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A dor de existir

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A Dor de Existir
A dor de existir e
suas formas clínicas:
tristeza, depressão, melancolia

KALIMEROS
Escola Brasileira de Psicanálise
Rio de Janeiro

Apresentação:
Antonio Quinet
Copyright © 1997, Kalimeros

Organização Geral
Consuelo Pereira de Almeida, José Marcos Moura e
Ntícleo de Pesquisa sobre a Psicose (NUPP)
da Escola Brasileira de Psicanálise
(Coordenação -Antonio Quinei)
Conselho Editorial
Maria Anita Carneiro Ribeiro,
Maria da Gloria Maron e S onia Alberti
Projeto Gráfico e Preparação
ContraCapa

A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia I


Kalimeros - Escola Brasileira de Psicanálise - Rio de Janeiro. Consuelo
Pereira de Almeida e José Marcos Moura (Orgs.) - Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 1997.
384p.; 14 x21cm

ISBN 85-860 I 1-05-3


I. Psicanálise. 2. Melancolia. I. Almeida, Consuelo Pereira de, org. 11.
Moura, José Marcos, org. III. Kalimeros. Escola Brasileira de Psicanálise.
IV. Título.
CDD 150. 195

1997
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa livraria Ltda
< ccapa@easynet.com.br>
Rua Barata Ribeiro 370- Loja 208
22040-000 - Rio de J aneiro - R]
Te! (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526
SUMÁRIO

Apresentação 09
Antonio Quinet

A Grécia -parte um

Problema XXX,l 23
Aristóteles

Os clássicos - parte dois

Melancolia no sentido mais estrito 39


W Griesinger
Do delírio das negações 77
Jules Cotard
Introdução: melancolia 93
Excitação maníaca 1O5
Emil Kraepelin

A teoria e a clínica -parte três

A clínica do sujeito na depressão: Freud e a melancolia 119


Antonio Quine!
Gaio saber e triste verdade 157
S erge Cottet
Um mais de melancolia 166
Colette S oler
A luta da psicanálise contra a depressão e o tédio 189
Énc Laurent
Depressão e melancolia 199
S te/la Jimenez
Sobre a identificação com o objeto 207
Romi/do do Régo Barros
Os quadros nosológicos:depressão, melancolia e neurose obsessiva 217
S onia A lberti
Uma dor de Medéia 229
Maria Anita Carneiro Ribeiro
A mulher da dívida 243
Silvana Maria Esteves Freire
Memórias (Não Póstumas): o dialeto maníaco 251
Thais Ribeiro
Toxicomanias antidepressivas 261
Lenita Bentes
A interpretação da droga 269
Ernestro S inatra
A dor na própria carne 277
A ndréa Vilanova
As lágrimas de Maria 285
Maria V itoria Bittencourt
O feminino e a dor de existir 295
Mana Lttisa Durei
As crianças e sua dor de existir 301
Ana & tth Ncgles
Morrer de banzo 309
Maria Sueli Peres
A posição depressiva no final de análise 319
Ana Ucia Ribeiro
Conexões -parte quatro

A dor de existir em Florbela Espanca 329


Elizabeth da Rocha Miranda
Dor de existir, tristeza e gozo 33 5
Marcus André Vieira
Vinte quatro horas na vida de uma mulher 343
Eliane S chermann
Prova de não existência 3 53
Vera Pol/o, Maurí/io Ross~ Roberta Giovana de A. Martie/o
Gala Salvador Dali: o amor recobre a dor de existir 365
Ana Martha Wilson Maia
APRESENTAÇÃO

S 011 o tenebroso, o viiÍvo, o inconsolado


O principe na torre abolzda de Aquitânia;
Morta minha IÍnica estrela, mm alaúde constelado
Traz o sol negro da melancolia.

El desdichado, Gérard de NeroaL

A depressão se encontra hoje em dia generalizada e quanto


mais sobre ela se fala, se escreve e se pesquisa, tanto mais ela é
encontrada nos mais insuspeitos ressentidos de nossa civilização. O
significante é realmente criacionista: o significante depressão parece
ter engendrado o batalhão de sujeitos que assim qualificam seu estado
d'alma quando se encontram tristes, desanimados, frustrados, enluta-
dos, anoréxicos, apáticos, desiludidos, entediados, impotentes, angusti-
ados etc. Será que antes não os percebíamos? Onde se escondiam?
Não há dúvida de que sempre existiram os estados
depressivos- constatamos desde Aristóteles em seu Problema XXX
- mas A depressão como patologia com entidade própria e indepen-
dente da subjetividade, que emerge na mídia como o mal quase epi-
dêmico deste fim de século, parece ser um subproduto contemporâ-
neo do casamento do neo-liberalismo globalizante do capital com
os avanços das ciências neuro biológicas. Pois na clínica, A depressão
não existe, o que encontramos são estados depressivos que ocorrem
em algum momento na vida de um indivíduo, apresentando uma
história subjetiva precisa.
A Dor de ExiJiir

Por um lado, parece haver uma generalização - Todos


deprimidos!- uma vez que "se encontra" mais a doença. A nova ver-
são do Simão Bacamarte acha essa nova forma de alienação mental
até mesmo lá onde ela não ousa mostrar sua cara, lá onde ela está
"mascarada". Por outro lado, há um combate ferrenho à depressão
por ela ir contra os ideais da produtividade e contra o imperativo da
saúde e do bom humor que caracterizam nossa sociedade utilitarista
e consumista. Abaixo os deprimidos! O resultado disto é o número
crescente de pessoas que tomam antidepressivos e de médicos e /
paramédicos que os receitam, sustentados pelo discurso da ciência
que divulga os resultados das pesquisas sobre os neuro-hormônios.
Mas até hoje não se descobriu o substrato anatôrnico cerebral das
paixões do homem e do mal-estar do sujeito. A novos males novos
remédios? Ou a novos remédios novos males? A quantidade e vari-
edade de antidepressivos que deságuam no mercado e a facilidade
do consumidor a seu acesso fazem da hetero e da automedicação
um solo propício para uma nova toxicomania que foraclui a implica-
ção do sujeito no estado depressivo.
Será que a multiplicação dos deprimidos do fim do século
XX não pode ser encarada como um sinal dos tempos? A falta de
uma perspectiva mais igualitária, a queda dos ideais revolucionários,
o desemprego crescente, a competitividade em um mercado cada
vez mais feroz associando-se aos imperativos de gozo de uma soci-
edade cada vez mais produtora de gadgets que acenam com a pro-
messa de satisfazer o desejo - tudo isso pode efetivamente contri-
buir para o estado depressivo de um sujeito desorientado em rela-
ção a seu desejo, perdido de seus ideais. Como afirma Baudrillard
em Sociedade de consumo, vivemos hoje em uma espécie de evidência
do consumo e da abundância, criada pela multiplicação de objetos,
na qual os homens da opulência não se cercam mais de outros ho-
mens e sim de objetos (TVs, carros, computadores, fax, telefones).
Suas relações sociais não estão centradas nos laços com outros ho-
mens, mas na recepção e manipulação de bens e mensagens. Essa

10
Antonio Quintt

deterioração dos laços sociais e o empuxo ao prazer solitário fazen-


do a economia do desejo do Outro só estimulam a ilusão da
completude não mais com um par mas com um parceiro conectável
e desconectável ao alcance das mãos. O resultado não pode ser ou-
tro senão a decepção e a tristeza, o tédio e a nostalgia do Um em vão
prometido.
Sob todas essas causas, essas máscaras, jaz a tristeza onde se
irradia o sol negro da melancolia, as trevas da apatia, o jazigo da
abulia, a mortificação da vida. A tristeza, sobre a qual nos fala o
melancólico, é situada por Lacan como dor de existir; no âmbito da
ética ela é considerada covardia moral 1• A tristeza, como sentimento
humano demasiadamente humano, refere-se a uma posição do su-
jeito que faz parte da estrutura psíquica: ela é a expressão da dor
própria à existência. Posição à qual, se ela não deixa de ser estrutu-
ral, o sujeito não deve ceder, pois é uma posição relativa ao gozo
que se opõe ao desejo. A dor de existir no âmbito da ética é covardia
moral cujos adeptos são enviados ao inferno por Dante, cuja fra-
queza de seus arautos é condenada por Spinoza e cujos "pregadores
da morte" são desprezados por Nietzche. ''Abstenhamo-nos de des-
pertar esses mortos ou de ferir esses vivos caixões", assim falou
Zaratustra2• A psicanálise oferece um tratamento pela via do desejo
que possibilita o sujeito ir da dor de existir à alegria de viver. Mas
para isto o sujeito precisa querer saber, tendo a coragem de se con-
frontar com a dor que morde a vida e sopra a ferida da existência,
para poder fazer da falta que dói, a falta constitutiva do desejo.

II

O que provoca a dor psíquica? A primeira resposta de Freud,


em sua correspondência com Fliess, é que a dor é produzida p ela
dissolução das associações na cadeia dos pensamentos inconscientes,
como ocorre na melancolia em que há um "furo no psiquismo".

11
A Dor de Exiiiir

Essa quebra da cadeia de significantes é concomitante a uma "he-


morragia" de libido. Por outro lado, "a dor corresponde a um fra-
casso do aparelho psíquico", quando este deixa de ser eficiente e
grandes quantidades de energia irrompem. Quando a dor entra não
há nada mais que possa detê-la. O aparelho psíquico deve, portanto,
fazer tudo para evitar sua entrada. A dor é uma manifestação do
fracasso do aparelho psíquico. Em A interpretação dos sonhos, Freud
indica que o recalcado é ao mesmo tempo doloroso e sexual.
Em !Jtto e melancolia, compara o luto à dor, chamando adis-
posição para o luto de dolorosa, e acrescenta: "É bem possível que
vejamos a justificativa disso quando estivermos em condições de
apresentar uma caracterização da economia da dor". É só naSegunda
Tópica, com a exploração do que ocorre para além do par prazer-
desprazer e, propriamente falando, com os conceitos de pulsão de morte
e de masoquismo primordial, que Freud caracterizou a economia da
dor. Em Para além do pnncípio do prazer ele introduz a questão do prazer
na dor a partir do gozo (Genuss) do espectador das tragédias gregas. A
dor corresponde à satisfação da pulsão de morte, desvelada na perver-
são masoquista, no gozo do sintoma, na melancolia.
Em Inibição, sintoma e angústia, Freud articula a dor à entrada
de uma grande soma de excitação, mas deixando entender que é a
perda que promove a chegada de uma intensa excitação dolorosa e
que a cada momento da vida há algo que o sujeito pode perder
provocando a dor. Há um gozo que paradoxalmente provoca dores
e prazer, que emerge com a perda do ideal, da qual o sujeito não dá
conta. "Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade
uma rr.enina chore penosamente se sua boneca se quebrar, ou aos
seis se a governanta reprová-la, ou aos 16 se ela for desprezada pelo
namorado, ou aos 25, talvez, se um fllho dela morrer. Cada um des-
ses determinantes da dor tem sua própria época e cada um desapa-
rece quando essa época terminar. Somente os determinantes flnais e
definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar estranho

12
A111011ÍOQllifltl

se essa mesma menina, depois de ter crescido e se tornado esposa e


mãe, fosse chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido dani-
ficado. Contudo é exatamente assim que se comporta o neurótico"3 .
Isto porque todas essas perdas tem um significado: castração, que
resume os "determinantes finais e definitivos". Eis porque são do-
lorosas, e o sujeito para sair da dor deve fazer o luto do que perdeu.

Apreendemos, portanto, duas vertentes da dor. Por um lado,


a dor corresponde à emergência de um gozo inadequado para o
sujeito, ou seja, a dor é o excesso de gozo que rompe a barreira do
simbólico ultrapassando o limite do funcionamento do aparelho (sim-
bólico) do sujeito. Por outro lado, essa dor é vinculada à castração, à
qual o sujeito é remetido a cada perda. Encontramos aqui o funda-
mento freudiano do que desencadeia o luto, a depressão e a melan-
colia: é a perda daquilo que escamoteava a castração. No caso do
neurótico, a castração que se inscreve como a falta de um significante
que complete o Outro [S(}..)] evocando a negativação do falo no
imaginário(- <p); no caso do psicótico, a falta da inscrição simbólica
da castração que se manifesta como furo real correlativo à elisão do
falo (<l>o). A dor da depressão é a dor constitutiva da castração, que,
em vez de aparecer como angústia, deixa triste o sujeito com a nos-
talgia do Ideal, saudade do Um que encobria a falta. A depressão
nos mostra que a falta dói e que a castração evoca para o sujeito a
inadequação do gozo. Trata-se da dor que Lacan, a partir do budis-
mo, chamará de dor de existir4•

III

O budismo considera a dor de existir primordial pois origi-


nalmente "tudo é dor: o nascimento, o envelhecimento, a doença, a
morte, a tristeza, os tormentos, a união com o que se detesta, a
separação daquilo que se ama, a não obtenção do que se deseja etc." 5.
Nenhum ser escapa à dor pois tudo o que existe compõe-se de ele-

13
A Dor de ExiJtir

mentos de duração limitada e é vazio de qualquer princípio pessoal.


Assim, para o budismo, não existe um em si, algo que seja próprio a
alguém. O que existe é a dor estritamente vinculada à ausência de
um si mesmo. Podemos dizer que é a dor associada ao vazio de ser do
sujeito, à falta-a-ser - dor relativa à sua própria existência como
vazio. "A dor- diz André Bareau - tem por origem a 'sede', isto é,
0 desejo que se vincula ao prazer e acompanha toda existência; ela
leva a renascer para experimentar ainda as volúpias enganadoras.
Esta sede é, ela mesma, produzida por um encadeamento de causas
em que a primeira é a ignorância, mais precisamente a ignorância
dessa realidade que o Buda descobriu e que ele revela a seus discípu-
los". Para o budismo, são a sede e a ignorância que engendram as
três "raízes do mal": a cobiça, o ódio e o erro que se encontram, por
sua vez, na origem dos vícios e das paixões. A cessação da dor só
ocorrerá com a cessação da sede e suas raízes do mal, ou seja, com
sua extinção total chamada de Nirvana. Para a psicanálise, a via de
saída da dor longe de ser a abolição do desejo, que corresponde ao
culto à pulsão de morte, ao princípio de Niroana como um retorno ao
inanimado, é justamente o seu oposto, ou seja, a saída através da con-
junção da "sede" com a "ignorância" cujo produto é o desejo de saber.
A dor de existir detectada pelo budismo é a que se encontra
no "para-além do Édipo", que é outro nome do para-além do prin-
cípio do prazer. Para-além que se desvela como aquém da própria
vida, como nos mostra a peça de Sófocles Édipo em Colona. Nesta
tragédia, Édipo já cumpriu seu destino: matou o pai, casou com a
mãe, teve com ela seus quatro filhos, causou a peste, descobriu seu
duplo crime, furou seus olhos, foi expulso de Tebas e, desde então,
vive na errância, exilado, sem pouso nem repouso, guiado por sua
filha Antígona. A peça se passa em uma colina da qual se vê Atenas,
onde Édipo e sua filha se encontram, sem saber, no umbral de um
lugar sagrado e interditado: o templo das Erínias "do olhar inevitavel",
"do olhar terrível". É um lugar em que não se pode falar, represen-
tação do silêncio da pulsão de morte, onde se encontram essas deu-

14
'.

Antonio Quine/

sas, temidas até pelos deuses, que· nasceram das gotas de sangue
quando da castração de Uranos. Chamadas de Eumênides (Benevo-
lentes) para aplacar sua ferocidade, de Fúrias pelos romanos, elas
tem como função a punição dos crimes; elas instigam ao crime para
vingarem outros crimes como o fizeram com Clitemnestra que ma-
tou o marido Agamenon que por sua vez sacrificara a filha Efigênia.
Figuras do gozo elas representam o imperativo do supereu com sua
lei sangrenta e paradoxal onde nenhuma fala é possível, só olhar
punitivo. É nesse âmbito, aquém da linguagem, para-além de seu
destino de rei, exilado do Outro da civilização, expulso do simbó-
lico da Pólis, que se encontra Édipo e de onde ecoa seu grito: MTJ
rppvaz. Antes não ter nascido!
Édipo se define, para o Coro, como ''banido", "desafortu-
nado", "amaldiçoado pela sorte", dizendo-se "não sou mais nada",
fazendo aparecer sua posição de rebotalho do simbólico, de objeto
rejeitado, de dejeto execrável, fora da Lei do Outro, desprotegido
de todos. Tal como Gérard de Nerval em seu poema E/ desdichado
que significa o infeliz deserdado, o banido da alegria, o tenebroso
(das trevas), o inconsolado', Édipo está fora da herança do Pai sim-
bólico que une o desejo com a Lei. Ele ainda espera um acolhimen-
to por parte de Atenas, mas nada obterá e nesse lugar mesmo, domí-
nio das Erínias, demasiadamente desumano, falecerá. "Édipo em
Co/ona, cujo ser se acha todo inteiro na fala formulada por seu desti-
no, presentifica a conjunção da morte e da vida. Ele vive uma vida
que é morte, que é morte que.está aí exatamente embaixo da vidam.
Segundo Lacan, quando a vida é desapossada de sua fala o sujeito se
depara com o masoquismo primordial. É aquilo que na vida não
quer sarar, é o que na vida só quer morrer, silenciar, calar. Lugar fora
do simbólico, para-além do princípio do prazer, onde só há o gozo
impossível de ser suportado - lugar da dor de existir sobre a qual
nos fala o melancólico. A morte é o que melhor figura para nós esse
lugar topológico da ausência da fala, do para-além do Édipo que
equivale ao aquém da linguagem, onde reina o silêncio da pulsão de

15
A Dor de ExiJiir

morte, princípio de Nirvana. A morte é o tema freqüente da tristeza e


da melancolia - o submundo das trevas, do apagamento do desejo.
''Mais vale, no final das contas, nunca ter nascido, e se se nasce, morrer
o mais depressa possível" - diz o coro. O afeto depressivo da dor de
existir remete ao furo de gozo próprio à estrutura de linguagem.

IV

Mas será que a falta estrutural precisa sempre doer? É evi-


dente que o sujeito vai ser sempre confrontado com perdas em toda
sua vida e aí aparecerá a dor da falta. E qual é a arma gue o sujeito
tem para dar conta dessa falta? O desejo, que é a manifestação da
falta em outra vertente. Mas quando o sujeito cede de seu desejo a
falta se transforma em falta moral, e o que advém para ele é a culpa.
Afinal de contas, de quem é a culpa da inadequação do gozo?
O gozo, na verdade, é inadequado; é excessivo ou deficiente, e o
sujeito nunca consegue a ele se adequar. De quem é a culpa? Aí
aparecem três culpados8 • Em primeiro lugar, o sujeito culpa a socie-
dade, que não coloca à sua disposição objetos adequados para seu
gozo. Em segundo lugar, ele diz que a culpa é do Outro, ou seja, o
Outro não dá o que ele quer. Mas o Outro, enquanto tal, é inconsis-
tente, porque a ele também o gozo falta. A "culpa seria do Outro se
ele existisse", nos indica Lacan. O sujeito pode até pensar que o
Outro é inteiro por causa do ideal do eu [I(A)] que o representa,
mas quando o ideal cai e o sujeito se depara com a falta no/ do
Outro, ele não pode mais culpá-lo. E ele acaba tomando para si a
culpa da castração como inadequação do gozo. E o que era falta
vinculada ao desejo se transforma em falta moral, e o sujeito se
sente triste e culpado. Eros se retrai e Tanatos avança. O sentimento
de culpa é o índice do supereu que vigia, critica e pune o sujeito. O
resultado é a autodepreciação e a auto-acusação. O sujeito se sente
culpado de sua impotência. Pois ele sente o impossível como impo-

16
Antonio Quinei

tência, como se ele pudesse fazer alguma coisa, e não dá conta. O não
dar conta é sempre a queixa do impotente, o que na verdade é um
prestar contas. O sujeito está sempre aquém das contas que ele tem
que prestar aos olhos do Ideal - e o credor é o supereu. Fazer as
suas contas, ou acertar as contas, é realizar que aquilo que ele se
julgava impotente para resolver é impossível. A passagem da impo-
tência (que corresponde à falência do desejo) ao impossível marca a
saída da depressão. Trata-se da passagem do "eu não dou conta" do
deprimido a "o que não tem remédio, remediado está" da castração
assumida pelo sujeito.
Freud situa o sentimento de culpa na trama edipiana entre
os dois crimes: entre o gozo da mãe e o parricídio. O sentimento de
culpa para Freud é ligado à transgressão de um limite de gozo. O exces-
so de gozo - quando o sujeito ultrapassa seu limite- ou a sua deficiên-
cia- quando não encontra o gozo prometido - provocam a tristeza e a
culpa, que se situam, portanto, entre o simbólico da lei e o real do gozo.
É justamente quando há perda do ideal e o sujeito cede ao imperativo
do supereu que a inadequação do gozo se desvela para o sujeito.
Em os Arruinados pelo êxito, .Freud situa a mína do sujeito e
seu estado depressivo não quando ele perde mas Sluando atinge o
~eal: encontro com o impossível de um gozo prometido. O sujeito,
ao atingir um ideal, se depara com o impossível, porque aquilo que
o ideal prometia não se cumpriu; o sujeito, que lutou a vida inteira
por ele, chega no momento e vê que foi tudo em vão, porque o ideal
não lhe proporcionou, no final, o gozo acenado: "Tudo perdemos -
diz Lady Macbeth - quando o que queríamos, obtemos sem ne-
nhum contentamento. Mais vale ser a vítima destruída do que, por
destrui-la, destruir com ela o gosto de viver". Lady Macbeth ficou
melancólica ao ver realizado seu desejo de ser rainha às custas do
assassinato de Duncan, que Freud faz equivaler à realização do in-
cesto pois o rei assassinado representa seu pai. A retaliação é conse-
qüência do sentimento de culpa. O sujeito então se depara com esse
impossível de suportar do gozo e a falta estrutural do desejo se

17
A Dor de Exiitir

torna falta moral. A depressão é um índice do sujeito em plena rea-


lização de desejo incestuoso. A falta moral é a falta da falta constitutiva
do desejo. É um indício de que o sujeito se encontra para além do
princípio do prazer, pois ultrapassou os limites do Édipo, estrutura
em que a lei funda o desejo.
A definição de Lacan da tristeza como falta moral reúne o
afeto triste com a culpa. E o sentimento de culpa marca o retrocesso
do sujeito diante do desejo, recuo equivalente à confrontação com o
impossível do real do gozo. A tristeza como covardia moral, segun-
do a definição de Lacan, situa esse afeto como uma relação frouxa
do sujeito com a cadeia de seu desejo. Essa relação frouxa, nos dois
sentidos do termo, faz o sujeito abrir as portas para a auto-depreci-
ação e para a auto-acusação. O sentir-se frouxo, sinal de impotência,
tem como correlato o sentimento de culpa, que é o índice de que o
sujeito cedeu de seu desejo. Essa gama de afeto que faz o sujeito
triste, covarde, sentir-se frouxo e daí culpado, permite-nos inserir o
afeto depressivo no âmbito da ética.
Em contraposição ao deprimido culpado se encontra o ino-
cente que "tem por lei unicamente o seu desejo". Ele não recuará
diante da "destituição subjetiva inscrita no bilhete de entrada da
experiência analítica" 9• Essa oposição entre o culpado deprimido e
o inocente desejante pode nos orientar na clínica que evidencia como
o sintoma analítico com sua transferência de libido arranca o sujeito
da covardia moral, levando-o ao trabalho sobre o desejo. Contra o
imperativo de gozo do supereu presente na tristeza com seu cortejo
de auto-acusações, a psicanálise propõe o dever de bem dizer para
que o sujeito passe da dor de existir à alegria de viver que se sustenta
na falta estrutural que se chama desejo: fundamento do gaio saber.

Rio de Janeiro, 10 de junho de 1997.


Antonio Quinei

18
AntonioQuinei

NOTAS

1. Em Kant com Sade (1962, p. 777), Lacan nos chama a atenção para a dor de
existir, de que fala o budismo, desvelada pelos melancólicos em seus "tor-
mentos infernais", e em Tilivision (p. 39) ele chama a depressão por seu nome
mais apropriado de tristeza definindo-a, a partir de Dante e de Spinoza, como
covardia moral.
2. Nietzche, F. Ainsi parla Zaratustra. Paris, Aubier, 1977, p. 121.
3. Freud, S., "Inibição, si ntoma e angústia", Em: Obras completas. Vol. XX. Rio
de Janeiro, Imago, 1969, p. 171.
4. Lacan, J. "Kant avec Sade", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 777.
5. Bareau, A. "Bouddhisme - A. Le Buddha". E m: En&J'Ciopaedia U11iversalis,
vol. 3. Paris, 1988, p. 851.
6. Cf. Kristeva, J. Sol negro: depressão e melancolia. Rio de Janeiro, Rocco, 1989, p.
135-6.
7. Lacan, J. O Jef!litlário, livro 2: o eu 11a teoria de Frmd e 11a témica da psicanálise. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 291.
8. Lacan, J. "Subversion du sujet et dialectique du désir". Em: Écrits. Op. cit.
9. Lacan,J. "Proposition de 9 octobre de 1966 sur !e psychanalyste de I'École".
Em: Sdlicet 1, Paris, Seuil, 1968.

19
A Grécia

parte um
PROBLEMA XXX,1 1

Aristótelesl

Por que todos os homens que foram excepcionais (perittoz) 3 no 953a 10

que concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes aparecem


como sendo melancólicos, ao ponto de serem tomados pelas enfer-
midades oriundas da bílis negra (apõ melain~s chol!s) 4 - como o que se
diz de Hércules nos [mitos] heróicos? Pois aquele parecia ser desta
natureza (t!s pijsetJs) 5, e é por este motivo que os antigos designaram
doença sagrada as enfermidades dos epilépticos. A ékstasil' para com
seus filhos e a eclosão de úlceras antes da [sua] desaparição no Oeta
tomam isto evidente; pois isto ocorre aos muitos [acometidos] pela
bílis negra (apõ melainu chol!s). Também aconteceu de estas úlceras
acometerem Lisandro, o lacedemônio, antes de sua morte. Ainda há
[os mitos] a respeito de Ájax e Bellerofonte: dos quais um tornou-se
completamente ekstátikos, enquanto o outro buscava lugares ermos
(tàs erlmias editJkenr, por isto Homero compôs assim: "Mas, depois
que ele [Bellerofonte] tornou-se odiado por todos os deuses, vagou
sozinho pela plana Aléia, roendo seu coração (ti?Jmón) e alijando 8 o
caminho dos homens"9•
E, dentre os heróis, muitos outros parecem sofrer o mesmo
páthos (homoiopatheís) que esses. Entre os mais recentes, E mpédocles,
Platão e Sócrates 10 e muitos outros dentre os ilustres. E , ainda, a
maior parte dos que se ocupam da poesia. Para muitos destes, estas
enfermidades (nosémata) surgem de uma determinada mistura
A Dor de Exi11ir

(kráseas) 11 no corpo; para outros, sua natureza inclina-se visivelmen-


te para estes páthe12• Todos são, então, para falar simples, tal qual sua
natureza, conforme foi dito.
Quem começar o exame [desta questão] deve tomar primei-
ramente a causa a partir de um exemplo já disponível. Pois o vinho
excessivo parece realmente dispor [as pessoas] tais quais dizemos
serem os melancólicos e aquele que [o] bebe [parece] desenvolver
muitos tthi 3 como, por exemplo, os irascíveis, filantropos, piedo-
sos, audaciosos; mas não [aquele que bebe] o mel, nem o leite, nem
a água, nem nada análogo. Pode-se ver que [o vinho] torna [as pesso-
as] completamente diferentes, observando que ele muda gradual-
mente os que o bebem. Apossando-se, então, daqueles que foram
resfriados e silenciosos na abstinência; se bebem um pouco mais, 953 b
torna-os mais tagarelas (la/istéro11s) e, ainda mais, retóricos (rhetorikoús)
e corajosos, ávidos para o agir; um pouco mais sendo bebido, [tor-
na-os] desmedidos (f?ybristás), depois maníacos (manikoús) 14; uma ex-
trema quantidade os relaxa e os torna embotados, como os que são
epilépticos desde criança ou, também, como os que são tomados
por fortes melancolias. Assim como, então, o homem modifica seu
!thos bebendo e utilizando uma determinada quantidade de vinho,
assim também há homens [que correspondem] a cada um dos !thos.
Pois como está agora [um homem] embriagado, um outro [homem]
é assim por natureza, um tagarela, outro agitado, outro choroso. Pois
[o vinho] transforma uns e outros, e por isso Homero compôs: "Di-
zem que navego em lágrimas, tomado que estou pelo vinho" 15 •

Por vezes se tornam piedosos, rudes e silenciosos; alguns,


então, se calam, e sobretudo dentre os melancólicos os que são
ekstatikói. O vinho, por outro lado, os torna amorosos (philetikoús).
Sinal disto é que o bebedor é incitado a beijar (phileín) na boca quem,
em sobriedade, não beijaria, quer em função da aparência, quer em
função da idade. O vinho, então, torna [alguém] excepcional (penttón)
não por muito tempo, mas por pouco; a natureza, por sua vez, [man-

24
Ariiióleles

tém-no] sempre (aez), enquanto existir. Por natureza, tornam-seco-


rajosos, silenciosos, piedosos ou covardes. De modo que é evidente
que é pelo mesmo [motivo] que tanto o vinho quanto a natureza
criam o ethos de cada um: pois tudo se efetua sendo administrado
pelo calor. O humor (cf?ymós) 16 e a mistura da bílis negra são pneumá-
ticoP. E é por isso que os médicos dizem serem melancólicas as
afecções pneumatóides (pneumatdd~ páth~) e as hipocondríacas
(hypochondriaka). E o vinho é, quanto à suat!:fnamiP, pneumatóide. É
bem por isto que o vinho e a mistura são de natureza semelhante. O
que mostra que o vinho é pneumatóide, é a espuma (aphrós) 19 ; pois,
se o azeite sendo aquecido não faz espuma, o vinho, por sua vez,
[faz] muita, e o [vinho] negro mais ainda do que o [vinho] branco,
porque ele é mais quente (thermóteros) e mais encorpado (somatodésteros).
Por isso o vinho incita aos prazeres afrodisíacos (aphrodisiastikozís) 20
e diz-se corretamente estarem juntos Dioniso e Afrodite 21 e que a
maior parte dos melancólicos são lascivos. Pois o aphrodisiasmós é
pneumatóide. Do que é sinal a parte pudenda (tó aidofon) 22, pelo modo
como de pequeno, rapidamente, produz o aumento por meio do
enchimento [de ar]. E, ainda antes de poder emitir esperma, advém
algum prazer naqueles que são ainda crianças quando, próximos de
serem púberes, alisam desordenadamente as partes pudendas: tor-
na-se, pois, evidente que isto ocorre por meio do pneuma que per-
corre os canais através dos quais, mais tarde, o líquido será conduzi-
do. O derrame do esperma nas relações íntimas (en tais homilíais) e a 954a
ejaculação têm sua origem evidente no pneuma projetado (f?ypõ toú
pnetÍmatos). De modo que, dentre os alimentos e bebidas, são segura-
mente afrodisíacos os que tornam pneumático o local em torno das
partes pudendas. Por isso, o vinho negro, mais que tudo, torna [as
pessoas] pneumáticas, tal qual são os melancólicos. O que torna-se
evidente a partir de certas conformações: a maior parte dos melan-
cólicos, com efeito, são secos (sk/eróz) 23 e as [suas] veias são salientes.
E a causa disto não [é] a grande quantidade de sangue, mas de
pneuma; porque nem todos os melancólicos são secos ou negros,

25
A Dor de Existir

mas, sobretudo, aqueles mal-humoradas (kakócf?ymoz), é uma outra


questão (lógos). Mas, retornemos sobre aquilo que, desde o princípio,
tomamos para discorrer, que na natureza tal humor- o melancólico
- se mistura diretamente; pois é uma mistura do quente e do frio, e
a natureza se compõe destes dois. Por isso, também, a bílis negra se
torna tanto muitíssimo quente quanto muitíssimo fria. Porque o
mesmo se afetou naturalmente de ambos, como, por exemplo, a
água que é fria e que, se for suficientemente aquecida até a fervura,
é mais quente do que a própria chama; e a pedra e o ferro que,
transformados através do fogo, tornam-se mais quentes do que o
carvão [ardente), embora sejam de natureza fria. Falou-se mais cla-
ramente acerca destas coisas na [obra] sobre o fogo 24•
A bílis, negra, que é fria por natureza e não sendo superficial e,
estando assim como se disse, se superabunda no corpo, produz
apoplexias (apopl~xías), ou torpor (nárkas) ou atimias (atf?ymías) 25 ou
temores (phoboús); se está superaquecida, [produz] eutimias acompa-
nhadas de cantos (oid!s eutf?ymías), êxtases (ekstáseis), erupções de úl-
ceras (ekdzéseis elktJn)26 e outras [coisas] semelhantes. Então, para
muitos, [a bílis negra] que se origina da alimentação diária, não pro-
duz nenhum !thos, com relação aos diferentes, mas resulta apenas
em alguma enfermidade melancólica. Aqueles que possuem em sua
natureza uma tal mistura, estes tornam-se imediatamente variados,
no que diz respeito aos tthe, diferentes segundo cada mistura. Por
exemplo, naqueles em que a [mistura] é abundante e fria, tornam-se
estes pesarosos e embotados; naqueles em que ela é mais abundante
e quente, maníacos (manikóz), bem dotados (eupf?yeís) e eróticos
(erotikóz) e facilmente levados às emoções (prós totÍs tf?ymoús) e aos
desejos (epitf?ymías); alguns tornam-se também mais tagarelas. Mui-
tos são tomados por enfermidades devido a este calor estar próxi-
mo do tópospensante(noerou tópous), são tomados pelas enfermidades
maníacas (manikots) ou de entusiasmos (enthousiastikotsi1, daí surgem
Síbylas e Bákides e todos os possessos (éntheoz) no caso de não advirem
de enfermidade, mas de mistura natural. Marakós, o siracusano, era

26
Aristóteles

melhor poeta quando estava em êxtase. Mas, naqueles em que o


calor excessivo se combina para um mediano, estes são melancóli-
cos porém mais sensatos (phronimóteroz) e menos excêntricos (éktopoz); 954 b
são distintos dos outros em muitas coisas, uns quanto à formação,
outros quanto às artes, outros quanto aos assuntos da pólis. Tal esta-
do (héxis) 28 faz, às vezes, grande diferença diante do perigo: pois a
maior parte dos homens é anômala29 quanto aos temores. Assim, se
por acaso têm o corpo propenso a tal mistura, eles diferem de si
mesmos. Tal como a mistura melancólica produz anômalos nas en-
fermidades, assim também ela própria é anômala; pois ela é tanto
fria, como a água, quanto quente. Logo, quando algo temível (phoberón)
é anunciado, se por acaso a mistura estiver fria, [ela) produz covar-
dia; pois ela preparou as vias do temor e o temor gela (katapsjchez).
Demonstram [isto) os temerosos (períphoboz): pois eles tremem. Se,
por outro lado, [a mistura] estiver mais quente, o temor se reduz à
justa medida (tó métrion), e [permanecerá] nele próprio e não-afetado
(apatht). Igualmente [acontece] com as atimias diárias pois,
freqüentemente, encontramo-nos assim entristecidos e, a propósito
do que, não poderíamos falar; às vezes, por outro lado, somos
eutímicos, sem razão aparente. Tais páthe, certamente aqueles que
são ditos mais superficiais 30, surgem um pouco em todos; pois, em
todos misturou-se algo desta c!:fnamis; mas, naqueles em que isto se
deu mais profundamente, estes já são de determinado tipo de itht.
Pois, assim como [os homens] tornam-se outros pela aparência, e
não por ter rosto, mas por ter tal ou tal [rosto): tendo uns beleza,
outros feiúra, outros não tendo nada excepcional (perittón), estes [sen-
do] de natureza mediana; assim, aqueles que têm uma pequena par-
ticipação nesta mistura são medianos, enquanto os que têm muita
são diversos da maior parte. Pois se este estado for exacerbado, eles
são demasiado melancólicos, mas se é de algum modo atenuado,
excepcionais. São inclinados, se se descuidarem , para as enfermidades
melancólicas, outros [podem ter afetada) outra parte do corpo; em
alguns surgem enfermidades epilépticas, em outros, enfermidades

27
A Dor de Exiltir

apopléticas, em outros, fortes atimias ou temores, em outros, confi-


ança excessiva, como o que ocorreu a Arquelau, o rei da Macedônia.
A mistura é a causa de tal djnamis, conforme seja de
resfriamento ou de aquecimento. Pois estando mais fria, em mo-
mento oportuno (kairós) 31 , produz clistimias sem razão; é por isto
que os enforcamentos se encontram, sobretudo, entre os jovens,
algumas vezes também [entre os] velhos. Muitos destroem a si pró-
prios depois da embriaguez. Alguns dos melancólicos mantêm-se
atímicos depois de terem bebido. Pois o aquecimento do vinho apa-
ga o aquecimento natural. O calor, próximo do tópos onde pensamos 955 a
e temos esperança, torna-nos eutímicos. E é por isto que todos têm
o desejo de beber até a embriaguez, pois o vinho, excessivo, torna-
nos, a todos, esperançosos, como a juventude aos meninos: pois, se
a velhice é desesperançada, a juventude é, por sua vez, plena de
esperança. Existem alguns poucos aos quais as clistimias os tomam
enquanto bebem, pela mesma causa [que tomam] a alguns depois da
bebida. Então, naqueles em que o calor é extinto, surgem atimias e
eles se enforcam mais. É por isso que tanto os jovens quanto32 os
velhos mais se enforcam. Pois, se por um lado, a velhice extingue o
calor, por outro, o páthos, que é natural, o é também o próprio calor
extinto33.Pois aqueles em que se apaga subitamente (exaiphnu), a maior
parte se mata, de modo a espantarem-se todos, por não se dar um
sinal prévio.
Então, a mistura oriunda da bílis negra tornada mais fria,
como se disse, produz atimias de todo tipo; sendo mais quente, por
sua vez, eutimias. Por isso que as crianças são mais eutímicas, ao
passo que os velhos são mais clistímicos. Pois [aqueles] são quentes
e [estes] frios: pois a velhice é um resfriamento. Mas ocorre de [o
calor] se apagar subitamente, devido a causas exteriores, como [o
que ocorre] contra a natureza com [as coisas] inflamadas, por exem-
plo, quando se verte água sobre o carvão [ardente]. Por isso alguns
se matam ao sair da embriaguez: pois o aquecimento oriundo do

28
Ariitótelu

vinho é trazido de fora; quando [ele] é apagado, sobrevem o pathos.


E depois dos prazeres amorosos (tá aphrodísia) a maior parte se torna
mais atímica e aqueles que emitem o excesso (perítt(Jma) 34 acompa-
nhado do esperma, estes [se sentem] mais eutímicos; pois eles se
aliviam do que é excesso, do pneuma e do calor exagerado. Aqueles,
muitas vezes, [permanecem] mais atímicos: eles se resfriam, pois,
tendo-se entregado aos prazeres afrodisíacos, por suprimirem algo
que lhes convém; o que mostra isto é o não grande fluxo emitido.
Então, para dizer o que é capital, pelo fato da 4fnamis da bílis negra
ser anômala, anômalos são os melancólicos; pois ela pode se tornar
muito fria e muito quente. E pelo fato de ela ser criadora-de-ethos
(ethopoiós) (pois, do que está em nós, principalmente o quente e o
frio criam-ethos), como o vinho que, sendo misturado em maior ou
menor [quantidade] no corpo, torna-nos de determinado tipo quan-
to ao !thos. Ambos [são] pneumáticos, o vinho e a bílis negra. Posto
que é possível ser a anomalia bem governada (etíkraton) e se apresen-
tar de uma boa forma, em que a disposição (diáthesin) 35 deve estar
mais quente e novamente fria, ou vice-versa, de acordo com a extre-
midade apresentada: excepcionais (perittoz), então, são todos os melan-
cólicos, não por enfermidade (nóson), mas por natureza.

NOTAS DO TRADUTOR

1. O presente texto constitui-se numa versão da primeira parte (parágrafos


953a 10- 955b 40) do Problema XXX, atribuído a Aristóteles ou a Pseudo-
Aristóteles (ver nota 2). Para nosso trabalho utilizamos o texto grego estabe-
lecido por Ruelle (1922), consultando também as edições de J. Pigeaud (1988,
p. 82-106) e de R. Klibansky (1979, p. 51-75). Quanto às controvérsias do
estabelecimento do texto, concordamos com J. Pigeaud (1988, p. 82)- cf. nota 32
- e com Forster (1927) - cf. nota 30 - , aceita tanto por J. Pigeaud como por
R. Klibansky. A versão de um texto clássico configura-se como uma tarefa
das mais complexas. O desuso de uma língua que se não morta - devido ao
fato de ressoar no berço de nosso próprio léxico - impõe ao tradutor o desafio,

29
A Dor de Existir

por vezes profano, de rasgar o véu dos sentidos vigentes, acessíveis, na tenta-
tiva romântica, talvez, de trazer à luz o frescor originário da letra grega. Opta-
mos, destarte, pela sintaxe tortuosa, pela simples transliteração quando, por
nossa herança greco-latina, a língua portuguesa nos oferece esta via. A sinta-
xe, por vezes dura, recheada de partículas (pois a pontuação grega difere da
nossa) podem, para além de questão de estilo, evidenciar também nosso des-
conhecimento acerca do pensamento do autor. Dificílima é portanto a tarefa
de traduzir um texto da Antigüidade Clássica, e a consulta a diferentes edi-
ções/traduções nem sempre é esclarecedora. Trata-se sempre de uma versão,
no sentido que este termo comporta de criação e de se voltar para. Como uma
versão, esboça uma tentativa primeira de acercarmo-nos deste texto, elemen-
tar e originário, para o que, agora, é nosso objeto de discussão. Somos especi-
almente agradecidos a Henrique Fortuna Cairus, professor de Língua e Lite-
ratura Grega da UFRJ, pela paciência e disponibilidade com que revisou nos-
so primeiro exercício de versão clássica.
2. Ao que tudo indica não havia na Antigüidade dúvidas quanto à autoria do
Problema XXX, que encontra-se editado juntamente com os demais Problemas
escritos por Aristóteles. Diógenes Laércio (1995, V, 23), embora não explicite
o teor de cada um destes, relaciona entre a vasta obra do ftlósofo os Problemas.
Cícero, em Tusculanes; Sêneca, em De tranq11illitate animi (cf. Pigeaud, 1988,
p.54) e Plutarco, em Vida dos filósofos ilustres (vol. IV), fazem referência ao
texto, citando-o como de Aristóteles. Mais tardiamente surge a hipótese do
Problema XXX ser de autoria de Teofrasto, ou algum outro discípulo de
Aristóteles. Contribui para esta hipótese o fato do próprio Diógenes Laércio
(1995,V,44) relacionar, entre as obras de Teofrasto, um texto sobre melancolia
(Peri melancholías), bem como um tratado sobre o fogo (Peripyrós), mencionado
no próprio Problema XXX. De qualquer modo, trata-se, indubitavelmente, de
um texto que se encontra no âmbito do pensamento aristotélico, bem como
situado de modo congruente com a visível herança de um tema platônico
(desenvolvido, principalmente, em o Fedro), juntamente com o Corpus
hippocraticum e toda tradição médica grega.
3. perittós/perissós- termo fundamental do Problema XXX e de difícil tradução.
Indica, originalmente, "o que ultrapassa a medida, o limite", (conforme perime-
tro, em português). Deste sentido primeiro advém: "extraordinário, o que se
distingue etc." Pode designar, também, "o supérfluo, o resto", como, por exem-
plo, "o excesso de contingente militar". Há, no próprio Problema XXX, uma

30
AriJiólelu

passagem (955a-24) que evoca o sentido de "excesso, resíduo", utilizando um


termo derivado deste (peritttJma). Escolhemos, portanto, traduzi-lo pelo termo
excepcional, por este evocar, de algum modo, os dois campos semânticos
descritos.
4. O termo melancolia origina-se da composição de dois termos: mélaina (ne-
gra) e cho/1 (bílis). Melancolia significa, literalmente, bílis negra.
5. pijsis- este termo grego, traduzimos, como se faz correntemente, por "na-
tureza". Cabe, entretanto, ressaltar que, para os gregos, este termo não tinha,
exatamente, o sentido que modernamente lhe atribuímos. Originalmente,pijsis
indicava, por meio do sufixo sis, a ação do verbo pijo: "impulsionar, fazer
nascer, fazer crescer, engendrar". M. Heidegger (1993, p. 484) comentou:
"Pijsis, os Romanos a traduziram por natura; natura, de nasci, nascer, provir
de, em grego: gen-; natura: o que deixa provir de si".
6. ékstasis- termo composto da preposição ek (fora, para fora) e pelo substan-
tivo slasis (ação de pôr, estabilidade, posição, postura). Designa, portanto,
"a ação de se deslocar, deslocamento, desvio ou, a ação de estar fora de si".
Alguns comentadores, como J. Pigeaud (1988,p.38ss), consideram como in-
distinto o emprego dos termos ékstasis e manía, traduzindo ambos pelo termo
"loucura". Talvez ele tenha razão. Outrossim, desejamos proporcionar ao lei-
tor a possibilidade de uma interpretação pessoal, ao verificar que em momen-
tos precisos, ou não, o autor emprega cada um deles. Optamos, então, por
manter o decalque com o texto grego original. Platão discorre extensamente
acerca da manía no diálogo intitulado Fedro. Neste, Sócrates distingue: "Mas,
há duas espécies de nta11ía: a produzida por doenças (nosemáton) humanas e a
que por uma revulsão divina nos tira dos hábitos cotidianos(...) Na manía divi-
na distinguimos quatro partes, referentes a quatro divindades: a Apolo atribu-
ímos a inspiração mântica; a Dionísio, a teléstica [ou de iniciação nos mistéri-
os]; às Musas, a poética; e a quarta, a erótica, considerada a melhor de todas,
a Afrodite e a Eros..." (265 a-b)
7. tás eremías edíoken - literalmente: "buscou as eremias". Este último term o
designa tanto lugares desérticos, ermos, quanto a solidão. Daí, ermitão em
português.
8. Há, nesta passagem homérica, um jogo poético, difícil de manter, entre o
nome da planície - Aliia - e aleeín011 - "evitar, esquivar, escapar".
9. Homero, Ilíada, VI, 200-202.

