas formas de variação em relação à
normalidade estatística. A anomalia designa um fato, uma simples diferença
em relação ao que é mais constante e comum. Trata-se de um termo apenas
descritivo, sem nenhuma avaliação quanto ao seu valor vital. A anomalia
expressa a diversidade e a plasticidade que a vida apresenta, sempre
tendendo a distanciar-se de formas antigas em direção a novas formas de
organização e modos de funcionamento mais eficientes. Na verdade, a
variedade e a mudança são, muito mais que a estabilidade e a forma fixa, a
essência do fato vital. A história da evolução da vida é o resultado de
anomalias que se impuseram como normas por conta de seu valor normativo
superior. Somente quando uma anomalia, ao contrário, se mostra prejudicial
à vida, passamos a qualificá-la de modo negativo, e a chamamos de
anormalidade, ou patologia.

A anormalidade representa essencialmente um constrangimento, uma


redução, uma limitação imposta à capacidade normativa. Ela implica pathos,
sofrimento, consciência de normatividade contrariada, e é isso que a define
como patologia ou doença. É um termo apreciativo, normativo, que qualifica
negativamente um fato, opondo-o (e não apenas diferenciando-o) ao normal.

Mas há ainda um outro elemento crucial a ser destacado: o caráter


normal (no sentido de normativo) de um fato ou um modo de ser não pode
ser aferido isolado do contexto em que ele se dá. Lembrando novamente
Canguilhem, o ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são
normais. É a sua relação que os torna (ou não) normais um para o outro. Não
existe um modo de funcionamento, uma forma vital ou um traço
comportamental que seja normal ou patológico em si. Assim como não há um
meio que seja normal em si para qualquer organismo. Meios aeróbios são
normais para quase todos os seres vivos que conhecemos, mas para
bactérias anaeróbias um ambiente com oxigênio é mortal. Gosto extremado
por ordem, regularidade e limpeza é péssimo para quem tem o desejo ser um
ator, por exemplo, mas podem ser decisivos para quem almeje ser
pesquisador num laboratório.

As considerações sobre os fenômenos vitais podem ser, mutatis


mutandis, estendidas aos fatos da cultura humana. Toda formação social
implica formas de regulação fundadas em valores, que são a expressão de
exigências e expectativas coletivas. Toda sociedade é fundada em normas
que ordenam seu funcionamento e estabelecem hierarquias, regras, leis,
padrões, ideais, prescrições e proscrições. Podem variar as fontes atribuídas
às normas sociais (a natureza, os deuses, Deus, a tradição, a política, etc.),
ou os mecanismos de dispositivos responsáveis por sua imposição e controle
(tradição, família, religião, estado), mas eles estão sempre lá. Mesmo quando
se fala, como hoje em dia, de uma “falência de valores”, é, na verdade, da
passagem de um quadro antigo de valores para um novo que se trata. A
cultura, assim como a natureza, tem horror ao vácuo.

Reconstruindo as fronteiras da normalidade

Na experiência social humana, as fronteiras entre normalidade,


diferença e patologia são criadas, reguladas e transformadas pela dinâmica
social que envolve os valores simbólicos de cada cultura, responsáveis pela
variação histórica dos padrões socialmente aceitos de normalidade, e pela
atitude desenvolvida coletivamente em relação a tudo que escapa ao campo
do normal.

Um dos mais eficazes instrumentos para cartografar as fronteiras


móveis entre o normal e o patológico a partir da modernidade é o estudo do
conjunto de instrumentos utilizado pela medicina (e pela psiquiatria, em
especial) para a construção de seus sistemas de classificação e diagnóstico.
Esse conjunto de significações reflete, em grande parte, o imaginário e os
valores de cada época. Masturbação e homossexualidade foram doenças e
deixaram de ser. Envelhecimento, calvície, timidez e o luto sempre foram
vistos como condições naturais. Não é mais assim. Essas e outras condições
vêm passando a ser consideradas transtornos com horizonte de cura.
Quando olhamos para o passado nos surpreendemos com o absurdo de
diagnósticos como o de draepetomania, criado pelo psiquiatra americano
Samuel Cartwright na segunda metade do século XIX ─ uma suposta
condição patológica caracterizada pelo surgimento de um desejo irracional de
liberdade que acometia certos escravos. Mas, na realidade, os limites entre
normal e patológico de uma época só parecem claros para os
contemporâneos. É verdade que algumas patologias mentais exibem uma
regularidade em sua forma e sua incidência que faz com que possamos
reconhecer na dementiapraecox o século XIX a mesma condição descrita
como esquizofrenia hoje. Mas não sabemos como no futuro serão avaliados
muitos dos diagnósticos correntes hoje em dia.