31
A Dor de Existir

10. É curioso observarmos a referência a estes filósofos, notadamente a Platão


e Sócrates. De Empédocles, é conhecida a história de seu suicídio: teria se
atirado no vulcão Etna. Alguns comentadores (cf. Pigeaud) pensam que
Sócrates se encontra aí referido por causa de seu daínJOtl.
11. lerâni- "ação de misturar; objeto resultante de uma mistura".
12. páthe- forma neutra plural de páthos, que originalmente significa "o que se
prova, o que se experimenta; o que afeta o corpo ou a alma; eventos ou mu-
danças que se produzem nas coisas (por oposição ao que se faz 'ativamente')".
O próprio Aristóteles dá-nos uma definição de páthos (Metafoica V1, 1022, 15-16):
"Páthos se chama, em um sentido, a qualidade segundo a qual cabe alterar-se,
como o branco e o negro, o doce e o amargo, o peso e a ligeireza, e as demais
coisas tais; em outro, os atos e inclusive as alterações destas qualidades. Ade-
mais, entre estas, principalmente as alterações e movimentos daninhos, e so-
bretudo os danos penosos. Ainda, se chamam afecções (pátht) os infortúnios e
penas graves".
13. !the- forma plural de éthos. Éthos/ tthos- os dois termos que aparecem ao
longo do texto guardam uma diferença sutil. Éthos indicaria, primordialmen-
te, o sentido de " hábito", ao passo que tthos, "uma maneira de ser habitual,
um comportamento" (cf. Pigeaud, pp. 25-26). Deste último, deriva o subs-
tantivo ethikós. É também freqüente a tradução deste termo por "caráter".
Como entendemos que esta palavra está atrelada a sentidos outros, e estes
termos são caros ao pensamento aristotélico, optamos por manter a simples
transliteração.
14. Cf. nota S.
15. Homero, Odisséia, XIX, 121-122.
16. cf?ymós - "qualidade do que é líquido ou em fusão; suco natural, serosidade
dos humores do corpo, supuração de uma ferida; suco preparado".
17. p11eumálika/p11eúma - "que concerne ao sopro, ~ respiração, sopro vital; que
concerne ao ar que tem vento, flatuoso". Não deve ser confundido com o ar
(aét), um dos quatro elementos. Este sentido de pneuma evoca-nos o sentido
primeiro (homérico) de psych! que designava, exatamente, o sopro. O verbo -
psjchtJ- indica a ação de soprar, respirar. Anaxímenes (cf. Kirk, 1994, p. 161),
por exemplo, desenvolve a idéia de equivalência entre pmúma e psych! (alma).
O termo frio, central no Problen1a XXX, parece originado do mesmo campo
semântico. Frio é psychrrfs, cuja etimologia remonta, provavelmente (cf. Bailly)
ao verbo psjcha (soprar).

32
AriJtóteles

18. cfjnamis- "potência, poder, força, propriedade".


19. aphrrfs- "espuma". Inicia-se neste trecho todo um encadeamento semânti-
co, por via significante, que tentamos preservar. Assim, aphrris é o termo/fato
que comporá o nome de Afrodite, deusa do amor e da beleza, que, segundo
Hesíodo, (Teogoniavs. 195-196), é a " ...deusa nascida de espuma"; surgida no
mar, em torno do pênis castrado de Chronos, por seu filho Zeus. Compõe
este trecho do Problema XXX a seqüência de termos: aphrón, Aphrodite,
aphrodisiastileoús, aphrodisiasmós.
20. Cf. nota 18.
21. Idem.
22. tó aidofo11 - termo que designa "pênis" e aparece também na forma plural
(tá aidofa). Apresenta relação com o adjetivo aidós, que designava tanto o "sen-
timento de honra", quanto de "vergonha, pudor".
23. skllrrfi- também significa "magros".
24. Cf. nota 1.
25. O texto apresenta uma vasta lista de termos compostos a partir de tf?y111Ós
(atf?y!llía, protijmos, e~~ti!J111Ía, epiti!Jmía, disti!Jmía, entre outros), que é uma pala-
vra de significação bastante complexa, que abrange: "sopro; alma; princípio
de vida; princípio da vontade, da inteligência, dos sentimentos e das paixões.
Vontade, desejo". Em Homero, segundo B. Snell (1960, p. 18-ss), tltymós é o
"órgão da emoção e a sede da dor".
26. É interessante observarmos a quantidade de palavras iniciadas pela pre-
posição ek (fora, para fora): ékstasis, ékpltysis, eklúei, ékcf?ysis, exéchtJ, ekdzéseis,
éktopoi, exaíphnls, o que parece anunciar uma insistência semântica, talvez a de
que os diferentes páthos oriundos da melancolia têm, sempre, implicados (no
próprio nome) a idéia de "estar fora, movimento para fora".
27. mthousiastikós/ é11theos - "o que é animado por um transporte divino, inspi-
rado pelos deuses" (en + theos).
28. héxis - "ação de possuir, possessão, maneira de ser, estado ou hábito do
corpo, temperamento, estado ou hábito do espírito ou da alma, faculdade".
Para Aristóteles (Metafísica, V, 1022b, 4-8): "Héxis se chama, em um sentido,
por exemplo, certo ato do que tem e do que é tido, como certa ação ou
movimento (pois quando um faz e outro é feito, está no meio o ato fazedor;
assim também no meio do que tem um vestido e do vestido tido está o
'hábito' (héxis)".

33
A Dor de Existir

29. anómalos- termo formado pelo prefixo de negação att, e do advérbio homálós
("de um modo unido, de um modo igual"). Então, anómalos designa: "não
unido, não igual; inconstante, irregular; que falta equilíbrio".
30. Há na edição original dos textos gregos uma controvérsia. Forster (um dos
editores que estabeleceu o texto grego) optou pelo termo epipólaios, superfície.
O termo constante na edição de Ruelle é tá palaiá, antigas.
31. kairrJs - momento oportuno. Conceito de tempo propriamente grego. Di-
fere do tempo cronológico (sucessão) e do eterno (an). Na medicina, indica-
va, por exemplo, o tempo crítico de uma doença, no qual a intervenção do
médico poderia salvar ou matar o paciente.
32. t kaí- Há edições que excluem a conjunção t modificação por nós utilizada
na presente tradução.
33. Frase enigmática, mesmo no texto original e para os comentadores.
34. Cf. nota 2.
35. diáthesis - "ação de dispor, arranjar (a disposição do que tem partes),
ordenância". Para Aristóteles (Mettifisica, V, 1022, 1-3) "Diáthesis se chama a
ordenação, segundo o lugar, ou segundo a potência, ou segundo a espécie, do
que tem partes; é preciso, com efeito, que haja alguma posição (thésin), como
inclusive o manifesta o nome 'disposição"'.

Referências bibliográficas

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34
Aristóteles

PABÓN de URBINA,J. M. Diccio11átio ma11ualgriego-espanol. Barcelona, Biblograf,


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*Versão do grego : Elisabete Thamer, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise


*Revisão da tradução: Henrique Fortuna Cairus

35
Os clássicos

parte dois
MELANCOLIA NO SENTIDO
MAIS ESTRIT0 1
(CAPÍTULO II)

W. Griesinger

§116.
Anomalias da auto-percepção, das pulsões e da vontade. Em muitos
casos, depois de ficar num estado de mal-estar corporal e psíquico
mais ou menos vago, e de tempo variável, freqüentemente acompa-
nhado de mal humor hipocondríaco, de abatimento e de agitação, às
vezes com sensação da eminência do perigo da loucura, o doente é
progressivamente dominado por um estado de dor psíquica2 que
persiste por si, e é cada vez mais reforçado por impressões psíquicas
exteriores. Esta é a perturbação psíquica essencial da melancolia, e
essa dor se constitui para o próprio doente num sentimento de pro-
fundo mal-estar psíquico, de incapacidade para a ação, repressão de
todas as forças, de abatimento e tristeza, numa queda total da auto-
estima. Assim que este estado sensorial atinge um certo grau, dele
decorrem as conseqüências mais importantes e as mais extensas para
todo o comportamento do doente.
O humor assume um caráter absolutamente negativo
(repulsão). Uma vez que a menor impressão - anteriormente
verificada pelos doentes como bem adequada a seus espíritos - ago-
ra provoca neles a dor, os doentes não podem mais se alegrar com
nada, nem mesmo com os acontecimentos de maior felicidade;
A Dor de Existir

ao contrário, tudo os afeta de uma maneira desagradável e tudo que


se passa em torno deles transforma-se numa nova causa de dor.
Tudo os contraria; eles são amargos e irritáveis, a menor coisa pro-
voca mau humor, e neste caso ou bem eles reagem manifestando
constantemente sua insatisfação, ou então, mais freqüentemente, eles
procuram subtrair-se de todas as impressões externas, fogem da so-
ciedade, não se ocupam de nada e se concentram na solidão. Essa
disposição da contrariedade generalizada e do negativismo traduz-se
normalmente, de início, por uma aversão às pessoas mais próximas,
ao mundo externo, à família, aos amigos; aversão que freqüentemente
chega a culminar no ódio, atestando uma mudança desagradável
completa do caráter.
Tal estado de mal humor crônico com uma tendência à ne-
gação generalizada e ao ódio não é raro encontrá-lo entre as pessoas
saudáveis (particularmente do sexo feminino), e é raramente consi-
derado como doentio. Distingue-se das desagradáveis disposições
de caráter do são por freqüentemente ter sua origem em doenças
diagnosticáveis, por surgir de múltiplas remissões que não são psi-
quicamente fundamentadas e por um sentimento que se impõe ao
doente, contra seu melhor entendimento e contra sua vontade, que
o leva a se portar de maneira negativa e aversiva, sem que ele possa
justificar esse mal humor constante.
Na melancolia simples freqüentemente encontramos um
estado do sensório análogo ao que foi descrito na hipocondria3, no
qual os objetos do mundo exterior- apesar de serem coerentemen-
te percebidos e diferenciados- à medida que se aproximam da cons-
ciência por intermédio das impressões sensoriais, determinam uma
impressão diferente daquela que produziam outrora, diferença da
qual se dão conta os doentes inteligentes e instruidos. Dizem os
melancólicos: " Parece-me, na verdade, que tudo que está ao meu
redor, está ainda como outrora, contudo devem também ter ocorri-
do algumas mudanças; as coisas têm ainda suas antigas formas, eu as

40
W. Grimi1ger

vejo bem, e no entanto estão também muito mudadas etc". Esta


confusão que o doente faz entre a mudança subjetiva das relações
dele com o mundo e sua mudança objetiva é o início de um estado
de sonho. Quando este estado chega a um nível mais elevado, pare-
ce ao doente que o mundo real está completamente esvaecido, desa-
pareceu ou está morto, e que não lhe resta mais que um mundo das
aparências e das sombras no qual ele é obrigado a seguir existindo
para o próprio sofrimento.
Inicialmente, o doente sente muito bem a mudança que se
produziu no seu ser psíquico, em todas as suas tendências e em seus
afetos; algumas vezes ele ainda procura dissimulá-la, e quando al-
guém lhe pergunta o motivo de sua conduta bizarra, isto o fadiga e
o importuna. Ele sente que a participação que tinha outrora em tudo
o que era digno e estimável transforma-se progressivamente em in-
diferença e em repugnância profunda; queixa-se que suas sensações
não são naturais, que são distorcidas, e quando seu pessimismo se
esgotou na procura do lado desagradável das coisas do mundo exte-
rior, isto se torna para ele um novo tema de dores e queixas: ele não
pode mais gozar de nada e é obrigado a tudo negar. As impressões
inusitadas que sobre ele causam as coisas do mundo exterior o sur-
preendem, magoam e decepcionam; ele se sente excluído da comu-
nidade dos homens da qual fazia parte, e este sentimento de isola-
mento, da posição excepcional na qual se encontra, limita ainda mais
todas as suas idéias sobre sua própria personalidade e faz com que
ele relacione mais ainda tudo a ele mesmo. Enfim, este mesmo sen-
timento engendra nele a desconfiança, o ódio, a angústia; ele teme
todos os acidentes possíveis; algumas vezes se torna hostil, agressi-
vo; freqüentemente foge do mundo porque se sente indefeso e im-
potente, e fecha-se em si mesmo.

No início, o que atormenta mais o doente é a sensação de


mudança que se produziu em sua individualidade; a vaguidão e a
obscuridade desta modificação sobrevinda nos seus sentimentos.

41
A Dor de Existir

Algumas vezes ele se mantém bem quando lhe demonstram que


suas queixas são absurdas, que as representações que o atormentam
e que se impõem são falsas, ou ainda quando interiormente tem
consciência de seu estado. Mas logo que percebe que lhe é impossí-
vel sentir, pensar, agir diferentemente do que faz, que não pode
resistir e que todo esforço de resistência é inútil, este assujeitamento
do eu lhe dá a sensação de que está dominado por uma influência
estrangeira, que é obrigado a se abandonar sem resistência, o que mais
tarde corresponde às representações de poderes obscuros, a uma influ-
ência misteriosa que dirige seus pensamentos, que o possui etc.
A inibição do impulso, que constitui uma das perturbações
fundamentais da melancolia, se traduz pela inatividade; o doente
cessa toda ocupação; ele desconfia, hesita sempre, está indeciso, não
tem vontade. Nos graus mais adiantados este estado se manifesta
por um verdadeiro entorpecimento, pelo estupor, nenhuma impres-
são provoca mais qualquer reação da vontade; num grau menos ele-
vado ele se revela pela lentidão, uniformidade, hesitação dos movi-
mentos e dos atos, pelo sentimento que tem o doente de sua incapaci-
dade de se entregar a algum trabalho intelectual; ele fica de cama etc.
Freqüentemente é um sentimento de angústia que parece
partir do epigástrio e da região do coração, subindo e alastrando-se.
"É aqui" - dizem muitos destes doentes, indicando a cavidade do
estômago - "É aqui, como se tivesse uma pedra. Ah! Se isso pudes-
se ir embora!" Esta angústia às vezes aumenta até se constituir num
estado insuportável, até desesperar o doente e degenerar num aces-
so de loucura. Ademais, este estado toma uma quantidade de for-
mas diferentes segundo o caráter anterior do doente, segundo a na-
tureza das causas psíquicas que ocasionaram a doença, segundo as
anomalias do corpo que o acompanham etc. Ora os gestos e a con-
duta do melancólico exprimem a pena, a tristeza, uma dor muda - o
doente está concentrado, fechado em si mesmo, lúgubre, passivo-,
ora se comisera em voz alta, chora, torce as mãos, é vítima de uma

42
Ir?'. Griuinger

agitação extrema; ou bem ele está numa indocilidade e numa teimo-


sia que não pode domar, ou bem se depara com a pulsão de destrui-
ção voltada contra si mesmo4 •
Os melancólicos alternam um sentimento de insatisfação
com tudo, acham tudo ruim e defeituoso, com um sentimento de
indiferença absoluta. Neste caso, estão tão absorvidos pelos senti-
mentos de sua própria infelicidade e sofrimento, que o mundo ex-
terior não interessa mais. Podem ainda dizer que para eles "Tudo é
bom demais, e que criaturas como eles jamais seriam suficiente-
mente desprezadas".
Todas estas mudanças no humor dos melancólicos apare-
cem no período inicial sem nenhum motivo e não dependem de
representações delirantes individuais. Nesse período ele não sabe
justificar a razão desse seu afeto. Eles dizem: "Eu tenho medo! Não
sei do quê, mas tenho medo!" (Esquirol). E daí pode-se esperar, como
a observação o demonstra e confirma, que as exortações, a ternura, o
raciocínio jamais terão alguma influência sobre o afeto depressivo
engendrado pela doença cerebral, e que as representações que sur-
gem deste afeto tenham uma fundamentação interna subjetiva, portan-
do uma característica de irrefutabilidade que as torna inacessíveis aos
raciocínios e que permite ao doente, quando muito, passar de uma re-
presentação triste a uma outra representação da mesma natureza.

§117
Anomalias da Representação. A concentração dolorosa do espí-
rito suprime a vivacidade e a troca sadia da representação. Poucos
pensamentos ocupam o doente de uma maneira permanente. Ele
exprime apenas queixas monótonas sobre si mesmo, sobre as mu-
danças que se produziram nele, sobre alguns acontecimentos que
apareceram no início da doença etc. A tendência às comunicações
intelectuais está de um modo geral consideravelmente diminuída;

43
A Dor de Existir

com freqüência o doente fica completamente mudo ou fala timida-


mente, com hesitação, em tom baixo, interrompendo muitas vezes
seu discurso. Um melancólico que eu havia observado ficou durante
muitos anos num silêncio absoluto; ele só manifestava a disposição
de espírito que o dominava através de sua fisionomia, que exprimia
angústia e luto, chorando intermitentemente e torcendo as mãos.
Em outros casos, o doente se queixa constantemente, emite gemi-
dos, derrama-se sem cessar em demandas e súplicas, mas sempre
sobre o mesmo assunto; não obstante a monotonia extraordinária de
sua vida intelectual, o doente nunca experimenta o tédio.
Além desta mudança na forma de pensamento, são obser-
vados falsos pensamentos e julgamentos relacionados à disposição
atual do paciente. Por exemplo, ele sente estar mergulhado num es-
tado de angústia psíquica semelhante ao que deve experimentar um
criminoso após ter cometido um grave delito. Ele acredita ser o au-
tor do crime e não mais consegue dominar seu pensamento. Mas
buscando em suas lembranças ele não encontra crime algum.Ele se
prende então a um acontecimento insignificante onde cometeu uma
pequena falta, uma pequena leviandade (ou pode mesmo não ter
cometido falta alguma), e deste acontecimento faz o tema de seu
delírio, atribuindo-lhe o fundamento de seu estado atual e dos te-
mores futuros. Ou então ele se sente constantemente sujeito a um
tormento indefinido e se crê perseguido por inimigos; logo ele crê
realmente ser perseguido, cercado de inimigos, de complôs misteri-
osos, de espiões; como reporta tudo a si mesmo, a coisa mais insig-
nificante alimenta constantemente seu delírio.
Ou ainda, o doente que alimentava anteriormente represen-
tações religiosas sente, mesmo sob o ponto de vista deste círculo de
representações, o quanto ele mudou profundamente, o quanto este
estado de angústia e de agitação o torna incapaz de recolhimento, e
que em conseqüência disto ele não pode mais orar, ou quando tenta
fazê-lo é imediatamente atacado pelo peso de representações lúgu-

44
W Griesi11ger

bres negativas; ele sente gue a igreja e todos os objetos exteriores


operam sobre ele como impressões penosas; ele vê então gue está
numa posição excepcional, como um condenado gue Deus repele e
abandona ao Diabo e à danação eterna; em breve surgem represen-
tações de auto-culpabilidade, pecados numerosos, e de ter negligen-
ciado seus deveres etc. Vê-se então gue fregüentemente o acaso faz
o doente eleger uma ou outra idéia e repeti-la constantemente como
uma idéia fixa ou meio-fixa.
Seja como for, todos estes delírios melancólicos têm o mes-
mo caráter essencial: a passividade, o padecimento, a dominação e a
submissão a uma força insuperável. Mas é fácil ver, por outro lado,
como o tema sobre o gual eles giram deve variar conforme o nível
de cultura e o caráter de cada doente, conforme os acontecimentos
anteriores de sua vida e conforme as impressões gue ele tenha tido
acidentalmente. O mesmo sentimento gue o doente experimenta da
perda e de estar submetido a sensações e representações estranhas e
bizarras, este sentimento, digo eu, gue acomete o homem rude, des-
pertando neste representações de estar enfeitiçado, pode despertar
num indivíduo mais culto a idéia, por exemplo, de gue ele está sob a
influência misteriosa de outros homens, gue alguém age sobre ele
com a ajuda da eletricidade, do magnetismo, da guímica etc. Um crê
ter perdido todos os seus bens mais caros, seus filhos, seus parentes,
sua fortuna:. ele o crê e teme gue a miséria o conduza a morrer de
fome com sua família. Um outro se imagina arruinado nos seus ne-
gócios, gue perdeu seu emprego, gue está envolvido em processos
criminais os mais graves, e se lamenta de ter reduzido sua família à
pobreza e à mendicância. De outras vezes o doente, guando perce-
be a mudança gue se está produzindo em toda sua maneira de sentir
as coisas e a impossibilidade de seguir como antes nos negócios e
nas ocupações do mundo, imagina gue não pode ser mais um ho-
mem, gue deve ser transformado num animal, ou mesmo gue já está
transformado em animal. Se a mudança na maneira de encarar a
vida e os costumes em geral dá à loucura uma expressão e uma

45
A Dor de Existir

tintura diferentes, ao passo que as sensações naturais ficam sempre


as mesmas, se as condições gerais de amor, dos bens de família, de
amizade etc. constituem em todos os tempos os elementos que inte-
ressam sempre tão vivamente o coração humano, do mesmo modo,
o delírio melancólico tem apresentado expressões diferentes em di-
ferentes épocas. Contudo, as perturbações fundamentais da auto-
percepção são sempre idênticas; quer o melancólico creia - como
na Antigüidade - que Atlas, fatigado de seu fardo, poderia deixar
cair sobre a terra a abóbada dos céus; quer creia - como na Idade
Média - nos feiticeiros, nos fantasmas e nos lobisomens; ou então
que - na nossa época - imagine que é procurado pela polícia ou
faça um delírio de grandes especulações financeiras desastradas.
Quanto à maneira como se produz este delírio, nós já o as-
sinalamos muitas vezes. O doente se sente num humor triste mas
estava habituado a só estar triste sob influência de causas deplorá-
veis; agora, a regra da causalidade exige que esta tristeza tenha um
motivo, uma causa, e antes que ele se interrogue sobre isso a respos-
ta logo lhe advém: toda sorte de pensamentos lúgubres, de sombras,
pressentimentos, apreensões, que alimenta e que cava até que al-
gumas destas representações venham a ser bastante fortes e per-
sistentes para se fixar, ao menos durante algum tempo. Assim
estes delirios têm o caráter de tentativas que o doente faz para
explicar seu estado.
No início- em certos casos, durante toda a duração da me-
lancolia - pode não haver o delírio propriamente dito; os doentes
avaliam com muita exatidão seu estado e as coisas do mundo exteri-
or; analisam suas sensações com muita perspicácia, desejam arden-
temente se eximir, mas são incapazes5.
Nos casos de franca melancolia há uma distinção importan-
te a ser feita, a saber: ou os doentes estão num estado de sonho
profundo, ou seus relacionamentos com o mundo exterior se dão
num estado bem desperto. Os casos da primeira categoria sobre-

46
117. Grimilger

vêm geralmente de uma maneira mais aguda; eles se aproximam


da melancolia com estupor e são em geral de um prognóstico mais
favorável que os da segunda categoria. Estes se desenvolvem, na
maioria das vezes, lentamente e têm uma duração mais crônica. Os
primeiros podem terminar prontamente, como se o doente acordas-
se subitamente; os últimos, jamais.

§118
Anomalias daSensibilidade e do Movimento. Estas anomalias são
freqüentes na melancolia. Trata-se em parte destas sensações deva-
zio, de mortificação da cabeça, de um membro ou mesmo de todo o
corpo; de outra parte, destas sensações penosas de toda a superfície
da pele que estimulam o delírio de ser eletrizado, ou ainda da
hiperestesia do rosto e da audição (tremor, estremecimento ao me-
nor ruído, que pode ser uma causa fundamental da panfobia).
A loucura sensorial propriamente dita, as alucinações e as
ilusões têm inteiramente o caráter e a marca da disposição dolorosa
do espírito. O doente vê os preparativos de seu suplício, escuta os
agentes da justiça que vêm prendê-lo; ele se vê cercado pelas cha-
mas do inferno; os precipícios parecem se abrir sob seus passos, os
fantasmas vêm lhe anunciar seu julgamento. Ele é perseguido por
vozes que lhe dizem injúrias, zombarias etc. Uma jovem melancóli-
ca que eu tinha observado se via penetrada por um olhar que vinha
de uma cabeça de porco do seu espelho; a partir deste momento ela
acreditou durante muito tempo que estava transformada em porco.
Onde as alucinações são mais freqüentes e mais variadas é nesta
forma grave de melaflcolia que está ligada a uma concentração com-
pleta do doente em si mesmo, e a um desaparecimento parcial da
consciência do mundo exterior (vejam mais abaixo Melancolia com
esttpor). Mesmo no olfato e no paladar são freqüentes as alucina-
ções; as do paladar, em particular um sabor metálico, dão amiúde
aos doentes a idéia de ser envenenado ou enfeitiçado por determi-

47
A Dor de Existir

nado alimento. Os odores desagradáveis subjetivos lhes fazem crer


que estão cercados de cadáveres, ou então que eles mesmos estão
apodrecidos etc.
Quando as alucinações aparecem, à medida que aumentam,
o doente não reage mais senão contra os objetos imaginários e por
conseguinte torna-se mais e mais estranho ao mundo · real.
Freqüentemente, elas são para o doente objeto de novas explica-
ções, e as idéias as mais sombrias e as mais absurdas de um mundo
de fantasmas, de máquinas colocadas sob a terra e agindo sobre os
doentes etc. têm sua origem nessas anomalias de sentido, que mui-
tas vezes só se manifestam muito depois do inicio da doença, ou
jamais se traduzem no exterior.
Os movimentos dos melancólicos portam inteiramente a
marca do afeto doloroso dominante. Mais habitualmente eles são
pesados, lentos ou estão suprimidos; o doente fica de bom grado no
leito ou se mantém todo o dia sentado num canto, sem prestar aten-
ção ao que o cerca. Com freqüência ele se mantém rijo, imóvel e
fixo como uma estátua. Nestes casos, os membros estão rígidos e
oferecem grande resistência às tentativas que se faz para lhes dar
uma outra posição, ou então são flexíveis, móveis e freqüentemente
conservam a posição em que são colocados (estados catalépticos).
Os músculos da face são algumas vezes o lugar de uma contratura
permanente, os traços são fixos, tensos; a testa franzida, as comissuras
da boca repuxadas; tudo isto junto à tez geralmente pardacenta, livi-
da, faz os melancólicos parecerem quase sempre mais velhos do que
são. O olhar é freqüentemente fixado sobre a terra, ou então os
olhos são largamente abertos e fixos, exprimindo dor, exprimindo
uma tensão penosa do espírito ou ainda, o espanto.
Observa-se um estado essencialmente diferente dos movi-
mentos na forma da melancolia, na qual a angústia interna se traduz
por uma agitação física (me/ancho/ia agitans). Nesta existe - muitas
vezes interiormente - um tumulto confuso de pensamentos, mas

48
W. Gritsinger

eles são monótonos e no fundo não mudam; é precisamente por


esta falta de produtividade das idéias que este estado difere da ma-
nia (cf. Richarz, Zeitschriftfor P!Jchiatrie, XV, 1858, p. 28). De outras
vezes o doente vai e vem sem cessar, chorando amiúde e torcendo
as mãos; muitas vezes manifesta uma tendência a fazer longos per-
curso.s ao ar livre, indo para vilarejos distantes, indo visitar seus pa-
rentes, seus amigos (me/ancho/ia errabunda). Com freqüência, ao pas-
sear ele torce as mãos, ou então agita violentamente seus braços em
movimentos bizarros jogando-os para lá e para cá. Temos razão de
ver, nestes dois modos diferentes em que a dor psíquica mórbida se
manifesta, uma analogia com a fenomenologia de afetos penosos em
pessoas sadias; de uma parte, na imobilidade que sucede o horror e a
consternação; de outra parte, na agitação e na superexcitação física que
amiúde se observa sob a influência desta disposição de espírito.
As perturbações da saúde física que existem fora disto que
nós acabamos de enumerar não têm nenhum valor do ponto de
vista do diagnóstico da loucura em geral ou de uma forma mental
determinada, mas têm uma importância muito grande frente a
etiologia e o tratamento. Estas perturbações não são constantes e
não têm todas a mesma relação com a loucura. Ora são sintomas de
uma doença que existia anteriormente, que contribuíram de algum
modo na produção da doença cerebral (por exemplo, afecções arte-
riais), ora são complicações acidentais; ora - e estes são os mais
importantes - os sintomas da própria doença cerebral.
A estes últimos se ligam particularmente:
1. A diminuição ou a perda total do sono, de tal forma que
o doente passa todas as noites sem dormir, ou então se sente tão
pouco recuperado por seu sono, que afirma não ter dormido (é uma
espécie de vigília interior prolongada, com entorpecimento das fun-
ções sensoriais). Ele tem constantemente sonhos penosos e horripi-
lantes e com muita freqüência alucinações nos momentos de passa-
gem do estado de sono para o de vigília.

49
•A Dor de Existir

2. Sensações dolorosas na cabeça; calor, pressão, peso, ver-


tigens, sensação de vazio, de água etc. no crânio; uma conduta aná-
loga àquela da embriaguez, zumbido nas orelhas, típicas sensações
de aura, ligeiros sobressaltos nos músculos; dores irregulares nas
diferentes partes do corpo, no peito, na coluna vertebral, no epigástrio
etc.; insensibilidade de certos pontos na pele, sentimento de priva-
ção de um ou outro membro; enflm, diminuição importante nas
sensações sexuais. Tais são os sintomas indicando uma mudança
sobrevinda na ação dos aparelhos nervosos. Freqüentemente estas
sensações estão na relação a mais direta com a desordem psíquica. Por
exemplo, uma moça melancólica, idade de 32 anos, que observei em
1857 tinha no lado direito da testa muitas dores nevrálgicas e no nervo
supra-orbital direito uma sensibilidade muito grande. Todo dia ela
tinha acessos que começavam por uma espécie de rodopio acima do
olho direito, e que imediatamente tomava toda a cabeça; o humor
melancólico aumentava muito, e a doente devaneava completamente.
3. Com freqüência há má digestão e como na maioria das
doenças do cérebro, constipação. Esta circunstância pode acarretar
alguns erros relativos à etiologia, fazer crer a existência hipotética de
obstruções, de enfartes, ainda que a observação diária nos mostre
como as coisas se passam realmente: os afetos tristes mesmo sobre-
vindo no estado de saúde ocasionam com grande facilidade modifi-
cações secundárias nas funções do intestino. É verdade que algumas
vezes, sobretudo no início, encontramos sinais manifestos de um
catarro gastro-intestinal; freqüentemente a língua é saburrenta, o
apetite irregular, seja nenhum, seja- e isto não é raro -aumentado,
parecendo faltar a sensação de saciedade. O surpreendente aspecto
glutão dos doentes forma algumas vezes um contraste singular, qua-
se ridículo, com seu estado de tristeza profunda: nós os vemos, por
exemplo, engolirem às pressas grandes pedaços de bolo e ao mesmo
tempo se lamentarem de seus vários pecados, da perda de sua salva-
ção ou de suas infelicidades mundanas. A sensação de pressão na
cavidade cardíaca que se observa num grande número destes doen-

50
tes parece provir do diafragma ou dos músculos do abdome. De
resto, ainda se ignora completamente o que significa esta sensação;
isto é lastimável porque freqüentemente ela parece manter o senti-
mento de angústia dos doentes. Fazendo-a desaparecer, poderíamos
esperar aliviar consideravelmente seu estado. Numa jovem mulher
que observei em 1857 e que após um tratamento de Tartams Emetims
dado em largas doses (numa pneumonia) sofreu muito tempo de
uma úlcera crônica do estômago, os acessos de melancolia aguda
com sensação de angústia e de palpitações reapareciam com fre-
qüência na ocasião da repleção do estômago, de um leve desvio
de regime etc.
A recusa da alimentação que observamos repetidas vezes
nos melancólicos e que quando persiste muito tempo torna-se uma
complicação desagradável- porque necessitam de alimentação for-
çada e apesar disto a nutrição é bastante defeituosa - provém mui-
tas vezes do fato dos doentes temerem ser envenenados, ou ain-
da de sentirem no ventre diversas sensações anormais- eles crê-
em que seus intestinos estão· fechados e que não há mais lugar
para os alimentos- provém do fato de que a sensação de apetite
lhes falta completamente. De outras vezes eles recusam comer
porque querem se deixar morrer de fome, ou então porque crêem
expiar seus erros tendo fome, porque imaginam pecar ao tomar os
alimentos ou porque as alucinações, as vozes, lhes ordenaram jejuar
etc. Algumas vezes estas idéias parecem ser provocadas e conserva-
das pelas doenças graves da mucosa intestinal, e em particular pela
constipação aguda irritando uma grande extensão do intestino. Mas
esta recusa de comer com freqüência não passa, como criteriosamente
observaM. Guislain (cf. úçons orales, tomo I, p. 265), de uma ma-
neira de fazer oposição como a recusa de falar; enfim, ela pode
ainda ser simplesmente o resultado da imitação. O resultado de
toda esta abstinência implica um emagrecimen to rápido; a pele
fica seca, a respiração se enfraquece, as roupas não servem, a
urina é rara.

51
A Dor de ExiJtir

4. Frente à má alimentação, o corpo do melancólico passa


por necessidades. Os doentes emagrecem, a pele perde seu brilho,
seu frescor, empalidece, desbota e seca. No indivíduo sadio, obser-
vamos algumas vezes um estado análogo da pele como resultado de
emoções tristes; no entanto, neste sentido observou-se com razão
que a mudança de humor nos melancólicos não conduz a um abalo
do organismo tão profundo quanto aquele que se veria sobrevir na
saúde após emoções fortes e prolongadas. Isto se deve particular-
mente à circunstância de que a maioria dos melancólicos come mais
e digere muito melhor do que os indivíduos com boa saúde sob o
golpe de uma emoção forte; mas quando os doentes recusam co-
mer e que se é obrigado a alimentá-los à força, eles caem rapida-
mente num marasmo agudo e são com freqüência surpreendi-
dos por doenças locais graves ou mortais (pneumonia lobular,
gangrena pulmonar).
S. Freqüentemente a respiração é lenta, incompleta e difícil;
o doente, oprimido, procura fazer penetrar o ar em seu peito dando
profundos suspiros. As palpitações do coração são muito freqüen-
tes e muitas vezes é também deste órgão que dependem as sen-
sações de angústia que o doente suporta. Falamos acima destas
perturbações circulatórias e da sua importância do ponto de vista
do desenvolvimento e do sustento da doença cerebral. O estado do
pulso é extremamente variável; muitas vezes ele é pequeno e raro;
os pés e as mãos, num grande número de casos, estão constante-
mente frios, aparentando cianose até à mudança de coloração
para o tom de chumbo, sobretudo nos melancólicos que ficam to-
talmente imóveis.
6. As perturbações da menstruação são muito freqüen-
tes: amenorréias, dismenorréias etc.; em certos casos, com o
restabelecimento das regras desaparece a doença; em outros,
ela não sofre n enhuma modificação; algumas vezes, enfim,
agrava-se 3.

52
117. Gnúinger

7. As anomalias da secreção urinária podem ser bem mais


freqüentes que normalmente se supõe. Infelizmente, não existem
estudos sérios e importantes sobre este tema. A secreção das lágri-
mas, apesar do afeto doloroso dominante, está aumentada. Muitas
vezes durante a melancolia se desenvolvem afecções crônicas das
vísceras, tuberculoses pulmonares, doenças da pele, constipações
crônicas dos intestinos etc., afecções que por vezes ficam latentes
durante um tempo bastante longo. Quando os melancólicos mor-
rem, é comum terem sucumbido a urna destas doenças; não é nada
raro ver a melancolia terminar com a morte quando os doentes se
recusam a comer, e geralmente na melancolia com estupor o térmi-
no fatal ocorre em consequência de um agravernento do estupor e
da paralisia cerebral (algumas vezes se tem encontrado na autópsia
um edema cerebral considerável).

§119
O avanço das formas simples da melancolia é freqüenternente
muito agudo, como por exemplo nos casos onde um período curto
de distúrbios do humor doloroso com angústia profunda precedeu
o desenvolvimento da mania, em particular da mania intermitente.
Geralmente o avanço da melancolia é crônico com remissões, mais
raramente com intermissões completas de duração variável. Certa
vez vi uma mulher acometida de melancolia profunda (ela tinha re-
presentações de perda de sua fortuna e se acreditava ameaçada de
morrer de fome) que apresentava um intervalo perfeitamente lúcido
de cerca de um quarto de hora sem motivo apreciável, igualmente
desaparecendo de modo brusco. Naturalmente as remissões são so-
bretudo freqüentes no início da melancolia e também nas proximi-
dades da convalescença.
A transformação da melancolia em mania e o retorno desta
à melancolia são fenômenos muito comuns; a doença na sua totali-
dade representa um círculo no qual estas duas formas mentais

53
A Dor de Existir

freqüentemente se alternam de uma maneira inteiramente regular -


a loucura circular (folie circulaire), sobre a qual os alienistas franceses
discutiram. Para outros observadores - e eu sou um deles - temos
visto vários casos onde normalmente em uma estação, por exemplo
no inverno, sobrevém uma profunda melancolia, depois na prima-
vera esta dá lugar à mania, que por sua vez no outono transforma-se
pouco a pouco em melancolia.
O nome de folie circulaire foi empregado pela primeira vez
por M. Falret (1851), que igualmente colocou em relevo o péssimo
prognóstico desta forma mental. M. Baillarger (Ann. med p.rych., 1854,
VI, p. 369) se esforçou para mostrar que na loucura circular não há
dois acessos diferentes - um de melancolia e outro de mania - mas
dois períodos de um só e mesmo acesso de loucura (baseando-se
principalmente sobre isto: não há entre a melancolia e a mania uma
remissão completa). Este autor dá à doença o nome de loucura de
dupla forma (folie à double forme) 6 • Em alguns casos se teria observado, e
isto durante muitos anos, uma alternância regular da melancolia e da
mania, cada uma delas durando um dia, ou regularmente muitos dias.
Um nível muito moderado de melancolia com remissões
consideráveis pode persistir durante um certo número de anos; es-
ses doentes só raramente aparecem nos asilos de alienados, ou então
somente durante os paroxismos, ou quando sobrevêm os acessos
intermitentes de mania; a maior parte das vezes esses indivíduos
podem ficar em seu meio habitual, onde fazem o tormento dos que
os cercam e são objeto de julgamentos distorcidos da parte dos
médicos e dos leigos.
A forma persistente da melancolia com intensidade ainda
moderada e que é tratada com certa eficiência, prolonga-se
comumente de seis meses a um ano. Segundo um número conside-
rável de observações, pode-se considerar como certo que as doen-
ças agudas, intercorrentes, assim como as doenças crônicas apare-
cendo pela primeira vez no curso da melancolia, exercem sobre esta

54
W. Griesinger

última uma influência favorável; a melancolia cessa quando essas


doenças aparecem. Para as doenças agudas intercorrentes é a salivação,
um exantema ou ainda uma febre intermitente; para as afecções crô-
nicas, as tuberculoses pulmonares etc. No entanto, as observações
acima não correspondem aos conceitos do antigo Ensino das crises,
pois não raro neuroses sem excreções palpáveis (afecções da medu-
la, fortes dores de dente) fazem cessar com sua aparição a doença
do cérebro7 •
Mas tão freqüente quanto a suspensão da melancolia quan-
do da aparição de outras doenças, é sua persistência ou mesmo sua
exageração; ou ainda, a melancolia desaparece mas a loucura toma
uma outra forma. Nós vimos, por exemplo, um rapaz que esteve
durante diversos anos preso a uma melancolia profunda com fracas
remissões, e em quem, quando da aparição de um catarro intenso
acompanhado de hemoptises - primeiros sintomas de uma
tuberculização pulmonar que progrediu rapidamente, acompanhada
de vivas dores ao longo da coluna vertebral- a melancolia cessou e
deu lugar a uma exigência igualmente mórbida e a uma alegria agita-
da. Os casos deste gênero estão longe de serem raros.
A cura se faz geralmente de uma maneira progressiva:
por sucessiva diminuição do mau humor; sobrevêm os interva-
los mais e mais prolongados de calma e de lucidez; as antigas ten-
dências e particularidades do caráter do indivíduo voltam pouco a
pouco; muitas vezes, com o concomitante ou precedente aumento
da massa corporal.
Nós já vimos que a melancolia passa freqüentemente a uma
das formas de mania. Mas isto não é tudo. A melancolia simples ou
com estupor, quando se prolonga, pode terminar também num es-
tado de enfraquecimento psíquico, por um nível mais ou menos
elevado de verdadeira demência, e isto provavelmente pelo fato do
desenvolvimento de alterações orgânicas no interior do crânio. Quan-
do então se inicia uma melhora da alimentação, apesar da fisionomia

55
A Dor de Existir

permanecer com uma expressão pesada e embrutecida, os afetos


tristes dissipam-se e verifica-se que várias atividades psíquicas per-
deram definitivamente sua energia. Não é raro ver aparecer após a
melancolia estados que se aproximam da loucura ou estados de lou-
cura franca. Nesta última, aparecem em primeira mão as representa-
ções delirantes de tristeza que se fixaram, em particular as alucina-
ções que causaram a construção do delírio de envenenamento, de
complô, de ser eletrizado etc.; daqui em diante o doente é incurável.
Esses doentes acometidos de loucura, de debilidade psíquica com
resíduos de melancolia (e de mania) e de alucinações, que comumente
apresentam múltiplas exacerbações sob forma de um ou outro esta-
do primário (apatia alternando com a turbulência, tristeza pouco
profunda alternando com uma alegria igualmente ligeira etc.), cons-
tituem a maioria dos internados por afecções crônicas nas casas de
alienados. Nós o estudaremos melhor no capítulo sobre loucura e
demência3 . Inicialmente, muitas vezes, o estado permanece estacio-
nário na forma de melancolia, apresentando ligeiras alternâncias de
melhora e recaída. Aqui fica extremamente difícil prejulgar algo da
curabilidade destes doentes; mas quando este estado de apatia com
o carimbo da melancolia se prolonga três ou quatro anos consecuti-
vos sem remissão, a cura é então extremamente rara. Nós daremos
aqui algumas observações das formas mais simples da melancolia
com tratamento.

Observação I. Hipocondn'a, melancolia projimda;febre intermi-


tente. Cura. N. N., pastor protestante, idade de 43 anos, de forte cons-
tituição, foi admitido no asilo de Siegburg em agosto de 1825, de-
pois de ter caído doente em março do mesmo ano. Os principais
sintomas até ali haviam consistido em uma angústia e uma agitação
consideráveis; seu olhar era fixo e desconfiado, o rosto pálido, a
respiração curta, a pulsação pequena e rápida. Ele se acusava d e
ter vivido d e uma m anei ra detestável e de ter cometido deli-
tos terríveis, mas em alguns instantes de lucidez , apreciava

56
117. Griuinger

perfeitamente seu estado (sangrias, vesicatórios, sal de nitrato,


vomitivos e aplicação de uma água ferruginosa).
Quando entrou no asilo, seu olhar era temeroso e não se
fixava sobre os objetos; seu aspecto exprimia a angústia profunda e
o desespero; o ventre estava inchado, as fezes raras; o rosto lívido e
cadavérico. O doente dizia que em seguida iriam dilacerá-lo, esmagá-
lo, cortá-lo em pedaços (creme de tártaro e enxofre, ligeiras ocupa-
ções intelectuais).
Em setembro, o doente já estava mais calmo e tinha menos
tendência para exprimir sua tristeza. Pouco depois, queixava-se de
abatimento, de dores de cabeça, sobrevindo alguns acessos de febre
intermitente do terceiro tipo. Durante os dias de febre, o doente
imaginava, até o momento onde o estado de suor começava, que iria
morrer logo, e a cada instante o repetia com uma terrível expressão
de angústia no olhar e nos gestos. Cada vez que lhe diziam que nos
dias precedentes, durante sua febre, ele tinha dito e acreditado na
mesma idéia, respondia: "Hoje, isto não é mais a mesma coisa, devo
morrer hoje" (vomitivo de sal de cádmio com amoníaco). Mais tar-
de os acessos de febre viriam todos os dias e o doente foi menos
atormentado pelo medo de morrer. Enfim cessaram completamen-
te e com eles desapareceram também as acusações, que haviam en-
fraquecido há algum tempo e que retornavam quando o doente lan-
çava contra si crimes imperdoáveis que tinha cometido, dizendo que
merecia os suplícios deste mundo e da eternidade. Permaneceram
somente, por algum tempo ainda, os tormentos do tipo hipocondrí-
aco, que se manifestavam numa angústia extrema acerca de sua saú-
de física. Também este estado cessou; a pulsação voltou a ser regu-
lar, o edema das pernas que tinha aparecido quando dos últimos
acessos de febre se dissipou e o doente recuperou uma cor melhor;
logo pôde se ocupar de alguns trabalhos intelectuais nos quais sen-
tia prazer; tornou-se alegre, e em janeiro de 1826 estava completa-
mente curado, deixando o asilo.

57
A Dor de Existir

Eis agora as informações que o próprio doente escreveu


sobre o desenvolvimento de sua loucura após sua cura:
Desde minha juventude existia em mim um estado de hipocondria; já
antes de freqüentar a universidade, acreditava-me tuberm/oso, e todas as
afirmações dos médicos em contrário não podiam me tirar essa idéia do
espírito. Muitos acontecimentos ruins me inspiravam uma certa descotifi-
ança das pessoas, e durante o ano ck 1820, em que jili tomado por uma
domça nos olhos que me condenava à inação, ocupava-me freqiientemente
com pmsamentos muito tristes e que necessariamente exercian1 sobre mim
uma impressão cksagradáveL Em 1822, mquanto convalescia de uma
indisposição que tinha durado muitas semanas, houve um incêndio e um
concomitante aguaceiro que surtiram em mim as piores impressões. A
partir deste momento tive uma constipação e uma certa difimldade ck
audição. En1 1824, estava sobrecarregado de trabalho, nuu espírito esta-
va abatido, faltavam exercíciosftsicos, e tive ainda preocupações em casa:
perdi uma criança recém-nascida. A partir daí perdi o prazer para o
trabalho e a disposição. Após a prédica, estava muito fatigado e abatido,
a angiÍstia e uma multidão de idéias tristes se apoderavam de mim; me11
sono era de mrta duração e atormentado por sonhos horríveis; ao me
despertar, tinha um forte tremor em todos os membros. Entretanto e11 me
smtia mais bem disposto que n11nca, pois não tinha mais a difimldade de
audição nem as dores tiOS membros e as flatulências que tinha tido até
mtão, e não sentia nenh11m titcômodo após minhas refeições. Assim tam-
bém não me vinha mais a idéia ck procurar em mm corpo o motivo ckste
estado de tristeza, mas antes em minha vida inteira que se apresentava a
mim como um crime enorme. Este pensamento não me vinhaprogressiva-
mmte, mas tanto quanto me lembre, st~rgia ck repente em minha mente
como 11m sonho. É assim quem me explicava o meu estado. Então desfez-
se a clareza de mms pmsammtos e a minha cotifiança nos o11tros e em
mim mesmo; a h11manidack inteira devia se revoltar contra mim, rqeitar-
me de seu seio, pois eu era para ela umafonte de horríveis tormmtos, e e11
era mm maior inimigo. Cotifessei a minha m1ilher q11e e11 tinha cometido
o crime mais horrível q11ejamais se tinha visto, e que mms paroq11ianos
me fariam em pedaços logo que o soubessem. Tomou-se impossível mtre-
gar-me às ocupações de minha profissão, minha ang1ístia não parava ck
crescer. Os membros do conselho da igrifa me davam as melhores garanti-
as, efaziam as mais excelentes propostas; apesar disso e11 acreditava qr1e

58
W. Gn'uinger

t11do estavaperdido, e no dia que desmaiei n11n1a re11nião, acreditei q11e eu


o tinhafeito vol11ntariammte. Tomei o bamlho do aparelho de aquecimen-
to pelo dos tambores, epetJSava q11e os soldados vinham para me kvar;
mais tarde, acreditei ver 11m cadafolso se erguer diante de mim, que iria me
despedaçar, e o receio deste suplício sempre me perseguia. Os oijetos que
estavam em torno de mim me pareciam mais belos e mais brilhantes que
outrora, os homens me pareciam mais sábios e mais emditos, e quanto a
mim acreditava-me abaixo de todo mundo e incapaz de fazer qua/q11er
coisa. Por momentos, ainda acreditava que poderia ser salvo, depois mi-
nha tristeza aumentava... Quanto a meu estado ao fim da doença, não
posso melhor descrevê-/o senão dizendo que estava como 11m homem que se
desperta após um sonho penoso, e que nãopode se convencer imediatamen-
te de que acabara de sonhar. ~sumo muito abreviado de Jacobi,
Beobachtungen über die Pathologie und Therapie der mit
Irresein verbundenen Krankheiten, I. Elberfeld, 1830, p. 141ss).

Observação II. Melancolia. Cura por ocasião do retorno das re-


gras. Uma moça de 19 anos, cuja mãe se tinha suicidado num acesso
de melancolia profunda, com aspecto saudável e de um caráter ale-
gre, regularmente menstruada desde os 15 anos, acometida de corri-
mento vaginal aos 16 anos, mais tarde dolorosamente afetada por
uma ligação de amor que as circunstâncias não tinham favorecido,
caiu bruscamente doente em agosto de 1825. Apresentava um certo
grau de parvoíce; ria freqüentemente sem motivo, fazia toda sorte
de besteiras e era incoerente em suas falas e em seus atas. A
fisionomia e o olhar eram vivos, os movimentos precipitados; o
ventre estava inchado, as fezes difíceis, as regras pouco abundantes.
Ao fim de alguns meses sobrevem uma intermissão completa da
perturbação psíquica; mas seis semanas depois a loucura se mostra
sob outra forma.
A doente ·parecia fortemente angustiada; ficava sentada, per-
dida em seus pensamentos, imóvel e muda, ou então chorava e sus-
pirava, interrompendo-se freqüentemente para gritar: "Que infelici-
dade! O que eu fiz?" Ela se recusava a comer; sua gestalt abateu-se,

59
A Dor de Existir

sua cor vivaz tornou-se acinzentada, suas feições estavam desfigura-


das, suas forças diminuíam. O ventre estava duro e inchado, as fezes
difíceis e secas; as regras estavam completamente suprimidas e havia
constantes corrimentos. Após algum tempo, voltou a ter um pouco
de apetite; buscava comida nos gamelas das galinhas ou surrupiava
alimentos crus, sem qualquer higiene, que comia escondida; recupe-
rou então um pouco da sua força e massa mas tinha uma aparência
livida e inchada. Oito meses depois do retorno das perturbações
psíquicas, durante os quais ficou sem assistência médica, internou-
se em agosto de 1826 no Asilo de Siegburg. Exceto um comporta-
mento um pouco escrupuloso e os constantes corrimentos vaginais,
não se observava qualquer sintoma de doença física. Seus movi-
mentos eram sem energia, monótonos; sua postura, caída; soluçava
o dia todo de tal modo e se lamentava tanto, que a cada instante se
poderia crer que lhe aconteceria uma terrível desgraça. Durante a
noite o sono era geralmente calmo; era-se obrigado a forçá-la um
pouco para comer. Nesta moça a perturbação psíquica se manifesta
principalmente pela disposição do humor exclusivo de seu espírito
que domina todos os seus pensamentos e paralisa a sua vontade,
sem maiores distúrbios do entendimento ou da direção de seus de-
sejos. A perturbação da digestão, a distensão e a dureza do ventre,
assim como a amenorréia e os corrimentos, pareciam· dar as indica-
ções terapêuticas mais importantes (regime leve, regular, banhos,
ocupação). Uma convalescente cuida maternalmente da doente, ga-
nha sua confiança e chega a torná-la obediente.
Ao fim de setembro, as regras chegam em pequena quanti-
dade, mas o ventre permanece duro e inchado (tartarato de boráx e
flor de enxofre; cautérios nos dois braços). A doente se acalma pou-
co a pouco, chora menos e come espontaneamente. Três semanas
depois as regras retornam, o ventre desincha e retoma sua flexibili-
dade, as fezes estão regulares; os traços da face se distendem, a ex-
pressão do rosto é mais alegre. Enfim, em 10 de novembro, após
uma nova aparição das regras, a tristeza e o choro desaparecem como

60
W Gnúinger

por encantamento. Ela trabalhava com prazer; os corrimentos ti-


nham desaparecido completamente, a saúde geral se consolidava dia
após dia. Enfim, em abril de 1827, a doente totalmente curada pôde
deixar o asilo Gakobi, Beobachtungen iiber die mit Irresein verbundenen
K.rankheiten, 1830, p. 198-ss).

O bservação III. Melancolia com tmdência ao suiddio e alucina-


ções. Poluções diurnas prováveis. Cura por cauterização da uretra. Emile G.,
23 anos de idade, destacou-se por sua boa formação moral: aos 21
anos recebeu o diploma de advogado. Sua postura é encurvada, seu
corpo magro e seus músculos fracos; a pele descolorada, o rosto
sem expressão; seus olhos negros são sem brilho e voltados para o
chão e sua voz frágil; tudo nele declara uma excessiva timidez. Seus
membros inferiores se mantêm perpetuamente em movimento.
Com um discurso bastante pobre e desajeitado o doente
traz as seguintes observações escritas sobre seu estado8:
Aos 12 anos, tive a desgraça de adquirir no colégio 11m mau bábito.
Terminei meus estudos aos 17 anos. Aos 19 anos, enquanto estudava
direito em Paris, já observei uma mudança em mm caráter: gradualmente
ocorreu 11111 desgosto de todas as coisas, 11m tédio prqfimdo e universaL Até
então, eu tinba percebido apenas o fado bnlbante da vida. A partir dessa
época, só vi o fado sombrio. Logo, as idéias de suicídio vieram pelaprimei-
ra ve:v pert11rbando e apavorando a minha imaginação. Este estado moral
perdurou 11111 a110.
Então, outras idéias substituíram aquelas de suicídio. E11 me acreditei
ridíct~fo; parecia-me que a expressão de minba jisúmomia e meus modos
provocavam uma insultante gaiatice. Essa idéia tomava todos os dias
novasforças; várias vezes na ma, e mesmo num apartamento, com paren-
tes, com amigos, escutei injúrias que se endereçavam certamente a mim;
disso ainda tenho a convicção. Etifim, mer1 estado piorando, acredi-
tei q11e todo mundo me tiwdtava, e eu o creio ainda; se alguém corpe,
assoa o nan·:v se tosse, se ri, coloca um lenço ou a mão nafrente do rosto,
experimento a mais pmosa sensação. Ou esta sensação provoca raiva ou
rltn prqfimdo abatinmrto que se manifesta por lágrimas involuntárias.

61
A Dor de Existir

Não olho ning11ém; me~ts olhos não se fixam sobre nenh11m objeto. Con-
centrado em minhas idéias, so11 indiferente a todo o resto. Esses são bem
evidentemente os sinais de imbecilidade.
E11 co'!fesso que posso ter tido, q11e tive mesmo alucinações; mas estou
pers11adido que essas idéias não são sem fimdamento. Eu sempre me con-
vencera q11e a expressão de me11 rosto, sobret11do de meu olhar, tem algu-
ma coisa estranha; que se lê sobre minha fisionomia os medos que me
agitam, as idéias que me atormentam, e que se abusa desta dolorosa
fraqueza de espírito, enquanto se deveria ter mais piedade. Também pro-
Cifro a solidão, a sociedade mefoz maL
Sinto 11m peso 11a cabeça, uma espécie de pressão no cérebro, e ao mesmo
tempo irritação: soufraco, desanimado; sinto-me envelhecido, experimento
um estado de sonolência e de torpor contínuo; o exercício me cansa e
não consigo permanecer parado. Há alguns meses experimento mais
o abatimento do que a irritação. Eu não fico tentado a proCIIrar brigas
com os que me insultam: apenas 11ma ve:v acontecei/ de ceder a esta tenta-
ção. Há cinco anos q11e o tédio não me deixa: tudo me incomoda, me pesa;
s011 desco!ifiado, tímtdo, embaraçado, incapaz de agir e defolar. O espí-
rito da vida se retirou de mim. Há dois anos eu comecei a me obser-
var mais e mais. Há sete meses re~~unciei completamente ao meu hábito
fimesto e no entanto me11 estado piora todos os dias".

"Esta nota dá uma idéia bem clara da causa, do andamento e


da natureza dos sintomas predominantes, mas o estilo da escrita do
doente forma um contraste notável com a aridez de sua conversação e
o desajeitamento do seu exterior. É porque ele estava sozinho quando
escrevia e levava o tempo que precisava, ao passo que no mundo ele se
sentia oprimido pelo pensamento esmagador que o seguia em todo
lugar. Assinalo também que ele não disse nenhuma palavra sobre
suas más digestões, sobre sua constipação obstinada, sobre a ausên-
cia completa de ereções e de toda pulsão sexual, apesar de experi-
me:ntar todos esses sintomas de uma maneira muito pronunciada.
Tudo isso não era nada para ele, uma só idéia o absorvia: tinha a
convicção de que era um sujeito desprezível e do deboche de todos
que se aproximavam, e este pensamento era alimentado pelo senti-
mento de sua impotência e pela vergonha da causa que o levou a isso".

62
W. Griuinger

Eis o que contém de mais notável a consulta do Dr. Esquirol: "O


médico que assina não pode desconhecer uma hipocondria que persiste
há três anos. É evidente que esta afecção nervosa é produzida pelo mau
hábito ao qual o doente entregou-se desde a puberdade, e ao qual re-
nunciou completamente apenas há sete meses. Esta doença persiste com
tanto mais obstinação quanto mais longamente tenha agido a causa
que a produziu e quanto mais esta tenha afetado o sistema nervoso1 enfra-
quecendo-o prodigiosamente" (Lallemand, Despertes séminales1 I, p. 357).

§120
A maneira pela qual a dor psíquica se exprime na melancolia
varia de tantos modos que, fundando-se sobre as principais diferenças
que oferece, formaram-se os gêneros e as variedades da melancolia.
Enquanto a diferença se produz apenas sobre o gênero e o
objeto do delírio, que freqüentemente coincide com as mais ressal-
tadas causas psíquicas da doença, o estabelecimento dessas varieda-
des tem apenas um valor insuficiente; sob essa relação destacam-se
as seguintes subformas:
1. Dá-se o nome de melancolia religiosa a essa forma de
melancolia, na qual o delírio gira principalmente em torno das re-
presentações religiosas, da idéia de que se fez grandes pecados, do
medo de suplícios do inferno, da idéia de que se é rejeitado por
Deus etc. Amiúde o sentimento de angústia interna é expresso em
angústia de pecado por razões absolutamente acidentais e exterio-
res. São também estas as razões que levam o doente a procurar no
seu estado de tristeza dolorosa a consolação da religião, que muitas
vezes, é verdade, ao invés de aliviar o doente tem apenas por resul-
tado exagerar sua angústia, e neste caso não se deve confundir o
efeito com a causa. Se é certo, com efeito, que a energia psíquica
paralisa quando o espírito está incessantemente preocupado com a
contrição e com o medo dos suplícios do inferno e constantemente
trabalhado por representações sombrias e ascéticas sobre a vida desse

63
A Dor de Existir

mundo; se é certo que as representações tristes dominam facilmente


o pensamento nessas circunstâncias e que as càbeças fracas caem
sob essa influência num estado de desunião interior e de tristeza
dolorosa que pode assim contribuir essencialmente para o desen-
volvimento da melancolia, na grande maioria dos casos, no entanto,
as inquietudes religiosas que manifestam os melancólicos devem ser
olhadas como sintomas da doença que já existe e não como a causa
desta doença.
Esta forma de melancolia religiosa deve ser cuidadosamen-
te distinguida daquela loucura que igualmente se desenrola sob idéi-
as religiosas, mas que é alegre, audaciosa, exaltada, e na qual os do-
entes acreditam serem eles próprios Deus, ou crêem ter relações
íntimas com Deus, com os anjos, com o céu. Este estado difere
totalmente do ponto de vista psicológico da melancolia; nós falare-
mos nisso estudando as formas de exaltação mental3 .
A questão é a mesma nesta outra forma interessante da me-
lancolia, onde o sentimento que o doente tem de ser dominado por
uma força estranha se traduz pela idéia de possessão do demônio;
trata-se da chamada demono-me/anco/ia, que se observa em todos os
países [na França particularmente ela não .é raraF· Em nosso país,
recentemente, esta forma ainda foi pessimamente explorada em vá-
rios sentidos, em parte por um humor barroco, em outra parte por
uma crença crassa na superstição.
Nesta forma, a força estranha, inimiga, pela qual o doente
se crê dominado, toma diferentes formas demoníacas, seguindo as
crenças supersticiosas que reinam na época e no lugar onde ele vive
(diabos, fantasmas etc.); e como o doente tem ao mesmo tempo
sensações anormais provenientes de diversas partes do corpo, ele
atribui às vezes a esses seres sobrenaturais um lugar determinado
seja em uma metade do corpo, seja na cabeça ou bem nas costas, no
peito etc. Não é raro observar as convulsões de músculos voluntári-
os, as contrações da laringe que alteram a voz de uma maneira sur-

64
r W. Griesinger

preendente, as anestesias de partes estanques da pele, as alucinações


visuais e da audição. Este delírio intermitente acompanha às vezes
os paroxismos de convulsões violentas (que evidentemente são aná-
logos aos ataques epilépticos ou aos ataques histéricos, que são ain-
da mais freqüentes), paroxismos que são separados por intervalos
livres, de completa lucidez.
A forma mais disseminada da possessão propriamente dita
aparece apenas nas mulheres (quase sempre histéricas) e nas crian-
ças. Os sinais mais leves deste fenômeno psicológico se encontram
nos casos- que não são raros- onde as cadeias de idéias atua.lizadas
são sempre acompanhadas por uma idéia contraditória interna que
se liga às primeiras de forma involuntária, o que tem por resultado
uma divisão fatal, uma cisão da personalidade. Nos casos muito de-
senvolvidos onde este círculo - do atualmente pensado acompa-
nhado pelas representações que o contradizem - chega a ter uma
existência absolutamente independente, este coloca em marcha o
mecanismo da fala, expressa-se, é incorporado nas falas que, por-
tanto, não pertencem ao eu (ordinário) do indivíduo. Antes de expri-
mi-lo, o próprio indivíduo não tem consciência deste complexo de
representações que age de forma autóctone sobre os órgãos da fala.
O eu não o percebe. Este complexo de representações vem de uma
região da alma que permanece obscura para o eu; ele parece estra-
nho para o indivíduo: é um intruso que exerce uma opressão (Z1van~
sobre ele. As pessoas incultas vêem nesse complexo de representa-
ções um ser estrangeiro. Em alguns casos, encontramos nos discur-
sos insensatos dessas mulheres ou dessas crianças um poeta escon-
dido ou uma ironia que se dirige contra as idéias que anteriormente
esses indivíduos mais respeitavam; mas habitualmente o demônio
não é mais que um pobre companheiro bem trivial.

Desde a publicação da primeira edição desta obra, tive ocasião


de observar vários casos de demonomania em diversos graus. Eis aqui
duas observações interessantes: o primeiro relativamente simples vai
esclarecer o segundo já mais complexo.

65
A Dor de Existir

Observação IV. Crises de perturbação psíquica voltando de dois


em dois dias, apresentando ofenômeno principal de um drcu/o de representações
contraditórias. M.S., camponesa de 54 anos, teve acessos noturnos de
violentos pesadelos e alucinações auditivas durante três meses aos
22 anos. Ela pariu com trinta anos e depois dessa época as regras
desapareceram para sempre e a doente teve uma afecção hemorroidal
intensa. Seu aspecto é bom: o exame objetivo constata apenas um
útero pequeno e retrovertido. Entre trinta e quarenta anos nela se
desenvolve paulatinamente uma doença que reaparece em crises, que
se fixa cada vez mais. As crises reincidem de dois em dois dias ou
três em três dias e nos intervalos a doente está perfeitamente bem.
Esses acessos começam com dores na cabeça, nos rins, no pescoço,
taquicardia, angústia, grande abatimento, às vezes referências aoglobus
e contrações histéricas. É obrigada a permanecer na cama e cai numa
apatia completa; não pode mais juntar suas idéias e a anomalia psí-
quica se apresenta sob a forma de contradição interior em relação a
seus próprios pensamentos e suas determinações, uma oposição ime-
diata constante contra tudo o que ela acaba de pensar ou de fazer.
Uma "voz" interior, mas que não ouve com seu ouvido, revolta-se
contra tudo o que ela quer (por exemplo, contra a sua simples per-
manência no leito, à qual seu estado a condena), em particular con-
tra toda elevação dos sentimentos, a oração etc. A voz quer sempre
o mal quando a doente quer o bem e lhe gritou uma vez, mas não
audível exteriormente: "Tome a faca e mate-se!". A doente, que é
uma mulher racional, diz que tem dificuldades de crer que em seu
corpo esteje um ser estranho, um demônio, da mesma forma
como sabe que não é "ela mesma" a causa do acima descrito. Eu
recebi a doente na clínica Tübinger e tive muitas vezes ocasião
de observar os acessos. E la estava então muito excitada, congesti-
onada; sua figura estava sombria, seus traços tensos; não tinha
febre; o acesso durou de 24 a 48 horas. Uma vez, no começo,
tendo a doente tido uma forte congestão da cabeça, praticou-se
nela uma pequena sangria que lhe trouxe apenas um alívio passageiro;

66
117. Grieri11ger

a afecção hemorroidal melhorou muito pelo emprego de um


eletuário de pimenta, mas os acessos persistiam sem nenhuma
modificação (observação do autor).

Observação V. Possessão crónica. Uma camponesa, C. S., de


48 anos, solteira, veio sozinha me ver na clínica porque estava pos-
suida pelos espíritos. Seu pai tinha sido um pouco louco numa ida-
de avançada; sua irmã e o filho desta são alienados. A doente teve
um filho aos 19 anos: amamentou-o durante três anos, e caiu então
num estado de anemia profunda com dores estendidas aos mem-
bros e algumas vezes câimbra; durante muito tempo teve um bocejo
convulsivo na boca. Três anos após o início da doença (por conse-
guinte há aproximadamente13 anos) isso começou a "falar de den-
tro dela". Desde então lhe vieram palavras ou pensamentos: diz o
que não tinha a intenção de dizer e logo expressa com uma voz que
diferia de sua voz ordinária. Inicialmente pareciam ser observações
não contrárias, mas indiferentes ou mesmo razoáveis que acompa-
nhavam o pensamento e a fala da doente. Por exemplo, isso dizia:
'Vá ao doutor! Vá ao padre!", ou então: 'Você deve fazer isso as-
sim!". Pouco a pouco a essas observações indiferentes se acrescen-
taram novas, de caráter negativo; atualmente, essa voz ou constata
simplesmente o que a doente acaba de dizer, ou comenta suas pala-
vras, as critica, as torna ridículas. Por exemplo, quando a doente diz
alguma coisa justa, a voz lhe diz: 'Você mente! Você não deve fazê-
lo saber!" O tom dessa voz quando o "espírito" fala difere sempre
um pouco, e algumas vezes totalmente, da voz ordinária da doente.
O que faz sobretudo com que a doente acredite na realidade desse
"espírito" é que ele tem uma outra voz que não a dela.
Freqüentemente esse espírito começa a falar com uma voz baixa e
· grave; em seguida esta voz sobe ou desce, mais alto ou mais baixo
que a voz ordinária da doente; de vez em quando ela dá um grito
mais agudo, mais estridente, seguido de um riso seco e irânico.

67
A Dor de Existir

Eu mesmo observei esse fato diversas vezes. Além dessas palavras


que o "espírito" pronuncia nela, a doente percebe interiormente e
de uma maneira quase incessante um grande número de espíritos
que falam; às vezes tem alucinações completas de audição, porém
jamais alucinações visuais. A oração piora este estado que nós des-
crevemos e aumenta sua agitação; mas na Igreja, por timidez, frente
às pessoas e aos padres, consegue reter "a voz do espírito"; ela po-
dia mesmo ler as preces em voz alta sem se confundir.
De vez em quando suas falas adquirem um tom de
ninfomania; ela diz que os espíritos lhe fazem nascer pensamentos
obscenos e lhe fazem exprimi-los; a doente sofre de um prurido
vulvar. Antes que o espírito fale ela não sabe o que ele vai dizer.
Algumas vezes a fala lhe falta subitamente por algum tempo. Em
todos os fenômenos que nós enumeramos, reina uma uniformidade
extrema, invariável, e este estado que se tornou desde há muito fixo
e estacionário permaneceu sempre o mesmo durante o curto trata-
mento (observação do autor).

Observação VI. Ataques convulsivos, com idéias de possessão e de


multiplicidade da personalidade de curta duração numa criança10• Marguerite
B., 11 anos de idade, de temperamento um pouco violento, mas ten-
do sentimento cristão e piedoso, foi tomada em 19 de janeiro de
1829, sem ter tido nenhum mal-estar, de ataques convulsivos que
se repetiram durante dois dias com raras e curtas interrupções.
Durante as convulsões a criança estava sem consciência; rodava seus
olhos, fazia caretas e executava com seus braços toda a sorte de
movimentos bizarros. E, a partir de 21 de janeiro, uma segunda-
feira, fazia-se sentir uma voz bem grave com as palavras: "Reza-se
com razão por você!". Imediatamente ao voltar a si estava cansada,
esgotada, mas não sabia de nada do que tinha se passado e dizia
somente que sonhara. Em 22 de janeiro, à noite, uma outra voz
baixa que diferia manifestamente da primeira também começou a se

68
1~. Griuinger

fazer ouvir. Esta voz falava quase sem parar durante toda a crise,
isto é, de meia hora a uma hora ou mais. Era interrompida somente
pela primeira que repetia sempre: "Reza-se com razão por você!".
Evidentemente essa voz queria representar uma pessoa que não a
doente, e dela se distinguia exatamente objetivando-a e falando da
doente na terceira pessoa. No que dizia essa voz não havia confu-
são, nem incoerência; ela falava com uma conseqüência rigorosa,
respondendo de uma maneira lógica a todas as questões ou rejeitan-
do-as com um ar de zombaria. Mas o que fazia a principal diferença
desses discursos era seu caráter moral, ou melhor imoral; eles ex-
pressavam a pretensão, a arrogância, a zombaria ou o ódio contra a
verdade, contra Deus e Cristo. "Eu sou o filho de Deus, o Salvador
do Mundo, você deve me adorar". Eis o que inicialmente dizia esta
voz; em seguida, repetia freqüentemente zombarias contra as coisas
santas, blasfêmias contra Deus, o Cristo e a Bíblia; indignações vio-
lentas contra os que amavam o bem; maldições as mais abominá-
veis, um furor excessivo mil vezes repetido e uma raiva horrível
dirigida a alguém ocupado em rezar ou mesmo com as mãos juntas.
Poderíamos considerar tudo isso como sintoma de uma influência
estranha, embora esta voz não tivesse traído ela própria o nome
daquele que fazia todas esses discursos nomeando-se o diabo, como
freqüentemente acontece. Assim que esse demônio se fazia escutar,
os traços da jovem imediatamente se alteravam de uma maneira sur-
preendente, e ela tinha então a cada vez um olhar diabólico, do qual
pode-se fazer uma idéia a partir do Messiade - o quadro do diabo
oferecendo uma pedra a Jesus.
Em 26 de janeiro às 11 horas da manhã, quer dizer à hora
onde, segundo seu dizer, um anjo lhe tinha anunciado - vários
dias antes - que ela seria libertada, todos esses fenômenos ces-
saram. A última coisa que se escutou foi uma voz saindo da boca
da doente e que dizia: "Vá, espírito imundo, retire-se dessa cri-
ança! Não sabe você que ela é o que eu tenho de mais querido?"
Após isso ela voltou a si.

69
A Dor de Existir

Em 31 de janeiro o mesmo estado se reproduziu com os


mesmos sintomas. Mas pouco a pouco novas vozes se acrescenta-
ram às primeiras, até que a doente contou seis vozes diferindo entre
elas seja por seu timbre, seja pela linguagem, seja enfim por seus
discursos. Cada uma representava a voz de uma pessoa distinta, e
era anunciada como tal à doente pela primeira voz que ela tão
freqüentemente ouvia. A violência da raiva, das maldições, das blas-
fêrnias e das críticas que lhe endereçavam essas vozes atingiu neste
período da doença o grau mais elevado; os intervalos de lucidez -
nos quais de resto a menina não conservava nenhuma lembrança do
que tinha se passado durante o paroxismo, ela rezava e lia com fer-
vor - , esses intervalos, digo eu, ficaram mais raros e mais curtos.
Em 9 de fevereiro - que em 31 de janeiro tinha sido anun-
ciado à doente como um dia de libertação- coloca fim a este estado
miserável e, como da primeira vez, se fez ouvir ainda às 11 horas da
manhã as seguintes palavras saídas da boca da doente: "Vá, espírito
imundo, retira-se dessa criança; seu reino é findo agora!". A jovem
menina voltou a si e desde então ela não teve recaída (Kerner,
Geschichten Besessener. Stuttgart, 1834, p. 104).

§121
2. Não é raro ver os melancólicos delirarem ter perdido sua
própria personalidade, e ter sofrido metamorfose (melancolia
metamorphosis). Nós já falamos mais acima das idéias que engendram
as anestesias gerais ou parciais: o doente se crê morto, imagina que
seus membros são de madeira etc., assim como as concepções deli-
rantes provocadas pelas alucinações fazem crer ao doente que ele
foi transformado em animal horroroso. Mas fatos mais interessan-
tes ainda do ponto de vista psicológico e patológico são esses onde
o doente crê ter o sexo mudado: homens em mulheres, mulheres em
homens. Este delírio, é verdade, não pertence de uma maneira espe-
cífica à melancolia; mas pode desenvolver-se durante o curso dessa

70
117. Griuinger

doença e parece em muitos casos estar referido a uma afecção dos


órgãos genitais que suprime todas as sensações sexuais.
Assim Lallemandfala de um doente que acreditava ser uma
mulher e que escrevia a um amante imaginário; na autópsia encon-
tra-se uma tumefação e um endurecimento da próstata, abcessos no
órgão, uma obliteração dos 'Cãnais ejaculadores com dilatação das
vesículas seminais e dos vasos deferentes (Despertes séminales, I, p. 64).
Leuret (Fragmens, p. 114 ss) relata alguns fatos de indivíduos
que acreditavam ter trocado de sexo. Em geral, esses casos são bas-
tantes raros; ao invés disso, encontra-se nos asilos franceses, por
exemplo em Salpetri<~re, mais freqüentemente o delírio de que as
mulheres doentes são homens.
3. Uma outra variedade da melancolia é esta que é caracteri-
zada pela saudade de casa e pela predominância de representações
de retorno ao país, a nostalgia. Observa-se também uma afecção aná-
loga nos prisioneiros, produzindo-se sob a influência da ociosidade
e freqüentemente também da má alimentação, da umidade e do
onanismo. A melancolia nostálgica aparece muitas vezes com sinto-
mas de congestão da cabeça e mesmo inflamação cerebral (Larrry);
ela se acompanha de alucinações correspondentes (imagens de casa
etc.) Não é raro que os indivíduos afetados dessa nostalgia cometam
atos de violência (por exemplo, as domésticas que matam crianças
pequenas, que provocam incêndios), atos que freqüentemente são
determinados por motivos egoístas; particularmente por uma inten-
ção de sair de uma posição desagradável, mas também pela pressão,
não intencional, dos melancólicos, de buscar algum alívio através de
um ato que chame muita atenção pelo seu caráter criminoso.
Naturalmente a nostalgia não é sempre loucura. Isto será
notado sobretudo do ponto de vista médico-legal. Em si própria a
nostalgia é uma disposição triste do espírito, motivada exteriormen-
te; torna-se loucura quando esta disposição do espírito domina for-
temente toda vida psíquica, de modo a não mais deixar penetrar

71
A Dor dt Existir

nenhum outro sentimento, quando é acompanhada de concepções


delirantes e alucinações, estado que quase sempre acarreta distúrbi-
os de saúde física, falta de apetite, emagrecimento etc.
Em suma, no tribunal só se deve considerar a nostalgia in-
cendiária como doença, quando insere-se num quadro geral da lou-
cura, apresentando os outros traços característicos desta. Não se
deve sustentar a falta de capacidade de discernimento nos outros
casos - como ocorre quando o indivíduo está em estado de se ocu-
par de todos seus afazeres e de preencher todos os seus deveres, por
exemplo nos jovens nostálgicos incendiários.
É muito mais importante estabelecer diferentes gêneros de
melancolia segundo o estado da face motora da vida psíquica, da
vontade e dos atos. Os estados até aqui observados podem sofrer
importantes modificações conforme o desenvolvimento para um
ou outro lado das seguintes características, parcialmente opostas: de
um lado, podem implicar um aprofundamento ainda maior do
autocentramento, acarretando total ausência da vontade, ou melhor,
a fixidez absoluta de uma tendência; de outro lado, surgem novas
pulsões e excitações da vontade de cunho negativo- como é o esta-
do geral do doente - que podem levar a atos violentos isolados ou
até explodir numa grande agitação externa. Aqui, finalmente, vemos
a melancolia passar à mania.
Neste ponto de vista, nós podemos indicar aqui como os
principais gêneros da melancolia as seguintes formas:
a) Melancolia centrada sobre si mesmo ou melancolia com
estupor (que os autores franceses designam geralmente sob o nome
de estupidez, Georget, Etoc-Demazy etc., e cuja natureza Baillarger
reconheceu perfeitamente 11 •
b) Melancolia com exteriorização de negativas pulsões de
destruição, notadamente com atos de violência individualizados
contra si mesmo (monomania de suicídio), contra outras pessoas ou

72
1111: Griesinger

objetos inanimados (pulsão assassina, pulsão de destruição, enquan-


to esses dois estados se reatam à melancolia).
c) Melancolia com superexcitação persistente da vontade e
passando à mania.

NOTAS

1- Do original: Die Melancho/ie im engeren Szime (Zweites Capite4. Em: Griesinger,


W Die Pathologie und Therapie derPJ.Jchischen Krankheiten. N. do T. Também utili-
zamos como referência para consulta a tradução francesa de Dr. Doumic.
Em: Griesinger, W. Traili des ma/adies nmzta/es: pathologie etthérape~~fiq11e. Paris,
Adrien Delahaye Libraire-Éditeur, 1865.
2- N. do T. O autor utiliza a palavra Seele (alma) tal como Freud. Baseamo-nos
na tradução da obra de Freud, onde See/e é "psíquico".
3- N. do E. O autor se refere ao Capítulo 1: A melancolia. Nas outras três
passagens assinaladas, o autor também se refere a outros capítulos ou passa-
gens que não estão traduzidas no presente volume.
4- N. do R. No original: gegen sich gerichteter Zerstiinmgstrieb. Traduzimos Trieb
por "pulsão" e Strebung, como no inicio do parágrafo anterior, por "impulso".
5- N. do T. Na versão francesa se insere uma nota de pé de página que não se
encontra no original em alemão e que confunde a melancolia com a depressão
sem a fenomenologia que Griesinger acaba de descrever. Esta nota diz: "A
existência de uma forma de melancolia na qual não se pode constatar nenhum
delírio não me parece duvidosa. A depressão intelectual e moral com seus
sintomas apresenta-se, com efeito, sem que existam concepções delirantes,
alucinações ou alguma desordem nos atos. Estes doentes estão abatidos e
profundamente desanimados; mas eles afirmam depois da cura que não ti-
nham nenhuma idéia delirante. Muitos deles declaram somente que temiam
não mais se curar e ficar para sempre na incapacidade em que se encontra-
vam( ...} Guislain insistiu, mais que qualquer autor, sobre a existência desta
forma de melancolia, da qual diz que pode existir "sem o menor desvio de
inteligência e algumas vezes com uma integridade completa do eu". Então o
que se deve, na minha opinião, é admitir estes casos de melancolia sem delírio,
os quais encontramos sobretudo no período de depressão da loucura de dupla

73
A Dor de Existir

forma; contudo é necessário desconfiar de certos hipocondríacos que têm


aparentemente muita semelhança com os melancólicos que aqui se discute, e
que entretanto diferem muito. O verdadeiro melancólico está num estado de
depressão geral com enfraquecimento da voz, extremidades frias, cor da pele
ligeiramente cianótica, lentidão da circulação etc. Nele o emagrecimento é
com frequência muito rápido. Absolutamente nada disso tem lugar no hipo-
condríaco, o qual uma distração pode momentaneamente tirá-lo de sua pretensa
prostração, de sua nulidade, de sua impotência etc. Eu acredito que estes ca-
sos foram muito confundidos com o verdadeiro melancólico".
6- N. do T. Há uma longa nota de pé de página do tradutor francês onde ele
discute a folie à double forme que é a seguinte: "Todos os manígrafos assinalaram
a transformação freqüente da mania e da melancolia, mas eles consideram
esses casos como constituindo dois acessos de doenças diferentes. O que eu
tentei demonstrar no trabalho citado aqui por Griesinger é que os dois pretensos
acessos não são senão dois períodos de um mesmo acesso. O erro ocorreu na
minha opinião por se ter reconhecido um retorno completo à razão entre o
período de mania e o período da melancolia. Se isto fosse exato, está claro que
se deveria ver aqui, como o fez M. Falret, duas doenças que se alternam. Eis
aqui, com efeito, qual seria a ordem de sucessão: mania - intermitência - me-
lancolia - intermitência - mania etc. Tratar-se-ia então de uma loucura inter-
mitente com formas alternadas, ou se quisermos de uma loucura cin:ular. Em
vez disso, se a opinião que eu defendi é exata, ter-se-ia ao contrário a seguinte
ordem: mania, melancolia (acesso)- intermitência- mania, melancolia (acesso)-
intermitência- mania, melancolia (acesso). Se vê, então, que no lugar de uma
loucura intermitente de formas alternadas, temos uma loucura intermitente
comum mas com características novas, e que não se pode ligar à nenhuma das
espécies de loucuras descritas até aqui. A intermitência não chega senão de-
pois da evolução de dois períodos. Quer dizer, depois do acesso completo, tal
como aparece em todas as doenças intermitentes. Além disso, só existe uma
intermitência e não duas. Em resumo, isto que os autores têm considerado
como uma loucura intermitente de formas alternadas me parece ser uma lou-
cura simplesmente intermitente; em vez de dois acessos, ter-se-ia somente
um. Observamos doentes que num mesmo acesso apresentam sucessivamen-
te as características da histeria e da epilepsia: isto é, a histero-epilepsia, cons-
tituindo uma neurose especial; acontece o mesmo para o modo de loucura, o
qual imaginei poder nomear de loumra de dupla fomJa. Ocorre, além disso, mui-
tas vezes que esta forma de doença mental torna-se contínua, e não há mais,

74
W. Gtiesinger

nesse caso, intervalo lúcido entre os acessos. A doença pode nesse caso ser
verdadeiramente comparada a um círculo, assim como o fez Griesinger. Eu
terei, aliás, ocasião de ir mais longe sobre esta loucura de dupla forma. (Ver o
Bullelin de I'Académie de médecine, 1854, t. XIX; os Annales f!!édico-psychologiques, 2'
série, t. VI, e a tese de M. le docteur Geoffroi, 1861)".
7- Confor me os casos citados de Brodie.
8- Na tradução francesa este caso é referido a Esquirol, referência que não se
encontra no texto o riginal. Tanto o texto em fra ncês como o texto em alemão
faze m referência aos escritos originais do paciente, mas a tradução francesa
publica o caso na primeira pessoa do singular, ao passo que o texto em alemão
na terceira. Neste ponto específico optamos por traduzir a versão francesa
po r dois motivos: primeiro o original em alemão refere esse texto à publicação
de Lallemand (francês); segundo, o caso em alemão é resumido em relação a
sua versão francesa. Mantivemos inclusive as considerações de Esquirol que
aparecem no texto em francês. No texto em alemão há uma referência à
cauterização d o ureter devida a sintomas infl amatórios causando o
restabelecimento do paciente e o retorno de sua potência.
9- M. Macario, Études diniques sur la démot/Of!lallie. Em: Annales méd p!Jch. I. 1843,
p. 440-ss. Esquirol, trad uzido por Bernhard, I, p 280-ss. Com relação à posses-
são, cf: Calmeil, De la folie, I. Paris, 1845, p. 85. Albers, Arcbivf pi?J.riol. Heilk.
XIII. 1854, p. 224. Portal, Mém. mrplmiet1rs t11ahdie.r, II. p. 110. Moreau, Du hachicb etc.
p. 336-54. Baillarger, AtmaL méd P!J'ch. VI, p.152. Schützenberger, ib. VIII, p. 261.
10- Nós reproduzimos a história clínica ao pé da letra como prova da ingenui-
dade desse relato(...) N. do E. No o riginal, o autor indica a comparação desta
com as observações que se seguem sobre o estado psíquico nas crises epilép-
ticas, que não estão traduzidas no presente volume.
11- Baillarger, De l'étal dé.rigné chez le.r a/iéné.r so11.r /e 110111 de stupidité (Annales médico-
psychologiques, tome I. 1843 p. 76-ss; p. 256-ss). Um outro trabalho ulterior do
mesmo autor: De la mélancolie avec stupeur (Am1. méd.- psyc. 1853, p. 251). M.
G uislain observou esse estado em parte no êxtase.

*Tradução do alemão- Sonia Albcrti.


*Tradução do francês - Consuelo Pereira de A lmeida, membro aderente da Escola
Brasileira de Psicanálise, c Elizabct h da Rocha Miranda.
*Revisão da tradução- Vera Lúcia Avellar Ribeiro, membro aderente da Escola Bra-
sileira de Psicanálise, c Sonia Albcrti.

75
DO DELÍRIO DAS NEGAÇÕES 1

Jules Cotard

A importante dissertação, na qual em 1852 o Sr. Lasegue


destacou das diversas formas de melancolia o de/frio das perseguições,
foi o ponto de partida de trabalhos complementares que fizeram
desta forma de vesânia uma das mais bem conhecidas nos seus sin-
tomas, no seu curso e seus estádios terminais; basta recordar com o
nome do Sr. Lasegue, aqueles de Morel, do Sr. M. Foville e Legrand
du Saulle, e em pat;.ticular o do Sr.]. Falret que expôs frente a S ocieté
Médico-Psychologique o quadro tão completo quanto possível da evolu-
ção e das fases sucessivas dessa doença.
No que concerne às outras variedades de delírio melancóli-
co, nossos conhecimentos estão bem longe dessa relativa perfeição.
Foi cuidadosamente descrita a melancolia simples, a melancolia com estupor,
a melancolia ansiosa. É sabido que estas formas são freqüentemente
intermitentes, que algumas vezes elas se tornam contínuas e passam
à cronicidade, mas as características e as fases sucessivas do delírio
que chega a essa cronicidade não têm sido, que eu saiba, objeto de um
trabalho equivalente ao que foi feito para o delírio das perseguições.
Neste relatório, proponho expor uma evolução delirante
especial que parece pertencer a um número bem grande desses me-
lancólicos não perseguidos, mais particularmente aos ansiosos, e
deter-me sobretudo nas disposições negativas bastante habituais
nesses doentes.
A Dor de Existir

Geralmente os alienados são negadores; as demonstrações mais


claras, as afirmações melhor autorizadas, os testemunhos mais afe-
tuosos, os deixam incrédulos ou irânicos. A realidade torna-se-lhes
estranha ou hostil. Mas esta disposição negativa é marcada princi-
palmente em alguns melancólicos, como destacou Griesinger.

''Sob a úifluência do mal-estar moralproflmdo que constitui o disttírbio


psíquico essencial da melancoha, o humorganha um caráter absolutamen-
te negativo (...) Esta cot!fttsão que o doente foz entre a modificação Slfo/e-
tiva das coisas exteriores que seproduz nele e sua modificação ol?fetiva ou
real é o começo de 11m estado de sonho, no qual, atingido um grau muito
elevado, parece ao doente que o mundo real se esvaneceu completamente,
desapareceu ou morreu, e que não resta mais que um nmndo imaginário
no qual ele está atormentado de se encontrar".

Eu arrisco o nome de de/frio de negações para designar o estado


dos doentes aos quais Griesinger faz alusão nestas últimas linhas, e
nos quais a disposição negativa é levada ao mais alto grau. Pergunta-
mos a eles seus nomes? Eles não têm nome. A sua idade? Eles não
têm idade; Onde nasceram? Eles não nasceram. Quem eram seu pai
e sua mãe? Eles não têm nem pai nem mãe, nem mulher, nem filhos.
Se têm dor de cabeça, dor de estômago, dor em algum ponto de seu
corpo? Eles não têm cabeça, estômago, alguns nem mesmo têm
corpo. Mostramos a eles um objeto qualquer, uma flor, uma rosa, e
eles respondem: "Isto não é uma flor, isto não é uma rosa". ~m
alguns a negação é universal, nada existe mais, eles mesmos não são
mais nada.
Estes mesmos doentes que tudo negam, a tudo se opõem,
resistem a tudo que se quer fazê-los fazer. Alguns loucos, diz Guislain,
são de uma oposição da qual não se pode fazer uma idéia senão
quando os vemos de perto. São enormes os esforços para convencê-
los a mudar de roupa; eles se recusam a deitar em seus leitos. Eles
não querem se levantar, opõem-se a tudo que se lhes pede para fa-
zer. É a loucura de oposição.

78
]11/es Cotard

A esta loucura de oposição Guislain liga o mutismo, a recu-


sa dos alimentos e esta singular disposição de alguns alienados que
se esforçam em reter suas urinas e seus excrementos. Porém ele não
assinala o delírio de negação cuja loucura de oposição é apenas, por
assim dizer, o lado moral. Isto se aplica à maior parte dos autores e
parece estranho que uma lesão intelectual tão caracterizada não te-
nha, há mais tempo, atraído a atenção. São raros mesmo os casos
onde o fato é simplesmente assinalado. Apenas a forma hipocon-
dríaca do delírio das negações tornou-se de observação vulgar a
partir dos trabalhos do Sr. Baillarger.
É nos Fragments P!Jchologjques de Leuret que encontro a ob-
servação mais característica. Resumo o inquérito:
Como vai a senhora? A pessoa de mim mesma não é 11ma senhora,
chame-me de senhorita, por fovor. Eu não sei o seu nome, queira
dizê-lo. A pessoa de mim mesma não tem nome: ela desda q11e o senhor
não escreva. No entanto, eu queria muito saber como lhe chamam,
ou melhor, como lhe chamavam antigamente. E11 compreendo o
que o senhor q11er dizer. Era Catherine X, não se deve maisfolar de como
era antes. A pessoa de mim mesma perde11 seu nome, ela o dm ao entrar
na S alpétriere. Qual é a sua idade? A pessoa de mim mesma não tem
idade. Seus pais ainda vivem? A pessoa de mim mesma é só e bem só,
ela não tem pais, jamais os teve. O que a senhora fez e o que lhe
aconteceu desde que a senhora é a pessoa da senhora mesma? A
pessoa de mim mesmapermaneceu na Casa de S afÍde de... Fizeram sobre
ela, efozem ainda, experiências jisicas e metafisicas. Este trabalho não
era conhecido dela antes de 1827. Eis uma invisível que desce, ela vem
misturar s11a voz à minha.

A doente de Leuret apresentava, além do bem caracterizado


delírio de negação, alucinações numerosas: ela era atormentada por in-
visíveis, pela fisica e a metafisica, em uma palavra, observava-se nela
sintomas de delírio de perseguição. Não são raros os casos complexos
onde, como neste aqui, os dois delírios coexistem; deles citarei exem-
plos mais adiante. Porém, mais freqüentemente observam-se estas duas
formas de delírio isoladamente em doentes diferentes.

79
A Dor de ExiJtir

O verdadeiro perseguido percorre todas as fases de seu de-


lírio, desde a hipocondria do início até a megalomania, sem que suas
disposições negativas ultrapassem o que comumente se observa nos
alienados; ele nega por desconfiança, por medo de ser tolo, ou bem
porque está completamente dominado por suas concepções deli-
rantes e suas alucinações, e chegou ao ponto de viver em um mundo
imaginário; mas suas disposições negativas são bem diferentes da
negação sistemática da qual eu quero falar aqui.
Em geral os perseguidos não apresentam nem a profunda
depressão, nem a ansiedade queixosa dos verdadeiros melancólicos;
não parece que haja neles esse distúrbio profundo da sensibilidade
moral que Griesinger considera como o elemento fundamental da
melancolia. É sobre este terreno, ao contrário, que parece desenvol-
ver-se, mais ou menos tardiamente e após uma evolução delirante
especial, a negação sistematizada. Não é raro, todavia, que nos esta-
dos de cronicidade avançada o delírio de negação sobreviva de algu-
ma forma aos distúrbios gerais do início, e que os doentes, como
aquela de Leuret, não apresentem mais nem depressão nem agitação
ansiosa manifestas.
Acabo de assinalar, como dupla origem do delírio das nega-
ções, a melancolia com depressão ou estupor e a melancolia agitada
ou ansiosa. Por diferentes que sejam nas suas manifestações exter-
nas estas duas formas de melancolia, não se pode recusar a reconhe-
cer suas analogias delirantes; analogias impressionantes sobretudo
nos casos em que a depressão e a agitação ansiosa se sucedem ou se
alternam nos mesmos doentes, sem que o delírio seja sensivelmente
modificado.
Nestas formas predominam a ansiedade - uma ansiedade
interna assustadora constitui o estado fundamental da melancolia
com estupor, diz Griesinger - , os temores, os terrores imaginári-
os, as idéias de culpa, de perdição e de danação; os doentes acu-
sam a si mesmos, eles são incapazes, indignos, fazem a infelicidade e

80
]11/es Cotard

a vergonha de suas familias; vão prendê-los, condená-los à morte;


vão queimá-los ou cortá-los em pedaços. Esses temores de prisão,
de condenação e de suplícios não devem ser confundidos - como
no-lo fez freqüentemente destacar o Sr. J. Falret - com o verdadeiro
delírio de perseguição que é relativamente raro nos doentes desta
espécie. Bem diferentes dos perseguidos, eles acusam a si mesmos; se
vão entregá-los ao último suplicio, isto é somente justiça, eles ape-
nas muito o mereceram por seus crimes.
Quanto a esse ponto de vista, pode-se distinguir duas gran-
des classes de melancólicos: aqueles que responsabilizam a si pró-
prios e aqueles que acusam o mundo exterior e sobretudo o meio
social. Estes últimos são os perseguidos que Guislain já designara
com o nome de alienados acusadores.
Essa divisão dos melancólicos corresponde aproximadamente à
divisão em melancolia com perturbação geral da inteligência e em
monomania triste (Baillarger), e à divisão em lipemania geral e lipemania
parcial (Foville); pode-se dizer, de uma maneira bem geral, que os
melancólicos verdadeiros acusam a si próprios, ao passo que os
monomaníacos tristes acusam outrem. Entretanto, não é raro ver de
uma parte os perseguidos tomarem, durante um paroxismo, as ca-
racterísticas da melancolia geral, deprimida ou ansiosa, e de outra
parte os melancólicos com idéia de culpabilidade, alcançado um
período mais ou menos avançado de sua doença, tomarem a
fisionomia dos monomaníacos tristes.
Há sem dúvida, por trás dessas manifestações exteriores que
variam do estupor até a agitação ansiosa, quase maníaca, disposi-
ções mórbidas mais profundas onde reside a diferença essencial entre
os perseguidos e os outros melancólicos. Talvez seja nas tendências
que indiquei há pouco, e que levam os doentes seja a se auto-acusa-
rem, seja a acusarem os outros, que precisaríamos procurar a mani-
festação mais imediata dessas disposições íntimas que constituem o
verdadeiro fundo da doença.

81
A Dor de Existir

Essas tendências existem com freqüência durante muitos


anos antes da aparição evidente do delírio; em um grau bastante ate-
nuado são encontradas em muitos homens sadios de espírito, entre os
quais elas estabelecem duas categorias absolutamente distintas.
Muito tempo antes de serem realmente alienados, os perse-
guidos são suspeitosos e desconfiados, mais severos com os outros
do que com eles mesmos; durante longo tempo também, alguns
ansiosos, antes de serem atingidos por um acesso francamente
vesânico, são escrupulosos, tímidos, sempre dispostos a se apagar,
mais severos consigo próprios que com os outros.
Insisto sobre esta divisão dos delírios melancólicos, que a
maioria dos autores confunde. Marcé parece admiti-lo implicitamente;
ele apenas assinala na verdadeira melancolia as idéias de ruína, de
culpa etc. Indica o delírio hipocondríaco consecutivo e
desconsidera as idéias de perseguição na monomania; porém ele
não insiste muito mais sobre esta distinção que, de resto, parece
demasiadamente absoluta, já que alguns perseguidos apresen-
tam as características da melancolia verdadeira e que outros do-
entes com idéias de ruína e de culpa assemelham-se aos
monomaníacos.
Examinemos agora por qual evolução delirante os melan-
cólicos que acusam a si mesmos chegam ao delírio das negações; resu-
mamos em primeiro lugar as principais características de seu estado
mental. Na sua forma mais atenuada, estas características são as do
tipo de melancolia designada sob os nomes de melancolia simples ou
sen1 delírio e, mais exatamente, sob o nome de hipocondria moral, descri-
ta pelo Sr. J.Falret com uma exatidão minuciosa.
Os melancólicos ditos sem delírio são, com efeito, atin-
gidos por um delírio triste, tendo como objeto o estado de suas
faculdades morais e intelectuais, e já apresentando uma forma
negativa evidente.