A expansão dos diagnósticos psiquiátricos tem se intensificado


sobretudo após o aparecimento do DSM (DiagnosticandStatistic Manual, da
Associação Americana de Psiquiatria, criado em 1952), chegando a quase
400 categorias na versão atual (DSM IV-R). A expectativa em relação ao
DSM5, a ser publicado em 2013, é de elevação desse número, com a
inclusão de diagnósticos polêmicos, como os de síndrome de sintomas
atenuados de psicose, ansiedade depressiva leve, distúrbio de desregulação
de temperamento. Há sugestões ainda mais discutíveis, como a do transtorno
parafílicocoercicitivo (estupro). Ao se descolar de apreciações
fenomenológicas e psicodinâmicas, restringindo a construção dos
diagnósticos a descrições comportamentais, o espectro da patologia mental
parece englobar um numero cada vez maior de indivíduos, deixando pouco
espaço para noção de uma vida normal que comporte oscilações, altos e
baixos, e diferenças referidas à singularidade de alguns indivíduos.

Quando pensamos em normalidade como exercício contínuo da


normatividade, a própria relação entre saúde e doença se modifica, pois
esses termos deixam se opor de maneira unívoca. Desta perspectiva, ter
saúde não é o mesmo que não ter doenças ─ é, ao contrário, poder adoecer
e se recuperar. É ser normativo. A patologia se inscreve como parte da vida
e, neste sentido, uma vida completamente imune ao pathosé simplesmente
uma abstração. O curioso é que, na busca de uma saúde perfeita, que se
expressa na ausência de sofrimento e na otimização do desempenho físico e
mental, fazemos voltar pela porta dos fundos o que tentamos expulsar pela
porta da frente. Paradoxalmente, quanto mais buscamos a saúde tentando
afastar qualquer ameaça a ela, mais espalhamos a doença.

Mas não é só no pólo inferior da saúde (a patologia) que vemos as


fronteiras da normalidade sendo abaladas. Também no seu pólo superior (a
super saúde ou a super normalidade) os limites começam a se esfumaçar.
No mundo contemporâneo, tanto os valores vitais quanto os valores culturais
são fortemente influenciados pela dinâmica introduzida pelas possibilidades
da ciência e da técnica, em especial pelo alcance das transformações
suscitadas pelas biotecnologias. A possibilidade de superação dos limites
naturais por meio de práticas de aprimoramento (enhancement) de vários
aspectos da vida biológica e psicológica dos indivíduos (memória, humor,
cognição, sono, apetite, sexo) ganhou o imaginário social e vem organizando
um florescente mercado de produtos e serviços. Já não se discute se, mas
como se fará uso das tecnologias de regulação da vida psíquica e social e
aperfeiçoamento da performance corporal e subjetiva. Além dessas, estão na
pauta, hoje e no futuro próximo, técnicas de escrutínio pré-natal,
procedimentos de escolha seletiva de embriões, procedimentos de
intervenção fetal, bioengenharia embrionária, uso de tecnologias de interface
cérebro-máquina e cérebro-cérebro, etc. Todas, de algum modo, estão
referidas (na justificativa das escolhas que elas envolvem) ao debate em
torno das concepções de normalidade e das definições acerca das formas de
vida consideradas dignas (ou indignas) de serem vividas. O grande e
perturbador desafio que temos no futuro próximo é que a velocidade da
inovação tecnológica (com seus efeitos ontológicos, sociais, éticos e
políticos) é muito maior do que a capacidade que temos tido de refletir sobre
seu significado e sobre seus efeitos.

Outro elemento presente no redesenho das fronteiras da normalidade


tem sido a adoção generalizada da noção de risco, que já se impõe como
traço característico das sociedades complexas atuais. Esse fato implica uma
dupla consequência. De um lado, amplia de forma praticamente ilimitada o
campo de ação da medicina e das práticas de intervenção preventiva ou
terapêutica. Se não somos doentes neste exato momento, somos o tempo
todo candidatos potenciais a esta condição. Como conseqüência, a noção de
risco vem borrando progressivamente as fronteiras entre normalidade,
patologia e diferença, transformando todos os indivíduos em consumidores
de diagnósticos, produtos, serviços, tratamentos e procedimentos
preventivos. Por outro lado, com a difusão do imaginário do risco e o
surgimento de uma fortíssima indústria do bem-estar e da saúde, ocorre
também uma mudança importante no processo por meio do qual a
medicalização exerce seu papel de demarcação das fronteiras da
normalidade. Essa mudança diz respeito ao fato de que a medicalização
deixa de ser predominantemente efeito da ação de dispositivos médicos e do
poder do estado, e ganha novos agentes e novas engrenagens, na medida
em que a busca pela saúde passa a compor a agenda de reivindicação dos
consumidores, e a saúde passa ser tão comodificada quanto em qualquer
outra esfera da circulação de bens e serviços.