82
]11/es Cotard

"Eles têm vergonha 011 mesmo horror de SI/a própia pessoa e se desespe-
ram pensando q11e não poderãojamais reencontrar SI/asfaCilidades perdi-
das. Eles lamentam s11a inteligência esvaecida, se11s sentimentos apagados,
ma energia desaparecida(. ..) Afirmam q11e não têm mais coração, afeição
por se11s parentes e se11s amigos, nem mesmo por seusfilhos'~

As idéias de ruína surgem freqüentemente e parecem ser


um delírio negativo de mesma natureza: ao mesmo tempo que suas
riquezas morais e intelectuais o doente acredita ter perdido sua for-
tuna material; ele não tem mais nada daquilo que faz o orgulho do
homem; nem inteligência, nem energia, nem fortuna.
É o avesso do delírio de grandezas nos quais os doentes se
atribuem imensas riquezas, ao mesmo tempo que todos os talentos
e todas as capacidades. Esta hipocondria moral repousa sobre o fundo
comum da melancolia e sobre um estado de ansiedade vaga e
indeterminada: "Os doentes sentem que tudo mudou dentro e fora
deles e desolam-se por não mais perceberem as coisas através do
mesmo prisma de outrora" Q.Falret).
Nesses casos leves, já existe uma espécie de véu através do
qual o doente não percebe mais a realidade senão de uma maneira
confusa; tudo lhe parece transformado. À medida que o estado
mórbido torna-se mais intenso, este véu espessa-se, e nos casos de
estupor acaba por mascarar inteiramente o mundo real. O doente
está, então, em um estado vizinho ao do sonho, como justamente
destaca o Sr. Baillarger.
Não somente sob este ponto de vista, mas sob todos os
outros, parece haver apenas uma diferença de grau entre estes
estados de hipocondria moral e as afecções melancólicas com
idéias de culpa, de ruína, de danação e negação sistematizada. A
hipocondria moral é um esboço do qual basta acentuar os traços
e forçar as sombras para acabar o quadro destas últimas formas
de melancolia.

83
A Dor de Exiiiir

O desgosto de si mesmo chega ao delírio de culpa e dana-


ção, os temores tornam-se terrores; a realidade exterior, transforma-
da e confusamente percebida, finda por ser negada. Algumas nega-
ções manifestam-se mesmo muito precocemente nos hipocondría-
cos morais; eles negam a possibilidade de sua cura, de um alívio
qualquer no seu estado de sofrimento; é uma das primeiras nega-
ções destes doentes, dentre os quais alguns irão, mais adiante, negar
o mundo exterior e sua própria existência.
Interessa distinguir bem este estado de hipocondria moral
da hipocondria ordinária. Diz o Sr. Baillarger:
Ainda que se deva admitir os casos de melancolia sem delírio, convém no
entanto descotifiar de alguns hipocondríacos que têm aparentemente mmfa
semelhança com os melancólicos dos quais aqui se trata. O verdadeiro
melancólico está em um estado de depressão geral (...) Nada de semelhante
ocorre com o hipocondrico, onde uma distração pode, momentaneamente,fo:{j-
lo sair de sua pretendida prostração, de stta n11lidade, de sua impotência etc.

A hipocondria ordinária, da qual fala aqui Baillarger, aproxi-


ma-se por várias características do delírio das perseguições, do qual
freqüentemente ela é apenas o primeiro período; sobretudo, é a evo-
lução diversa das duas hipocondrias que justifica a distinção do Sr.
Baillarger. Pode-se dizer, de uma maneira geral, que a hipocondria
moral é para o delírio de ruína, de culpa, de perdição e de negação,
aquilo que a hipocondria ordinária é para o delírio das perseguições.
Quando o delírio de negação está constituído, ele tem como
objeto ou a própria personalidade do doente, ou o mundo exterior.
No primeiro caso, ele toma uma forma hipocondríaca análoga ao
delírio especial assinalado pelo Sr. Baillarger nos paralíticos: os do-
entes não tem mais estômago, nem cérebro, nem cabeça; eles não
comem mais, não digerem mais, não trocam mais a roupa e, de fato,
recusam energicamente os alimentos; freqüentemente retêm suas ma-
térias fecais. Alguns, como eu o indiquei em uma nota apresentada à
Societé Médico-Psychologique, imaginam que não morrerão jamais.

84
]11/u Cotard

Essa idéia de imortalidade encontra-se principalmente nos


casos onde a agitação ansiosa predomina; no estupor os doentes
imaginam antes de tudo que estão mortos. Vê-se mesmo os que
apresentam alternadamente a idéia de estarem mortos e a idéia de
não poderem morrer, conforme os estados alternados de agitação
ansiosa ou de depressão estúpida. O delírio hipocondríaco, sobre-
tudo moral no início, torna-se em um período mais avançado, e
principalmente quando a doença passa ao estado crônico, ao mes-
mo tempo moral e físico. Os doentes que começam por não ter
nem coração nem inteligência, acabam por não ter mais corpo.
Alguns, como a doente de Leuret, só falam de si próprios na
terceira pessoa.
Nos perseguidos o curso é inverso. A hipocondria do início
é sobretudo física; mas em um período mais avançado os doentes se
preocupam com suas faculdades intelectuais, as pessoas os tornam
tolos, os impedem de pensar; as pessoas lhes dizem bobagens, lhes
subtraem a inteligência etc.
Estas duas hipocondrias diferem não somente por seus
cursos; a hipocondria dos ansiosos leva o selo da humildade; eles
não têm nada, eles não são nada que valha; eles estão podres, atingi-
dos por doenças ignóbeis; alguns acreditam ter sífilis, e Foderé já
havia destacado a conexão desta última idéia delirante com o que ele
chama "mania de danação" (damnomanie).
Os demais são os hipocondríacos perseguidos. Eles têm
geralmente muito boa opinião sobre si próprios e sua organização é
bastante robusta para suportar tantos males; eles responsabilizam as
influências exteriores: o ar, a umidade, o frio, o calor, os alimentos e,
principalmente, os medicamentos. Se se trata de sífilis, não é mais a
sífilis, mas o mercúrio que se torna a causa de todos os seus sofri-
mentos. Acabam por acusar o médico e chegam ao delírio de
perseguição confirmado. (Legrand du Saulle, Gazette des hôpitaux,
dezembro 1881).

85
A Dor de Existir

Essas influências nocivas às quais o perseguido se crê ex-


posto e que convergem de fora para sua pessoa, o ansioso ao con-
trário imagina ser delas a fonte e propagá-las a sua volta; ele se ima-
gina o portador da infelicidade para as pessoas que dele se aproxi-
mam, para o médico que o cuida, para os domésticos que o servem;
ele lhes vai transmitir doenças mortais, comprometê-los ou desonrá-
los; a casa onde habita será uma casa maldita; passeando no jardim,
faz fenecer as árvores e as flores.
O delírio hipcondríaco de negação é seguidamente ligado a
alterações de sensibilidade. A anestesia é freqüente no estupor, ten-
do sido assinalada por todos os autores. Encontramo-la também em
alguns melancólicos ansiosos; em outros, ao contrário, parece ter
havido hiperestesia. Os doentes não queriam se deixarem aproxi-
mar, gritavam logo que tocados e repetiam sem cessar: "Não me
faça mal!"
Em que medida essas alterações de sensibilidade concor-
rem ao desenvolvimento do delírio hipocondríaco de negação, eis aí
uma questão de patogenia que não quero tentar elucidar. Limito-me
a assinalá-las como característica diferencial dos dois delírios hipo-
condríacos: freqüentes nos negadores, elas são absolutamente raras
nos perseguidos.
Quando o delírio tem como objeto o mundo exterior, os
doentes imaginam não ter mais família, nem país; imaginam que
Paris está destruída, que o mundo não existe mais etc. As crenças
religiosas, e em particular a crença em Deus, desaparecem com fre-
qüência, algumas vezes muito precocemente. Griesinger assinalou
as idéias lúgubres, negativas, pelas quais se sentem invadidos os
doentes cuja agitação inquieta torna-os incapazes de recolhimento
e de oração.
Uma rápida descrição do delírio das negações e suas diver-
sas formas não seria bastante para fazer desse delírio uma espécie
particular de melancolia. Eu queria mostrar que, conjunto a esse

86
]11/es Cotard

delírio, existem numerosos sintomas estreitamente associados entre


si, de maneira a constituir urna verdadeira doença distinta por suas
características e sua evolução.
O delírio das perseguições pode servir-nos de tipo. É so-
bretudo fazendo ressaltar as diferenças e os contrastes que ele apre-
senta com o perseguido, que procuro descrever o negador.
Comecei este paralelo marcando a diferença entre a
hipocondria moral e a hipocondria ordinária, entre o melancólico
ansioso que acusa a si próprio e o perseguido que responsabiliza o
mundo externo. Quando a doença torna-se mais intensa, ou aparen-
ta desde o início uma forma mais grave, acrescentam-se aos sinto-
mas esboçados na hipocondria e ao vulgar delírio de ruína e de
culpa fenômenos novos que merecem ftxar a atenção em razão de
suas características especiais: as alucinações.
Essas alucinações são freqüentes sobretudo nos estados de
estupor, mas são observadas também na forma ansiosa. Os doentes
creêm-se envolvidos por chamas, veêm precipícios a seus pés, ima-
ginam que a terra vai engoli-los ou que a casa vai se desmoronar,
veêm as paredes balançarem e acreditam que a casa está minada;
escutam os preparativos de seu suplício, prepara-se a guilhotina; es-
cutam o rufar do tambor, detonações de armas de fogo vão fuzilá-
los; eles veêm a corda destinada a enforcá-los, escutam vozes que
lhes reprovam seus crimes; a eles lêem sua sentença de morte ou
repetem que estão danados. Alguns têm alucinações do paladar e do
odor e imaginam que estão podres, que seus alimentos são transfor-
mados, que lhes oferecem lixo, matérias fecais, carne humana etc.
Em geral, as alucinações nos doentes com idéias de culpa
pertencem a essa categoria de alucinações estabelecida pelo Sr.
Baillarger, que reproduzem as preocupações atuais dos doentes. Uma
melancólica, diz este autor, que acusava-se de crimes imaginários
era obsedada dia e noite por urna voz que lia sem parar sua sentença
de morte e lhe descrevia os suplícios que lhe estavam reservados.

87
A Dor de Exish'r

Uma outra doente, cuja história é relatada por Michéa, acredita-se cul-
pada, perseguida pela polícia e ameaçada de morte. Ela é internada
em uma casa de saúde e, alguns dias depois, estando a lipemania
em seu auge, percebe quase constantemente a seus pés a corda
que deve servir para estrangulá-la, e o caixão preparado para
receber seu cadáver.
Os doentes acreditam-se danados e vêem as chamas do in-
ferno, escutam tiros de fuzil e crêem que vão fuzilá-los. Guislain
fez notar a estreita conexão entre a demonofobia, o suicídio e
este gênero de alucinações onde os doentes vêem chamas por
toda parte, incêndios.
O estado alucinatório dos melancólicos ansiosos, estúpidos
ou agitados é profundamente distinto daquele dos perseguidos. Em
primeiro lugar pelas alucinações da visão que são raras nos perse-
guidos, e em seguida pelo caráter das alucinações auditivas. Como
as alucinações da visão, aquelas são simplesmente confirmativas das
idéias delirantes, e algumas vezes é difícil distinguí-las; nos ansiosos,
o fenômeno alucinatório rião apresenta esta independência, que dá
aos perseguidos uma nitidez tão grande ao mesmo tempo que uma
evolução toda especial.
O perseguido chega, pouco a pouco, a um diálogo; vemo-lo
escutar, responder com impaciência ou cólera a seus interlocutores
imaginários; nada de.semelhante no ansioso: se ele fala, é para repe-
tir sem cessar as mesmas palavras, as mesmas frases, a mesma quei-
xa, sua loquacidade tem a característica de um monólogo, de uma litania,
enquanto a do perseguido é em forma de diálogo.
Também no ansioso não se observa a repercussão do pen-
samento, o eco, nem esse vocabulário especial que permite reconhe-
cer, ao final de um instante de conversa, os perseguidos crónicos.
Indiquei no começo deste trabalho a oposição e a resistên-
cia sistemática dos delirantes por negação; encontram-se neles,

88
]11/es Cotard

seguidamente, uma rigidez e uma tensão musculares que mostram


que sua inércia é apenas aparente e que sua resistência não é sim-
plesmente passiva. Desde que se queira mudar sua atitude, imprimir
qualquer movimento a seus membros, eles contraem energicamen-
te seus músculos para resistir e manter sua posição ordinária.
Não quero deter-me sobre os tremores assinalados em al-
guns ansiosos, sobre os acidentes cataleptiformes dos estúpidos, mas
não posso passar em silêncio sobre os impulsos suicidas e as mutila-
ções tão freqüentes nos ansiosos, principalmente quando eles são
dominados por idéias religiosas, e que estabelecem ainda uma dife-
rença com os perseguidos, nos quais o suicídio é muito menos fre-
qüente e as mutilações absolutamente raras.
Os ansiosos com idéias de danação são os doentes mais
dispostos ao suicídio; então, ainda que se acreditem mortos, ou na
impossibilidade de jamais morrer, eles não procuram menos se des-
truirem; uns querem queimar-se, o fogo sendo a única solução; ou-
tros querem ser cortados em pedaços e buscam por todos os meios
possíveis satisfazer essa necessidade mórbida de mutilações, de des-
truição, de aniquilamento total. Alguns mostram-se violentos com
as pessoas que os cercam; parece que querem demonstrar que eles
são realmente os seres mais perversos e mais desprovidos de senti-
mentos morais; com frequência injuriam, blasfemam; os danados e
os diabos não podem fazer de outro modo.

A recusa dos alimentos, tão estreitamente ligada à loucura


de oposição, apresenta também algumas características especiais nos
negadores. Em geral ela é total e tem por objeto indistintamente
todos os alimentos; os doentes se recusam a comer porque não têm
estômago, "a carne e outro nutriente cai-lhes no couro da barriga",
porque os danados não comem, porque não têm com o que pagar.
Alguns no entanto, dominados por um delírio de culpa ou de ruína
menos intenso, escolhem seus alimentos: comem somente pão seco
por penitência ou privam-se de sobremesa.

89
A Dor de ExiJiir

O perseguido, ao contrário, examina cuidadosamente seus


alimentos, procura o que lhe parece bom, rejeita o que lhe parece
suspeito; quando, por acaso, encontra alimentos que supõe indenes
de qualquer veneno, come com voracidade. Em geral, no persegui-
do a recusa dos alimentos é parcial.
Chego, para terminar este paralelo, ao estudo do curso da
doença. O delírio das perseguições é essencialmente remitente ou,
se quisermos, conónuo com paroxismos; a doença começa em geral
precocemente, desenvolve-se de uma maneira lenta e progressiva, e
dura toda a vida. Este curso remitente já é manifesto na hipocondria
do inicio; ele o é também no caso onde o mal não parece evoluir
além desta forma esboçada.
A doença comporta-se de forma totalmente diferente nos
negadores: ela eclode bruscamente, com frequência na meia-idade,
em pessoas cuja saúde moral parecera até aí correta; quando sara, a
cura é brusca como o início; o véu se rasga e o doente desperta
como de um sonho.
As formas mais leves, é desnecessário dizê-lo, são também
as mais curáveis. A melancolia dita sem delírio, a hipocondria moral,
os estados ansiosos com idéias de ruína curam habitualmente. Mas a
doença está sujeita a retornos, a intervalos mais ou menos distantes
e toma a característica das vesânias intermitentes. Esta característica
intermitente manifesta-se algumas vezes, mesmo nos casos incurá-
veis, por um despertar de curta duração, e onde parece que o doente
reencontrou inteiramente sua lucidez.
Griesinger diz:
Vi uma vez
em uma doente acometida tk melancoliaprqfimda - ela ima-
ginava terperdido completamente s11afortuna e acreditava-se ameaçada de
morrer defome - um intervalo peifeitamente lúcido, de aproximadamente
11m quarto de hora, sobrevir sem motivo apreciável e desaparecer, do nJes-
mo modo, bmscammte.

90

Jules Cotard

Nas formas onde predomina imediatamente o estupor ob-


serva-se com freqüência a cura, malgrado a intensidade do delirio e
seu absurdo.
Porém não é raro que após uma agitação ansiosa intensa e
prolongada, com alucinações, delírio pano fóbico etc. os doentes caiam
em uma espécie de estupidez, muito freqüentemente confundida com
a demência e que se prolonga indefinidamente. Esses doentes com
freqüência apresentam a loucura de oposição no mais alto grau; eles
são mudos, e alguns repetem somente a palavra não.
O prognóstico é igualmente deplorável quando se vê climunuir
a intensidade do distúrbio melancólico geral, ao passo que as idéias
delirantes e as negações persistem no mesmo grau. Os doentes che-
gam ao delírio negativo sistematizado que raramente é curável; apre-
sentam, também eles, na maior parte dos casos, a loucura de oposi-
ção, da qual Guislain assinalou o deplorável prognóstico.
Por seu curso, por seu início, por seu término brusco, quan-
do se cura, a loucura das negações incorpora-se ao grupo das vesânias
de acesso ou intermitentes e à loucura circular. Mesmo se reservar-
mos o nome de delírio das negações aos casos onde este delírio che-
gou ao grau que indiquei no começo deste trabalho, pode-se dizer que
o delírio das negações é um estado de cronicidade especial em alguns
melancólicos intermitentes cuja doença tornou-se contínua.
Quero somente assinalar um ponto que me parece estabele-
cer uma diferença entre os negadores e outros intermitentes que se
aproximam mais dos circulares. Quando nos interrogamos sobre os
antecedentes, o caráter dos doentes, aprende-se com frequência que
eles foram sempre um pouco melancólicos, taciturnos, escrupulo-
sos, devotados, caridosos, sempre prontos a servir; alguns dotados
das mais distintas qualidades morais. Seu estado mórbido, seu delíirio
de humildade não contrastam de um modo absoluto com sua ma-
neira de ser anterior e apenas são o exagero doentio. Em uma palavra,

91
A Dor de ExiJiir

estes doentes não são francamenete alternantes como os circulares


e como alguns intermitentes, cujo estado considerado sadio contrasta
absolutamente com os acessos melancólicos.
Esta característica dos negadores permite também separá-
los nitidamente da maioria dos hereditários, dentre os quais eles
formam uma categoria especial; eles se distinguem de fato por um
desenvolvimento exagerado, se é permitido dizê-lo, dessas mesmas
qualidades morais cujo abortamento nos outros hereditários explica
a vida desordenada, o profundo egoísmo, o orgulho, o caráter
indisciplinável, os delitos e os crimes.

NOTAS

1. Texto originalmente publicado em Archives de Nmrologie, Paris, 1892.

*Tradução do francês - Graça Pamplona, membro da Escola Brasileira de Psicanálise.


*Revisão da tradução- Vera Lúcia Avellar Ribeiro.

92
INTRODUÇÃO: MELANCOLIA
(CONFERÊNCIA I) I

Emil Kraepelin

Senhores! A ciência que nos ocupará nas próximas confe-


rências é a ciência do tratamento psíquico2 ; seu objeto é, em conse-
qüência, as doenças psíquicas. Aliás, mais corretamente, não se pode
falar de um adoecer psíquico quando se toma o fato do psiquismo
como um ente autônomo, ou como um simples conceito inserido
na nossa experiência interna. E do ponto de vista médico seria ne-
cessário dirigir os esforços curativos sobre os distúrbios nos funda-
mentos corporais do nosso psiquismo. As próprias manifestações
fenomenológicas dessas doenças se desenrolam num campo com o
qual a teoria da cura normalmente não se ocupa, aquele do funcio-
namento psíquico. Neste campo não estamos às voltas, de início,
com modificações corporais, como tamanho, Gestalt, espessura, com-
posiç.ã o química, mas com distúrbios da percepção, da memória, do
juizo, com ilusões sensoriais, formações delirantes, mudanças de
humor e modificações doentias da força da ação voluntária. Se os
Senhores têm uma certa facilidade de movimento frente as novas
disciplinas médicas referidas aos conhecidos conceitos da patologia
geral, neste campo tão diferente da ciência do tratamento psíquico
.os Senhores se encontram sem poder lançar mão dessas referências
fundamentais, e se sentirão como que perdidos até poderem aos
poucos dominar a sua sintomatologia especial. Provavelmente, em
suas vidas ,ou em outras clínicas, os Senhores já devem ter tido a
A Dor de Existir

oportunidade de observar individualmente alguns dos estados da


doença psíquica; por exemplo, a embriaguez, o delírio febril, o delirium
tremens, também provavelmente a demência senil ou a idiotia. Mas
estas certamente lhes deixaram impressões incompreensíveis, como
curiosidades a causar mais estranheza do que raciocínio médico.
A loucura modifica a personalidade psíquica que é a soma
das características particulares que, para nós, num sentido muito mais
elevado do que as características corporais, presentificam o cerne
(Kern) do homem. Também as relações do doente para com o mun-
do externo como um todo são influenciadas da maneira a mais inci-
siva. O conhecimento desses distúrbios é por esta razão uma fonte
por demais preciosa para a pesquisa da vida psíquica em geral. Fon-
te que nos desvela muitas de suas leis gerais, além de nos propiciar
uma observação profunda sobre a história do desenvolvimento do
espírito humano não só individual como de toda espécie; ela nos dá,
finalmente, o parâmetro correto para a compreensão de tantas cor-
rentes e manifestações espirituais, morais, religiosas e artísticas de
nossa vida social.
Essas relações de múltiplas ramificações com outros sabe-
res nas questões as mais importantes do ser-aí da humanidade não
são, no entanto, o primeiro motivo que torna imprescindível ao mé-
dico o conhecimento das perturbações psíquicas; o primeiro moti-
vo é a extraordinária importância prática desse conhecimento. A
loucura pertence, mesmo nas suas formas mais brandas, ao conjun-
to dos maiores sofrimentos que o médico é solicitado tratar, e so-
mente uma pequena parte dos doentes psíquicos encontra uma cura
completa e duradoura. Leve-se em conta que estimar o cálculo do
total de loucos na Alemanha hoje em 200 mil pessoas não é um
exagero e, além disso, deve ser compreendido numa ascendente si-
nistra. Na sua maior parte, esse aumento deve ser creditado ao mai-
or conhecimento da loucura, à assistência mais desenvolvida ao do-
ente, mas também à dificuldade crescente do tratamento domiciliar;

94
Emi/ Kraepelin

portanto, parte desse aumento é só aparente. Mas, levemos em con-


ta que se deve referir de um quarto a ú'm terço das internações em
sanatórios de loucos ao mal uso do álcool e à contaminação sifilíti-
ca, etiologias que certamente não estão decrescendo. Assim, não é
possível abrir mão da suposição de que o número dos loucos na
população está crescendo não somente em termos absolutos, mas
também relativos. Deixemos em aberto, por enquanto, a questão da
crescente degeneração das novas gerações, degeneração que pode es-
tar sendo altamente estimulada pelas duas etiologias acima referidas.
Cada doente psíquico representa um certo perigo para o
seu meio e nomeadamente para si mesmo. No mínimo um terço dos
suicídios tem como causa a perturbação psíquica, mas esta causa
também se encontra em crimes sexuais, nos incêndios criminosos;
mais raramente em assaltos perigosos, furtos e fraudes. Inúmeras
famílias sucumbem aos seus doentes seja porque os meios são dizj-
mados de forma insensata, seja pelo longo sofrimento e pela inca-
pacidade ao trabalho, esgotando aos poucos a capacidade produti-
va. Só determinada parte dos doentes não curados falece rapidamente;
a grande massa continua vivendo de forma besta e desamparada por
décadas, representando um peso crescente para a família e a comunida-
de, deixando marcas profundas na vida de nosso povo.
Por todas essas razões o médico tem a importante obriga-
ção de familiarizar-se com a fenomenologia e o modo de ser da
loucura, dentro de suas possibilidades. Mesmo sabendo que é es-
treito o limite de seu poder frente o adversário tão cruel, cada clini-
co tem franqueada a possibilidade de fazer sua parte para contribuir
na prevenção e no alivio desse mal infindo que é produzido anual-
mente pelas doenças psíquicas. A estratégia mais eficaz é, sem dúvi-
da, a luta contra o álcool e a sífilis; também contra a morfina e a
cocaína, que, aliás, devem sua função destrutiva exclusivamente
ao ato médico. Além disso, os médicos de família podem contri-
buir velando que casamentos entre doentes ou entre pessoas com

95
A Dor de Existir

comprometimentos psíquicos graves sejam evitados, promovendo


uma educação compreensiva e uma escolha profissional correta jun-
to a crianças com tendências doentias. Nomeadamente, sua tarefa
será a de identificar em t~mpo traços doentios e intervir rapidamen-
te para evitar suicídios e acidentes, modificando assim a atual mio-
pia, cuja conseqüência é o encaminhamento ao médico alienista de-
pois que o momento certo para uma intervenção eficaz já passou há
muito tempo. Mas também inúmeros doentes que não apresentam
uma loucura no sentido estrito poderão vir a fomentar ao psiquiatra
um conhecimento para detectar e tratar a perturbação psíquica, de
forma que o psiquiatra verá que o esforço de seus anos de estudo
será altamente recompensado. Inúmeras vezes já encontrei médicos
mais velhos que se queixaram de sua formação psiquiátrica falha,
tendo verificado somente na sua prática quotidiana posterior a im-
portância de poder se julgar corretamente o papel da fenomenologia
psíquica parcial ou totalmente comprometida. Não preciso nem mes-
mo dizer que esse julgamento ainda é solicitado o tempo todo pelos
tribunais, serviços públicos, corporações profissionais, pelos moti-
vos os mais variados.
É evidente que só se pode obter um saber mais profundo
na psiquiatria, assim como em qualquer uma das disciplinas
especializadas da medicina, através de um longo trabalho com o
objeto em estudo. Mas já no início do estudo é possível adquirir-se
um olhar panorâmico sobre as formas mais generalizadas dos dis-
túrbios psíquicos. É impossível, evidentemente, deixar de examinar
o maior número possível de casos os mais variados e acompanhá-
los por longo tempo para se adquirir um conhecimento. É verdade
também que, mesmo depois de um ou dois semestres de estudo
clínico com afinco, o iniciante, baseado na transmissão e aquisição
da experiência, ainda terá a maior dificuldade para encontrar a inter-
pretação correta em grande quantidade dos casos. No entanto, já
pode ser considerado como ganho importante a capacidade - que
se adquire rapidamente - de identificar claramente as grandes difi-

96

Emil Kraepelill

culdades do campo, o afastamento do ainda hoje tão extenso desco-


nhecimento ingênuo, segundo o qual qualquer um pode julgar a
doença psíquica, mesmo aquele não entendido no assunto.
Voltemo-nos imediatamente, após estas palavras
introdutórias, às observações de doentes. Assim, apresento-lhes ini-
cialmente um homem, 59 anos, agricultor, que foi internado há um
ano na clínica. Ele parece ser muito mais velho do que é, sobretudo
pela falta dos dentes na arcada superior. Ele não só compreende
sem dificuldade as perguntas a ele dirigidas, como também as res-
ponde com sentido e correção, sabe onde se encontra, há quanto
tempo está aqui, conhece os médicos, e identifica corretamente a
data e o dia da semana. Sua expressão facial é abatida; as comissuras
labiais estão um pouco deprimidas, as sobrancelhas, franzidas; na
maioria das vezes tem o olhar fixo, mas olha para a pessoa quando
esta lhe dirige a palavra. Ao ser perguntado sobre sua doença, come-
ça a se lamentar; durante sua recepção não disse tudo, mas ocultou
que na juventude pecara, masturbando-se despudoradamente3 • Tudo
o que fizera não era correto. "Tenho tanto medo, tão forte; não posso
ficar deitado de tanto medo; meu Deus, se eu ao menos não tivesse me
comportado tão mal!" Ele está doente há um ano, teve dores de cabeça
e tonteiras; começou com dores no estômago e sofrimento no cora-
ção; não pode mais trabalhar; "não tinha mais nenhuma pulsão".
Não teve mais sossego, criou idéias bobas, como se alguém estives-
se no quarto; uma vez lhe pareceu ver o Malvado; talvez o levem.
Muitas coisas estranhas aconteceram; quando menino, apanhava
maçãs e nozes. ''A consciência dizia: isto não está certo; agora é que
a consciência acordou com a doença". Ele também brincou com
uma vaca e consigo mesmo. ''Assim, me repreendo agora." Ele se
sente como que abandonado pelo Senhor e que agora é um fora da
Jei. O apetite está ruim; não consegue evacuar. Não pode dormir;
"Quando a alma não dorme, surge todo o tipo de pensamentos".
Também fez trastes inúteis, enrolou o lenço para estrangular-se; en-
tretanto, não estava certo que queria fazê-lo. Tinha três irmãs e um

97
A Dor de Existir

irmão doentes, as irmãs não tão graves ficaram boas rapidamente;


"um irmão se matou em angústias".
Todas estas informações são obtidas do doente através de
frases arrancadas entre lamentações e gemidos. Fora isso, ele se com-
porta de maneira natural, atende a cada solicitação que lhe é feita,
pedindo apenas que não o levem embora: "O coração tem muito
medo". O exame físico exibiu um pequeno tremor dos dedos e uma
leve arritmia cardíaca, sem gravidade. Deve-se acrescentar que o
doente é casado e tem quatro filhos saudáveis; três morreram. A
doença começou lentamente, sem causas demonstráveis, sete a oito
meses antes de ser internado; inicialmente surgiu a falta de apetite e
dores abdominais, depois as idéias de pecado. No início da internação
houve redução de peso, mas agora ele recuperou sete quilos.
O traço mais evidente deste quadro clínico é a mudança de
humor angustiante. Esta assemelha-se no primeiro olhar à angústia
da pessoa saudável, e mesmo o doente diz que sempre fora um pouco
angustiado, só que piorou. Essa angústia não tem a menor causa
exterior, e mesmo assim ela dura por muitos meses com intensidade
crescente. Aí estão as marcas da doença. Ademais o próprio paciente
indica os pecados de sua juventude como causa da angústia. Mas lhe
está claro que estes fatos, mesmo verdadeiros, jamais o haviam
inquietado de forma tão estranha; sua consciência despertou somente
agora. Desde então, focaliza suas ações anteriores de uma forma
completamente diferente: surge o traço identificatório da doença que
chamamos de "delírio de imputação do pecado". Como uma saída da
angústia há que se observar a representação do doente de que o Malvado
esteve no quarto, que queriam levá-lo, que caíra de Deus. Nessas
primeiras manifestações não se observa propriamente ilusões sensoriais
ou alucinatórias, o doente só teve "aquela sensação de que". Tem
também essa vívida sensação de que "ocorreu uma mudança em sua
vida"; para ele "não é como antes". Não é capaz de julgar corretamente
o estado doentio de suas idéias de pecados nem de sua angústia.

98
Emil Krapeli11

Este quadro clínico é denominado de melancolia. Observa-


mos que esta evolução está relacionada com uma mudança de hu-
mor angustiante à qual se associam representações delirantes desen-
volvidas em maior ou menor grau. Na maioria das vezes trata-se de
idéias de pecado que assumem um caráter religioso, de ser caído/
abandonado de Deus, estar possuido pelo Diabo; também não são
raras as assim chamadas idéias hipocondríacas; o delirio de jamais
restabelecer-se, de não mais ter fezes e outras idéias desta ordem
não são raras. Acrescenta-se freqüentemente o medo de empobre-
cer, de ter que passar fome, de ficar na cadeia, de ser levado a juizo,
de ser executado.
Em conseqüência da inquietação interna e das representa-
ções importunas, desenvolve-se de forma bastante regular o desejo
de não mais viver, de maneira que os doentes lançam mão do suicí-
dio. Nosso doente só cometeu fracas tentativas de suicídio. Agora
mostro-lhes uma viúva de cerca de 54 anos que fez sérias tentativas
de acabar com a vida. A doente não tem história de doenças heredi-
tárias, casou-se com trinta anos de idade, tem quatro filhos saudá-
veis; seu marido morreu há dois anos, quando começou a apresentar
distúrbios de sono. Quando sua casa precisou ser vendida devido à
partilha dos bens, a doente se tornou angustiada e começou a pen-
sar que passaria por necessidades, o que não tinha nenhum funda-
mento, conforme ela própria confirmava nos momentos em que
estava calma. Tinha calores na cabeça, palpitações no coração, sen-
tia-se cansada e agitada, sem vontade de viver sobretudo pela ma-
nhã e não conseguia descanso à noite, nem mesmo com a ajuda de
pó para dormir. De repente surgiu a idéia: "O que você ainda
está fazendo neste mundo? Faz o que você tem de fazer para
desaparecer, para que eles possam ficar em paz; isso não vai du-
rar mais". Então foi para trás da casa pendurar-se em seu lenço,
perdendo os sentidos, sendo que seu filho a pegou e a trouxe
para a clinica.

99
A Dor de E xistir

Aqui ela estava bastante centrada, com os pensamentos e


comportamentos ordenados e consciente de sua doença, mas tinha
medo de nunca mais ficar saudável; ela não podia agüentar mais,
não podia ficar mais lá, estava desesperada. Tinha uma necessidade
premente de falar sobre seu estado de saúde, gemia alto, tinha muita
angústia; solicitava a vinda de um padre para expulsar o Malvado.
Neste momento começava a apresentar tremores por todo o corpo.
Não tinha tranqüilidade, não podia mais deitar, a cabeça doía, o co-
ração se partia. Não podia mais viver, queria morrer em sua casa,
tinha pensamentos constantes de suicídio, perdeu o sono e o apeti-
te; de resto não apresentava nenhuma alteração corporal visível. No
decorrer dos primeiros meses o humor melhorou de forma bastante
rápida, de forma que foi tentada uma licença para ficar com a famí-
lia da filha, respondendo a um desejo dos parentes. Chegando lá, as
idéias de suicídio e os sentimentos de angústia foram tão fortes que,
já 14 dias depois, foi necessário reinterná-la. Até agora seu estado
melhora com oscilações. A convalescência ainda foi dificultada por
causa do aparecimento de uma doença óssea do crânio direito e do
carpo esquerdo que exigiu repetidas intervenções, mas cujo prog-
nóstico é agora bastante animador.
Também esta paciente tem total clareza a respeito de sua
situação descrevendo seu estado de forma coerente. Formações de-
lirantes propriamente ditas não aparecem no caso dela, com a exce-
ção do temor de não mais recuperar a saúde. Mais precisamente,
verificamos uma mudança de humor angustiado que podemos iso-
lar como o conteúdo principal de seu quadro clínico geral. Esta
mudança de humor é acompanhada por uma fenomenologia que
conhecemos dos movimentos de sentimentos das pessoas sadias,
com distúrbios do sono, perda de apetite e distúrbios da alimenta-
ção em geral. A semelhança com os estados de angústia nas pessoas
normais ainda é reforçada pelo fato de que a mudança de humor
ficou associada a uma causa dolorosa externa. Mesmo assim é facil-
mente reconhecível que a força e a duração das mudanças de humor

100
Emil Kraepelin

ultrapassaram os limites que separam a normalidade e a doença. A


doente reconhece que seu medo e as angústias que surgem não se
justificam e que, na realidade, ela não tem motivos para querer a morte.
Na realidade, essa compreensão da natureza doentia da an-
gústia, o "reconhecimento da doença", certamente não é comum na
melancolia. Particularmente nos casos em que as formações deli-
rantes ficam em primeiro plano, tal característica pode estar ausente
por muito tempo. Como exemplo, mostro-lhes uma viúva de 46
anos que tratava de seu filho, com tifo há dois anos e três meses. Ela
própria apresentou uma doença febril, provavelmente também se
tratava de tifo, e alguns meses depois perdeu seu marido de forma
súbita. Pouco depois tornou-se angustiada e passou a repreender-se
por não ter cuidado bem de seu marido. Rapidamente desenvolveu
delirios de pecado. Que nunca teria feito nada direito, que se deixa-
va dominar pelo inimigo maligno. Suas orações não tiveram valor,
mas antes ela não sabia disso. Seu marido havia casado com o Dia-
bo, e agora não iria para o Céu; a vida dela e a de seus filhos estava
amaldiçoada em decorrência de sua vida pregressa pagã. Rapida-
mente tornou-se inquieta e perdeu o sono; gemia, gritava e chorava,
não queria mais nada e precisou ser trazida à clinica.
Aqui apresentava-se orientada, consciente do ambiente, mas,
aos poucos, entrava em uma grande excitação angustiante que se
externava através de monótonos gritos quase insuportáveis. Apenas
algumas vezes era possível interrompê-las através de perguntas, às
quais sempre fornecia respostas. Nestas, no entanto, desenvolvia um
punhado de representações as mais excêntricas. Fora a serpente no
paraíso, desencaminhara o seu marido que, aliás, chamava-se Adão,
havia injuriado a si própria e a seus filhos, trouxera desgraça para
todo mundo. Por isso ela foi queimada, já esteve no inferno onde
vira, no precipício, seus terríveis pecados. O firmamento ruiu; já
não há mais água, dinheiro, alimento; ela matou tudo, provocan-
do o fim do mundo: "O mundo inteiro pesa sobre minha alma".

101
A Dor de Existir

Em um texto escrito ao tribunal, acusa-se por todos estes aten-


tados, e pede para ser presa; em um bilhete escreve como seu
nome o "Diabo".
Os Senhores podem verificar facilmente que a doente sabe
perfeitamente onde está, conhece bem os médicos, é capaz de infor-
mar corretamente sobre as relações em sua casa e sobre quaisquer
cálculos, ao mesmo tempo em que grita coisas sem sentido e expri-
me aquelas representações delirantes. Atualmente já surge uma cer-
ta consciência da doença. "Às vezes pensa-se assim, às vezes assado.
Às vezes me passam pensamentos bem diferentes, como se não fos-
se assim, às vezes como se estivesse sonhando, e às vezes como se
fosse verdade". Fisicamente a doente enfraqueceu muito em conse-
qüência da má alimentação e dos problemas do sono. Tem três fi-
lhos saudáveis\ e perdeu três, quando eram muito pequenos. Prova-
velmente seu pai apresentava doença mental.
À primeira vista parece que este quadro patológico difere
dos outros quanto à intensidade. As diferenças são, no entanto, ape-
nas de gradação. Tanto a formação de quadros delirantes como a
intensidade da angústia e suas expressões são encontráveis nos pri-
meiros casos e descritos, normalmente, como "melancolia simples".
Freqüentemente encontramos no mesmo caso, em diferentes mo-
mentos, as formas mais leves e as mais intensas. Donde não é possí-
vel estabelecer fronteiras clínicas exatas para isso.
Todos os nossos três doentes são de uma faixa etária
mais elevada; isso não se dá por acaso. Parece que a melancolia,
como aqui descrita, começa mais freqüentemente - talvez ex-
clusivamente- em idades mais avançadas, em mulheres no perí-
odo da menopausa. Poderíamos compreendê-la como a expres-
são do sentimento frente à crescente insuficiência, como pode
ser observado de forma mais leve ou mais forte em pessoas sau-
dáveis que envelhecem. Aqueles que mais facilmente se tornam
melancólicos são as pessoas que têm uma predisposição à doença;

102
Emil Krapelin

parece que as mulheres tendem mais à doença do que os homens.


Sob o ponto de vista externo podemos destacar como causa de
desencadeamento os colapsos do humor, sobretudo frente à
morte de pessoas próximas; mas sabemos que esta causa não
deve ser tida como a verdadeira causa da doença. Sabemo-lo
pois ela falta em outros casos. O prognóstico da doença é nor-
malmente bastante favorável5 • Cerca de um terço dos doentes se
recuperam completamente; nos casos mais difíceis e duradouros
pode ocorrer um embotamento mais severo do humor, associa-
do às marcas atenuadas do desânimo angustiado; também o juízo
e a memória podem ter sofrido importantes embotamentos. A
evolução é sempre mais longa cursando com várias
intercorrências durante um a dois anos, ou às vezes mais.
O tratamento da doença é em regra institucional, devido
às ideações suicidas. Ressaltam-se tendências semelhantes, en-
tão os doentes devem ser observados dia e noite. Deve-se colocá-
los no leito, velar por uma alimentação adequada que, no entan-
to, encontra a resistência do próprio doente levando a sérias di-
ficuldades de alimentação; cuidar de seus distúrbios digestivos
e, na medida do possível, administrar banhos e remédios para
prorpover o sono. Na maioria das vezes se recomenda o
paraldeído, em algumas circunstâncias o álcool ou ocasionalmente
Tn'ona/. Contra a angústia usa-se o ópio, em doses crescentes e
decrescentes de dez a quarenta gotas, três vezes ao dia. Com
nossos primeiros dois doentes obtivemos bons resultados por
estes meios, ao passo que a nossa terceira doente obteve melhor
resposta com pequenas doses de paraldeído. Deve-se ter bastante
atenção ao se dar alta a esses doentes. Se a alta for dada muito
cedo, como aconteceu com a segunda doente, pode-se provocar
graves recaídas, com tentativas de suicídio. As visitas de paren-
tes próximos também têm mostrado uma influência desfavorá-
vel até bem próximo do desfecho do quadro clínico.

103
A Dor de Existir

NOTAS

l.Do original: "l.Einleitung- Melancholie". Em: KRAEPELIN, E. Einftihrung


in die Psychiatrische KJinik. Leipzig, 1905. Agrad~cemos a colaboração de Daniel a
Scheinkman na localização do texto.
2. N do R. Mantivemos para o termo Seele a tradução por psiq11ismo, utilizada
tanto em Freud como em Griesinger (cf. p. 73), apesar de sua tradução literal
ser alma.
3. N. do R. Unzycht no original. Palavra não mais utilizada; referia-se ao senti-
mento de moralidade ferida frente a uma ação sexual. No texto, o autor diz
que a paciente agiu a Unz11cht consigo mesmo.
4. Um deles adoeceu mais tarde com catatonia e clemenciou.
S. Dos nossos casos, o primeiro está curado há nove anos e meio; o segundo,
há cinco anos. A terceira paciente faleceu com tuberculose, quatro anos e
meio depois do início da doença psíquica.

•Tradu~o do alemão- Jorge Ycschi, correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise


•Revisão da tradução - Sonia Alberti

104
EXCITAÇÃO MANÍACA
(CONFERÊNCIA VII) 1

Emil Kraepelin

Senhores! Até agora observamos as formas as mais diferen-


tes dos estados depressivos. Meu objetivo tem sido o de lhes mos-
trar que uma dissonância do humor triste ou angustiado não é por si
própria suficiente para permitir alguma conclusão sobre a doença; é
nossa tarefa identificar, em cada um desses casos, uma significação
clínica do traço característico da doença. Sob determinadas circuns-
tâncias podemos mostrar o tipo da mudança de humor, sua duração,
suas recidivas mais ou menos freqüentes, sua pouca profundidade
etc., de forma a podermos concluir sobre a natureza da doença que
se encontra na base; mas na maior parte das vezes somente os ou-
tros traços da doença n os levam à pista certa. Quadros
fenomenológicos muito parecidos num primeiro olhar podem, com
o decorrer do tempo, mostrar-se como pertencentes a doenças mui-
to diferentes. Assim tamb ém, fazemos a experiência de que
fenomenologias muito diferentes no início podem ser a expressão do
mesmo mal, aparecendo paulatinamente. Que aqui não se trata de uma
interligação de diferentes doenças independentes uma da outra, como
às vezes se acreditava antigamente, fica claro quando verificamos
nesta doença a freqüência da fenomenologia, da passagem rápida de
um quadro para outro, eventual mistura de seus traços individuais, fi-
nalmente, desenvolvimento e término que sempre se assemelham
muito quanto à forma.
A Dor de Exittir

Uma pessoa de cinqüenta anos, comerciante, bem constitu-


ída e com um estado geral bom, é nossa preleção de hoje. Entra
com passos rápidos na sala, cumprimenta-nos com voz alta, assume
seu lugar com uma reverência cortês e olha em volta com interesse
e curiosidade. Assim que lhe dirigimos a palavra, nos dá respostas
rápidas e seguras, informando-nos pontualmente sobre o estado de
suas relações pessoais e sobre sua condição atual. Mas logo não
apenas responde, como também cunha ele mesmo as palavras, e diz
chistosamente que não narrará tudo assim tão simplesmente, pois
dificultará um pouco a prova, a fim de verificar se nós compreende-
mos bem. Ele esclarece que sofre de paralisia, dá informações com-
pletamente sem sentido, calcula incorretamente e adora quando en-
tramos no jogo. Se lhe deixamos a direção da conversa, então fala
muito e animadamente, não permitindo interrupções; mas perde
facilmente o fio da meada introduzindo em sua fala detalhes que
não correspondem ao assunto que acometia seus cálculos voluntári-
os, que possui propósitos incoerentes sempre quando seguidamen-
te se tenta aprofundar. É com custo que se consegue obter uma
resposta concisa e breve; sempre tem mais algo a acrescentar e a
enfeitar o discurso. Também durante minhas explicações, pede
freqüentemente "a palavra" mas acaba sempre por resignar-se nova-
mente, com uma reverência cortês. Muitas vezes dirige suas falas aos
Senhores, faz alusões à vida de estudante, intermeia suas falas com
versos de canções estudantis, e uma vez conseguiu compor ele próprio
uma rima em versos ropálicos que retratavam as circunstfuicias.
Seu humor é alegre, excitado, faz todo tipo de brincadeiras,
até bem ousadas, ri de si mesmo e dos outros, imita personalidades
conhecidas, ri de suas próprias tolices as quais sabe apresentar de
maneira totalmente inofensiva. Nas noites que antecederam sua
internação, perambulara por todo tipo de tabernas e casas de má
fama, bebendo e procurando de todas as maneiras dirigir a atenção
sobre si. Na praça do mercado regou-se de água de cima a baixo,
perambulando de coche pelas tabernas das cidades vizinhas.

106
Emil Kratpelin

Finalmente, quebrou em sua casa o espelho, a louça e a mobília, de


tal forma que chegou na clínica sob uma grande escolta policial.
Tudo isso, diz ele com uma resposta pronta, é por culpa de sua
mulher, que não lidara direito com ele, nem cozinhara nada de bom
para ele. Portanto tinha sido obrigado a ir até a taberna; além do
mais, ele tinha que ajudar o pessoal das tabernas a ganhar seu di-
nheiro. Apesar de não considerar-se de forma alguma doente, con-
sente em passar um tempo conosco para nos agradar, o que acres-
centa com um aspecto cheio de malícia. Do ponto de vista somático,
nada a declarar a não ser algumas feridas, visto ter sido ele trazido
para a clinica à força.
O quadro aqui observado nos aparece em franca oposição
aos estados depressivos que conhecemos anteriormente. Sua per-
cepção é rápida, as representações surgem sem inibição para serem
logo recalcadas por novas. O humor é alegre, a ação é desenvolta e
sem inibições, mesmo aquelas que existem na vida. Designamos este
conjunto de traços doentios, que se apresentam normalmente desta
forma, com o nome de mania, ou já que a perturbação de cada um
dos traços se encontra aqui só levemente desenvolvida, como
hipomania. Nosso doente, entretanto, não é sempre tão perspicaz e
tão jovialmente gentil como desta vez. No início, e em alguns mo-
mentos, ele apresentou total confusão e perda da conexão na sua
falação precipitada; irritadiço contra seu ambiente, destruía mesas,
cadeiras, vidraças, espalhava seus excrementos, derrubava a sopa sobre
sua cabeça, colocava a bacia noturna usada em cima da mesa de
jantar. Em outros tempos se tornava insuportável no contato com
outros pacientes, por suas ironias com o pessoal, seu espírito de
porco, suas críticas e incitações.
Na mania não se trata somente de um retorno leal aos esta-
dos circulares da depressão; ela não é senão um episódio da loucura
maníaco-depressiva. Ali onde realmente se pode encontrar a excita-
ção maníaca podemos concluir a possibilidade destas excitações se
mostrarem algumas vezes durante a vida, além de prognosticar a

107
A Dor de Existir

incursão de estados depressivos entremeados, tais os descritos ante-


riormenté. Retracemos a história de nosso sujeito: é a sétima vez
que acode ao manicómio. Filho natural, perdeu sua mãe devido a
uma apoplexia nervosa; uma irmã dele também era alienada. O do-
ente sempre foi considerado um tanto bizarro, mas sensato e dili-
gente. Aos 37 anos teve sua primeira crise, muito parecida com a
atual. Na ocasião, o paciente convidou por um anúncio no jornal
toda "nobreza local" para umaHaute-volée-Soirée em um lugar aprazível.
Colocou a polícia em pé de guerra; supunha ter encontrado em um
policial um anarquista procurado desde longo tempo e fazia todo
tipo de brincadeira com os funcionários. Foi diagnosticado com pa-
ralisia. As crises subseqüentes ocorrem cada vez com inclinação profu-
sa para despesas, alcoolismo e desvario sexual. Certa vez foi internado
com o bolso cheio de anéis sem valor, moedas estrangeiras, jóias bara-
tas, que comprara em vários locais, além de inúmeras promissórias.

Suas crises duravam entre dois e três meses no início; de-


pois, de seis em seis meses. Ainda que mormente o doente logo se
acalmasse na clínica, não apresentando praticamente mais nenhuma
perturbação, várias tentativas de alta fracassaram, pois logo voltava
a beber, tornando-se novamente muito excitado. Uma vez restabele-
cido se tornou um homem sóbrio entre os tempos de crises, viven-
do reservadamente e relacionando-se bem com sua mulher, a qual
injuriava e atormentava durante seu período de excitação. Após sua
penúltima alta ficou com o humor profundamente deprimido por
três meses; após a última ficou nove meses transtornado, desgostoso,
taciturno, deprimido sobre a cama, com pensamentos suicidas, mas
aos po:1cos o equilibrio do humor foi sendo recuperado.
O prognóstico que havíamos feito anteriormente não se
mo·>trou falho. Ao mesmo tempo em que o doente mostrou numero-
sos ataques maníacos vimos também evoluírem vários períodos
depressivos. Assim, estamos certos de poder prever o retorno mais
ou menos regular de um estado da manifestação a partir do outro 3.

108
Emil Kraepelin

A duração e a intensidade das crises aumentaram com o decorrer do


tempo, o que corresponde às nossas experiências anteriores. O de-
senvolvimento futuro, com algumas vacilações, trará provavelmente
uma piora quanto às crises.
Os Senhores poderão entender logo de início a perturbação
de nossa segunda doente, pela forma como adentrou de assalto na
sala; ela não pára de ficar andando com passos rápidos pela sala. Faz
questão de abraçar e examinar rapidamente aquilo que lhe chega aos
olhos, mistura-se sem constrangimento entre os ouvintes, e faz de
conta de com eles se entender. Assim que conseguimos finalmente
fazê-la sentar-se, levanta-se bruscamente em seguida, joga seus sa-
patos, desata seu avental jogando-o longe, e põe-se a cantar e dan-
çar. No instante seguinte, pára, bate as palmas das mãos, vai até o
quadro negro, pega o giz, começa a escrever seu nome mas termina
com um enorme arabesco que ocupa praticamente todo o quadro.
Superficialmente apaga-o com a esponja, volta a escrever algumas
letras mas joga o giz nos ouvintes, pega a cadeira fazendo um círcu-
lo ao seu redor, senta-se pesadamente na cadeira, levantando-se em
seguida e recomeçando os movimentos em novas formas. Durante
todo esse tempo a doente tagarela sem cessar, mas o conteúdo de
sua fala sôfrega é quase incompreensível e totalmente incoerente.
Com perguntas insistentes obtêm-se algumas respostas sensatas e
curtas às quais, no entanto, associam-se imediatamente frases corta-
das. Até então ainda é possível acompanhar os saltos de pensamen-
to que faz: lembranças que voltam de repente, fragmentos de for-
mas de falar e de versos, palavras e locuções que acabara de ouvir e
que agora infiltra em sua corrente de fala. A doente diz seu nome,
idade, sabe que está numa "casa de loucos", refere-se às pessoas
com epítetos diversos que lhe passam pela cabeça. É impossível ter
com ela um diálogo coerente. Sai da cadeira, dirige-se a uma pessoa da
assistência, corre à janela, canta meia canção, dança. Seu humor é
extremamente alegre, ri exageradamente, mesmo no meio do dis-
curso. Ao mesmo tempo pode facilmente cambar para a ira quando

109
A Dor de Exiiiir

a provocamos um pouco; explode então numa enchente de injúrias


as mais grosseiras para, no momento seguinte, acalmar-se numa ale-
gre risada. Sua agitação imoderada não impede que seja conduzida
facilmente desde que se lhe fale amigavelmente. Ela faz o que se
lhe pede; é verdade que logo em seguida fará o contrário. Embora
possua um corpo frágil com certa anemia, esta mulher não possui
nenhuma doença somática; no máximo uma certa conjuntivite no
olho esquerdo que, no entanto, não suporta tratar.
O traço fundamental do presente estado é formado pela
extraordinária liqüidez4 de cada um dos processos psíquicos. São
rápida e facilmente excitáveis, e com a mesma facilidade são nova-
mente recalcados 5 por outros. Qualquer estímulo ao acaso chama
logo a atenção, mas somente por um breve momento; cada repre-
sentação ou humor emergente, cada impulso da vontade, é imedia-
tamente substituído por um outro, antes mesmo que tenha chegado
a seu completo desenvolvimento. É evidente que esta doente não
possui a capacidade de não se deixar dominar pelas influências que
alternam a cada momento, no que tange os pensamentos, o humor e
a ação, de forma que não pode elaborá-los para seus próprios fins.
Dessa forma constitui-se o sinal importante da doença: a labilidade
em função do aumento da suscetibilidade à influência, tanto de estí-
mulos externos quanto internos. Isto é observável no contexto da
apreensão, uma vez que o doente não dirige a atenção para impres-
sões que sejam as mais importantes, mas ao contrário àquelas que
por contingência se oferecem à percepção naquele momento, sendo
logo substituídas por outras, tão acidentais quanto as primeiras. No
campo do processo representativo surge tal fenomenologia que de-
signamos com o nome de fuga de idéias. ] á que faltam as representa-
ções finais, aquelas que dão ao pensamento sadio a sua direção se-
gura, e já que as representações laterais são reprimidas6, verifica-se
que o fio condutor do pensamento sofre uma constante pressão
para perder a direção, à medida que as representações acidentais e

110
Emil Kraepelin

laterais são infiltradas. Estas representações aczdentais e laterais são desper-


ta~ na maiona das veze~ por simples uso da língua 011 por homofonia7 • É
observado - e isso pode ser facilmente verificado através de experi-
ências adequadas- que ao contrário do que normalmente se pensa,
esta fenomenologia não apressa a seqüência dos pensamentos; ob-
serva-se que na realidade a criação de novas representações se dá de
forma muito lenta e ansiosa. Frente a isso a denominação da fuga
das idéias é bastante certeira, já que a duração de cada representação
parece ser deveras curta: as idéias são "fugazes" e logo em seguida
empalidecem, antes mesmo de terem adquirido uma clareza. Razão
pela qual se constitui no ápice desse tipo de perturbações uma regu-
lar turgescência da consciência, em menor ou maior grau.
Podemos reconhecer a labilidade pela troca contínua da
coloração do humor, que pode mudar da exaltação alegre para uma
irritação colérica ou ainda para um desespero choroso. Finalmente,
no que tange à formação das expressões da vontade, a perturbação
expressa-se pela inquietação motora como necessidade por uma ocu-
pação. Desenvolvem-se no doente de forma contínua as mais varia-
das impulsões da vontade, jamais inibidas a passarem à ação mas
sempre atravessadas por novas impulsões.
Senhores! Comparem agora essa caracterização do quadro
apresentado com o caso do doente que discutimos anteriormente, e
então os Senhores verão sem dificuldade que naquele aparecem os
mesmos traços que aqui, só que de forma bem mais leve. Também
naquele caso observáramos a labilidade do processo do pensamen-
to, a mudança de humor e a falta de freios no que tange à vontade, a
tendência em ceder sem resistir a todos os impulsos que possam
surgir. Com efeito, em ambos os casos estamos às voltas com o
mesmo quadro clinico, aquele da excitação maníaca. As diferenças
dos casos que inicialmente chamam tanto nossa atenção se verifi-
cam, na realidade, como diferenças somente de gradação, pois ob-
servamos que com o aumento da excitação o doente acaba por de-

111
A Dor de Exiiiir

senvolver o mesmo estado que o aqui descrito. Por outro lado, nos-
sa doente apresentou em alguns momentos um quadro
"hipomaníaco". Aliás, isso não está ocorrendo no surto atual, que
começou há aproximadamente dois meses de forma repentina; pode
no máximo ter aparecido nos primeiros dias. Mas a doente já passou
por uma longa série de surtos maníacos que transcorreram, em par-
te, de forma bastante tênue, o que supúnhamos logo no começo, a
partir de nossos esclarecimentos iniciais.
Tem atualmente 32 anos, seu pai e seu tio paterno eram
bastante irritadiços, sendo que o último cometeu suicídio. O pai
tinha um primo alienado; uma irmã da doente apresenta retardo
mental. Sua doença começou aos 14 anos com um surto depressivo,
ao qual se seguiu, dois anos depois, um estado de excitação. Dois
anos após houve reaparecimento do surto de depressão melancólica
com auto-acusações e forte inibição. Adveio nova excitação, depois
uma depressão, após a qual manifestou uma excitação maníaca. A
partir de então, observaram-se as oscilações reiteradas entre um
humor deprimido e hipomaníaco, reconhecidas como patológicas
somente por sua mãe. A doente levou então uma vida agitada; envi-
ava anúncios de casamento, entrava nas relações amorosas sem se
preservar, relações estas sempre transitórias que lhe deixavam con-
seqüências. Para os estranhos estava se divertindo. Uma vez casou-
se realmente, mas só para divorciar-se em seguida. Apresentou por
três vezes uma excitação tão violenta que foi necessário interná-la
numa instituição. Nos estados de depressão apresentava sempre um
profundo arrependimento do que havia feito durante a excitação.
Entrementes, também havia intervalos longos nos quais não apre-
sentava nem mudança de humor triste nem alegre.
Todo este quadro de evolução é característico de uma lou-
cura maníaco-depressiva. O início na adolescência com uma mu-
dança de humor triste, a alternância posterior entre mania e depres-
são, a incidência de surtos mais sérios entremeados por acessos mais

112
Emil Krapeli11

brandos que passam quase despercebidos para o leigo; todo esse


quadro encontramos da mesma forma inúmeras vezes. Também ob-
temos da experiência a noção de que estes doentes pertencem em
geral a famílias com distúrbios psíquicos. Devemos poder esperar
que nossa doente ainda tenha que suplantar uma série de acessos
mais sérios e mais brandos, e de várias colorações.
O último de nossos doentes é um marinheiro de 49 anos.
Assim que entra, põe-se a falar, posicionando-se como "acusado
sob o Comando Supremo do Senhor Professor General Kr". No
entanto, responde prontamente as perguntas a ele dirigidas, mos-
trando-se bem orientado no tempo, localização e ambiente. Mas logo
desnorteia-se em relatos sem fim, os quais interrompe de repente
com conclusões surpreendentes: "Ficarei bom ou doente, ou a ca-
beça fora" 8 • Quando foi pronunciado perante ele o nome de
Katharine disse: "K.athreiner-Kneipps-Malzka.ffee - Froh/ich Pfal~ Gott
erha/t's - Alies sol/geriJstet Jllerded' 9 • Sua apercepção e sua memória são
excelentes: fornece informações com uma exatidão quase irânica; teria
chegado à clínica em 1 de julho, sexta-feira, às 17:50 h. Considera-se
saudável, não havia necessidade de trazê-lo para cá. Faz observa-
ções chistosas sobre os médicos e a clínica, mas também sobre si
mesmo; diz tagarelar com ironia mas ser inteligente, mais inteligente
do que os médicos que não aprendiam nada em Heidelberg. Quan-
do começa a tratar-me por "você" e lhe digo do meu espanto diante
disso, explode com uma torrente de palavreado chulo, com crescen-
te ênfase, para finalmente terminar com um riso estridente. Seu hu-
mor está aumentado, arrogante, seu comportamento é desembara-
çado, acirrado; ao responder às questões, leva a mão à têmpora como
no cumprimento militar, fala alto e rapidamente como num anún-
cio, mas logo cai para um tom de longo relato.
Os Senhores já devem ter reconhecido o estado deste doen-
te como aquele que traz todas as características da excitação manía-
ca. São claros a labilidade no processo de pensamento, o humor

113
A Dor d~ ExiJtir

mutável e a inquietação motora, sobretudo a falação maníaca. Sua


necessidade de ocupação também pode ser apreciada em outras di-
reções, se os Senhores o vissem no pavilhão: como está sempre
mudando a disposição de suas roupas, como fabrica com seus len-
çóis ou a figura de um cavalo no qual monta, ou uma âncora -
formação simbólica de sua profissão-, como grita, canta e dança,
como quebra, enfim, tudo o que lhe cai nas mãos. Nossa hipótese,
levantada da larga experiência, segundo a qual o surto atual não
é o primeiro, também aqui pode ser verificada. O doente veio
pela primeira vez há oito anos, e desde então já veio oito vezes.
Cada uma das crises começou abruptamente. As duas primeiras
após uma queda na água; a terceira ocorreu durante o enterro de
sua fllha, para as outras a causa de desencadeamento é desco-
nhecida. O início das crises é sempre com muita excitação, geral-
mente acompanhada por idéias delirantes sem sentido; seria Deus,
José no Egito, dava nomes de nobres e reis às pessoas de seu ambi-
ente, foi necessário usar a camisa de força para interná-lo por causa
de uma violenta resistência. Normalmente, após uma ou duas sema-
nas internado advém um apaziguamento de seu estado de forma a
poder receber alta.
As cinco últimas internações ocorreram este ano. Razão pela
qual decidimos agora conservar o doente conosco após o desapare-
cimento da excitação, de forma que pudemos acompanhar duas no-
vas crises que apareceram quatro a cinco semanas depois. Procura-
mos encurtar a última com a prescrição imediata, após o apareci-
mento dos primeiros sinais da crise, de inicialmente 12g, depois 15g
diárias de brometo de sódio. Com efeito, a crise transcorreu de for-
ma muito mais rápida e branda; talvez possamos esperar que a pró-
xima leve mais tempo para aparecer 10• De resto, lançamos mão do
tratamento de rotina da agitação maníaca: repouso no leito ou, quan-
do impossível, banhos quentes contínuos durante meio dia ou por
um dia inteiro; sob determinadas circunstâncias, por meses, trata-
mentos que têm, geralmente, grande eficácia. Às vezes é necessário,

114
Emil Krarpelin

para acostumar o doente ao banho, empregar pequenas doses de


hioscina ou sulfonal. Eles não tardam a apresentar pouca resistên-
cia, sentindo-se bem na temperatura moderada da água, onde fazem
suas refeições e ocupam-se de várias formas. Em alguns pacien-
tes, como neste caso, o simples isolamento é um calmante bas-
tante eficaz, mas esse isolamento deve ser imediatamente inter-
rompido quando se trata de doentes com tendências à falta de as-
seio ou à destruição. Aliás, mesmo os doentes que apresentam
uma loucura furiosa se tornam bem menos violentos quando
tratados com simpatia e tranqüilidade.
Neste nosso doente observamos somente os períodos de
excitação. Já que são eles os que mais saltam aos olhos, costumamos
designá-los como "marúa periódica". Mas aqui como nos outro exis-
tiram claramente mudanças de humor triste. Particularmente após o
desaparecimento da excitação, quando o doente às vezes passava
dias abatido, fechado sobre si mesmo, quieto, dizendo não ter mais
alegria no mundo, ser uma desgraça ser como ele. Mesmo em meio
à excitação marúaca se imiscuíam momentos em que chorava
vigorosamente, queixando-se de seu triste destino; mas esta ma-
nifestação era curta, retomando logo seu atrevimento anterior.
Nestas oscilações, que quase nunca faltarão nem mesmo em es-
tados francamente maníacos, observa-se não somente o paren-
tesco interno e profundo de estados aparentemente tão distin-
tos, como, a meu ver, a unidade da entidade clínica de todos
esses quadros da doença que normalmente são separados
nosologicamente pelas formas simples e periódicas da mania e
da loucura circular. A elas é comum a tendência à repetição du-
rante toda a vida, assim como geralmente o bom prognóstico
para cada crise na sua individualidade, mesmo quando a
fenomenologia se mostra pesada e duradoura.

115
A Dor de Existir

NOTAS

1. Do original: "7.Manische Erregung". Em: KRAEPELIN, E. Einjiihmng in


die PI.Jchiatrische Klinik. Leipzig, 1905
2. N. do E . O autor se refere a outras conferências não traduzidas no
presente volume.
3. O doente, após um período calmo, ficou deprimido por um período razoa-
velmente longo de tempo. Um ano depois foi levado a um novo período de
mania, ao longo do qual foram observaram acessos de forma epiléptica relati-
vamente graves, sobrevindo a paralisia. Um deles terminou na morte. Na au-
tópsia foi encontrada arteriosclerose no cérebro. Este tipo de término não
parece raro na loucura maníaco-depressiva.
4. No original: Fliibigkeit. N. do R. Sua tradução exata é liquidez, implicita-
mente do capital, o que no contexto da psicanálise faz referência à libido.
S. No original: verdriingt.
6. No original: lltllerdriickt.
7. N do R. Grifo nosso.
8. No original: mtweder werde ich ge111nd oder krank oder den Kopf ab, frase com
falha na construção sintática.
9. N. do R. "Café de malte kathreiner Kneipps -Albergue feliz, Deus o quis -
Tudo deve ser assado".
10. Após uma excitação rápida, quatro semanas depois, igualmente tratada
com brometo, o doente passou cinco meses sem crises até advir uma nova,
também branda. Dois anos depois, com um pequeno intervalo, teve mais duas
crises, a última em associação à morte de sua esposa. Há dois anos o doente
está saudável.

*Tradução do alemão- Jorge Veschi


*Revisão da tradução - Sonia Albcrti

116
A teoria e a clínica

parte tres
"
A CLÍNICA DO SUJEITO NA DEPRESSÃO
FREUD E A MELANCOLIA1

Antonio Quinet

I. UM TIPO DE PSICOSE

Comecemos nossa pesquisa sobre a clirúca do sujeito na


depressão pelo retorno a Freud sobre a melancolia, uma vez que -
ele mesmo nos diz em outros contextos- os psicóticos tem a parti-
cularidade de nos desvelar o que os neuróticos conservam em se-
gredo. E são os melancólicos que dão voz l\O que o sujeito passa a
vida a evitar: a dor de existir.
Logo de início, gostaria de situar a melancolia do lado da
psicose- o que será aqui verificado na clirúca e nos textos de Freud.
Neste sentido, tomarei alguns de seus textos para mostrar que, se
num momento dado, a melancolia foi trabalhada como algo da or-
dem de um estado depressivo que aparece em qualquer estrutura
clirúca, podemos verificar, a partir das próprias indicações de Freud,
tratar-se na verdade de uma psicose. A melancolia, a esquizofrenia e
a paranóia situam-se no âmbito da foraclusão do Nome-do-Pai.
Isso sigrúfica que devemos abordar a questão da melancolia a partir
dos fenômenos da ordem da linguagem e dos fenômenos do gozo.
Partindo então do postulado da foraclusão do Nome-do-Pai, como
podemos distribuir os fenômenos encontrados na melancolia?
A Dor de Exiitir

O que é a melancolia? Apenas esta pergunta já é um grande


problema, pois o próprio Freud, em Luto e melancolia, diz o seguinte:
"A melancolia, cuja definição varia inclusive na psiquiatria descriti-
va, assume várias formas clínicas, cujo agrupamento numa única
unidade não parece ter sido estabelecido com certeza". Freud parte
de uma indefinição, mas descreve, nesse mesmo texto, suas caracte-
rísticas principais. Ele caracteriza a melancolia como uma depressão
profundamente dolorosa (a primeira coisa que ele avança é a ques-
tão da dor), onde há uma suspensão do interesse pelo mundo exter-
no, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda atividade e a
diminuição do sentimento de auto-estima, que se manifesta em auto-
acusações e auto-injúrias, podendo ir até a espera delirante de punição.
Na verdade, Freud se baseia no que é descrito pela psiquia-
tria clássica, mas dá isso como sabido, pois faz uma descrição tão
parca que nos foi necessário recorrer à psiquiatria para saber a que
Freud estaria se referindo. Para a psiquiatria, principalmente a de
Kraepelin à qual ele se refere, não há a menor dúvida de que se
trata de psicose. Mas isso não nos basta para afirmarmos a estrutura
da psicose na melancolia.

O furo no psiquismo'

Quero tomar como primeira indicação de Freud, e comen-


tar aqui com vocês, o Rosc11nho G, que é todo dedicado à melancolia,
o que não quer dizer que Freud não tenha se referido à melancolia
em outros Rascunhos e em outras cartas de sua correspondência
com Fliess.
Freud parte de quatro constatações: 1- A relação entre a me-
lancolia e a "anestesia sexual". Na melancolia o que lhe chama mais
atenção é essa apatia, indiferença, a falta de vontade de tudo e espe-
cialmente a falta de vontade sexual. Há, portanto, uma abolição do
=
desejo na melancolia, isto é: desdo zero; 2- A relação entre melancolia

120
A111011io Quinei

e murastenia - o que poderíamos resumir como uma perda da vitali-


dade, um cansaço, uma tristeza. Freud faz uma analogia da melanco-
lia com a neurastenia que, como vocês sabem, não é uma neurose de
transferência; é o que Freud chama de neurose atual; 3- A relação
entre a melancolia e a angústia- a melancolia, diferentemente das neuro-
ses de transferência, não faz economia da angústia; 4- A jom1a cíclica
seria a mais comum. Isso provavelmente é uma referência a Kraepelim,
que já definira a loucura circular. Assim, a quarta constatação é essa
forma cíclica em que a melancolia pode se transformar em mania.
Freud não coloca a bipolaridade e sim que há a melancolia e que ela
pode ser transformada em mania, mas que por virar mania, não dei-
xa de ser melancolia.
Encontramos a seguir o que será leit-motifde Luto e melanco-
lia, ou seja, a relação da melancolia com o luto. " O afeto que corresponde
à melancolia é o afeto do luto. Isto é, o lamento amargo de haver
perdido algo". Inicialmente o que chama a atenção de Freud é este
lamento amargo da perda que, em Luto e melancolia, ele dirá que é um
lamento contra alguém. Trata-se, diz ele, de uma perda, de âmbito
pulsional, é uma perda de libido. Isso vai nos esclarecer a leitura de
Luto e melancolia, onde Freud diz que "a perda do melancólico é inde-
fmida. Ele sabe que perdeu alguma coisa, mas não sabe o quê".
No Rascunho G temos, então, a seguinte definição: ''A me-
lancolia é um luto, provocado pela perda de libido". Sua explicação
será feita a partir do esquema sexual, ou seja, através das ligações
dos neurônios entre si. Se tomarmos a articulação neuronal do apa-
relho psíquico proposto por Freud na época como equivalente es-
trutural da articulação significante tal como Lacan nos ensina nos
Seminários: o eu na teoria de Freud e a ética da psicanálise, a transmissão
através dos neurônios constitui a cadeia de pensamento inconsciente.
Freud chega a eqüivaler, como vocês sabem, os neurônios a repre-
sentações inconscientes, o que nos permite fazer uma leitura estru-
tural do aparelho psíquico como uma rede de significantes.

121
A D or de E xiflir

No caso da melancolia há, diz ele, uma dissolução das asso-


ciações, e essa dissolução é sempre dolorosa. "Ela corresponde a
um empobrecimento da excitação que percorre os neurônios e as
reservas livres de libido". Este empobrecimento, diz ele, parece com
" uma hemorragia interna e se manifesta no âmago de outras pulsões
e de outras funções". A dissolução das associações corresponde a
um 'furo no psiquismo' por onde se esvai a libido como uma he-
morragia de libido. Daí o sujeito se tornar completamente empo-
brecido, arruinado, tudo se esvai nessa hemorragia, todos os bens
do sujeito, como aparece no delirio de ruína.
Essa hemorragia é descrita como uma excitação que escorre
por um furo que funciona portanto como um ralo. Esse furo no
psiquismo é equivalente ao furo no simbólico, à foraclusão do Nome-
do-Pai. Lá onde deveria estar o Nome-do-Pai não se encontra nada,
só um furo, um ralo aberto, por onde toda libido escoa. Para Freud,
é isso que explica a anestesia sexual, pois "todos os neurônios de-
vem abandonar a excitação". É esta perda hemorrágica que é dolo-
rosa. É a dor do furo, do que é foracluído do simbólico que é desve-
lada na melancolia, dor que corresponde à anestesia sexual, à aboli-
ção do desejo.
Mas o melancólico nem sempre se encontra nesse estado de
anestesia sexual, já que ele pode ter a fase maníaca e também estar
nos 'intervalos lúcidos'. O que acontece, na verdade, com este furo?
Se existe este furo, há algo que funciona como tampa e que se des-
tampa no desencadeamento da melancolia, e que volta a tampar este
furo nos intervalos lúcidos. Trata-se de uma tampa instável, como
toda tampa, porque ela, na verdade, aponta a presença de um furo,
justamente quando ela não se encontra lá. Em nosso jargão lacaniano,
podemos chamar essa tampa de suplência. O que faz suplência para
o melancólico? E o que desencadeia a melancolia? As circunstâncias
que desencadeiam uma paranóia são as mesmas que desencadeiam
uma melancolia?

122
AntonioQuinei

Freud fica surpreso de ver que o melancólico consegue dar


voz a essa perda de libido, no delírio de petitesse (delírio de pequenez),
um equivalente do delírio de ruína que é o avesso do delírio de
grandeza. Nele, o ser mesquinho, vil, egoísta se desvela. É assim que
o sujeito fala dele mesmo, e Freud vai dizer: "Ele tem toda razão; é
isso mesmo". A melancolia desvela algo, que Lacan diz nos Écrits se
referindo à psicose: a origem sórdida de nosso ser.

O vazio do pai e a morte do sujeito

No texto, Neuroses de traniferência (191 5), Freud coloca nitidamente


as neuroses de transferência de um lado, e de outro, as neuroses
narcísicas, dentre as quais se situa a melancolia. Ele propõe a seguin-
te seqüência temporal:

histeria de angústia - histena de conversão e neurose obsessiva - nmroses de


transferencia - demência precoce -paranóia - melancolia-mania - neuroses
narcisicas.

No que concerne a nosografia freudiana, é interessante no-


tar que a expressão "neurose narcísica", definida como um conflito
entre o eu e o supereu, será exclusivamente empregada por Freud
em Neurose e Psicose (1924) para designar a melancolia.
Para Freud, nesse texto de 1915 a melancolia-mania não
permite uma classificação temporal segura. Freud abandona essa
referência e faz, então, apelo a outra: o Pai, ou seja, ao mito de Totem
e tabu. O assassinato do pai "daria origem às predisposições da pe-
culiar sucessão de estados de ânimo que reconhecemos como parti-
culares nas afecções narcísicas, ao lado das parafrenias - que seria o
triunfo sobre a morte do pai, e em seguida o luto - pois todos o
admiravam como o tipo ideal". E continua: "O luto pelo pai primi-
tivo emana da identificação com ele, e tal identificação provamos
ser a condição do mecanismo da melancolia".

123
A Dor de Existir

Em primeiro lugar, Freud não faz apelo a regressão tempo-


ral da melancolia, mas a situa ao lado da esquizofrenia. Em segundo,
ele nos diz que o sujeito melancólico está identificado com o pai
morto. Não se trata aqui de uma identificação com o totem que
substitui o pai morto, e que dá o sentimento de pertencimento do
sujeito àquela tribo, que é o produto da identificação simbólica, in-
corporação significante do Nome-do-Pai. Aqui, a identificação com
o pai primitivo enquanto morto, é estritamente oposta à primeira
identificação apontada por Freud no sétimo capítulo da Psicologia das
massas e análise do eu. Como vocês sabem, Freud começa o capítulo
VII da Psicologia das massas falando dessa primeiríssima identificação,
ao pai, que dará a base do complexo de Édipo e que ele diz tratar-se
de uma incorporação do pai, que podemos fazer equivaler à incor-
poração do Nome-do-Pai. Essa incorporação do pai simbólico abre
o caminho também para algo que vai ser fundamental no estudo de
Freud dessa questão, e que é a ambivalência: ambivalência de amor e
ódio pelo pai que faz parte do complexo d; Édipo. Lacan, com a
expressão enamoródio, tenta dar conta dessa polaridade de sentimen-
tos que é oriunda da identificação.
Essa ambivalência em relação aos pais, que retorna quando
da morte deles, já tinha sido evocada por Freud no Rascunho N, que
eu gostaria de retomar agora para voltarmos em seguida ao texto
Neuroses de Transferência. No RascunhoN, Freud nota essa ambivalência
quando da morte do pai no processo de luto: o que sai é o ódio ao
pai morto, ódio do Outro. Como este ódio do Outro é distribuído
nas estruturas clínicas? Estas pulsões hostis, em relação ao pai mor-
to, são conscientes no luto, sob a forma de idéias obsessivas. Na
paranóia, se transformam no delírio de perseguição: há um retorno
do ódio do Outro contra o sujeito. O ódio do Outro se inverte: é o
Outro que o odeia, e o sujeito é seu objeto. No caso da obsessão, o
ódio do sujeito pelo Outro retorna nas idéias obsessivas,
deslocadamente, e na histeria o sujeito fica com a mesma doença
que matou o pai, através da identificação.

124
AntonioQuinei

Na melancolia o óclio ao Outro retorna e aparece como auto-


recriminação por sua morte. O sujeito é o culpado pela morte do
Outro, ou seja, a pulsão hostil passa ao real, e o sujeito se acha 0
assassino. Mas o que vemos nesse artigo As neuroses de transferencia?
Freud dá um passo a mais, dizendo que "o melancólico se identifica
com o pai morto", é uma identificação com o pai morto, como ob-
jeto perclido, ou seja, identificação com este buraco mesmo deixado
pelo pai morto.
Em todo processo de luto é o pai simbólico, e o cortejo da
ambivalência em relação ao objeto amoroso perclido, que será con-
vocado. Amor e óclio pelo pai no lugar do objeto do amor, é o que
vai aparecer. Ora, isso não acontece na melancolia, onde ocorre a
identificação com o lugar vazio deixado pelo pai. E qual o resultado
clisso em termos da ambivalência? Não vemos o sujeito se auto-
amando; ao contrário, vemos o sujeito se auto-ocliando, ou, como
cliz Freud, se autotorturando, se auto-acusando, se auto-injuriando,
como se prevalecessem aí as pulsões hostis, como as chama Freud.
Em Luto e Melancolia, cliz Freud: "parece que todas as pulsões de
vida se retiraram", o que equivale a esta anestesia, a esta hemorragia
de libido. E ele dirá na Segunda tópica que Eras se retirou e que a
melancolia é a pura cultura da pulsão de morte. Isso nos permite
apontar que, na melancolia, diferentemente da paranóia, há a
foraclusão do amor, e o que resta é esse puro óclio, que o sujeito vai
voltar contra ele mesmo.
Tomando apenas este texto - e todos devem ter notado que
estou evitando chegar ao mais óbvio e conhecido de todos nós, na
identificação com o objeto, "a sombra do objeto cai sobre o eu" -,
estamos ainda nas bordas, usando outros textos de Freud para de-
pois cliscutirmos Luto e Melancolia. Então, na melancolia, a identifica-
ção de que se trata não é com o pai simbólico, mas com o furo
deixado pelo pai morto, com este vazio. E por quê? Se o sujeito não
consegue a incorporação simbólica, o que lhe resta é a identificação
com o vazio deixado pelo pai, co~ o pai ausente, zerificado (NPo).

125
A Dor de Existir

Vamos encontrar, ai, a identificação com a própria ferida


aberta; o próprio sujeito é esse vazio. Ele se torna a própria hemor-
ragia da libido. Como exemplo, lembro do que me disse uma paci-
ente que vimos numa apresentação de pacientes recentemente. Ela
é uma melancólica, portanto uma paciente de estrutura psicótica,
que, entretanto, se encontrava em seu aspecto mais maniforme. No
final da entrevista, ela se define, para falar de sua posição como
objeto de sua mãe, como "SOU PURA PEREBA", porque quando ela
era neném estava coberta de feridas, perebas. Ela descreve uma cena,
em que ela está jogada numa esteira, cheia de perebas. Ela é a pró-
pria ferida, mortificada. Não havia amor nenhum, nenhuma simpa-
tia do Outro em relação a ela - o Outro se retirou. Podemos, então,
=
chegar a propor esta identificação: sujeito melancólico foraclusão
do Nome-do-Pai.
Aqui encontramos a "morte do sujeito" como a de
Schreber, referida por Lacan, em um momento dado de sua psi-
cose. Há a mortificação, a zerificação do sujeito quando a tampa
sai. Quando há um abalo de uma suplência que o constituía como
sujeito, ele se vê equivalente a este zero da foraclusão do Nome-
do- Pai. E isso dói. É uma posição dolorosa por si. Se os psicóticos,
como nos diz Freud, têm o privilégio de nos revelar aquilo que os
neuróticos guardam em segredo, é sobre esta dor que eles podem
nos falar, e que Lacan vai definir como "a dor de existir". Uma dor
que corresponde à zerificação, a uma ausência total do Outro. Há,
aqui, um estilhaçamento do Outro, uma separação total do Outro,
como tesouro de significantes ou como Outro que cuida, o Outro
do am1)r.

A relação da melancolia com a morte do Pai aparece ainda


em Uma neurose demoníaca do século XVII (1922-1923), onde a morte do
pai aparece como fator desencadeante da melancolia. Freud diz: "Não
é algo fora do comum para um homem, adquirir uma depressão melan-
cólica e uma inibição em seu trabalho, em resultado da morte do pai".

126
Antonio Q11inet

A Coisa melancólica

Há ainda uma outra referência que nos ajuda a apoiar a tese


da melancolia como psicose. Em Luto e Melancolia, Freud diz que "a
representação da Coisa inconsciente, do objeto, foi abandonada pela
libido". Não se trata de Sache, a coisa representada, mas sim de Ding.
Aqueles que conhecem o desenvolvimento de Lacan no Seminán.o: a
ética da psicanálise, podem achar que aqui se trata de uma incoerência:
como é possível que a representação da Coisa tenha sido abandona-
da, se justamente a Coisa não tem representação?
Vocês se lembram que Lacan vai tomar este termo - Das
Ding - a Coisa, do Prqjeto de Freud, mostrando que é justamente
aquilo que escapa ao julgamento, aquilo que não tem atributo ne-
nhum. Mas, é também o que se repete e que se encontra no cerne âo
que provoca o desejo. Das Ding, ao mesmo tempo, é o inominável, o
irrepresentável, o inapreensível. Poderíamos nos perguntar: que his-
tória é essa de representação da Coisa, se a Coisa é não representável?
Mas se tomarmos a definição de Lacan: "A Coisa é aquilo que, do
real, padece do significante", essa Coisa não é uma coisa qualquer.
Das Ding, a Coisa, tem relação com a rede de significantes do sujeito.
É a Coisa que provoca o desejo, é a Coisa com sua substân-
cia de gozo mas cujo gozo foi esvaziado pela entrada na linguagem,
pelo significante. Esta é a elaboração feita por Lacan: há o gozo da
Coisa, e este gozo é esvaziado pelo significante. E ntão, a Coisa é
aquilo que do real do gozo padece do significante. Essa Coisa tem
uma relação de extimidade com o Simbólico: ela se encontra no seu
interior mais íntimo, sendo externa ao sujeito. É uma localização
fora do simbólico, porém cingível por ele. Alguns significantes mes-
tres apontam a Coisa para o sujeito, e estes constituem o que Freud
chama de a representação da Coisa.

127
A Dor de Existir

Na verdade, a operação que existe é: se temos aqui o real


padecendo do significante, tomemos o Nome-do-Pai, vamos ter então
A Coisa, que vai estar no interior da rede significante.

NP Das Ding
f.
Podemos dizer que existem significantes mestres que apon-
tam para a Coisa, mas nunca vão ser a representação final da Coisa,
já que a Coisa vai deslizar, e você não apreende a Coisa. No Seminá-
rio : a ética da psicanálise, Lacan vai propor dois modos de abordagem
da Coisa. Um é a peroersão, e o outro é a sublimação. Lacan vai fazer
uma articulação da sublimação com a melancolia, no caso clínico de
Melanie Klein. Queria apenas lembrar aqui que Das Ding tem rela-
ção com o significante: para o neurótico a Coisa é esvaziada de gozo,
diferentemente do psicótico, para o qual a Coisa não é esvaziada de
gozo e ela retorna para o sujeito. O sujeito é coisificado: todo o
simbólico se retira e ele se torna a "Coisa melancolizada".
Voltemos à frase de Freud de Ltto e Melancolia: "A represen-
tação da Coisa, do objeto foi abandonada pela libido". Ele diz que
algo que vinha aqui (S1, S2, Sn) foi abandonado, e o que resta é a
Coisa.
Isso também nos aponta para a psicose, pois na neurose não
há esse abandono total da representação. Freud nos diz que, quando
há um luto, há um reinvestimento de libido, mas não o abandono
total de uma representação. Ao mesmo tempo, essa aproximação da
Coisa na melancolia nos abre para o estudo da relação entre a subli-
mação e a melancolia. Isso nos permite a hipótese que precisa, sem
dúvida, ser trabalhada: será que não é essa a relação que Aristóteles
percebeu, e que todo o Renascimento consagrou, ao dizer que os
sábios, os poetas e os cientistas tinham um aumento da bile negra?

128
AlrtonioQuinei

Aristóteles lança a idéia gue o aspecto triste, melancólico


dos poetas, cientistas e sábios se devia ao aumento da bile negra.
Será possível pensarmos na existência de uma articulação estrutural,
entre melancolia e criação gue possibilitou essa articulação ao longo
da história? Penso agui no famoso guadro de Dürer sobre a melan-
colia, gue mostra um sujeito rodeado de objetos da ciência. Isso nos
permite pensar gue, para ter algo de criativo, você precisa ter algo
fora da cadeia significante, porgue senão teríamos apenas a repeti-
ção, significante. Se a criação é ex-nihilo, se ela vem do nada, é sobre
este nada, fora do simbólico, gue nos fala o melancólico. Podemos
pensar a criação a partir do gue o sujeito vai fazer desse nada: uma
criação sui generis, gue venha tamponar a hemorragia de libido. A
partir da criação, talvez o melancólico possa vir a constituir um sin-
toma no sentido de Joyce.

Rio de Janeiro, 13 de março de 1997

129
A Dor de ExiJtir

II. LUTO E MELANCOLIA, REVISITADO

A proposta é fazermos a leitura desse texto tão polêmico -


Luto e melancolia. Por que polêmico? Porque é um texto que já permi-
tiu diversas leituras. Primeiro, porque Freud não parte diretamente
da clinica: ele mesmo diz ter poucos casos clinicos Em segundo
lugar, porque aqui ele se encontra numa encruzilhada: a da
metapsicologia.
Freud utiliza basicamente dois pontos para situar a melan-
colia: o luto, e o narcisismo, que ele acabara de desenvolver na
metapsicologia. Isso é o que ele explicita, mas vamos ver que ele vai
também utilizar a teoria pulsional. Ele compõe, digamos assim, a
melancolia a partir desse tripé: luto, narcisismo e teoria pulsional.
Proponho então fazermos uma leitura desse texto a partir da hipó-
tese da foraclusão do Nome-do-Pai na melancolia.
Num primeiro momento, trata-se para Freud da caracteriza-
ção do melancólico, como vimos da última vez, a partir da psiquia-
tria clássica, salientando dois aspectos principais: o da anestesia se-
xual e o da dor. Comparando a dor do melancólico com a dor do
enlutado, Freud diz que, nos dois casos, trata-se de uma dor de per-
da. A perda do enlutado é evidente, enquanto a do melancólico não
é, apesar de ela parecer evidente já que muitas melancolias são
desencadeadas efetivamente pela morte de um ente querido. O su-
jeito entra aparentemente num trabalho de luto normal e, pouco a
pouco, vai se instalando o quadro melancólico, evidenciando-se que
não se trata de algo da ordem de uma perda que poderá ser simbo-
lizada, uma vez que a perda desvela o furo correspondente à
foraclusão do Nome-do-Pai.

130
AntonioQuinei

O desencadeamento

O desencadeamento da melancolia é semelhante ao do luto.


Trata-se da "perda de uma pessoa amada ou de uma abstração, co-
locada em seu lugar- a Pátria, a Liberdade, um ideal etc". Essa colo-
cação é fundamental e, ao mesmo tempo, a grande fonte da confu-
são. Por que ela gera confusão? Porque Freud falará o tempo todo,
ao longo desse texto, de objeto, mas não sabemos bem de que obje-
to se trata, ou seja, qual o estatuto desse objeto. Freud chama essa
pessoa que morreu de objeto, mas não se trata do objeto pulsional
(o objeto a). Se esta perda é da ordem de um ideal, o que temos em
jogo é um significante mestre, que poderia ser sustentado por al-
guém, ou um significante idealizado como a Pátria, a Liberdade etc.,
ou seja, um S1 que ocuparia esse lugar de suplência à foraclusão do
Nome-do-Pai.

Quando este significante é perdido - ou é perdida a sua


sustentação - ele não pode mais ficar nesse lugar e a melancolia é
desencadeada pois o sujeito se vê diante desse "furo no psiquismo".
No caso do enlutado, quando se trata da perda da pessoa amada ou
de um ideal, a psicopatologia do amor nos faz dizer que esse
significante se encontra no lugar do ideal do eu do sujeito, I(A), que
é o lugar de onde o sujeito se vê como amável. O ideal do eu é o
traço do Outro, ou melhor, a insígnia do Outro que situa o eu ideal
para o sujeito, i(a), como aquele objeto imaginário, amado pelo Outro,
com o qual o sujeito se identifica.

131
A Dor de Existir

O eu ideal é, portanto, constituido a partir das insígnias do


ideal do eu, que sempre é um ideal do Outro. Tanto no caso do
enlutado como no do melancólico, e também no caso do deprimi-
do, é o Ideal do eu que é abalado, sua sustentação é perdida. A
conseqüência disso é o abalo do eu ideal, a perda narcísica. Seu efei-
to_de dissolução imaginária terá como conseqüência o desvelamento
do estatuto real do objeto a, que será designado por Freud através
da famosa frase: "A sombra do objeto caiu sobre o eu".

I(A) i(a) a
OBJETO -7
Simbólico Imaginário Real

Temos, portanto, as três vertentes do objeto (simbólico, ima-


ginário, real) que podem se encontrar reunidas no objeto de amor.
Devemos nos perguntar, a cada vez que Freud faz uma referência ao
objeto, de que objeto se trata aí.

Freud parte então para diferençar o que ocorre no luto do


que ocorre na melancolia, descrevendo três tempos, dos quais dois
ocorrem tanto no luto como na melancolia. No primeiro tempo, há
uma escolha de oi?Jeto. O sujeito precisa estar ligado amorosamente a
alguém que sustente aquele significante ou estar ligado ao próprio
significante (como, por exemplo, a pátria, a liberdade etc). No se-
gundo tempo, há um pro/uízo (uma decepção) ouperda radical (desapa-
recimento) do objeto. Essa relação é abalada e advém o
desencadeamento. Até aqui é igual tanto para o luto como para a
melancolia. No terceiro tempo, encontra-se a diferença. No caso do
enlutado, o trabalho de luto fará com que o sujeito retire o investi-
mento libidinal do objeto perdido e reinvista em outro objeto, ou
seja, erija um outro Ideal do eu, seja um ideal abstrato seja um objeto
de amor. Já no caso do melancólico isso não ocorre; o melancólico se

132
Alrlo11io Quinei

identifica com o objeto perdido, "a sombra do objeto cai sobre 0


eu". A explicação de Freud para isso é o que vai gerar a confu-
são. Ele justifica a identificação com o objeto perdido dizendo
que sua escolha foi originalmente narcísica, fazendo, portanto,
uma referência a teoria da escolha de objeto por apoio ou esco-
lha narcísica. O sujeito melancólico, que tinha escolhido este ob-
jeto de amor via narcisismo, por espelhamento, ao perdê-lo, volta a
essa relação de identificação imaginária e não reinveste nenhum outro
objeto. Freud utiliza o conceito de narcisismo para explicar que todo
o processo melancólico é 'auto' (Se/bs~, nele mesmo, não partindo
para o outro.
Mas há alguns problemas nos quais Freud esbarra que com-
prometem sua explicação pelo narcisismo. O primeiro problema é
que o melancólico não tem auto-estima, a um ponto tal que o sujei-
to não tem a menor vergonha de dizer os maiores impropérios so-
bre si mesmo. Ele se xinga, se auto-acusa das coisas mais vis- o que
é, segundo Freud, tudo verdade -, e isso no maior descaramento.
Isso vai contra a hipótese de uma regressão ao narcisismo, pois se o
eu estaria todo investido narcisicamente, como o melancólico teria
uma auto-estima diminuída? Outro problema que Freud aponta nesse
texto se refere ao suicídio. "Reconhecemos, como o estado originá-
rio de onde parte a vida pulsional, um amor tão considerável do eu
por si mesmo, que vemos se liberar, na angústia que se manifesta
quando a vida é ameaçada, uma carga tão gigantesca de libido
narcísica, que não conseguimos apreender como esse eu pode con-
sentir em uma autodestruição". Como este eu, tão investido
narcisicamente, tem uma auto-estima tão diminuída e como ele vai
atentar contra a própria vida? Eis outro problema. Como Freud o
resolve? ''A análise da melancolia nos ensina que o eu não pode se
matar a não ser quando ele pode, por um retorno de investimento
de objeto, tratar a si mesmo como um objeto, quando ele consegue
dirigir contra si mesmo a hostilidade que visa um objeto e que repre-
senta a reação originária do eu contra os objetos do mundo exterior".

133
A Dor de Exi!lir

Vocês percebem o deslocamento que Freud faz aqui? Não é mais


pelo narcisismo, mas é pela própria teoria pulsional que ele passa a
explicar o suicídio na melancolia.

O processo Selbst

Freud acabara de propor em As p~tlsões e se11s destinos as três


vozes da pulsão: a voz ativa, a reflexiva e a passiva. Declinemos com
o verbo torturar, próprio ao melancólico.