A normalidade contestada

Ao lado desse contínuo processo de normalização de esferas da


existência, desde a segunda metade do século passado um contraponto vem
sendo estabelecido por todos os movimentos que, em suas áreas
específicas, passaram a denunciar as formas de exclusão sofridas por
aqueles que, de um modo ou de outro, escapavam do que eram
considerados os parâmetros socialmente definidos como normais. O
questionamento das definições mais conservadoras de normalidade (ou seja,
como adequação a um suposto tipo natural específico da espécie) tem sido,
por exemplo, a alavanca propulsora do movimento das disabilities (no Brasil,
deficiências, ou desabilidades), que ganhou força nos anos 70, em especial
na América do Norte, e em países da Europa, junto com outros movimentos
de afirmação social dos direitos dos “diferentes” (gays, negros, loucos,
mulheres). O fato de por no centro de sua luta a contestação à idéia de uma
normalidade naturalmente dada fez com que o movimento em torno das
desabilidades contribuísse, direta ou indiretamente, para que muitos grupos
excluídos se levantassem em favor de seus direitos e de sua dignidade,
produzindo uma reverberação por toda a sociedade.
A força do movimento está em grande parte no modo como
ressignifica a própria idéia de normalidade. Para o movimento, é preciso
admitir que na natureza, a longo prazo, a variação é a regra, e a estabilidade
é a exceção, e o que determina a normalidade de um estado ou
funcionamento de um organismo é a relação que este organismo é capaz de
estabelecer com o ambiente em no qual vive. A vida de cadeirantes, cegos,
surdos, pessoas com paralisia cerebral, autistas, portadores da síndrome de
Down, entre outros, será mais ou menos normativa, dependendo da
capacidade da sociedade em responder criativamente às especificidades de
suas condições.

Em perfeita sintonia com a perspectiva cangulhemiana, o movimento


das disabilitiesprega que ser normal não é fazer parte da maioria. Ser normal
é ser normativo, ou seja, é ser capaz de criar ambientes e modos de viver
que permitam experimentar o mundo e usufruir da vida da maneira mais rica
de que cada um for capaz. Dessa forma,não são (ao menos, unicamente) as
condições de um corpo individual que o definem como limitado. As condições
ambientais que envolvem esse corpo é que farão com que uma determinada
característica diferente seja efetivamente vivida como limitação moderada ou
extrema, ou, ao contrário, como um traço característico que não implica
necessariamente prejuízo ou sofrimento. Na definição do grau de
normatividade desse indivíduo o ambiente é decisivo. Quanto mais aberto for
o ambiente físico e humano a diferentes modos de organização corporal ou
mental, mais normais (normativos) serão os indivíduos que fogem ao padrão
normal (médio). A discussão acerca dos limites entre normal e não-normal,
entre aceitável e indesejável, atinge não apenas a experiência física ou
mental dos indivíduos, mas também os arranjos relacionais nos quais a vida
humana se dá ─ a arquitetura das famílias, os modelos de relacionamento
amoroso e conjugal, as formas de relacionamento intersubjetivo, modos
diferenciais de parentalidade, etc. Biotecnologias tornam possível o que era
impensável há poucos anos, fazendo surgir realidades que desafiam o senso
comum.

Não há como pensar numa sociedade sem normas. Por isso em toda
sociedade normas e antinormas serão responsáveis pela distribuição de
lugares sociais de reconhecimento e pela criação de espaços de exclusão.
Preconceito, intolerância e opressão são o efeito inevitável de qualquer
ordenamento humano com base em valores ─ o que inclui qualquer formação
social. Portanto, o melhor a fazer é manter aceso o debate em torno das
novas linhas de repartição entre normal e não-normal, ampliando as
possibilidades de construir um futuro com cenários ao menos mais
interessante do que os que possuímos no presente.

Não há um modo único de ser normal, porque não existe um tipo único
de corpo, assim como não há apenas um tipo de ambiente. A normalidade,
na vida biológica como na vida cultural, é apenas uma convenção transitória.
Os valores e sentidos que regem nossa existência se transformam junto com
nosso conhecimento das coisas e nosso desejo de inventar mundos mais
interessantes. Exercitar a imaginação e a invenção para produzir espaços
urbanos, tecnologias de uso pessoal e sentimentos compartilhados
favoráveis à aceitação do diferente, do outro, é a melhor maneira de imaginar
futuros mais próximos de nossas melhores intenções.

Você também pode gostar