Voz ativa: Ele o tortura. (0 sujeito tortura o objeto).


Voz reflexiva: Ele se tortura.
Voz passiva: Ele é torturado.

A referência de Freud a este "ele se tortura" é algo diferente


do narcisismo. Não se trata aí do momento sádico - "ele tortura o
outro" - , e também não é o momento masoquista- "ele é tortura-
do". O momento ao qual Freud se refere em Luto e melancolia é: "ele
se tortura", no momento em que a pulsão retorna ao próprio sujei-
to; trata-se de uma "autotortura".
Há uma tradução comentada de Luto emelancolia de Marilena
Carone, que tem um glossário dos termos empregados por Freud,
em que ela nota a quantidade de vezes que Freud usa a expressão
"auto", para falar do melancólico. Ele fala de auto-estima- ao dizer
que o melancólico tem baixa auto-estima -, auto-recriminação,
autocrítica, autodepreciação, auto-avaliação, auto-acusação,
autotormento, auto-insulto, autopunição e o suicídio, que em ale-
mão é auto-assassinato. Considerar o suicídio como auto-assassina-
to é introduzir a implicação do sujeito na dimensão pulsional: o
sujeito sendo o assassino e, ao mesmo tempo, o objeto assassinado,
o que mostra todo o processo "auto" (Selbs~ do melancólico. Trata-
se de um suicídio pulsional, onde a estrutura da pulsão é desnudada.

134
AntonioQuinei

Não devemos esquecer que Freud, n~ segunda tópica, afirmará que


originalmente o sujeito é masoquista, e que o sadismo vem depois; a
melancolia como pura cultura da pulsão de morte desvela o maso-
quismo primário do sujeito.
Voltando ao texto de l..Jtto e Melancolia notamos que essa
questão da pulsão nos ajuda a compreender algo que é bastante enig-
mático e que parece contradizer a clínica da melancolia, principal-
mente para aqueles que trabalham em hospital psiquiátrico e já tive-
ram bastante cantata com melancólicos. Trata-se da interpretação
de Freud da auto-acusação, que ele coloca como um dos traços fun-
damentais da melancolia. O melancólico se acusa de ser o responsá-
vel pela ruína, pelas perdas, pela miséria de seus familiares e até do
mundo. Esta auto-acusação pode ir das idéias mais simples até toda
uma formação delirante. Ele interpreta que esta acusação que o
melancólico dirige contra si mesmo, na verdade ele a está dirigindo
ao objeto perdido, àquele que morreu, àquele que o abandonou.
Isso pode ser contraditório com o processo Se/bst da melancolia.
Freud reintroduz a dimensão do Outro na auto-acusação: foi origi-
nalmente uma acusação dirigida ao Outro que se transformou de-
pois em auto-acusação. Em seguida, ele diz algo que realmente se
constata na clínica do melancólico: o melancólico não apenas se
tortura, mas tortura todo mundo a sua volta. Trata-se do peso do
melancólico, que é um chato, que não se mexe, que está sempre
monocordicamente falando da mesma coisa (monotematismo). Freud
nota então que, com a sua queixa, o melancólico acaba implicando o
outro. A interpretação de Freud é que o lamento do melancólico é
sempre, por mais que não pareça, uma queixa contra alguém.
Essa dimensão do Outro é pouco evidenciada. O que se vê
é o melancólico num estado de desolação. O que vinha sustentar ou
fazer o papel do ideal para ele, como suplência ao Nome-do-Pai, foi
abalado. Daí o processo "auto". É um processo muito semelhante ao
que Freud descreve como desamparo fundamental do sujeito, onde
o Outro, que cuida e ama, abandona o sujeito. Há uma desolação,

135
A Dor de Exiltir

um desarvoramento, mas que não se manifesta, no caso do melan-


cólico, sob a forma da angústia. Já o enlutado tem a angústia da
perda; ao perder a pessoa que ama, e que se encontra nesse lugar, ele
se sente abandonado pelo Outro, e se angustia.

Heloísa Caldas - Com relação a essa questão da voz


reflexiva, eu me lembro que Freud faz alguma observação em rela-
ção à neurose obsessiva, onde aparece também a auto-recriminação.
Que distinções podem ser feitas entre a auto-recriminação na neu-
rose obsessiva e na melancolia?

Antonio Quinet -Temos que pensar a auto-acusação


em todas as estruturas, uma vez que ela não é patonomônica da
melancolia. Na paranóia, onde há a acusação do Outro, o sujeito
pode em determinado momento se acusar. É claro que na melanco-
lia isso é mais desvelado, mas acontece em outros tipos de psicose e
também na neurose. Freud vê que essa análise da auto-acusação não
é suficiente, pois ainda aqui ele diz que na melancolia o eu se cindiu
numa parte que critica e noutra que é criticada, ou seja, ele já aponta
para a estrutura do supereu, que trata sadicamente o sujeito como
um objeto. Sem dúvida, a neurose obsessiva é a neurose onde a
função da auto-acusação do supereu é mais evidenciada, mas ainda
assim sua estrutura é escamoteada. A melancolia desvela esta posi-
ção do sujeito como objeto maltratado.

Hemorragia narcísica e desvelamento do objeto

Se no melancólico a estrutura do Outro é totalmente anula-


da e o processo fica todo "auto", a tendência do melancólico será
negar tudo que existe, a começar pelo corpo, pelos próprios órgãos - o
que corresponde ao delírio de negação da Síndrome de Cottard -, po-
dendo chegar a dizer que o mundo não existe, o que mostra um
despovoamento do simbólico, uma anulação da estrutura do Outro.

136
AntonioQuinei

Por que não aparece aí a angústia, como aparece na neurose? O que


aparece é essa dor profunda, o que Lacan nomeará de dor de existir,
tristeza profunda, abatimento total, abulia, perda de desejo. Isso
ocorre porque a função fálica não está operando. O que vai caracte-
rizar a angústia como tal é a angústia de castração, que dará o senti-
do da perda. Quando o sujeito perde aquele que vem cumprir a
função do Outro que cuida e ama, ele se vê diante da castração. No
caso da neurose, a falta que é destampada é uma falta relativa à cas-
tração. Já no caso da melancolia, quando desaparece aquilo que ti-
nha uma função de suplência do NPo, o sujeito se vê jogado nesta
identificação com o objeto, dejeto, largado pelo Outro: o sujeito se
identifica com o objeto a. Há aí um real não simbolizado. Desvela-
se a própria estrutura do supereu, que toma a dianteira, e o sujeito é
tratado sadicamente pelo supereu, como um rebotalho.
A partir dessa ordenação do texto, como ler a seguinte frase
de Freud: "A analogia com o luto nos leva à conclusão que o melan-
cólico sofreu uma perda relativa ao objeto. O que é extraído do seu
dizer é que se trata de uma perda relativa ao seu eu"? Ora, o que é
primário na melancolia é essa perda do objeto, a ser entendida como
perda do objeto de amor, simbólico, situado no ideal do eu, tendo
secundariamente como conseqüência uma perda no seu eu. O que
significa esse "há uma perda relativa a seu eu"? Que a consistência
imaginária do eu se esvai, o que mais uma vez vai contra a lúpótese
da regressão do narcisismo. Quando há um abalo do ideal do eu, há
conseqüentemente um abalo no eu ideal, há uma ferida narcísica.

I(A) ~ i(a)

No caso da neurose, o que ocorre? Ora, sabemos que esse eu,


que é um eu corporal, construído a partir da insígnia do Outro I(A),
é o que vem no lugar de - q>, ou seja, no lugar do que falta ao Outro.
É ali que o sujeito vai tentar encaixar o seu eu, para ser o objeto

137
A Dor de Existir

·amado e desejado pelo Outro. No momento em que isso é abalado,


como conseqüência da perda do ideal, o sujeito se depara com a
castração. Há um (- <p) que é desvelado. O sujeito se vê confrontado
com a castração, surgindo daí o sentimento de desamparo, abando-
no e o ódio do Outro por tê-lo deixado. Podemos dizer que todo
processo de luto vai mobilizar o enfrentamento da castração. O su-
jeito se depara com essa falta, até que ele possa voltar a colocar
outra pessoa nesse lugar vazio e possa continuar a sua vida amorosa.

i(a) i(a)
--~i(a)><-<p~--
-<p -<p

E no caso da melancolia? Não temos um i(a) sustentado


pela função fálica da castração. Trata-se de um i(a), conjunção de
um imaginário e de um real, relativo ao objeto. No momento que o
sujeito se depara com a foraclusão do Nome-do-Pai, há uma perda
das vestes narcísicas do objeto: a imagem cai e o sujeito se vê iden-
tificado com objeto.

I(A) i(a)
~
<I>o a

Quando o ideal do eu, que vinha suprir a foraclusão do


Nome-do-Pai, é abalado, o eu perde o revestimento narcísico, e se
evidencia o seu estatuto de objeto: o objeto a em seu estatuto de
rebotalho do simbólico, o objeto a como o vazio, o furo no simbó-
lico, eqüivalente à foraclusão do Nome-do-Pai. O sujeito se torna
esse oco sem consistência alguma, esse nada. É difícil encontrar a
palavra para falar desse furo, que é o objeto a em relação ao simbó-
lico. Há uma frase de um melancólico, relatada por Séglas que diz

138
Antonio Q11inel

bem isso: "Ele se diz decaído do resto da humanidade. Ele não tem
mais sentimentos, nem vontade. Não é mais como todo mundo.
Está arruinado, não tem mais órgãos, não existe mais". Aparece aí a
sua posição de decaído da humanidade. Tomando a humanidade
como o Outro, o conjunto de todos os homens, ele é como um
objeto decaído do Outro. Lacan, no Seminário: a angústia, vai apontar
como o melancólico atravessa a imagem para atingir o objeto, o que
é patente na defenestração. O melancólico atinge o objeto caindo
como dejeto.
Freud mostra também que todo processo de luto revela uma
ambivalência do sujeito em relação ao objeto perdido. O enlutado
tem lembranças, nas quais demonstra um grande amor pela pessoa
perdida, mas também um grande ódio. Nesse processo de
desfolhamento das lembranças que evocam amor e ódio, o sujeito
fará o trabalho de luto. "A perda do objeto de amor é uma ocasião
privilegiada para fazer valer e aparecer a ambivalência das relações
de amor". Mas na melancolia, diz Freud, parece que toda a vertente
de Eros desapareceu e só ficou o ódio, o qual o sujeito volta contra
si mesmo, surgindo então a autotortura. É um ódio totalmente
desvinculado do amor. Vocês se lembram que Lacan inventa uma
palavra para falar justamente dessa ambivalência: enamoródio. No caso
do melancólico, podemos dizer que há uma foraclusão do Outro do
amor, ele perde esse Outro que ama e cuida, e o que lhe sobra é um
supereu extremamente cruel, que odeia o sujeito. "A tortura que o
melancólico se inflige, que indubitavelmente lhe traz um gozo, re-
presenta a satisfação das tendências sádicas e hostis que visam o
objeto, que desta maneira retornam sobre a própria pessoa". Desta-
co que gozo aqui é no sentido do para além do princípio do prazer.
Podemos afirmar isso, porque o termo usado por Freud é Gemm, e
não LIISt, que é da ordem do prazer. Freud mostra então o gozo da
autotortura na melancolia. A pulsão que o prende à vida parece ter
se despreendido: é o gozo do masoquismo que faz da melancolia a
pura cultura da pulsão de morte.

139
A Dor de Existir

O Outro reconstituído

Se a estrutura do Outro é eliminada e o sujeito se encontra


nesse processo "auto", no delírio melancólico ela será reconstituída
na espera delirante de punição. No delírio retrospectivo, o melancó-
lico encontrará algum crime que tenha cometido para justificar tudo
aquilo, e ao ficar aguardando a punição ele reconstituirá um Outro
do tribunal. Podemos comparar o Outro do melancólico
reconstituído pela espera delirante de punição com o Outro de Jó,
considerado por alguns autores como melancólico. Quando estava
trabalhando esse tema, não pude deixar de notar a diferença entre o
melancólico e Jó. Tive a oportunidade de assistir recentemente a
peça O livro de Jó, montado pelo grupo Vertigem. É uma montagem
impressionante, montada no Hospital São Francisco, que está total-
mente em ruínas, e J ó aparece nu, banhado em sangue durante a
peça inteira. Há algo do real que os atares conseguem trazer à cena:
a devastação que o Outro pode fazer com o sujeito. Trata-se da
relação de Jó com Deus em que ele perde absolutamente tudo: a
casa, os amigos, a saúde, todos os seus filhos, ficando num estado
de completa desolação. Contrai a peste, fazendo com que todos fi-
quem com horror dele, sendo que aqui a alusão a AIDS é evidente.
Sua mulher então lhe diz: "Veja, depois disso que te aconteceu, de
fato Deus não existe". Pois Jó vivia se perguntando porque Deus
fizera ·isso com ele, o que seria na verdade a versão neurótica do
problema. Surge aqui uma espécie de coro grego - os amigos - que
diz: ''Alguma você fez". Mas ele não tem culpa, não apresenta senti-
mento de culpa, pois sabe que não fez nada e se tudo aquilo aconte-
ceu com ele, deveria haver alguma razão para Deus tê-lo feito. Sata-
nás, em suas diversas representações, quer que ele maldiga Deus,
rejeite o Outro. Há, portanto, por um lado pessoas que dizem que
alguma ele fez, e daí todas as desgraças seriam uma punição mereci-
da, reconstituindo um Outro justo, e por outro lado há a vertente da
mulher de Jó, para quem o Outro não existe.

140
Antonio Quinei

Uma determinada autora de um livro recente diz que o me-


lancólico é portador do complexo de J ó. Ela cita o livro de J ó: "En-
fim]ó abriu a boca, amaldiçoou o dia do seu nascimento, tomou a
palavra e disse: "Mereço o dia em que nasci, a noite em que se disse:
um menino foi concebido. Que esse dia se torne trevas, que Deus
não se ocupe dele, que sobre ele não brilhe a luz". Nessa pequena
citação,Jó em nenhum momento nega a existência de Deus, ou não
quer saber do Deus que o abandonou. O melancólico tenta
reconstituir com o seu delírio um Outro que vai puni-lo por um
crime que ele cometeu, e do qual se acusa dentro de uma devastação
total. É um Outro sem rosto, opaco, que o sujeito desconhece, mas
ele conhece delirantemente o crime que cometeu. Isso não parece
acontecer com] ó. Nele, persiste a indagação: "Por quê?" Quando a
mulher dele diz: "Deus não existe! Existe prova maior de sua
inexistência do que o que está acontecendo com você? Logo você
que é tão fiel a Deus, o protótipo de sujeito bom, que só faz o bem
na vida. Ele vem fazer tudo isso justamente com você?" E J ó res-
ponde: "E você quer que eu pense que tudo isso foi um acaso, que
tudo isso não tem sentido nenhum? Não posso acreditar nisso!" E
ele continua em seu questionamento do porquê o Outro fizera aqui-
lo tudo com ele. Trata-se de questionamento semelhante ao do neu-
rótico. Quando acontece alguma coisa de ruim ele se pergunta: "O
que eu fiz para merecer isso?", que é uma forma de sustentar o
Outro questionando seu desejo. Mas essa questão pode tornar a
forma de uma queixa histérica, pois geralmente a pessoa que se per-
gunta isso não está querendo saber realmente o que fez. Ela de fato
não está procurando a sua culpa, está querendo apenas dar um sen-
tido ao não sentido. Ela diz: "Será que isso ocorreu porque fiz aqui-
lo? Mas que bobagem!"

Heloísa Caldas - Com certeza para não pensar que foi por
puro acaso.

141
A Dor de Existir

Antonio Quinet - Sim. Já o melancólico desvela a posição


de um sujeito como um puro objeto, sem nenhum Outro com o
qual possa dialogar, como é o caso do paranóico, que vai imputar ao
Outro toda a responsabilidade do que acontece com ele. Para o pa-
ranóico, a culpa é do Outro.
Freud chega num ponto de explicação da melancolia que
esbarra tanto no limite do luto, quanto no limite do narcisismo. As-
sim, ele é obrigado a ir a um para-além do narcisismo, onde ele
encontra a teoria pulsional, esse gozo, a instância crítica e o eu trata-
do como um objeto. O supereu- que ainda ele chama de instância
crítica - vai aparecer neste momento como um outro do sujeito, que
na verdade é ele mesmo. Podemos dizet que é o outro mais radical
do sujeito: o objeto a. O supereu como objeto a vai aparecer desve-
lado na psicose principalmente em sua modalidade de voz.

Rio de Janeiro, 20 de março de 1997

142
AntonioQuine/

III. AS PULSÕES NO COMPLEXO MELANCÓLICO

Na última vez, discutindo a melancolia a partir de Luto e


melancolia de Freud, vimos a questão do desencadeamento da melan-
colia e do processo de luto que será nosso modelo da depressão.
Nos três casos trata-se da mesma estrutura: a perda de um significante
mestre (S 1). Na neurose, o S1 ocupa o lugar do semblante que vem
escamotear a falta de um significante no Outro. A perda desse ideal
desencadeia o processo em que o sujeito se vê confrontado com a falta
e que desembocará no trabalho de luto. No caso da psicose, ou seja, no
processo melancólico, há um significante ideal que cumpre a função de
suplência da foraclusão do Nome-do-Pai. É justamente o abalo desse
significante que provocará o desencadeamento da melancolia.

s1 sl
NEUROSE (Luto): - -- PSICOSE (Melancolia): - -
S(A) NP0

Esse S1 corresponde ao ideal do eu, que se encontra estru-


turalmente vinculado ao eu ideal [i(a)]. Assim, a perda que se dá ao
nível do ideal do eu conseqüentemente provocará um abalo narcísico
na imagem do eu. Essa perda narcísica, desvelada na melancolia,
terá como conseqüência clínica a perda da vestimenta imaginária do
eu, a "hemorragia narcísica" que corresponde a urna desvinculação
entre a imagem e o próprio objeto.

S1-7 I(A) ~ i(a)


J,~
i>< a

143
-
A Dor de Existir

Perdendo a vestimenta imaginária, o sujeito se identifica com


o objeto, ou seja, "a sombra do objeto recai sobre o eu". Mas, ainda
em Lttto e melancolia, Freud afirma que na melancolia o sujeito trata o
eu como um objeto. Isso poderia nos levar à questão: será que tra-
tar-se como um objeto é a mesma coisa que estar identificado com o
objeto? Haveria aí um paradoxo: como alguém identificado com um
objeto vai tratar a si mesmo como um objeto?
Vejamos as interpretações possíveis dessa frase de Freud -
''A sombra do objeto recai sobre o eu":
1- Esse Ich dessa frase não é o eu, mas o sujeito. Teríamos
então: $= a
2- Se esse eu é a instância imaginária, narcísica, a melancolia
desvela o que na verdade ele é: um objeto. Ele é um dentre outros
objetos do mundo imaginário. É esta estrutura do eu que a melan-
colia vai desvelar. Na melancolia reencontramos a constituição do
eu a partir da imagem do objeto, tal como é evidenciado no matema
=
de Lacan para se referir ao eu: i(a) imagem de a. Encontramos a
história desse materna já no eixo imaginário do Esquema L, onde o
eu já é secundário ao objeto. Lacan vai dizer que o eu se encontra
dentre os objetos do mundo.

d
Sz a A

É isso que aparece no Estádio do espelho, onde o eu é o objeto


das pulsões, ou seja, é para o eu que as pulsões vão se dirigir. O
objeto desvelado na melancolia é diferente desse objeto de amor
que o eu é para o ideal. Se guardamos a orientação que Freud nos dá
quando diz que o psicótico desvela aquilo que o neurótico guarda
em segredo, será na psicose que encontraremos a estrutura desvelada.

144
r A11f011io Quinet

0 que a melancolia nos ensina sobre a estrutura é essa particularida-


de do eu: a de ele ser um objeto. D_aí ser tratado como um objeto.
Mas por quem? Por esse "si mesmo" da instância crítica que Freud
chamará de supereu.

A mania

Mas antes de adiantar um pouco mais este ponto, gosta-


ria de comentar a última parte de Luto e melancolia, onde Freud
fala da mania, aliás de forma extremamente econômica. Ele diz
que na melancolia o eu sucumbe ao processo melancólico, e "na
mania ele o domina". A mania então seria um triunfo sobre o
processo melancólico. "Ele põe de lado o complexo melancóli-
co, nega este estado de luto e aparece então a alegria, a exaltação
e o triunfo". É apenas isso que Freud fala. Ele faz aqui uma
correlação entre o final do trabalho de luto e a mania. Ou seja,
no trabalho de luto o sujeito estava desprendendo uma energia
enorme para dar conta da perda do objeto amado; ele desfolhava
todas as identificações que tinha em relação a esse objeto; quan-
do consegue concluir este trabalho, aparece um alívio, uma ale-
gria , que vem de uma energia que agora é liberada. O sujeito
volta a ficar alegre e parte então para novas conquistas amoro-
sas, ou seja, vai reinvestir sua libido em novos objetos. Ele sai da
depressão que é um luto e uma luta, e volta a se atrelar na cadeia
metonirnica do desejo. Freud compara o melancólico com o mise-
rável que de repente ganha uma grande soma de dinheiro. Toda a
sua preocupação crônica com o pão de cada dia acaba, e o sujeito
fica de repente aliviado e tem vontade de comprar tudo. Freud mostra
nessa passagem melancolia-mania uma mudança total na valência
do gozo. Se lá há uma luta de reconquista vinculada ao desprazer,
de repente há uma mudança, surge a alegria e o gozo se torna da
ordem do prazer.

145
A Dor de Existir

O caso da mania (psicose) é evidentemente diferente do


caso do luto, pois quando o sujeito termina o trabalho de luto, ele
não entra em mania; há apenas um alívio e ele reencontra a alegria
de viver. Se Freud diz que o melancólico "domina ou põe de lado"
o processo, isso significa que ele não atravessa o processo, ou seja,
não é uma resolução tal como acontece no trabalho de luto. É por
isso que Lacan vai insistir que no caso da melancolia e da mania - ou
seja, da PMD - temos apenas uma estrutura, que é a melancolia. A
estrutura é a da melancolia, podendo o sujeito se situar ora no polo
marúaco, ora no polo melancólico, ora estabilizado com uma su-
plência à foraclusão do Nome-do-Pai.
Lacan, no Seminário: a angústia, acentua o que poderíamos
chamar de "desvario da metorúmia" no caso da mania. O sujeito é
invadido pelo deslizamento incessante de significantes, o que apare-
ce clinicamente na fuga de idéias. Mas Lacan também é bastante
económico em relação à mania. Outra característica da passagem da
melancolia para a mania é a passagem do delírio de petitesse para o
delírio de grandeza, em que encontramos a mesma estrutura com a
mudança de valência. No caso do delírio de pequenez ou delírio de
ruina o sujeito se encontra sempre no centro dessa ruina. É por
causa dele, de alguma coisa que ele fez, que ele se arruinou, arruinou
a família, o bairro, o país e o mundo. Por isso Lasegue diz que o
delírio da melancolia é centrífugo- parte do sujeito para se espalhar
para o mundo inteiro. É diferente portanto do delírio do paranóico
que é centrípeto, pois tudo parte do Outro que visa o sujeito.
No delírio melancólico o sujeito é a causa de toda essa rui-
na. No caso do delírio de grandeza é a causa dos bens de todos, o
que aparece em sua prodigalidade. A família começa a se preocupar
com o marúaco, quando ele começa a delapidar todos os seus bens:
solta cheques sem fundo, começa a comprar tudo, ultrapassa o limi-
te do cartão de crédito etc. E isso por quê? Enquanto o melancólico
é o despossuido de tudo pois por esse "furo no psiquismo" todos

146
AIIIOIIiOQtiÜJel

os bens são perdidos, no maniaco, o furo está tampado ou, mais do


que isso, está totalmente preenchido. O maniaco é um saco sem
fundo; ele é aquele que tem. Então, enquanto o melancólico é a
causa dessa ruína, o maniaco se encontra na posição de causa da
fortuna dos outros. Encontramos aí o sujeito sempre na posição de
causa: seja de causa da ruína, seja de causa da riqueza. Vemos aí as
duas valências do objeto a: como rebotalho, ou como objeto preci-
oso, agalmático.
Na segunda tópica Freud evoca de passagem a melancolia e
a mania, principalmente em A psicologia das massas e análise do eu e em
O eu e o isso. São textos muito difíceis de interpretar, principalmente
porque neles Freud fala indistintamente de supereu e ideal do eu.
Lacan, de certa forma, foi quem nos ensinou a diferenciar estas duas
instâncias, porém podemos nas Novas Conferências sobre apsicanálise de
Freud extrair a diferença principal entre estas duas instâncias. Freud
situa o ideal do eu ao nivel do ideal do Outro (dos pais), como um
herdeiro do narcisismo do sujeito, ou seja, o ideal do eu como aqui-
lo que sustenta o narcisismo infantil, [I(A) ~i(a)], enquanto o supereu
aparece como herdeiro do complexo de Édipo, como aquilo que vai
se presentificar na angústia - sempre angústia de castração - que
denota a presença do objeto a.

A primeira chave de leitura para entendermos o que Freud


diz sobre a melancolia e a mania é diferenciar estas instâncias. Sobre
a mania, ele diz que há uma confusão para o sujeito entre o ideal do
eu e o eu ideal. É interessante porque corresponde exatamente à
expressão que Lacan vai usar para falar sobre o amor no Seminário: os
escritos técnicos de Freud. A paixão amorosa- e Lacan diz que na loucu-
ra há algo parecido - é quando o sujeito encontra por contingência
na mesma pessoa, a conjunção do ideal do eu e do eu ideal. É por
isso, diz Lacan, que toda paixão é louca. O sujeito fica enlouqueci-
do, quando apaixonado, devido a essa conjunção. Para Freud todo
apaixonado é um maníaco, porque também é extremamente pródigo

147
A Dor de Existir

com o objeto de sua paixão. Há também o preenchimento do furo,


da falta, e o sujeito tenta fazer existir a relação sexual, e isso a tal
ponto que não há nenhuma autocrítica que possa vir a perturbar o
seu humor. Na mania, como diz Freud, o sujeito fica apaixonado
por si mesmo. Aparece aqui de novo este Selbst(si mesmo). A mania
é paixão por si mesmo. Lacan generaliza isso para toda paixão: toda
paixão amorosa é um apaixonamento por si mesmo no outro; daí o
caráter maníaco da paixão. A mania aparece então como o avesso da
melancolia. Se o sujeito fica triste porque perdeu o objeto, ele vai
ficar extremamente contente quando encontra o objeto, em si mesmo.
Como essa paixão por si mesmo da mania, que chega a um delírio de
grandeza, pode de um momento para o outro se transformar em
autocrítica e em autotortuta, caindo o sujeito na melancolia?
No texto O eu e o isso, Freud volta a falar da mania de outra
maneira: "O objeto perdido é erigido novamente no eu". E Freud
usa o termo de identificação com o objeto, trazendo algo mais espe-
cífico, que vai de fato em direção à nossa tese do melancólico no
lugar do objeto. "Há uma introjeção e uma espécie de regressão ao
mecanismo da fase oral", o que é facilitado pelo abandono do obje-
to. A mania faz Freud voltar a se questionar sobre como é constitu-
ído o eu. Esse questionamento é semelhante ao que ele fez em Luto
e melancolia, porque ele vai encontrar também na mania a identifica-
ção do eu com o objeto.
Freud diz que na melancolia, quando o sujeito perde uma
pessoa, ele se identifica com ela, deprime e acusa este objeto que o
deixou e com o qual ele se identificou. Pergunta-se então se a carac-
terística do objeto não resulta da sedimentação de investimentos de
objetos abandonados. Ora, isso é a própria composição do eu: o eu
vai se compondo a partir da identificação com objetos abandona-
dos. A melancolia desvela exatamente esta constituição do eu, que
vai no sentido do materna de Lacan - i (a) - ou seja, o eu como um
objeto narcisicamente investido, como imagem.

148
AntonioQuintl

Mas a melancolia não é apenas isso, e Freud insiste em in-


terpretar na auto acusação que o outro se encontra aí na jogada.
Como vimos, em Luto e melancolia Freud dizia que a auto-acusação
era na verdade uma hetero-acusação. Freud não consegue falar da
pulsão sem tomar a estrutura inteira da pulsão, que tem um pé no
Outro, pois a representação da pulsão no Inconsciente é feita pelos
significante da Demanda doI ao Outro (S OD). Mas isto não resolve
o problema da auto-acusação. Na verdade a Metapsicologia não a
explica. Freud precisará elaborar a pulsão de morte e sua manifesta-
ção no supereu para que se entenda a auto-acusação na melancolia:
o sujeito identificado com o objeto atrai a cólera do supereu contra
ele mesmo. O outro da auto-acusação é o supereu. E daí Freud situa
a melancolia na questão ética. A melancolia desvela o sentimento de
culpa inconsciente na auto-acusação que, como vimos no semestre
passado, é o outro nome do masoquismo moral. É a partir disso que
Freud cria aquela famosa frase: "O homem não apenas é muito mais
imoral do que ele acredita, mas também muito mais moral do que
ele sabe". É aí que vai se situar propriamente a dor, essa "dor de
existir" ou a dor moral, tal como ela foi apreendida por psiquiatras
do início do século - Giesinger e Séglas, dentre outros.
Em seguida Freud descreve a melancolia como um ataque
do supereu, desvelando-se o supereu como a pura cultura da pulsão
de morte. O supereu pode conseguir "levar o eu à morte, se este não
consegue se defender desse tirano". Mas como o eu se defenderia
do supereu? Ora, com a mania. Para Freud, a mania não é uma defe-
sa contra a depressão, a mania é uma defesa contra o supereu. A
maneira que o sujeito tem de escapar do supereu dentro do proces-
so melancólico é virando maníaco. Mas como? Freud diz que para
escapar do supereu o sujeito vai se agarrar a um ideal. Podemos
dizer que há do lado da mania uma tentativa de se agarrar ao imagi-
nário; mas também podemos supor que o ideal pode ser um
significante de suplência à foraclusão do Nome-do-Pai.

149
A Dor de Existir

A defusão das pulsões

Dito isto, como podemos apreender este complexo melan-


cólico, do qual a mania faz parte, e como se dá esta virada? Como
podemos pensar os intervalos lúcidos - ou seja, os períodos sem a
mania e sem a depressão - da PMD? Ora, o que vemos no caso da
melancolia é um processo que gira totalmente em torno do sujeito.
Poderíamos interpretar assim o sujeito como equivalente ao próprio
objeto no trajeto da pulsão.

A melancolia desvela a própria estrutura autista da pulsão:


parte do sujeito, faz a volta no objeto e volta para o sujeito (como
no esquema do Seminário: os quatro conceitosfimdamentais da psicanálise),
e nessa volta toda da pulsão "o sujeito é o seu objeto". E o objeto
que é privilegiado é a voz: a voz do supereu que se manifesta na
auto-acusação

O objeto a apresenta duas valências: de objeto agalmático -


objeto de desejo - e de rebotalho - dejeto do simbólico. Esse
rebotalho é o objeto de angústia por excelência. O objeto a, se en-
contra na intercessão de Eras e da pulsão de morte, o que podemos
escrever como:

EROS PULSAO DE MORTE

150
AntonioQuinei

Encontramos aí o intrincamento ou fusão das pulsões, como


diz Freud em vários textos, pois a pulsão de morte não é desvinculada
de Eros. Vocês devem se lembrar do que comentei sobre isso no
ano passado, no texto sobre o masoquismo. Relembro rapidamente:

Eros
j, Sexualidade
Pulsão de morte ------~ ~ Destmição
\....._.,/ Vontade de poder
Masoquismo primário

Há três derivações dessa conjunção de pulsão de morte com Eros:

1. Sexualidade- O componente da pulsão de morte na sexu-


alidade é necessário para haver o que Freud chama de pulsão de
dominação do objeto, ou seja, a conquista do objeto. É preciso para
haver a apreensão do objeto este componente de pulsão de morte.
O "sadismo" da sexualidade que nos faz, para transar, reduzir o
outro a um objeto para nosso gozo.

2. Destmição- Na destruição como na guerra pulsão de morte


e Eros estão atuando. É este esquema que fará com que Freud res-
ponda a Einstein em Por que a guerra?, dizendo que a guerra existe
porque Eros está aí presente. Há um gozo envolvido na destruição e,
como diz Freud, o homem não abandona um gozo sem mais nem
menos. Toda destruição implica a pulsão: a guerra é uma orgia de gozo.

3. Vontade de poder- Como terceira derivação da conjunção


de Eros com a pulsão de morte, Freud propõe a vontade de poder,
onde encontramos a satisfação da pulsão que explica a atração pelo
poder e o sadismo da tirania do mestre presente no S 1•

E onde poderíamos localizar o masoquismo pn'mordiaP. É o


que da pulsão de morte não se junta com Eros e retorna ao sujeito.

151
A Dor de Existir

Romero Rubião - Por que nesse esquema o ponto de par-


tida é a pulsão de morte?
Antonio Quinet - Porque Freud descobriu na clínica um
real que resiste aos poderes da palavra. É um real silencioso que se
opõe a Eras onde pulula a vida e o falatório do universo simbólico.
A este real que se encontra na repetição, na reação terapêutica nega-
tiva, ele deu o nome de pulsão de morte, que faz do masoquismo, e
não do sadismo, a tendência primária do sujeito, o gozo do sofrimento
que o melancólico revela. É o que está para além do princípio do pra-
zer. O princípio do prazer seria um Eras puro. Mas Freud nota que o
princípio do prazer é vinculado a um para além do princípio do prazer.
Não é tudo o que é bom- como diria Aristóteles- que atrai o homem;
há coisas que fazem mal a ele e igualmente o atraem.
Voltemos a nosso esquema anterior em que situamos o ob-
jeto a na intercessão de Eras e pulsão de morte. Para a melancolia
proponho este outro esquema, onde está marcado a desvinculação
de Eras e pulsão de morte, uma vez que na melancolia há um
desintricamento ou uma defusão das pulsões.

Pulsão de morte

I \ Pulsão de

o
Em
morte

152
AntonioQuinei

Encontramos o sujeito identificado a este objeto que se si-


tua lá onde reina o silêncio da pulsão de morte. É esta a situação
estrutural do melancólico que faz com que não só ele fique calado,
mas até petrificado, o que se expressa até corporalmente, pois seu
metabolismo abaixa, ele pode chegar a não evacuar ou urinar. O
delirio do melancólico é paupérrimo, tende ao silêncio e o sujeito
tende à mortificação, à cadaverização. Não há mais a pulsação da
vida porque Eros se retraiu. Assim, o sujeito melancólico pode ten-
der à negação até de seu corpo, como aparece no delirio das nega-
ções descrito por Cottard. O melancólico se sente como um
rebotalho, um excluído do simbólico, uma vez que Eros está do
lado da vida, da cultura, da cadeia significante, da linguagem, o que
corresponde ao simbólico.
Nesse esquema temos a posição estrutural do melancóli-
co. Do lado direito há o polo melancólico: o sujeito identificado
com o objeto e entregue ao gozo masoquista. Do lado esquerdo,
ou seja, do lado de Eros em que está excluído o objeto, temos o
polo maníaco. O maníaco, não tendo o lastro do objeto a, fica à
deriva da cadeia significante. "O sujeito"- diz Lacan no Seminá-
rio: a angtÍstia- "não é mais lastreado por nenhum objeto, o que
o deixa entregue às vezes - e sem nenhuma possibilidade de
liberdade - à metonínia infinita e lúdica pura da cadeia
significante".
Ele apresenta então a fuga de idéias, o desvario da
metonímia e um "tudo pode", pois quando o sujeito se encontra
no simbólico sem a marca desse objeto como falta, ele apreende
um simbólico em sua totalidade, em que todas as combinatórias
são possíveis. Na mania vemos de uma forma muito evidenciada
o inconsciente à céu aberto, que aparece na fuga de idéias, nas asso-
ciações por assonância. Há portanto os dois pólos, melancólico e
maníaco, e uma só estrutura: a melancolia.

153
A Dor de E xiitir

Que destino para o complexo melancólico?

Para decidirmos se realmente este esquema nos ajuda a com-


preender o que acontece na melancolia, resta a saber o que acontece
nos intervalos lúcidos da PMD. Aqui o sujeito não se encontra no
pólo melancólico nem no pólo maníaco, mas não deixa de ser me-
lancólico. Como poderíamos pensar isso? O que colaria Eros e pulsão
de morte, fazendo de alguma forma um arremate? Sabemos que o
que permite esta articulação na neurose é o Nome-do-Pai. E aqui
onde não há Nome-do-Pai, o que funcionaria como cola?
Eliane Schermann - Seria uma imagem? É como se fosse
o processo inverso. No caso da neurose, o I(A) sustenta i(a). Na
foraclusão do Nome-do-Pai, nesse caso que você está falando, po-
deríamos pensar que o i(a) sustentaria o sujeito frente a esse buraco?
Antonio Quinet - Ai teríamos uma suplência imaginária, o
que vai um pouco no sentido de Freud, quando fala do reinvestimento
da imagem narcísica que aparece na mania. Haveria então uma re-
composição do imaginário nesses intervalos lúcidos, nos quais o
sujeito não se encontra na mania nem na melancolia. Podemos pen-
sar aí numa suplência. Temos que ver caso a caso, para ver como
isso funciona. Será que uma suplência imaginária é suficiente, ou é
preciso também uma suplência ao nível do significante que viesse
no lugar desse Sl perdido? Teríamos que ver a cada caso qual o
recurso que o sujeito encontra diante desse buraco da foraclusão do
Nome-do-Pai. Será que o deürio é uma tentativa de unificar? Ora,
temos os intervalos lúcidos mas ao mesmo tempo temos o delicio, que
também ocorre na melancolia. Será que o deürio na melancolia - por
menor que ele seja - tem a mesma função do delicio na paranóia?
Freud diz que o deürio é uma tentativa de reconstrução que
se expressa como uma tentativa de explicação do que ocorre com o
sujeito. Freud chega a falar em reconstrução do mundo, porque o
deürio é o que vai dar a forma imaginária, ficcional- como o mito-

154
,....
Antonio Quinei

do que se opera na estrutura. Na melancolia, mais do que nunca,


vamos encontrar um delírio que permite situar o sujeito tanto num
pólo quanto no outro. O delírio reconstitui um Outro para o sujeito,
0 que é a função de qualquer delírio. Na melancolia vamos encon-
trar o Outro do tribunal como um versão do supereu. Ai aparecerão
as idéias de culpa, ruína e perseguição, pois não podemos imaginar
que o melancólico não seja um perseguido pois se encontra na espe-
ra delirante de punição. Desta forma, o melancólico faz ficção do
supereu, o que demostra aquele aforismo de Lasegue: "O melancó-
lico é um indiciado, enquanto o paranóico é um condenado". O
paranóico se sente perseguido por algo que ele não fez, ele foi con-
denado injustamente, toda culpa cabe ao Outro. Ele é sempre um
réu inocente. O paranóico não. é um resignado como o melancólico
que acata inteiramente sua situação de indiciado. Este tem aquela
humildade, sobre a qual Freud chama a atenção, e da qual não tem a
menor vergonha.
A espera ansiosa de castigo revela a própria estrutura do
supereu. ''Antes terminar com isso o mais rápido possível" dizia
uma melancólica referida por Séglas, porque ela está diante de um
tribunal e pronta para caminhar para o cadafalso. Em seu delírio, o
melancólico é o centro por ser a origem de todo o mal. Daí o delírio
ser considerado centrífugo: o melancólico, diferentemente do para-
nóico, se considera nocivo ao Outro. No delírio paranóico, o Outro
é nocivo para o sujeito. Ambos os delírios revelam esse lugar do
sujeito como causa: o melancólico é a causa do mal e o paranóico é
perseguido por ser alguém especial, e é por isso que ele está sendo
injustamente acusado. Encontramos assim no paranóico a mania de
grandeza, descrita por Freud como a quarta forma de negação deliran-
te, e encontramos traços do paranóico no maníaco: a megalomania.
Não é impossível vermos a auto-acusação transformar-se
em hetero-acusação, assim como não é impossível encontrarmos
traços de perseguição no melancólico. Acho mais difícil encontrar-

155
A Dor de Existir

mos traços de auto-acusação no paranóico do que encontrarmos no


melancólico traços de acusação do Outro.
Colette Soler diz que há uma oposição entre o melancólico
e o paranóico, já notada por Freud desde o início: na melancolia o
fenômeno é da ordem do afeto, enquanto na paranóia o fenômeno
se encontra no âmbito do pensamento. Realmente, em seus textos
iniciais vemos Freud enfatizar na melancolia este aspecto do humor,
seguindo a tendência da psiquiatria. Resta saber se a paranoização
pode ser uma direção de tratamento para a melancolia, tal como
ocorre no caso da esquizofrenia. Lacan na Introdução à tradução alemã dos
Escritos diz que o paranóico identifica o gozo no lugar do Outro, o que
é diferente do melancólico que localiza o gozo em si mesmo. O gozo se
concentra no "complexo melancólico" que gira em torno do Selbst.
Eis algumas coordenadas para pensarmos a clinica diferen-
cial da depressão no âmbito da psicose.

Rio de Janeiro, 3 de abril de 1997

NOTAS

1. Três primeiras aulas do Seminário A clínico do s;!Jeito na depressão profe-


rido no primeiro semestre de 1997 na Escola brasileira de Psicanálise -
Rio de Janeiro. Transcrição de Elisa Monteiro, copidesque de Vera Ribeiro.
Texto revisado pelo autor.

156
GAIO SABER E TRISTE VERDADE

Serge Cottet
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

Assim como nem toda verdade é boa de dizer, nem sempre


é a ocasião de se rejui)il~; com sua manifestação.
Nietzsche profetizava com seu "crepúsculo dos ídolos" o
advento de um gaio saber despojado do fardo da verdade. Mas se a
nova filosofia operava uma transmutação, isto não poderia ocorrer
senão de maneira dolorosa: a golpes de martelo. "A ftlosofia com
efeito- acrescenta- é feita para entristecer. Até aqui, ela não entris-
teceu ninguém".
Mutatis mutandis, uma reflexão semelhante concerne à psica-
nálise. Ela também tem seu crepúsculo dos ídolos: a fórmula geral
poderia ser o des-ser do Outro e os afetos que ele engendra. É preci-
so dizer que a psicanálise sublinha uma certa duplicidade em relação
à tristeza; de um lado ela acusa os afetos tristes de, de complacência,
e de outro ela deixa cair os semblantes, aqueles que tornam os imbecis
felizes. Ela desespera os adepto~ dos futuros que cantam. Isto não é
dizer que ela torne infeliz, mas a infelicidade do ser faz parte da experi-
ência: até que ponto, quando, como, é o que é preciso examinar.
Pode-se dizer que o afeto depressivo "existe à" psicanálise,
isto é, não sem ela. Assim, a psicanálise não é somente "a explica-
ção" da tristeza, mas ao mesmo tempo a sua causa ou sua refutação.
O que também é preciso ex~minar.
A Dor de Existir

Um pouco de história primeiro. Contrariamente a uma opi-


nião muito difundida, a psicanálise está muito à vontade sobre a
questão da depressão. É um afeto familiar, logo isolado por Freud.
Não como sintoma, é verdade, mas como signo sensível, visível,
observável de um afeto. Quanto a seu sentido o afeto depressivo é
ambíguo, mas não deixa nenhuma dúvida quanto a sua causa. Freud
usa este afeto como argumento em favor da existência da causalida-
de psíquica, do que chama na década de 1890 de 'tratamento da
alma'- Seelenbehandlung (1984, p. 1).
O jovem Freud foi apaixonado pelos estados de tristeza
porque eles provam a onipotência do mental sobre o corpo, e por-
tanto o poder do tratamento psíquico. Freud se interessa pela ori-
gem dos cabelos brancos, pelos cansaços nervosos, pela neurastenia,
pelas lágrimas imotivadas, e é em uma perspectiva transpsicológica,
antes darwiniana, que se interessa pela expressão das emoções. O
afeto depressivo não é um tipo clínico porque não se pode, por
exemplo, tomar as lágrimas como doença, como não se toma por
histérico o cachorro que abana a cauda. Assim, os afetos de tristeza
ou de alegria revelados por seus signos são induzidos da observa-
ção, ao passo que o sujeito afetado nem sempre sabe a causa do que
o afeta. Este hiato previne contra todo "vivido depressivo".
Além disso, Freud considera que estes estados, aos quais ele
mesmo está sujeito (cf. Cartas a Fliess), pertencem ao quadro de todas as
neuroses, como o estabelece nos seus Études sur !'I!Jstérie (1971, p. 72).
Portanto, é curioso constatar hoje que o DSM IV acredita
poder i:;olar sua "síndrome depressiva maior" sob o pretexto de que
os signos são objetiváveis, e mesmo mensuráveis, quantificáveis, quan-
to à intensidade. Enquanto Freud queria decifrá-los, e não cifrá-los,
o DSMIV toma seus itens como prova de um mais além da causalida-
de psíquica. É tomar o signo pela doença, a febre pela infecção.
O certo é que todo afeto depressivo traduz uma retração da
libido, e são estes modos de retração, desligamento, separação,

158
Serge Cottet

recalque e luto que irão fornecer os diferentes sintomas clínicos


provenientes deste afeto. É conhecida, por exemplo, a explicação
freudiana das neuroses ditas atuais a partir de uma concepção
energética da libido. Se esta é desperdiçada, temos a neurastenia; se
não é empregada, a neurose de angústia; se retida, ela engendra fadi-
ga e morosidade. De fato, toda limitação de gozo, toda restrição de
gozo, produz um tal afeto em razão da equação: libido =energia
vital; e então a perda de libido implica efeitos de mortificação. É
claro que este ponto de vista energético e económico será substitu-
ído pelo conflito inconsciente, a libido do eu, a pulsão de morte.
Entretanto, permanecerá sempre algo deste vazio, deste buraco que
corresponde a um resto de gozo sem uso, não saturado pelo Outro.
Se ficamos nesta perspectiva transpsicológica, isto é, além
dos estados de espírito, somos levados a esta clínica do vazio ou às
modalidades da experiência do vazio. O que esta metáfora encobre
exatamente, mesmo que o DSM IV tome este significante como um
negócio certo, como se ele próprio se significasse? Nenhuma distin-
ção é feita entre a experiência crepuscular das psicoses e os diferen-
tes sentimentos de falta no sujeito neurótico.
Comecemos então pela psicose que dá a esta clínica do va-
zio ou do buraco um peso de real que justamente suspende toda
tradução metafórica, toda tradução em termos de sentimentos. Te-
mos uma percepção desta clínica no início do século; existe de fato
toda uma clínica do vazio, os sentimentos de vazio que balizam di-
ferentes etapas e diferentes estados psíquicos que vão, para citar
Janet, "da angústia ao êxtase" (1975), e antes de chegar à etapa ter-
minal das beatitudes. Passamos também pelos célebres estados
psicastênicos como a inquietação, o tédio, "os estados de desafecções
depressivas e das fadigas", ou como se dizia na época os delírios de
inação, refreamento etc. Encontra-se, bem entendido, o delírio me-
lancólico e os estados crepusculares, notadamente as célebres expo-
sições de Cotard (1904) e de Séglas sobre os sentimentos de
irrealidade e de fim do mundo. Várias espécies de vazios são distin-

159
A Dor de ExiJtir

guidos: um vazio engendrando uma tristeza sem afeto oposto ao tédio


que não é morte do desejo, mas desejo de se distrair (1975, p. 146).
Em suma, temos a oportunidade de colocar em evidência
uma clinica do vazio oposta a uma clinica da falta. O DSM IV tacita-
mente especula sobre esta diferença, ao considerar a existência de
estados depressivos sem culpa, sem estado de espírito e sem a dor
própria do luto. Querem nos fazer crer que trata-se de uma entidade
independente ou intermediária entre o luto e a melancolia, nem neu-
rose nem psicose. Na realidade, esta clinica do vazio que inclui o
vazio dos sentimehtos nada mais é que a clinica da psicose, e especi-
almente da psicose melancólica.
Uma doente de Janet denuncia a impostura de seus seme-
lhantes na cerimônia de morte de seu marido. Ele morreu, e ela está
triste mas não de luto; antes, ela está triste por não estar de luto e
disso se acusa (Idem, p. 46). Isto que Janet imputa à perda da função
do real, nós o colocamos ao contrário por conta de uma relação
com o real, da qual o laço simbólico do casamento é evacuado. Como
diz a doente, ela está triste por não estar infeliz como os outros. O
engano está do lado dos pequenos outros. Ela se confronta com o
simples vazio, mas não com a falta. Lembramos que aí está o cerne
de verdade da melancolia para Freud, que não toma a queixa do
melancólico como pura comédia. Falso culpado, é certo; entretanto,
a esta dor de existir não se pode opor argumentos que o contradi-
gam. "Na auto-depreciação, ele tem razão" diz Freud. Sem dúvida,
esta verdade não é toqa. A falta do sujeito é de ter se separado do
Outro 1• Ele não sabe que sua queixa visa o Outro; aí está seu engano
e é a rejeição deste saber que causa sua miséria.
A esta experiência da psicose que nos fornece o modelo
estrutural da depressão oponhamos os estados de espírito da neuro-
se que assinalam um momento de fechamento do inconsciente, e
não sua rejeição. Tomemos o exemplo de Ferenczi que na sua cor-
respondência com Freud em 1916 faz a análise de seu sintoma

160
Serge Cofiei

depressivo. Ferenczi faz depender palavra por palavra as flutuações de


sua depressão da presença ou ausência de sua futura mulher, Gizella.
Enquanto sua indecisão sobre o casamento está no ápice, ele escreve:
Ontem, domingo à tarde, antes de Madame G chegar, estado de projimda
depressão com insuperável tmdência para chorar( ...). Este sintoma que
se poderia classificar de histérico devo interpretá-lo como sinal de luto:
eram manifestações de sentimentos na ocasião do adeus a Gizei/a" (1996,
p. 178).

Bom observador, notável autoclínico, Ferenczi faz o balan-


ço de seus sintomas, cujo conjunto constitui um fragmento de anto-
logia digno de figurar no DSM IV: taquicardia, tristeza profunda, dis-
túrbios de respiração, fome e sede insaciáveis, desgosto pelas ativi-
dades intelectuais. E, é claro, a "libido genital se cala". Para coroar,
surge uma doença de origem tireóidea, a doença de Basedow.
Ao mesmo tempo, Ferenczi constata: "Em companhia de
Gizella e somente dela, melhora o meu humor e sinto outra vez
interesse pela ciência". Alegramo-nos de saber que a libido sciendi e
a libido genital estão no mesmo barco e que o retorno ao desejo
acompanha um desejo de saber. Contudo a flutuação se prolonga.
Ela permite a Ferenczi renovar a doutrina dos estados maníaco-
depressivos. E le diz a Freud: ''Acredito que irá aprovar minha idéia
de relacionar as flutuações do [estado] maníaco-depressivo com a
periodicidade do cio em nossos ancestrais".
A resposta de Freud não será benevolente: ''Você usa a análise
para complicar sua vida e não resolver nada". Com efeito, a transferên-
cia e o inconsciente são usados para tornar a decisão impossível; Ferenczi
quer se livrar sozinho, sem a influência de Freud. Excessivamente en-
ganado pelo inconsciente e não tolo da transferência2, é nos termos da
traição de seu desejo que podemos decifrar seus afetos depressivos,
aqui a expressão lacaniana de covardia moral, e quase aquela de Freud.
Este resiste às confusões do inconsciente e da interpretação selvagem
para encostar Ferenczi na parede de seu desejo. Ele o empurra ao ato, à
decisão, em uma perspectiva ainda transpsicológica.

161
A Dor de Existir

Voltemos a nosso assunto fundamental: toda tristeza é uma


c~vardia moral? Toda dor moral é um gozo? Observemos que esta-
=
ríamos errados em escrever: dor gozo, sem distinção, seriação,
discriminação, porque para justificá-la é preciso admitir que a pulsão
vem sempre ao encontro do que no real faz buraco: demanda de
morte, satisfação masoquista, complacência do deleite depressivo.
Acontece que o Outro se ausenta e que a experiência psicanalítica
atesta que sua falta é também abandono e covardia. Isso porque
para o inconsciente o Outro é culpado. Ao contrário, a rejeição do
inconsciente na melancolia induz uma culpa delirante cuja queixa
faz o gozo.
É hora de tirar vantagem uma vez mais da oposição entre
luto e melancolia. A dor do luto certamente contém uma zona de
desconhecimento: é a própria falta que éramos para o ser desapare-
cido. Todavia, a "separação" elevada ao conceito psicanalítico não é
inautêntica, pois é a realidade - e não a pulsão - que comanda a
separação da libido dos significantes ligados a seu objeto. Não há
razão para confundir um trabalho doloroso com o recalque de um
saber que se refere ao que nos falta.
Os lutos patológicos testemunham essa impossibilidade de
separar a perda de um objeto da falta radical do Outro, e não é por
acaso que esses lutos patológicos concernem principal e notoria-
mente a morte real do pai, como Lacan observa em Os complexos
familiares (1984[1938]), e Freud exemplifica com a pintura de
Heinzman ou com a tristeza recorrente nos contos de Hoffmann.
Portanto, a sujeira daquele que nos deixou antes faz valer a traição
irreparável do Outro que o sujeito se esforça em superar por um
trabalho. Enfim, o luto é um trabalho como a análise. Como sabe-
mos, esta analogia foi desenvolvida por Melanie Klein, e
reinterpretada por Lacan como luto do falo no final de análise. Este
caráter irreparável da separação - aí contrariamente ao que sustenta
Melaine Klein - dá seu fundamento estrutural à depressão.

162
S erge Coitei

É então útil não confundir o afeto depressivo com a paixão


do narcisismo por um lado, e os fenômenos de des-ser por outro, a
saber os sinais onde a existência do Outro vacila. Pode-se dizer que
o luto testemunha um momento de verdade, verdade fatal, no senti-
do de o sujeito fazer a experiência do lugar que tinha para o Outro.
Como Hamlet diante do corpo de Ofélia, o sujeito realiza que era
sua falta, a falta do Outro, e assim identifica seu próprio vazio com
o vazio do Outro. Ele era sua falta e agora se identifica a este buraco.
A clínica da separação faz valer a estratégia do sujeito: como
fazer de seu próprio vazio um efeito ou uma modalidade da falta no
Outro, como operar uma dialética do recobrimento de dois vazios
para relançar o desejo no lugar em que o sujeito se identifica ao
vazio do Outro, como na melancolia.
Jacques-Alain Miller desenvolveu em um de seus seminári-
os esta dialética do recobrimento de duas faltas para dar seu funda-
mento lógico ao conceito de separação. Certamente podemos tirar
daí muitas conseqüências para a fenomenologia dos estados
depressivos (cf. Morel, s/d, p. 5).
De maneira geral, se quisermos distinguir uma tristeza au-
têntica ou momento de verdade dos outros estados de espírito, dos
quais mostramos as ligações com um desconhecimento do real, en-
tão é toda uma dialética do vazio do sujeito em sua relação com o
vazio do Outro que deve ser considerada.

NOTAS

1. N do T No original: La faute du sujei est d'avoir ptis congé de I'Autre. A palavra


faute poderia ser traduzida tanto por falta como por erro e a expressão prendre
congé significa despedir-se, dizer adeus. Assim, parece-nos possível sublinhar uma
certa intencionalidade na ação referida pelo autor, que estaria ligada a um
possível erro.
2. No original: Trop dupe de l'inconsdent et notl dupe du tranfert...

163
A Dor de Existir

Referências bibliográficas

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JANET P., De l'angoisse à l'extase: étudu SJir lu cr<!Jatlces et les sentimmts. Paris,
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MOREL G., Lettn mensuelle, n. 152. École de la Cause Freudienne.

* Tradução do francês - Maria Luiza Duret


* Revisão da tradução - Alfredo Chaves, correspondente da Escola Brasileira de
Psicanálise

164
UM MAIS DE MELANCOLIA

Colette Soler
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

A querela da depressão

Existe uma querela da depressão. Aliás, ela envolve uma


querela mais ampla entre a psicanálise e uma psiquiatria que, em
nome de uma abordagem pretensamente científica, procede cada
vez mais a foraclusão do sujeito. Este debate já data de alguns anos,
e nele não partimos do zero. Contra uma psiquiatria que se crê tão
moderna quanto sua farmacopéia porque ratifica tudo o que prega o
empirismo mais desusado, e que curto-circuita a dimensão do sujei-
to ali mesmo onde é dele que se trata, denunciamos, com justa ra-
zão, ao mesmo tempo a "impropriedade conceituai" do termo e a
inconsistência dos fenômenos que ele é suposto subsumir. Esta con-
clusão é unânime nos trabalhos que, em nosso campo, foram con-
sagrados a este tema durante os dez últimos anos. Considero esta
conclusão adquirida. A depressão no singular simplesmente não
existe. Sem dúvida, existem estados depressivos que podem serdes-
critos, recenseados, mas seus graus e variações desafiam a .unifica-
ção do conceito. Podemos dizer: a psicose, a obsessão, a histeria etc.
Não podemos dizer: a depressão. E nem mesmo as depressões, como
diríamos as perversões, por falta de podermos descrever tipos que
tenham alguma consistência. Quand0 muito podemos isolar na va-
riedade dos fenômenos a consistência da psicose melancólica, mas
sob a condição de não reduzi-la ao humor triste.
A Dor de Existir

Alguns dados novos devem no entanto ser levados em con-


ta. Só há fato de ser dito, afirmava Jacques Lacan. Tendo isso em
conta, não podemos duvidar que os fatos de depressão venham se
multiplicando na civilização do mal-estar. Deplora-se, denuncia-se,
mas ele está aí. O "se" que eu aqui menciono é o da omnitude sempre
animada de nostalgia e que sonha com épocas outras, mais heróicas
ou mais estóicas, em todo caso mais palpitantes. Mas o fato está aí.
Duplamente: como queixa dos sujeitos, e como diagnóstico que da
parte dos médicos e psiquiatras a tudo responde. A crítica desta
nova voga já está feita, mas lamentavalmente ela não tem nenhuma
chance de deter o fenômeno. Mesmo o psicanalista está implicado,
pois a queixa que lhe endereçam formula-se cada vez mais
freqüentemente no vocabulário da depressão, que ao mesmo tempo
motiva a demanda e - também freqüentemente - faz objeção à re-
gra do bem-dizer. Insiste-se de bom grado sobre o caráter induzido
desta nova língua. O argumento é pertinente - quanto mais se diag-
nosticar deprimidos em nome do saber suposto do médico, mais
haverá sujeitos que se dirão deprimidos - porém vão e não
discriminativo. Não é este de fato o caso geral? Excetuando-se a
invenção, não falamos todos uma língua do Outro que, aliás, induzi-
mos do mesmo modo, já que deste Outro o sujeito recebe "sua
própria mensagem sob uma forma invertida?"
A verdade é que nós psicanalistas não podemos mais falar a
língua dos psiquiatras de hoje, apesar de nossas categorias
diagnósticas virem dos psiquiatras clássicos.
Os tipos de sintomas dos quais continuamos a falar, a exem-
plo de Freud e de Lacan, histeria, obsessão, fobia, perversões, para-
nóia, esquizofrenia, melancolia, mania etc., foram descritos pela psi-
quiatria do início do século. Nem Freud nem Lacan recusaram sua
pertinência, um e outro reconhecendo a consistência desses tipos.
Quanto a Freud, o final do capítulo 17 de Introdução à Psicanálise,
intitulado O smtido dos sintomas, é claramente instrutivo sobre este
ponto. Para além da interpretação pelo sentido histórico e singular,

166
Coktte S oler

ele se interroga sobre a interpretação a ser dada ao fato de que há


tipos de sintomas. Ele não vê senão o recurso às experiências-tipo
da humanidade, a ftlogênese, para dar conta deles. Esta referência
obscura tornou-se supérflua com a introdução da estrutura, que uma
outra introdução evoca, a da edição alemã dos Escritos, onde Lacan
afirma que os tipos clínicos, apesar de serem anteriores ao discurso
analítico, não deixam por isso de concernir à estrutura. Esta refe-
rência à estrutura por si só permite conceber simultaneamente a
consistência dos fenômenos descritos pela psiquiatria clássica e o
que se constata também por outras vias, a saber: os sintomas mu-
dam, mudaram, eles são, como diz Lacan por neologismo calculado,
"hystoricos" 1 • Históricos em suas manifestações porque eles são
função da língua e do discurso do tempo, mas transhistóricos em
sua estrutura. Este último fator por si só dispensa-nos de refazer o
vocabulário a cada virada da história, ao mesmo tempo que nos
impõe reconhecer a mesma estrutura sob quadros que mudam.
Essa inconsistência da noção de depressão não é, evidente-
mente, uma razão para que os fenômenos depressivos desencorajem
a reflexão. Eles devem ser incluídos no conjunto compósito dos sofri-
mentos que se endereça ao psicanalista. Reencontramo-los também sob
transferência, no decurso da análise e até sua fase final. Freud com o
obstáculo das graves depressões de certos sujeitos femininos em
fim de tratamento e Lacan assimilando o momento de passe a uma
posição depressiva são testemunhas que não recuaram diante do fenô-
meno, estando todo problema em saber a cada ocorrência a que estru-
tura ou a que causa ele se refere (cf. Cottet, 1985, p. 68-86).

Sinal do tempo

Questiona-se sobre o que o fenômeno deve à época. Esta


certamente registra a emergência de um novo discurso sobre a de-
pressão. A multiplicação dos deprimidos é o tema maior,

167
A Dor de Exiftir

diagnosticada como um sinal dos tempos, um sintoma custoso que


se interpõe ao funcionamento, e, para retomar o termo freudiano,
como uma hemorragia de energia e de dinheiro que onera a socieda-
de e desafia as políticas de saúde.
Estes novos doentes não procedem de nenhuma geração
espontânea. É bem evidente, e mesmo banal hoje em dia, referir-se
como causa primeira ao destino próprio do sujeito moderno em
uma civilização condicionada pelo discurso da ciência e pela
mundialização do capitalismo liberal que a ele se seguiu. Com efei-
to, a realidade mudou: estandartização e anonimato super-egóico
dos modos de vida, deterioração dos laços sociais, catástrofes mun-
diais etc. Para os sujeitos a experiência feita da morte do Outro, cuja
derrelição e angústia se desnudaram, deixa-os na falta das antigas
crenças no universal, assim como das grandes causas do passado.
Assim, vimos ingressar na cena literária, de K.afka a Beckett, passan-
do por Pessoa e tantos outros, as novas figuras do non-sens, todos
estes heróis derrisórios tateando em situações de desvario, e sob as
quais revela-se a face oculta daquilo que foi a vitalidade expansiva,
inspirada e conquistadora do poeta americano Walt Whitman no
século precedente.
Nenhuma ética suposta contratual conseguirá estancar o cla-
mor deste desamparo, Hi!flosigkeit, dizia Freud. Bom lógico, o século
seguramente não escreverá "Gõdel e Heidegger com Habermas",
tal como Lacan pôde escrever Kant com Sade. Pois nesta crise dos
semb/ants, onde com certeza o pai vem em primeiro plano, o sujeito
fica desatinado em busca de um novo desejo a abraçar que o liberta-
ria das solitárias satisfações taciturnas da pulsão. D eus não basta
mais, tampouco os mestres do saber. Sem dúvida, pode-se apostar
no retorno dos pequenos deuses e de suas seitas, por menos que a
histeria faça sua parte, ela que não passa sem Outro; mas enquanto
isso há urna lógica no fato de que em um mundo onde os olhos se
abrem a tal ponto que todos os valores caem sob a suspeita de im-

168
Coltltt S oltr

postura, onde o velho utilitarismo de Bentham - tal como relido


por Lacan- encontra um vigor renovado e onde, de fato, o cinismo
generalizado do gozo reina como mestre, há uma lógica, dizia eu,
para que em um tal mundo os neuróticos, sempre um pouco "bela
alma", se ... deprimam, eles que uma longa análise nem sempre con-
segue fazer olhar de frente o que Lacan designou como o "saldo
cínico" de toda elaboração 'linguajeira'.

Esses deprimidos de quem não gostamos

É claro que novos recursos apareceram na proporção destas


novas provas, talvez a título de contrapartida. Com o direito à saúde
estendido até o psiquismo, uma legitimação crescente das queixas
subjetivas se fez reconhecer. A psicanálise contribuiu amplamente
para esta legitimação, embora não seja a única a recolher os suspiros.
Poder-se-ia acreditar em alguma vitória da foraclusão da dimensão
própria do sujeito na civilização da ciência. Mas, como por uma
astúcia de uma razão pseudo-científica, com a categoria da depres-
são o aviso de recebimento é doravante recusado em detrimento da
queixa, e por falta de saber ler na deploração dos sujeitos caidos em
desgraça o que ela traz consigo de uma experiência íntima do fim ou
da perda (cf. Laurent, 1996, p. 7), rebatem-na sobre o plano das
supostas disfunções da doença.
Um traço marcante, a meu ver, é que nada no discurso atual
permite atribuir-lhe um valor humanamente positivado. Não esque-
çamos que outras épocas souberam dar sentido, fosse ao preço do
que nos aparece como uma ilusão, às diversas formas de
questionamento da vida. O tema da fé e do apelo a Deus abrigou
muitas aspirações mortíferas, e a piedade sublimada mais de uma
repulsa ao mundo (cf. Biathanato~ de Donne). A idealização român-
tica por sua parte soube absolver as complacências do homem al-
quebrado e os desesperos de amor, chegando mesmo a fazer deles

169
A Dor de Exiitir

uma pose sedutora. Quanto ao gosto mórbido pelo spleen, foi apoi-
ando-se num suposto protesto contra a asneira que ele se autorizou
- não foi, meu caro Baudelaire? - etc. Esses são apenas exemplos
dispersos, tomados do campo da sublimação religiosa ou literária,
mas que permitem- eles próprios- medir curiosamente o quanto o
discurso contemporâneo não quer bem à depressão, ele que dela
tanto fala.
Incapaz de elaborá-la em formas sublimadas, ele a pensa
como um déficit, jamais como um valor. Um defeito em relação à
saúde quando é o médico que fala, mas também como uma falta,
pois não é só o psicanalista que a toma assim: certamente uma falta
moderna contra o obscuro imperativo do otimismo que nossa civi-
lização sustenta, contra o mandamento de "ir em frente", de "en-
frentar" etc. Os próprios sujeitos a percebem em sua dimensão de
demissão e a evocam freqüentemente como uma renúncia a lutar.
Haja visto o "Eu abaixo os braços", evocado a pouco. Com certeza,
há sempre, especialmente graças à histeria, uma forte empatia pelo
sujeito combalido. Admira-se ou inveja-se o homem alegre e dinâ-
mico, mas é raro que ele suscite verdadeiramente a simpatia. Ao
contrário, cede-se mais facilmente ao contágio da tristeza do ho-
mem abatido; a compaixão está sempre pronta a se devotar e a
sustentar.
Entretanto, hoje entre nós o blues não é coletivizante, e uma
civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se
em última análise é somente a do mercado, uma tal civilização não
pode gostar de seus deprimidos, ainda que ela cada vez mais os
engendre a título de doença do discurso capitalista (cf. Cottet, 1985).
Aliás, a empatia que evoquei é muito freqüentemente mitigada, pois
o sujeito que não cede sobre sua depressão irrita e às vezes afugenta
(Winnicott nos diria que de está sob o efeito de uma defesa maníaca!).
Não é só porque ele põe em xeque os esforços mais devotados. É
que ele faz experimentar outra coisa: além da impotência dos argu-
mentos e da inadequação das tentativas de persuasão, quer isso agrade

170
Colei/e S oler

ou não ao cognitivista, ele desvela lateralmente o sem-razão da liga-


ção ao mundo, que no entanto não é sem causa- S(/0- e, testemu-
nhando a contingência radical do que se acredita ser "o sentido" da
vida, solicita ao interlocutor o que Lacan chamou a "junção2 mais
íntima ao sentimento da vida" (1966[1955-56], p. 558). O deprimi-
do inquieta porque, pelo simples fato de sua existência, ele ameaça o
laço social. Donde a reprovação. Ela não é novidade, mas hoje é
unânime, ainda que muito diversamente motivada. As épocas de fer-
vor religioso nela leram um insulto feito à fé, um atentado contra o
laço com o Outro divino, e dela fizeram um pecado. A época mo-
derna vê ai ao mesmo tempo uma doença e uma demissão. Note-
mos que a psicanálise não faz exceção a esta reprovação. Quando
Lacan situa a tristeza como covardia moral, apoiando-se em referên-
cias anteriores à ciência - São Tomás, Dante e ... Spinosa - , certa-
mente está em ruptura com tudo o que disso se diz alhures, mas não
é menos juiz. Donde a necessidade de demarcar o que distingue o
veredicto da psicanálise do veredicto do discurso comum.

Os ditos da depressão

Tal como tudo o que se coloca a seu alcance, os psicanalis-


tas só podem conhecer a depressão pelos ditos do sujeito. O analis-
ta em exercício dela só saberá portanto o que lhe é confiado no
modo atual ou no retrospectivo. É uma via da qual não podemos
esquecer que deixa em suas margens todo um espaço clínico, pois
ela não se encontra com aqueles que passaram do outro lado do
muro da linguagem, recolhidos pela psiquiatria. Refíro-me a esses
estados melancólicos nos quais o sujeito congela-se no silêncio e na
dor petrificada, doravante inacessível a todo apelo do semelhante. A
exemplo de Freud e não menos de Lacan, o psicanalista deve sem
dúvida se instruir nesses casos extremos, até mesmo esclarecê-los
com seu saber, mas eles permanecem fora do alcance do procedi-
mento analítico, que não poderia acolher aqueles que murados em

171
A Dor de ExiJtir

uma dor e uma petrificação sem palavras recusam-se ao exercício da


fala. A tal ponto que poderíamos perguntar se entre a psicanálise e a
consistência dos estados depressivos, ali onde ela existe - e supon-
do que a expressão tenha um sentido-, não há uma relação de ex-
clusão. Entretanto, lá onde esta consistência se fala, fiemo-nos na-
quilo que dela se diz, tanto na psicanálise quanto fora dela.
Parece-me que de muito bom grado rapidamente reduzi-
mos o estado depressivo ao afeto de tristeza. Sem dúvida porque
abordamos a tristeza com a sentença estigmatizante de Lacan: triste-
za, covardia moral. Mas o estado depressivo não se reduz ao afeto
como sentimento. Aquele que diz "Eu estou deprimido" aí im-
plica sem dúvida dor e tristeza, a ponto de um deprimido... ale-
gre ser quase uma contradição, e a sua recíproca não ser verda-
deira. O sujeito desesperado nem sempre está deprimido, e o
deprimido pode estar numa indiferença quanto aos sentimentos.
Prova-o o fato de que se pode falar de um sujeito que jamais
deprimiu, mas não se imagina um homem para quem a palavra
tristeza não teria nenhum sentido e que não poderia referi-la a
nenhuma experiência própria. Há, com efeito, uma tristeza ge-
nérica, o que quer dizer virtualmente inevitável, universal - por
que não -, já que ela toca o estatuto do ser-falante. É assim que
Freud a situa, como o resultado normal de certos avatares da
libido - mesmo se ele tem suas formas patológicas (1964, p.
258). Como efeito de linguagem o sujeito é essencialmente
saturniano (cf. K.libansky, 1989). A tese de Lacan incluindo a
dimensão ética na abordagem da tristeza não o contradiz. Ele
faz de<>te afeto o quinhão específico daquele que se demite de
seu dever "de aí se reencontrar no inconsciente", portanto uma
falt'a, um pecado, "que só se situa a partir do pensamen-
to''(1974, p. 39); mas como, por outro lado, fica excluído que
no inconsciente qualquer um se reencontre por inteiro, faz-se
um lugar para aquilo que do pecado, da tristeza, permaneça para
cada um estruturalmente irredutível.

172
Coltllt S oler

Na afirmação da depressão há de fato sempre mais que a


dimensão do afeto: o sujeito a evoca como uma perda de interesse
ou de capacidade, em fórmulas do tipo: "Eu não tenho mais... força,
coragem, elã etc.", a não ser que seja a vida que lhe pareça não ter
mais sentido, nem gosto, nem preço. É mais do que a tristeza, cujas
palavras são outras. É algo que toca à própria animação do sujeito e
que se repercute infalivelmente ao nível de seus empreendimentos
em efeitos de inércia que, além da coloração dos sentimentos, to-
cam no próprio princípio do interesse e da ação. Poderíamos ser
tentados a concluir que falamos de depressão quando a tristeza pas-
sou ao ato, ao ato de inibir os dinamismos da vontade, mas isso seria
desconhecer que a tristeza é apenas um efeito, e que é preciso pro-
curar alhures a causa desta deflação libidinal que deixa o sujeito
triste e como se estivesse ... "sem mola" 3• Com esta expressão, alíng11a
não registra uma referência implícita à causa? A mesma que encon-
tro em um sujeito que ao sair de uma depressão, qualificada a justo
título de melancólica, testemunhava com uma notável precisão: ''Eu
não sofria, mas tinha perdido meu comando"4, e insistia em não
poder dizê-lo senão com esta expressão inventada por ele. Vê-se
que ela é espantosamente consoante com aquela de Lacan, que dizia
do sujeito melancólico que ele tenta reunir-se a este objeto a "cujo
comando lhe escapa" (1962-63, aula de 3 de julho de 1963). De fato,
na alíngua mais comum o estado depressivo se diz essencialmente
em metáforas corporais. Declina-se em imagens de corpo parado,
imobilizado, que "não dá mais", "não dá para continuar", que "não
dá mais para encarar", que "abaixa os braços" etc. E não se diz "Eu
me retiro" para dizer "Eu renuncio", ao passo que evocamos a dor
através de uma imagem de petrificação e de movimento impedido,
como Lacan havia notado em seu Seminário: a angústia? Todas estas
expressões que se depositam na língua sem dúvida são apenas
rebotalhos das experiências subjetivas, mas por mais degradado que
seja seu poder metafórico, não deixam menos rastro. Último recur-
so da preguiça de bem-dizer, elas são geralmente suplantadas pelas

173
A Dor de Existir

palavras singulares que cada sujeito tira do fundo de si para dizer ao


mesmo tempo a vacuidade e a inércia, pois os ditos da depressão desig-
nam sempre uma interseção onde se conjugam a tristeza e a inibição.

A causa do desejo tomada ao avesso

A psiquiatria de hoje dá enorme importância a essa dimen-


são de inibição, pois ela lhe serve para desconhecer o toque subjeti-
vo em proveito de um suposto déficit do eu (cf. Laurent, 1996). Nós
não a entendemos assim, mas entretanto não há lugar para minimizar
sua dimensão. O próprio Freud via ali um efeito da divisão do sujei-
to e a imputava quer à defesa paralisante contra o retorno do
recalcado, quer às interdições punitivas do supereu e às repartições
dos investimentos que uma e outra comandam (1965, p. 4-5). Ele já
a havia claramente reconhecido como fenômeno do sujeito e a
conectava explicitamente à depressão. É verdade que em sua céle-
bre tríade Inibição, sintoma, angústia, tanto como na retomada que dela
fez Lacan ao longo de seu Seminário: a angzístia, o termo depressão
brilha por sua ausência e... por sua diferença, se ali tentamos alojá-
lo. Com efeito, a tristeza depressiva não é a angústia, o afeto-tipo da
relação a um real inassimilável; ela é ao contrário... "senti-mente" 5
que engana sobre a causa; ela não é tampouco um sintoma - não
tem nem sua estrutura, nem sua consistência - mas antes um estado
do sujeito, submetido a flutuações e compatível com as diferentes
estruturas clínicas. Nem estrutura nem afeto do real, a depressão
participa entretanto das figuras da inibição. É assim, aliás, que Freud
a entendia quando, falando da inibição no final de seu primeiro ca-
pítulo, precisa que "nos estados depressivos" ela é "global" (Idem,
p. 5), cristalizando o conjunto das funções libidinais.
Constatamos a partir daí que os estados depressivos, por
mais variados e flutuantes que sejam, caem contudo sob o golpe de
uma fórmula urútária: suspensão da causa do desejo, a inapetência

174
Colefle S oler

apática e dolorosa que se nomeia depressão encontrando sua condi-


ção estrutural maior na queda de sua eficácia. Assim, falar de de-
pressão não é nada mais que tomar esta causa do desejo pelo avesso,
por seus fracassos ou suas vacilações. Eu noto, aliás, que esta tese
imediatamente explica o que chamo de efeito anti-depressivo da
psicanálise. Por mais limitado que seja, este não é menos patente e
prende-se ao fato que de um pólo ao outro a psicanálise opera pela
causa do desejo. Na entrada em que introduz o sujeito numa
temporalidade de espera que sustenta ou restaura o vetar do desejo,
e também na saída, pois a conclusão por menos que ocorra marca
um mais além da posição depressiva (cf. Soler, 1994, p. 181).
Esta fórmula vale transestruturalmente quer se trate das va-
cilações da causa nas neuroses, quer de sua retirada do jogo na psi-
cose melancólica. De um lado, é a foraclusão própria à psicose e seu
correlato de um gozo como excesso que explicam sua saída do jogo.
Suas formas são múltiplas e nem sempre espetaculares ou patéticas:
da indiferença, da apatia e do apragmatismo os mais discretos - às
vezes, a ponto de confundir-se com o "normal" -, até os mais im-
pressionantes paroxismos da dor e da inércia melancólicas. Do lado
das neuroses são igualmente numerosas as ocasiões nas quais desfa-
lece, por um tempo, o que Lacan chamava "a potência da pura per-
da" (1966[1958c], p. 691). Esta expressão que convoca a eficácia
vital do que Freud referia ao objeto perdido é feita para indicar que
"a morte atualizada na seqüência significante" (1966[1958a] preside
tanto o sentimento da vida e de seus dinamismos quanto suas reca-
ídas depressivas, e que no mesmo golpe estas concernem a conjun-
turas mais contingentes, a situar na junção da relação com o objeto.

Eficácia da castração

Ao perguntarmos se o que deprime é o intolerável da cas-


tração, a resposta só pode ser negativa. Se castração é o nome que

175
A Dor de Existir

damos à perda da coisa engendrada pela linguagem, sem dúvida ela


está sempre implicada no afeto depressivo. Mas se é urna condição
desse afeto, ela está longe de ser sua causa. Podemos mesmo enfatizar
a tese contrária, isto é, a de que a causa do desejo só adquire sua
função a partir da eficácia da castração. "Potência da pura perda",
dizia Lacan. Não seria esta potência que impulsiona e mantém os
dinamismos de todo tipo, as conquistas e as empreitadas? Não seria
ela que, deste modo, dá ao sujeito já morto do significante a vitalida-
de anômala e paradoxal de um desejo decidido? Se há um afeto
próprio da castração, ele não é de fato a depressão, mas sim a angús-
tia e mesmo o horror, o que é bem diferente. Será essa então uma
triste verdade como sugere alíngua? A verdade não é triste. Ela é
horrível, desumana, e o horror não deprime, antes desperta. Pode-
se assim conceber que urna análise que longe de resolver a castra-
ção, a reproduz ("assunção da castração", dizia Lacan em um dado
momento no vocabulário da transformação do sujeito, e mais tarde
em termos de lógica, instauração da função proposicional <I>x); re-
tomando, pode-se assim conceber que uma análise realmente resol-
va o que eu vou chamar de tentações depressivas, e que ela consiga
às vezes invertê-las em efeito de entusiasmo, e sem que seja necessá-
rio fazer uso de exortações ou de outro tipo de sugestão.
A depressão não é diretamente produzida pela castração,
talvez nosso único universal, mas pelas soluções singulares que cada
sujeito traz para lidar com ela, e que variam em função das contin-
gências mas sempre implicam a dimensão ética. Neste sentido, a
expressão que evoca o sujeito como "estruturalmente deprimido",
subentendido aí um efeito da castração, carece de precisão. Seria
mais justo dizer "estruturalmente deprimivel", pois a depressão sur-
ge sempre em função dos avatares da junção com o objeto.
A cünica da causa como articulação entre a falta da castra-
ção e o objeto mais-de-gozar que responde a esta falta desenvolve-
se entre dois marcos. Num extremo, a castração funda a potência

176
Co!ttlt S oler

desejante, erigindo o objeto em sua potência agalmática. É o caso,


ilustrado por Lacan porém bem distante de nós, de Alcibíades, o
"desejante por excelência" (1966[1960], p. 826), para quem a castra-
ção está incluída no objeto: a/-<p. No outro extremo, encontra-se o
apagar das luzes, a perda da relação com o mundo, a estase do ser
petrificado do melancólico que se tornou ele próprio o objeto rejei-
tado, encarnando um gozo fora da referência fálica: a /fbo. Entre os
dois, todos os fenômenos ambíguos da neurose. Considero ambí-
guos porque os estados depressivos do sujeito neurótico são tam-
bém figuras do desejo: aquilo que resta quando, desintricando-se da
pulsão, daquilo que Lacan designa como sua alma pesada, ele se
desprende dos "brotos vivazes da tendência ferida" (1966[1958a]),
e tende a reduzir-se a sua instância negativa. É isso que o sujeito
denuncia através de sua inapetência morosa, ao renunciar a todos os
mais-de-gozar atualizados, e isso mesmo quando, como se diz, "ele
tem tudo para ser feliz". Não se trata do grau zero do desejo mas
sim de sua redução mais ou menos realizada ao fundamento do - <p
da castração. O sujeito neste estado goza de algo, pois sua rejeição
das ofertas da vida fomenta a utopia vazia desse nada que é a outra
coisa que não existe, e do qual Paul Claudel em O sapatinho de cetim
diz maravilhosamente: "E não é nada além desse nada que libera de
tudo?" E não seria esse nada, com efeito, que permite ao sujeito
gozar da consistência, digamos, a-corporal da castração - que pode
se escrever: (-q> = a)? Da histeria à obsessão as formas certamente
diferem, não excluindo, além disto, todos os modos de conjugação
com os prazeres tristes do auto-erotismo, ou mesmo os gozos taci-
turnos da pulsão. O que importa aqui, entretanto, é a curva do con-
junto onde se repartem os fenômenos. Do desejo conquistador ao
desejo abolido do melancólico, passando pelo desejo problemático
ou duvidoso da neurose, o amor do objeto, o ódio de si e o investi-
mento narcísico de si ordenam-se neste registro. A articulação com
o gozo evidentemente se impõe: desde que o desejo é ele próprio
uma defesa, ali onde ele cai, o gozo sobe. Então, é exato dizer tam-

177
A Dor de Existir

bém que o estado depressivo é um modo de gozo, mas a fórmula só


será operatória se conseguirmos em cada caso fornecer as coorde-
nadas singulares deste gozo.

Clínica diferencial

Circula uma tese que diz que as mulheres ficariam mais


freqüentemente deprimidas. As estatísticas mais recentes pretendem
constatá-lo, mesmo que para a psicose maníaco-depressiva não re-
gistrem nenhuma variação significativa do homem à mulher. Este
último ponto não nos surpreende se consideramos que o império
da foraclusão desconhece a fronteira dos sexos. Quanto ao primeiro
os psicanalistas, que não confiam muito em estatísticas, poderiam
negligenciá-lo vendo aí somente um artefato. Com efeito, atualmen-
te debita-se a queixa na conta da depressão. Ora, a propensão à
queixa assim como a tolerância que a acolhe variam em função dos
sexos. As mulheres se queixam mais facilmente que os homens por-
que a confissão das fraquezas do ser, de sua tristeza, de sua dor, de
seu desencorajamento, enfim, de tudo aquilo que pode abater seu
elã e sua combatividade, é mais compaóvel com as identificações
standard da feminilidade que com os ideais da virilidade. Mais ainda:
a própria queixa feminiza, a ponto de aprender-se a contê-la do lado
masculino, ao passo que do lado feminino nada objeta a seu uso,
colocando-se mesmo a serviço da arte de agradar.
"Um arzinho de dúvida e de melancolia, você sabe Ninon,
deixa-te bem mais bonita", já dizia Musset em uma provocação.
Entretanto, não podeóamos esquecer que Freud, conectando
a depressão da mulher a sua posição com relação à castração, faz da
inveja do pênis um fator predisponente. Conhecemos o itinerário
impressionante que ele descreve à luz de sua experiência com a trans-
ferência. Este inicia-se com a inveja e a reivindicação, prossegue

178
Cole/te S oler

com a espera do substituto, e termina na depressão grave por deses-


pero diante do impossível - note-se, aliás, a homologia entre estas
três fases e os três tempos da erotomania descritos logo em seguida
por uma determinada psiquiatria. A constatação empírica, fora da
transferência, parece ir neste mesmo sentido. Parece mesmo admi-
tir-se, de bom grado, que os sentimentos de inferioridade, de me-
nos-valia, o déficit da auto-estima - como se diz hoje em dia - tão
propícios ao estado depressivo, sejam mais freqüentes nas mulhe-
res, estando aliás bem de acordo com a inveja. Esta, com efeito, dá
vida às experiências de impotência próprias a todo sujeito no regis-
tro da comparação desvalorizadora que imagina que outros estão
menos expostos a esta experiência. A questão obviamente não é
estatística. Trata-se de saber o que poderia fundar esta dissimetria.
Porque os "sustentáculos do desejo", os homens, seriam menos su-
jeitos ao estado depressivo que os "apelantes 6 do sexo" (1966[1958],
p. 736), as mulheres?
Posto que está em questão a causa do desejo, procuremos a
resposta nos sofrimentos do amor, que poderiam programar para as
mulheres lutos que não encontram equivalente no homem. Refiro-
me aqui ao amor sexuado, deixando de lado o amor endereçado à
criança. Este também comporta seu quinhão de preocupações, de
sofrimentos e de renúncias, mas na verdade acredito que ele ator-
mente mais do que deprima.
Sempre se soube que o amor é o tratamento espontâneo,
quase natural, da tristeza e do abatimento. Os afetos de plenitude e
de alegria que ele suscita opõem-se termo a termo aos sentimentos
de tristeza e de vacuidade que assinalam a posição depressiva. Exis-
te quanto a esta questão uma curiosa dissimetria de um sexo a outro,
claramente homóloga à dissimetria que se observa com relação à
homossexualidade: a do homem diz respeito principalmente aos
impasses do desejo, ao passo que a da mulher engendra-se a partir
da falta do amor. Tomarei a questão a partir daí.

179
A Dor de Existir

Tormento 7 feminino

Freud reconheceu o valor fálico do amor estabelecendo uma


equivalência entre a angústia de castração, própria do homem, e a
angústia de perder o amor, própria da mulher. Entretanto, são as
fórmulas de Lacan distinguindo entre o ser e o ter fálicos que per-
mitem orientar-se quanto a esta questão. Formulemos a dissimetria:
o ser fálico, única identificação que apóia o ser-mulher, sustenta-se
no amor. Não é o caso do homem, cuja virilidade afirma-se na di-
mensão do ter, através da potência sexual e de suas múltiplas
metonimias. O ser-mulher sustenta-se duplamente do amor: enquanto
o "ser amada" vale por "ser o falo" (acabo de lembrá-lo), e também
enquanto só amamos a partir de nossa própria falta. Podemos dizer,
portanto: o amor, feminino. Isto, aliás, é o que leva Lacan a afirmar,
em uma fórmula tanto mais provocante quanto perfeitamente rigo-
rosa, que quando um homem ama, o que também ocorre, é claro, ele
o faz como mulher. Em outras palavras, ele ama como sujeito à
falta, pois quanto ao seu ser-homem acontece, ao contrário, que ele
não entende nada do amor - tudo o indica - porque seu "seu gozo
lhe basta" (1973-74, aula de 12 de fevereiro de 1974). As mulheres
amam então, mas porque chamam o amor. O amor é chamado por-
que ele é dom, enquanto o desejo é conquista. Comprendemos a
partir daí o efeito anti-depressivo do encontro amoroso que, apesar
de comportar o corpo-a-corpo, não se reduz a ele, pois o amor en-
dereça-se ao dizer, operando o enigmático reconhecimento de dois
inconscientes (cf. Lacan, 1975[1972-73]). Infelizmente, como se sabe,
o amor é fortuito e além do mais efêmero. Razão pela qual, aliás, ele
aspira a não cessar de se escrever, a elevar-se ao necessário. Excitan-
te quando ganha-se no encontro, o amor é também deprimente quan-
do se perde, e, colocando a causa do desejo no Outro, deixa o sujei-
to à mercê dos caprichos de sua resposta, como que ameaçado de
ausência. Esta alienação vale também para o homem, é claro, com a
diferença que seu ser se sustenta de outra coisa que não o amor,

180
Cole/te Soler

digamos, de seu desejo (Lacan o diz de maneira bem mais crua). As


mulheres fazem mais freqüentemente do amor uma causa, e quando
ele falha por contingência ou por um fato de civilização - pois o
amor encontra-se atualmente em crise-, elas ficam em falta de cau-
sa. Pior: o amor, quando não se furta, esquiva pode por sua própria
presença arrasar o sujeito sob o peso de um Outro tanto mais esma-
gador quanto a causa do desejo for a ele remetida. Freud o reconhe-
ce sublinhando que o amor e a melancolia são dois casos de "esma-
gamento pelo objeto". Lacan por sua vez não recua diante disto, e
em seu Seminário: os escritos técnicos de Freud afirma que o amor é um
tipo de suicídio! A dação amorosa, a plenitude e a alegria, com efei-
to, encobrem aqui uma entrega ao Outro que pode assumir graus
variados, mas que pode no caso de alguns misticismos, por exem-
plo, ir até a extrema abolição voluntária. Assim, quer ele se preste a,
quer ele se furte de, o amor sempre programa algum desencanta-
mento, e entregando-se a ele cada mulher será sempre um pouco ...
viúva! As conseqüências são variadas quer trate-se do luto agudo
tão freqüente, da deflação a minima da alegria de viver, ou por vezes
de metamorfoses imprevisíveis, tal como este típico voltar-se para o
ter que às vezes transforma ao longo do tempo a jovem amorosa
decepcionada em áspera megera! Ah! Quem poderá nos falar dos
motivos de algumas avarezas femininas, a deEugénie Grandetde Balzac
ou da Tristana de Buõuel, por exemplo?

Um nada de tristeza

Só evoquei até aqui os efeitos do amor e de suas conseqüên-


cias ao nível da identificação fálica do ser. Entretanto, devemos tam-
bém referi-los ao campo do gozo. Neste sentido, Lacan estabeleceu
uma articulação precisa que conecta o insaciável do amor e a não-
relação sexual, assim como a exigência propriarn~nte feminina e seu
estatuto de Outro absoluto, não-toda na função fálica.

181
A Dor de ExiJiir

É notável que no que tange às mulheres Lacan não tenha


nunca avançado de maneira decidida no caminho de Freud, logo ele
que trouxe um vento novo no que concerne à sexuação e às suas
conseqüências. É verdade que ele mantém a ênfase freudiana na
falta feminina, formulando que todo sujeito inscreve-se como tal na
função fálica da castração, mas quando trata-se de situar a diferença,
reconhece-a no campo de um gozo não fálico, "não-todo". Um gozo
foracluído da linguagem que o inconsciente desconhece,
inassimilável, e como que rejeitado até o limite da série fálica - se-
gregação - , estando em excesso quanto à cifração possível. Vemos
o problema: uma vez que o remédio para a tristeza é "orientar-se no
inconsciente", em seus signos e ficções, qual será o afeto do gozo
que não se inscreve no inconsciente, e que a mulher, enquanto ela é
Outro para ela mesma, tem a seu encargo?8
Podemos retomar aqui o problema da culpa. Sabemos que
Freud a refere ao pai, o pai da Lei, o pai morto de Totem e tabu que o
assassinato eterniza, o pai do monoteísmo. Trata-se evidentemente
apenas de um mito, mas este mito entrelaça irredutivelmente a culpa
e o amor por esse pai morto, que se torna Nome-do-Pai, credor de
uma divida insolúvel. Ora, a distância entre Freud e Lacan com rela-
ção a esta questão é sensível. Lacan não refere a culpa ao pai mas
sim ao gozo; ao gozo enquanto ele ex-siste ao simbólico - a falha
deste último que torna o gozo culpado, assim como a existência e o
sexo- (cf. 1966[1960a, 1960b]), e enquanto marcado pelo simbóli-
co. Conseqüentemente, o gozo é duplamente culpado: devido a sua
ex-sistência mas também, diz Lacan, porque marcado pelo
significante "culpa". Pecado original e pecado duplicado, uma vez
que ele concerne ao gozo que existe e ao que não existe mais. Quan-
to a este ponto o Nome-do-Pai, cuja "verdadeira função" é "unir (e
não opor) um desejo à lei" (1966[1960b], p. 824), longe de engen-
drar a culpa, tampona-a. Esta é a única tese que explica verdadeira-
mente o fato de que a culpa só se eleva à certeza delirante no caso da
psicose, que é precisamente onde falta a mediação paterna. Aliás, a

182
Co/ette Soler

tese freudiana que termina por atribuir a culpa melancólica à identi-


ficação com o pai primitivo não contradiz estas colocações, basta
que reconheçamos neste pai não o Nome-do-Pai, mais sim o pai
gozador anterior ao assassinato (cf. Laurent, 1996). Gostaria além
disto de chamar a atenção para as observações finais de Freud de
que dispomos- nove ao todo, datadas de junho de 1938 - , porque
elas assinalam uma abordagem que não passa pelo pai (1985, p. 288).
A própria série destas observações já indica por si só a gravitação
das idéias de Freud, pois quatro dentre elas incidem sobre a inferio-
ridade feminina, a culpa ligada ao amor insatisfeito, a inibição e... a
mística. Retenho a inibição porque ela é correlata à depressão, como
afirmei acima. Freud situa a causa primeira da inibição na masturbação
infantil, tomando seu gozo como "insuficiente em si mesmo". É uma
maneira de dizer, parece-me, que o gozo fálico, com efeito pouco
apaixonante, não satisfaz. É o gozo "que não seria necessário", culpado
por definição e cuja inibição deprimida denuncia e rejeita o sem-
sentido.
Quanto ao ser de gozo que nenhum significante- nem mes-
mo o significante fálico- identifica, ele só é visado no discurso pelo
insulto: "primeira e última palavra de todo diálogo" (Lacan,
1973 [1972], p. 44) bordejando o inefável. Isto me conduz à mulher
que ... difamamos, dizia Lacan. Mais do que resultado da maldade,
difamamos9 porque não podemos dizê-la com as palavras do gozo
fálico. O importante aqui é notar que esta impossibilidade não deixa
de ser também da mulher. A experiência mostra, com efeito, que a
mulher se autodifama mais freqüentemente do que seria esperado.
Reconheçamos neste traço de melancolia que lhe é próprio uma
tentativa de falar de si como Outro. Ora, no gozo não cifrado que é
o seu, e que a ultrapassa porque não passa ao inconsciente, não há
maneira de uma mulher "orientar-~e" (Lacan, 1974). Daí provém
um mais de tristeza sempre possível e como que imotivado, se admi-
timos aqui o termo que Guirault aplica a determinados assassinatos,
nos quais o sujeito visa diretamente o kakon do ser. Isso não tem

183
A Dor de Exiltir

nada a ver com os sentimentos de insuficiência que evoquei acima:


este traço e este afeto não excluem a experiência de "inferioridade",
mas por si próprios não se referem nem à falta nem ao gozo fálicos,
os quais geram principalmente angústia e inibição. O delírio de in-
dignidade melancólico - que, claro está, é bem diferente - é
aqui revelador: situado em uma posição extrema ele mostra que
a rejeição no auto-insulto do gozo foracluído é a última fortifi-
cação verbal antes da expulsão deste mesmo gozo, através da
passagem ao ato suicida. Mais comumente, quero dizer fora da
psicose, a rejeição na injúria é como que o primeiro grau de uma
sublimação paradoxal vindo ocupar este lugar do gozo "onde se
vocifera que o universo é uma falha na pureza do não-ser" (Lacan,
1966[1960b], p. 819).
Este estatuto do gozo confere seu sentido ao apelo pro-
priamente feminino para um amor eletivo. Esta exigência não
resolve de maneira nenhuma o desacordo dos gozos, ela antes
repetirá a desunião que na aproximação dos sexos dá existência
ao Outro absoluto, fazendo da mulher sempre Outro, Outro para
ela mesma. O amor a deixará então só com sua outridade, mas
este Outro que ele erige poderá ao menos indexá-la com o nome
do amante, tal Julieta eternizada por Romeu, Isolda por Tristão...
ou Beatriz por Dante. Deduz-se disto que a perda do amor para
uma mulher excede a dimensão fálica à qual Freud a reduzia,
porque aquilo que a mulher perde perdendo o amor, é ela mes-
ma como Outro. Para Freud o trabalho .do luto deixa sempre
subsistir um núcleo irredutível de fixação "inconsolável" no ser
perdido, tanto mais inesquecível quanto este for radicalmente
estranho, inassimilável 10 • Com Lacan podemos perceber uma
outra face do fenômeno: o inesquecível para uma mulher é aqui-
lo que o amor fez dela, o Outro que no mesmo movimento ele
institui e ... reabilita. É o que impõe a lição dos amores místicos.

184
Coltllt S oltr

Benefícios do bem-dizer

Então a psicanálise deprime as mulheres como Freud pen-


sou constatar? A questão formula-se na verdade da seguinte manei-
ra: como e até onde a ética do bem-dizer própria da psicanálise é
suscetível de aliviar a carga de gozo dos sujeitos, e especialmente
daqueles que estão não-todos no gozo fálico?

A psicanálise, que opera justamentepelo amor de tranferência,


não trabalhaparao amor. Ela desencoraja a solução espontânea que
este último propõe. Aliás, é interessante constatar que Freud fez
esta pergunta nos textos que dedicou à transferência nos idos de
1914, hesitando sobre o que se deveria creditar ao amor. Sua respos-
ta, como sabemos, é categoricamente rude. Contrariamente ao que
se gostaria de esperar, uma psicanálise não garante nada quanto ao
amor. Ela faz melhor, entretanto: longe de resolver a contingência
deste último, ela confirma, revelando sob seu efeito de ser, o des-ser
irredutível do desejo (-<p), e sob a aspiração unitiva, a objeção do gozo
fálico e da causa fantasmática. O bem-dizer então não poupará nin-
guém de ser afetado pelos paradoxos do gozo, sob a dupla vertente da
limitação fálica e de seus suplementos que retomam por vezes às mu-
lheres. Mas a psicanálise é atualmente o único discurso a oferecer uma
causa... outra, e com a condição de que o sujeito seja este "analisante
lógico" que evoquei no passado haverá ganho... de saber. Ora, este
tem lá seus efeitos terapêuticos e subjetivos pois, elevando as impotên-
cias vividas à altura das coerções da estrutura que as transcende, o saber
toca no próprio princípio do horror da castração, chegando a produzir
por vezes até mesmo algum efeito de entusiasmo. Concluímos então
que a tristeza do aquém do bem-dizer pode ser legitimamente estigma-
tizada como uma falta. Quanto ao amor, apesar de não haver nenhuma
vitória sobre sua contingência, ele não perderá nisto e poderia mesmo
se tornar, se ouvimos Jacques Lacan, "mais digno que a profusão de
falatório que ele constitui atualmente" (1982, p. 10).

185
A Dor de Exitlir

NOTAS

1. N. do T. Neologismo criado por Lacan a partir de "f?Jsteriquel', histéricos.


2. No original: que Lacan a appeli /e 'Joint /e plus intime(...)"
3. N. do T. No original: sa11s ressort, aqui no sentido figurado corresponde a
tudo o que concorre para um movimento, para um fim: energia, impulso
4. ]e ne souffrais pas, maisje 11'avais plus mon commandement.
5. N. do T. No original: tmli-ment, efeito produzido por Lacan ao dividir a
palavra smliment (sentimento).
6. N. do T. No original: appelants. O termo apel remete a apelo e quando
flexionado àquele que apela para uma instância legal.
7. N. do T. No original: ajjlicliofl. Sua tradução literal seria aflição, que todavia
tem um uso bem mais corrente e um sentido marcadamente menos "pesado".
8. É a expressão que Lacan emprega em Subversão do sujeito e dia/ética do desejo
para o gozo "cuja falta faz o outro inconsistente".
9. N. do T. Na tradução perde-se o jogo entre dijfome (difama) e ftmme (mulher).
10. Faço aqui alusão à bela exposição de Michael Turnheim publicada em
Silhou//es du deprimé. Paris, Navarin, 1997.

Referências bibliográficas

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____ Introduaiofl à la P!Jthanafyse. Paris, Payot, 1964.
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KLIBANSKI, R. ET ALLI. Satume et la nréla11colie. Paris, Gallimard, 1989.
LACAN, J. "D'une question préliminaire à tout traitement possible de la
psychose" (1955-56). Em: Étrits, Paris, Seuil, 1996.
_ _ _ _ "La direction de la cure et les principes de son pouvoir" (1958).
Em: Écrits. Op. cit.
_ _ _ _ "L'Étoudit" (1972). Em: Scilicet, 11. 4. Paris, Seuil, 1973
_ _ _ _ "Note aux italiens". Em: Omicar, n. 25. 1982
_ _ _ _ "Pour un congrês sur la sexualité féminine" (1958). Em: Étrits. Op cit

186
Colette Soler

_ _ _ "Remarques sur le rapport de Danid Lagache" (1960). Em: l!!crits. Op. cit
____ Le Séminaire, livre X: L'angois.re (1962-63). Inédito
- - - - Le Séminaire, livre XX: Encore (1972-73). Paris, Seuil, 1975.
- - - - Le Séminaire, livre XXI: Les non-dupes ernnt (1973-74). Inédito
- - - - " L a signification du phallus" (1958). Em: Écrit.r. Op. cit.
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Op. cit.
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LAURENT, E. "Vers un affect nouveau". Em: Lettre men.rueJJe, 11. 149. Maio de
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SOLLER, C. "Leçons cliniques de la passe" (1990-92, para o cartel A). Em:
Comnmzt finis.rmtle.r anafy.re.r. Paris, Seuil, 1994
TURNHEIM, M. " ". Em: Silhouette.r du deprimé. Revt1e de I'École Freudimne.
Paris, Navarin, 1987.

• Tradução do francês- Graça Pamplona e Marcus André Vieira


• Revisão da Tradução- Vera Lúcia Avellar Ribeiro

187
í
A LUTA DA PSICANÁLISE CONTRA A
DEPRESSÃO E O TÉDIO

Éric Laurent
Membro da École de la Cause Freudienne. Membro da Escola Brasileira de
Psicanálise.

É a partir do efeito da experiência psicanalítica como tal,


apreensível no final de uma análise, que podemos avaliar em sua
particularidade o efeito da ação psicanalítica sobre o mal-estar na
civilização e sobre a forma que ele pode tomar, entre outras, sobre a
depressão, concebida como o spleen de nossa época. Minha tese tam-
bém é que Lacan sempre teve em sua descrição da saída de uma
psicanálise este horizonte de reflexão. Nós compararemos dois
modos de saída da experiência tais como Lacan as apresentou, um
em Função e campo da palavra e da linguagem e outro em Televisão, para
mostrar a que ponto as duas saídas descritas correspondem ponto
por ponto, e que a partir de Televisão é a depressão como afeto cen-
tral da modernidade que é explicitamente visada.
Se em Função e campo a saída da experiência analítica e o esta-
tuto do sujeito que daí resulta estão radicalmente amarrados à expe-
riência da subjetividade do tempo, não é para reduzi-los um ao ou-
tro, mas para sublinhar que o sujeito analisado não pode se conten-
tar em ir embora sozinho, com a mão agarrada às verdades que iso-
lou no tratamento. Só existe uma saída para submetê-las ao reco-
nhecimento: a de continuar a se dirigir ao Outro. Em Televisão Lacan
apresenta um único remédio para a "morosidade". O de fazer exis-
tir o Outro. O Outro feminino, o Outro radical. É a ocasião de
recordarmos que provavelmente existe nas estatísticas sobre a de-
A Dor de Existir

pressão, pelas quais estamos inundados e que preenchem os manu-


ais e os guias estatísticos, uma estatística fundamental que interessa
muito aos psicanalistas, que normalmente não gostam de estatísti-
cas - aliás, estão errados, trata-se aí também de interpretar - é que
há um desvio de 20% entre os homens e as mulheres na epidemiologia
da depressão, que não consegue ser reduzido de nenhuma maneira,
não importa quais sejam os fatores que se tenta neutralizar. É a úni-
ca estatística que me interessará, pois ela mostra nesta afecção uma
incidência irredutível da diferença sexual. A psicanálise luta contra a
depressão e o tédio, pois afirma ao sujeito que no horizonte da sub-
jetividade de seu tempo ele fará sempre buraco no Outro. Não há
nenhuma reconciliação no horizonte, será sempre a discórdia, o que
não quer dizer querer se encontrar sozinho contra todos. A psicaná-
lise é uma paranóia que deve permanecer dirigida. Trata-se certa-
mente de se reencontrar só, sem remédio, mas de continuar a dirigir
a fala ao Outro, sabendo a posição que se ocupa.

Função e campo da bela alma

Em Ftmção e campo da palavra e da linguagem (19 53) Lacan apre-


senta um sujeito que durante sua análise isola as figuras de sua alie-
nação, todas as identificações que foi para o Outro, as marcas, as
máscaras pelas quais pôde nomeá-lo. No final da análise, não é por
isto que irá entrar no silêncio. Vai continuar a falar a todos os peque-
nos outros que nele representaram as figuras do Outro, mas dife-
rentemente, para fazer reconhecer, segundo o termo que Lacan
emprer,a nesta época, sua subjetividade criadora. O termo de subje-
tividad.:: criadora pode ser em um certo nível da ordem do narcisismo
- todo mundo quer ser, é claro, o criador de si mesmo, isto pode ser
um dandismo - mas Lacan faz disto uma arma profunda contra o
que dom;nava o pensamento de sua época. Neste texto ele nomeia o
pensamento de sua época, o pensamento 53, como o da "bela alma",

190
Ériç Laurmt

crítica do ideal da época encarnado no intelectual de esquerda, de-


nunciando o mal-estar do mundo sem ver aí o lugar de sua ação, ou
mais exatamente deixando a ação nas mãos de um outro sujeito, o
partido. Isto poderia ter na ocasião um nome: o sartrismo. Os efei-
tos da civilização, a iqsurtei~ão que ela provoca, são acompanhados
pelo encarecimento da bela alma, que entretanto se submete aos
partidos que cegam ou desviam a visão do resultado, deixando con-
tudo todo seu lugar às grandes consciências. Lacan propõe uma outra
saída que não a de uma subjetividade negadora, que somente se faz
reconhecer pelo seu não à civilização, mas que considera no fim sua
reabsorção em uma classe, reabsorvendo sua particularidade no
"como os outros".
A isto Lacan opõe a relação do particular ao universal, não a
relação à classe mas a relação ao universal. Ele propõe não deixar o
universal em paz nas mãos daqueles que sempre o geriram, os cléri-
gos de todos os credos que desde sempre dele se ocupam sem o
saber, e desde Hegel sabendo-o, "gerentes, novos filisteus, o bem-
estar da humanidade". A saída se encontra recusando o não e recon-
quistando a particularidade; não pela via da denúncia mas pela via
de uma subjetividade que vem se acrescentar num modo de relação
ao Outro que desafia a redução ao conforme, à classe. O paradoxo
escondido é que a classe implica o atributo, e implica por isso o
ídolo que é o eu. Esta clarificação da objetivação do ser é feita por
Lacan bem antes da evidência da Ego generation, estátua que Lacan
via despontar na estrutura narcísica do homem moderno, fixando-o
a esta pobre regressão, a uma tensão agressiva: "Sou eu mesmo?"
"Sou eu mesmo?" é somente a máscara da objetivação para
a qual acossa o mundo originado da ciência. Não a ciência em si
lembremos sempre, pois a ciência como atividade criadora dá ao
contrário o modelo de um desejo criador; mas pelos seus efeitos
secundários ela produz um efeito particular sobre a linguagem. É
uma forma particular de muro, de concreção dessubjetivada, pelo

191
A Dor de Existir

modo de comunicação científica que faz esvaecer os antigos modos


de conhecimento nos quais se reconheciam os sujeitos. Assim o
semblante de comunicação científica é isto a que todos são reduzi-
dos, cada um se conduzindo como o operário de obra comum redu-
zido a uma máquina, uma maquinaria que não tem nada senão sua
sintonia ou distonia frente ao afeto geral. O Outro não tem mais
outro sentido senão de ser esta máquina que o emprega na transmis-
são do blablablá universal. A comunicação se torna então o único modo
de palavra que resta. É o único modo de se situar legitimamente no
discurso corrente, único maneira, diz Lacan, de se estabelecer "de
forma válida na obra comum da ciência e nos empregos que coman-
da na civilização universal". É também o que permitirá esquecer sua
própria subjetividade, que não deve ser confundida com o narcisismo.
Lacan reconduz ao seio da experiência analítica o sentimen-
to dos poetas da época, seja o do catolicismo inglês de T. S. Eliot, o
francês de Claudel, ou ainda o dos filósofos como Heidegger ou
Hannah Arendt, que estão presentes em Função e campo para denun-
ciar a situação do homem moderno, desabitado, "We are the hollow
men, Jlle are the stuffed men". Desde então só ftzemos progredir neste
sentido, temos uma centena de canais de televisão disponíveis -
temos os cem canais mas neles não se encontra nada, e depois nos
perguntamos o que será feito para preencher tudo isso. Ninguém o
sabe. Pode-se entretanto passar a vida inteira num zapJ e assim es-
quecer, esquecer de si próprio, nesta consulta sem fim que é a
encarnação da comunicação mimetizada e macaqueada. Notemos
que não é só a técnica que permite este esquecimento de si. Um
certo uso da arte pode também permiti-lo. Lacan sublinha no final
do Seminário: as relações de oijeto as potencialidades de esquecimento
de si que a obra de arte permite. O artista na sua humildade, humil-
dade que consiste em dizer que ele se apaga diante de sua criação,
realiza, ele também, uma ilusão: eu não sou nada, tudo está na mi-
nha obra, eu desapareço diante dela. E ai também posso esquecer
minha subjetividade.

192
Éric Laurent

Este esboço de figuras de esquecimento pela técnica ou arte


que Lacan nos indica reencontra a lista que o filósofo inglês Alasdair
Maclntyre estabelecia para nomear as grandes figuras do nosso tem-
po: o empresário, aquele que administra o outro e administra a si
próprio como a ciência lhe indica; o terapeuta, que na ausência de
todo bem pode somente calcular o melhor, e o esteta que se esquece
diante do gesto criador, só retendo o esquecimento de si mesmo.
Frente a essas posições que definem o sujeito moderno, Lacan opõe
a via psicanalítica: isolar o particular e não deixar outra saída senão
seu reconhecimento no universal.

Televisão e morosidade

Em Televisão (1974) a subjetividade moderna não é tomada a


partir da bela alma, mas a partir da morosidade, afeto tão político
quanto a felicidade. Lembremo-nos do contexto de maio de 1968
situado por Pierre Vianson-Ponté, já célebre jornalista do Le Monde,
que se tornou famoso escrevendo um artigo alguns meses antes com
o título A França se entedia. Lacan retoma o diagnóstico e lhe dá seu
alcance psicanalítico. O que torna moroso, diz Lacan em Televisão, é
reduzir o Outro ao Um, ou confundi-los. Lacan havia deixado de
lado no final de Função e Campo a diferença sexual e o lugar exato da
mulher na civilização. É cinco anos mais tarde, no seu texto Proposi-
ção para um Congresso sobre a sexualidade feminina, que ele isola uma
questão crucial: "Por que a instância social da mulher é transcen-
dente à ordem do contrato que propõe o trabalho?" É assim aliás
que termina seu texto. Esta questão, interrogando o novo estatuto
da mulher no pós-guerra, a mulher que trabalha, a mulher reabsorvida
na civilização do contrato, não fazia objeção ao Outro da civiliza-
ção? É preciso dizer que os acontecimentos de 1968 e a ideologia
do tempo davam novamente à questão todo seu peso. Esses anos
sessenta estavam centrados na idéia da liberação dos costumes, e a
idéia de uma definição hedonista ou sensualista da relação entre os

193
A Dor de Exi!tir

sexos poderia no horizonte levantar a maldição sobre o sexo; aliás,


autorizando-se mais ou menos a partir do discurso psicanalítico.
Sublinharei que este próprio termo de maldição Lacan tam-
bém o utiliza para situar o lugar do sujeito no final de Função e Cam-
po; o sujeito querendo reconquistar sua particularidade em "uma
maldição sem palavra", fixado sobre sua vontade de nada, sua sub-
jetividade negadora. Esta maldição se desloca agora em torno da
questão do sexo e da relação ao Outro como tal. Lacan não situa
mais o fmal de análise na relação do particular ao universal mas em
uma relação ao gozo, e a um gozo que para todos se apresenta como
perdido. Ele observa: "O surpreendente não é que ele [o sujeito]
seja feliz", não é a relação ao objeto a, não é o gozo assexuado, o
surpreendente "é que ele tenha idéia da beatitude, uma idéia que vai
longe o bastante para que se sinta dela exilado". O exílio da beatitude
é que o sujeito, homem ou mulher, é confrontado com o gozo femi-
nino como radicalmente Outro, como comentava na época Jacques-
Alain Miller nas margens de Te/evisà!J (p. 40-1), "no encontro do
pequeno a se é gozo de mulher, o Outro aí toma ex-sistência, mas
não substância de Um". O que a teoria do objeto a permite a Lacan
radicalizar é uma teoria de gozos, e assim colocar que o Outro não
encontra existência a partir de um Deus, concebido como a figura
do Um desmultiplicado. O Outro acha seu lugar pelo encontro com
o gozo dela, como totalmente separado, de impossível reabsorção
no horizonte da civilização universal.
É neste ponto que Lacan critica Freud: este mantém que
Eras une, ao passo que o Outro gozo designa um modo de relação
com Eras como presença e no entanto separado. Nenhuma
transcendência, é a experiência de•uma existência uma vez que dela
o sujeito é para sempre separado. Certamente beatitude, mas à medi-
da que o sujeito dela estará sempre exilado. É para lutar contra este
exílio que o sujeito tenta reencontrar as figuras de um Outro absoluto,
sob a aparência de figuras do Um, isto é, das figuras divinas.

194
Éric LA11rml

Lacan vê no sexo-esquerdismo de 1968 o apelo a um Deus


que garantiria a presença de um apelo ao divino. É uma interpre-
tação profunda do aforisma de Malraux "O século XXI será re-
ligioso...", e da radicalização dos movimentos fundamentalistas
em todas as religiões monoteístas; católica, muçulmana, judaica.
Aliás, este apelo se estende aos deuses exóticos, ao budismo que
seduz um certo número de ocidentais no desvario de seus gozos.
Na nostalgia de um amor sem limites, há convocação de Deus,
para garantir. É sobre este fundo que Lacan enuncia que o psica-
nalista é um santo. É um santo que se produz em ruptura com
este apelo ao Deus como garantia, já que ele se quer rebotalho
da humanidade.
A saída do discurso psicanalítico, a saída de uma psicanálise,
Lacan a coloca em Televisão nos mesmos termos que em Função e
Campo. Ela está estritamente amarrada ao horizonte da subjetividade
do tempo e ao Outro da civilização universal, que a partir de Televi-
são vai chamar-se por seu nome de discurso do capitalismo. Não
mais que em Ftmção e Campo, a saída não pode ser individual- "Quan-
to mais somos santos, mais rimos, é meu princípio, e até mesmo a
saída do discurso capitalista, o que não constituirá um progresso se
for somente para alguns"2 . Qual é então esta saída que não é ore-
crutamento de um partido? A se produzir como rebotalho da civili-
zação universal, o santo, como em Função e Campo, está excluido
da humanidade posto que ela quer se reduzir a um universo de
discurso. Dizer que não é um progresso, se for somente para
alguns, além de um ataque contra a idéia de progressismo, acres-
centa que o psicanalista não pode absolutamente deixar que se
considere que o importante é ter um clube de eleitos, uma espé-
cie de elite, que seriam aqueles que teriam passado pela experi-
ência, e que poderia em seguida olhar os males da civilização e
deles rir cinicamente.

195
A Dor de Existir

O riso do psicanalista

O riso divide com a angústia a particularidade que eles têm


em comum. É o laço do Witz e do riso que aí se apresenta. Jacques-
Alain Miller em seu curso do ano passado enfatizou o Witz como
comunicação- se tivesse tempo desenvolveria esta ligação de Rabelais
relido por Lacan. Direi simplesmente isto: o riso que surge neste
momento está evidentemente ligado à apresentação de como a par-
ticularidade vem fazer furo no coração da civilização. É aí que en-
contramos estes afetos do riso e do entusiasmo que vêm marcar a
luta radical do psicanalista contra a depressão e a complacência a
seu respeito. A particularidade como furo é ausência de uma identi-
ficação ao "Tu és isso". "Tu és isso à medida que justamente sabes
que não tens senão uma via para escapar à alienação do Outro".
Ao lado do riso, de onde vem o afeto de entusiasmo? Siga-
mos Kant que considerava que a revolução francesa podia provocar
entusiasmo. Por quê? É porque algo se passou, mas não se sabe
exatamente o que é. Há acontecimento, mas o acontecimento não
chega a esgotar-se na descrição que dele se dá. É por isto que o
afeto de entusiasmo assinala a presença de algo que não se consegue
descrever. Lyotard escreveu sobre este tema um texto interessante.
Mas trata-se com Lacan de situar o acontecimento como uma das
formas do furo.

Ser fiel ao acontecimento do final da análise não é saber


elaborá-lo naquele momento, isto vem depois. A elaboração do fi-
nal da análise certamente se faz no passe, mas sobretudo não se
cessa mais de fazê-la na vida. É um acontecimento que não cessa de
ter descrições, desde que a cada vez lhe sejamos fiéis. A relação ao
acontecimento do final da análise e o apagamento que ele implica
são como a relação do budismo ao nada, ou ainda o sict1tpalea de São
Tomas que não é forçosamente depressivo, que é reconstrução da
posição subjetiva como aquilo que escapa a toda descrição, compre-

196
Érü LAtire/li

endendo também aSumma Teológica. Eu digo que não é forçosamen-


te urna posição depressiva, pois é preciso continuar na via do "quanto
mais se é santo, mais se ri", e logo na via de querer comunicar este
riso aos outros. É a via do riso comunicativo, para desviar um título
do filósofo alemão Jürgen Habermas. É a via que se abre à saída de
uma psicanálise, que cada um a sua maneira tenta seguir.

NOTAS

1. N. do T. O autor utiliza o verbo zapper, anglicismo que significa passar


constantemente de um canal de televisão a outros com a ajuda de um controle
remoto. Em inglês o verbo to zap também significa a ação de atacar ou des-
truir, bastante utilizada nos jogos eletrônicos. No original: On peut tlianmoinsy
passer sa vie t/1 zappant et ainsi oublier.
2. N do E Cf. Escritos. São Paulo, Perspectiva, p. 34.

• Tradução de Maria Luiza Durct


• Revisão de Sonia Albcrti

197
DEPRESSÃO E MELANCOLIA

Stella Jimenez
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Tendo em comum a tristeza, três tipos de sofrimento po-


dem ser diferenciados: luto, depressão e melancolia. Todos eles se
caracterizam por "um estado de espírito profundamente doloroso,
diminuição do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade
de amar e inibição de todas as funções" (1967(1915], p. 1075).
A depressão não é uma estrutura clínica. Os psicanalistas, à
diferença da tendência atual a usar o diagnóstico de depressão como
rótulo de um número cada vez maior e indeterminado de situações
psíquicas, sabem que em cada sujeito a depressão tem diferentes
significações, que só a análise vai poder desvendar. Além disso, cada
tipo de neurose implica diferentes significações para a depressão.
Vou tentar situar o que se pode dizer das depressões
transestruturalmente, excluindo apenas as psicoses, para as quais no
que se refere à tristeza usarei o nome que Freud resgatou dos clássi-
cos: melancolia.
Diferentemente do luto, tanto a depressão como a melan-
colia apresentam baixa auto-estima, auto-acusações e auto-depreci-
ação. Também nestas o sujeito não sabe o que perdeu ou não sabe o
que perdeu junto com isso. Mas não existe na depressão a tendência
a humilhar-se frente aos outros, nem a falta de pudor que aparece na
melancolia, como se "nesse rebaixamento encontrasse uma satisfa-
ção" (Idem, p. 1077).
A Dor de Existir

As autoacusações e autodepreciação, denominadas por


Spinoza desestima, e constantes no discurso da pessoa que atravessa
uma fase de depressão ou que se considera deprimida, só aparecem
na privacidade, com amigas íntimas, ou em situações confessionais,
em análise etc. Já as auto-acusações do melancólico apresentam um
cunho delirante que, passado o surto, produzem no sujeito uma cer-
ta perplexidade, já que não consegue nem explicá-las nem elaborá-
las. Ele não consegue entender por que, nesse momento, chegou
a ter de si próprio uma valoração tão negativa que o levou à
convicção de que a única saída para ele e os seus era a sua pró-
pria destruição. Não consegue entender a dolorosa e extrema
inibição que o paralisara.
Os melancólicos podem chegar a ter idéias claramente deli-
rantes, como no caso da Síndrome de Cottard, ou como no caso de
uma paciente de Kraepelin que dizia ser uma serpente e ter matado
o marido, e autoacusações bizarras. E talvez sejam esses casos extre-
mos os que permitem reconhecer a estrutura e afirmar que se trata
de psicose. Um dos múltiplos aparentes paradoxos que a melancolia
apresenta é que o delírio de petitesse é simultaneamente megalomanía-
co. O melancólico se considera culpado por tudo de ruim que acon-
tece no mundo ou, ao menos, na família. Esta aparente contradição
se resolve se lembramos que, como em toda psicose, trata-se de uma
identificação com uma forma do objeto a, objeto simultaneamente
causa e rebotalho. O melancólico se denuncia como o Ser Supremo em
maldade, o que permite reconhecer Das Dingy a consistência real mais
temível do objeto, a que Freud se referia quando disse: "A sombra
do objeto cai sobre o Eu" (Idem, p. 1078). Já na depressão, confir-
mando a neurose, as auto-acusações são dialetizáveis. O melancóli-
co diz: "Eu não mereço nada", ou "Eu só mereço punição", en-
quanto o deprimido acha que ele próprio está sendo injusto com
ele. Durante a depressão o sujeito pode entrar em análise e em trans-
f~rência, o que não é possível durante o surto melancólico.

200
S te/la Jimenez

Freud usa a palavra depressão para falar de um luto patoló-


gico (Idem, p. 1079). De uma certa maneira a depressão é o contrá-
rio de um luto, pois o luto é um trabalho espontâneo do simbólico.
Na depressão trata-se de um luto congelado, eternizado, pela falta
de trabalho de elaboração. O sujeito não quer se referenciar na per-
da- não quer se reconhecer como sujeito faltoso - , o que o remete-
ria à castração. Uma analisanda minha se queixava da impossibilida-
de de fazer qualquer coisa, de desânimo, de tristeza profunda, a par-
tir da morte do marido. Durante a análise falou da sensação de que
o seu marido, morto, a olhava. Ela não chorava a morte dele, mas
chorava para ele. O Bem Dizer como lei ética do trabalho analítico
pode ajudar a transformar a depressão em luto.
O analista deve estar particularmente atento quando chega
alguém que se diz deprimido por uma razão evidente, já que pode
cair no engodo de que se trata de um luto, quando é a falta de luto-
o não querer se referenciar na perda - o que produz a depressão. O
luto, como diz Freud, leva a reconhecer "o veredicto de que o obje-
to não existe mais, e o eu se pergunta se quer compartilhar esse
destino" (Idem, p. 1081). Se essa questão for evitada, a tristeza se
eterniza e se torna depressão. Na melancolia, como em toda psico-
se, a resposta vem antes da pergunta, e o sujeito decide morrer ou
viver intensamente na mania, sem se ter interrogado sobre isto ...
Como na melancolia e à diferença do luto, o deprimido não
sabe o que perdeu, ou sabe a quem perdeu mas não o que com ele
foi perdido. Como na melancolia, o deprimido também dirige
freqüentemente a si próprio recriminações que melhor se aplicariam
à pessoa a quem o sujeito ama, amou ou devia amar. A diferença
seria que na melancolia essa pessoa teria funcionado como suplên-
cia, como bengala imaginária, e na depressão como depositário do
Ideal do Eu. Na depressão e na melancolia o suicídio é possível, o
que não costuma acontecer como resultado de um luto.

201
A Dor de Existir

Cedeste em teu desejo?

Lacan em Televisão (1993) define depressão como um peca-


do, uma covardia moral frente ao dever do Bem Dizer, de se
referenciar na estrutura, o que seria equivalente a se reconhecer como
desejante: O melancólico rejeito o desejo e se referencia como Das
Ding, fora do simbólico. O sujeito triste tem medo de saber de seu
desejo, o que o leva muitas vezes ao ponto de não querer desejar. O
desejo outorga cor e brilho à vida, mas deve ser pago com a castração -
a libra de carne de que falava Shakespeare -, pagamento este que
alguns sujeitos não querem fazer. Mas renunciar ao desejo também
tem um preço, ainda mais caro: implica ficar triste, sem apetite e,
ainda pior, esta renúncia é a causa última das autorecriminações, já
que aquilo de que o sujeito se sente realmente culpado é de haver
cedido em seu desejo. O sujeito tem um encontro marcado com o
seu destino e quando esse herói, que deve ir até o fim no caminho,
é traído, o sujeito se auto-acusa. Lacan diz:
Aquilo do que o mjeito se sente efetivamente mlpado, quando
apresenta mlpa, de maneira aceitável ou não pelo diretor de com-
ciência, é sempre, na rai:v na medida em que ele cedeu de seu
desdo" (1986[1959-60]. p . 382).

Isto explica essa frase aparentemente tão paradoxal, freqüente


em sujeitos deprimidos. "Não vim à sessão porque estava triste".
Justamente esse "estar mal" deveria ser a mola propulsora da vinda
à análise. É que ele não faltou à sessão porque estava triste, mas sim
ficou triste por não querer vir à sessão, que seria o lugar de poder
saber algo de seu ser desejante.

Por rechaço ao não tudo ...

O que pode levar alguém a renunciar a seu desejo, primeira


e única riqueza do ser humano? Lacan nos dá uma dica no mesmo

202
S te/la ]immez

texto, quando define os depressivos como Unianos, pois o desejo


surge no ponto de falta do Outro, a partir do não tudo. Estas seriam
pessoas que não querem renunciar ao ideal do Tudo, e ficam se com-
parando com a perfeição e a onipotência, frente à qual só podem se
sentir uma merda. Spinoza diz: ''A humildade e a desestima são
raríssimas... Aqueles que julgam ser os mais abjetos e os mais humil-
des são, na maioria das vezes, os mais ambiciosos e os mais invejo-
sos" (1989, p. 153). Por exemplo, certas pessoas não se decidem a
enfrentar uma prova ou situação difícil porque temem perder a ima-
gem ideal que acham que poderiam, deveriam ou mereceriam ter.
Preferem assim, como me dizia uma vez um analisando, não estudar
para um exame para poder continuar pensando que se não se deu
bem foi porque não estudou o suficiente, em troca de se confrontar
com as suas possibilidades. Estes sujeitos cedem no seu desejo de
saber por temor de responder à pergunta "Quem sou?". Veríssimo
diz que só uma pessoa que se sente muito superior vai ao analista
para se tratar de complexo de inferioridade. Assim o sujeito se recri-
mina duramente por qualquer erro, como se fosse possível não errar.
Para Lacan, quando se fala em onipotência, trata-se da oni-
potência do Outro. Assim, poder-se-ia pensar que o suj~ito se exige
ocupar frente ao Outro, excessivamente idealizado, o lugar ideal que
pensa que o Outro lhe pede. Ou que sustenta o Outro num lugar
Ideal, sem falta, com a sua sensação de incapacidade. Uma analisanda
me dizia que quando pensa em fazer alguma coisa lembra das pesso-
as que já fizeram isso antes, e pensa que ela nunca vai poder fazer
nada tão interessante. Ou a típica frase: "Eu nunca conseguirei fazer
isso". Nestes casos, o que o deprimido não quer saber é a falta da
onipotência do Outro. Desejar é apontar para essa falta.
Algumas vezes, por temor de vir a complementar o Outro, o
sujeito teme reconhecer seu desejo e lutar por ele. Novamente é o rechaço
do Real, do não tudo, o que faz pensar que essa complementaridade é
possível. Essa é a alternativa mais freqüente na minha clínica.

203
A Dor de Existir

As autorecriminações frente a uma perda que poderia ter


provocado um processo de luto têm, também, a intenção de desco-
nhecer a falta do Outro, falta que até pode ser representada pela
morte. O sujeito prefere pensar que se ao Outro falta, é por sua
culpa, e assim acaba se sentindo culpado do Real. Assim, uma
analisanda se dirigia amargas recriminações por não ter ajudado
o pai no momento de sua morte. A análise mostrou que se acu-
sava, no fundo, de não querer saber de seu próprio "ser para a
morte". Evitava conhecer o Real da falta e se recriminava uma falta que
é do Outro.
Muitos não querem saber de seu desejo porque o percebem
enlaçado com a pulsão de morte.
Freqüentemente, os sujeitos que se queixam de depres-
são sofrem também de problemas com o sono. Dormem muito,
fugindo assim do desejo que se articula na demanda, ou não
dormem, para evitar o mau encontro com o Real faltoso que
constitui o umbigo do sonho. Falando de sua insônia, uma
analisanda a associou com uma história que tinha escutado na
televisão: uma mulher, depois de um acidente de avião em que
perdera uma filha, tinha horror de dormir e de sonhar, porque a
o11tra cena do sonho a levava sempre ao acidente. Esta analisanda
recordou que o que essa mulher mais temia era sonhar com a
ftlha que justamente, no sonho, não estava morta.
O sujeito tem razão quando sente que é injusto consigo, já
que abdica de seu Supremo Bem, o desejo, em beneficio do Outro,
que nãc existe.

Por carência de causa

A falta de desejo se produz também quando o sujeito, tran-


sitória ou permanentemente, fica sem causa. Quando não sabe por
que lutar, quando se desiludiu de um Ideal, quando lutou muito e

204
Stella ]imenez

não chegou a nada ou, ao contrário, quando atingiu uma meta. É


cada vez mais freqüente a depressão em indivíduos particularmente
bem sucedidos, quando chegam ao topo de suas carreiras. Um des-
tes sujeitos me dizia outro dia: "Subitamente fiquei sem projetas".
Esses sujeitos, como todos os neuróticos, confundem demanda com
desejo. Causa como Ideal com objeto causa do desejo...

Por resgate do heroísmo

Também o sujeito pode dar mais uma volta e usar a falta de


desejo como uma maneira última e radical de se construir um dese-
jo. Colette Soler diz: "Esses deprimidos, os anoréxicos do ano
dois mil, os enjoados dos gozos a mais ready-made da época,
afirmando numa abstenção de desespero o que lhes resta de um
desejo outro" (s/ d). Nesta frase aparece a depressão, o não que-
rer desejar, como uma forma desesperada e radical de querer
desejo. O não querer querer como uma maneira desesperada de
que não tudo seja permitido; porque se tudo é permitido, nada é
permitido. A fórmula do final de análise seria: Deus ex-siste,
mais ele não é o Outro.
Frente à depressão nós, os psicanalistas, temos a arma mais
radical: o desejo. Contra a falta moral, a lei ética do Bem Dizer, mas
cuidando de não cair no deciframento, que nos levaria novamente
ao tudo. Lacan diz:

A virhltk é o gay saber. Não é compremtkr, mortkr 110 smtjdo, mas


raspá-lo o maispossíve4 sem que ek se torne tmt engodo para essa virt11de
gozando do dec!frammto, o q11e implica q11e o gay saberJaça tkla apenas
a queda, o retomo ao pecado (1933,p. 44-5).

205
A Dor de Existir

Referências bilbiográficas
FREUD, S. "Luto e melancolia" (1915). Em: Obras Completas. Tomo I. Madrid,
Biblioteca Nueva, 1967.
LACAN, J. O semi11ário, livro 7: a ética da psicaTJálise (1959-60). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1986
_ _ __ Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
SPINOZA, B. ''A ética". Em: Os Pmsadores: SpiflotrJ. VoL II. São Paulo, Nova
Cultural, 1989.

206
SOBRE A IDENTIFICAÇÃO COM O OBJET0 1

Romildo do Rêgo Barros


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

No Rasmnho G Freud associa a dor a uma quebra de associ-


ações: "Toda ruptura de associações é dolorosa" (1950[1895], p. 245).
Mais adiante, no mesmo trecho, ele usa a imagem da "hemorragia",
e em Lttto e Melancolia fala de "ferida aberta" (1950[1915], p. 250).

A "ruptura de associações" de que fala Freud corresponde,


sem dúvida, a uma quebra na cadeia de significantes, mesmo se ele
estava se referindo a rupturas na condução neuronal, como faria um
pouco depois no Projeto de Psicologia em dois capítulos da Parte I: um
chamado A Dor(1950[1895], p. 351-2), e o outro, A vivência da dor
(Idem, p. 364-6).

Podemos nos servir dessa metáfora freudiana para falar do in-


tervalo entre dois significantes, e da hiância que aí se abre se não é
produzido o enquadramento da realidade subjetiva que nós chamamos
de fantasia. Vamos ilustrar isso com a fórmula do discurso do mestre:

sl ~ sl
- , - 11 %

207
A Dor de Existir

A operação que ocorre entre esses dois momentos do dis-


curso do mestre, representada pela passagem da cesura para a pun-
ção, é a instauração, para usar os termos de Lacan, de "uma identi-
dade que se funda em uma não-reciprocidade absoluta"2 (1966[1962],
p. 774). Se se tem a cesura, tem-se a não-reciprocidade, e com a
punção introduz-se uma identidade, mantendo-se no entanto a não
reciprocidade, que é condição da identidade. Uma coisa pelo menos
parece clara a partir disso: vê-se aí o quanto a realidade deve à fanta-
sia. Ela lhe deve simplesmente o essencial, isto é, a possibilidade de
se constituir tendo por fundamentos dois "elementos heterogêne-
os", como disse Lacan em uma outra passagem, referindo-se justa-
mente ao sujeito e ao objeto na fantasia. Heterogêneos, mas de algu-
ma forma derivados da cadeia de significantes do Outro: o sujeito
aparece como significado do Outro - e neste sentido tão dissimétrico
em relação ao significante quanto qualquer significado-, e o objeto
se impõe a partir do fato de que nem tudo do significante passa ao
significado. O significante que por suposição passasse todo ao sig-
nificado, não deixaria margem à relação fantasmática, uma vez que
se romperia a não-reciprocidade sujeito-objeto.
Isto pode nos servir, por enquanto, para basear nossa dis-
cussão sobre a identificação melancólica com o objeto. No ponto
em que estamos, a identificação melancólica teria a seguinte formu-
lação, naturalmente incompleta: há uma falha na formação
fantasmática do sujeito melancólico, e isto quer dizer que, ao
invés da identidade, ele passa a uma espécie de reciprocidade
com o objeto3 • O melancólico é, pois, o sujeito que vai mais
longe na via da reciprocidade com o objeto, a ponto de fazer
pensar que os dois elementos seriam permutáveis. Um sl!feito vale
um oijeto- "Eu sou um lixo", por exemplo- se se quer usar uma
imagem contábil cujo ponto extremo - caberia aqui o termo
fechamento, no sentido que tem para os contadores - seria o suicídio
característico do melancólico.

208
Romildo M Rêgo Barro1

Mas não necessariamente o suicídio: pode haver alguma outra


forma, dentro e fora das psicoses, de eternização do objeto perdido,
ou, melhor dizendo, de eternização da própria perda.
Kierkegaard em Étapes sur /e chemin de la vie (1988, p. 165),
por exemplo, conta a seguinte história, transcrita por Marie-Claude
Lambotte:
Era uma vez um pai e um filho. Um filho é como um espelho no qual o
pai se olha a sipróprio, e, para ofilho, opai épor sua vez um espelho no
qual ele se olha tal qual será mais tarde. No entanto, eles rarammte se
olhavam assim, sua relação de todo dia erafeita da alegria de uma conver-
sa brincalhona e animada. Só q11e acontecia às vezes q11e opaiparava, o
semblante triste, face ao filho. Ele o olhava e dizia: "Pobre filho, tu vives
em um surdo desespero". Nunca se pôde saber CO!fiO mtender isso e até
que ponto era verdadeiro. O pai se acreditava responsávelpela melancolia
do filho, e ofilho acreditava que era ele própn'o que tinha dado origem à
dor do pai, mas eles não trocavam nmhuma palavra a respeito.
Então o pai morrm. E ofilho vitt, compreendeu, experimentott vários
aspectos da tmtação e da prova, mas uma única coisa lhefaltava, uma só
coisa o tocava, era aqttela palavra, e era a voz do pai ao pronunciá-la.
Em seguida ofilho ficou velho também. Mas como o amor cria tudo o que
quer, a saudade lhe msinou não, claro, a arrancar alguma informação do
silêncio da eternidade, mas a imitar a voz do pai, até que a semelhança
fosse peifeita. Ele não se olhou no espelho, como o velho Swift, pois o
espelhojá não existia, mas ele mcontrava na solidão tlfll consolo esmtan-
do a voz de seu pai dizell(/c: "Pobre filho, ltl vives em ""' surdo desespe-
ro". Pois opai era o tínico q11e o teria entendido, e no mtanto ele sequer
sabia se ele próprio o tinha mtendido. O pai fôra o único cotifidente que
tivera, e a morte não tinha interrompido essa cotifidência" (1993, p.
589) 4.

Há nessa história a evidência de uma identificação com


o objeto, sob a forma da voz do pai, perdida e eternizada ao
mesmo tempo. É interessante notar que essa identificação
corresponde a um esvaziamento de sentido - a mensagem

209
A Dor de Exütir

incompreensível tornada pura voz é ininterpretável -, e o que


teria sido a confidência entre pai e ftlho durante a vida reduz-se,
com a morte do pai, a um imperativo, que quanto mais comanda
menos significa. Para dizê-lo com outras palavras, há uma
coalescência entre S1 e a, de tal modo que o lugar simbólico do
sujeito, o seu lugar no Outro, corresponde ao do objeto perdi-
do. Esta seria uma outra maneira de falar da identificação com o
objeto, entendido aqui como a face real do supereu. Isto pode
levar à auto-destruição se, em um certo momento, a manutenção
e a defesa do significante através do qual o sujeito encontra o
seu lugar no Outro passar pela queda do objeto: sustentar o
significante, então, implicará em cair com o objeto.
É claro que a vacilação do significante, acompanhada da
irrupção do objeto, não leva necessariamente à identificação com
o objeto ou à auto-destruição, mesmo se a sua coloração afetiva
for depressiva. Uma situação paradigmática que podemos lem-
brar a esse respeito é o final da análise, "maníaco-depressivo",
como diz Lacan em L'Étourdit (1973[1972], p. 44), e marcado do
lado do analisando, segundo Serge Cottet (1985, p. 84), pelo "afas-
tamento progressivo de grande I e a" que caracteriza a
dessuposição do saber, o que pode acarretar eventualmente uma
depressão, que Cottet, usando a expressão "depressão sob trans-
ferência", associa a dois momentos cruciais do tratamento:

1. a vacilação da fontasia, marcada pela desestabilização do significante-


mestre e do ideal do m,· momento de alienação revelada;

2. uma depressão de separação, que traduif.. .. .) um deixar cair (lâchage)


do mjei'to da cadeia signijicanfe e a emergência do objeto a nos
reman9amentos do se11 próprio acesso ao des9o; momentos que são igllal-
menfe momentos de angústia (Idem, p. 85).

210
Romildo do Régo Barros

Luto e Melancolia

Uma afirmação importante de Freud a respeito do luto é a


de que este estado - que no entanto acarreta "graves desvios de
conduta"- na verdade não nos impressiona muito. Nunca nos pas-
saria pela cabeça, por exemplo, a idéia de encaminhar o enlutado ao
médico, porque sabemos que com o tempo isso passa (1988[1915],
p. 242). Sabemos que o luto exige um tempo para se consumar, e
que é preciso deixar que se processe normalmente, sob pena de não
ser possível ao sujeito investir novos objetos 5. O que nos choca na
melancolia, achamos normal no luto. Ora, como Freud nos diz que
a única diferença entre os dois, pelo menos na maneira pela qual se
apresentam, é a queda da auto-estima na melancolia, nós devemos
pensar, parece-me, que a impressão de normalidade do luto provém
do fato de que nele o sujeito não se acusa das misérias do mundo,
ou mesmo da perda do objeto: o enlutado seria levado, no máximo,
a dizer "Meu mundo caiu", como na canção de Maysa, e nunca "Eu
sou um lixo".

Poderíamos então considerar uma hipótese: a de que o luto,


visto que não nos choca excessivamente, isto é, porquanto cabe den-
tro das atitudes que se esperam nos laços sociais, implica um ponto
de desconhecimento, talvez de recalque, o mesmo que na melanco-
lia, ao contrário, estaria a céu aberto. Apoiando-nos nos maternas de
Lacan, diríamos que no luto aparece claramente a disjunção, forma-
lizada no discurso da histérica, que há entre o objeto em posição de
verdade, e o saber como produção.

--7
a li

211
A Dor de ExiJtir

Dito de outra maneira, a verdade do objeto não passa ao


saber, o que seria uma boa fórmula para definir a posição do sujeito
histérico. O apelo ao mestre para que este produza um saber já é por
si mesmo produção, mas o sujeito não o sabe porque a verdade
ligada ao saber lhe escapa.

Diferentes saídas para a perda

Trabalho de luto versus melancolia não é a única oposição


proposta por Freud: em Luto e Melancolia, ele opõe também o traba-
lho de luto ao que chama de psicose alucinatón'a de des~jo, estado patoló-
gico que se deve à recusa de renunciar ao objeto, mesmo quando a
"prova de realidade" mostrou que este já não existe. Essa recusa
leva a um afastamento da realidade e à retenção do objeto, que a
exemplo do que ocorre nos sonhos se mantém pela alucinação
(1988[1915], p. 242).

Nós temos assim duas soluções para a perda na ausência do


trabalho do luto: a psicose alucinatória de desejo, na qual o objeto
permanece como alucinação e é externo ao eu, e a melancolia, na
qual a permanência do objeto implica um recobrimento do eu pelo
que Freud chama de "a sombra do objeto" (Idem, p. 246). É claro
que estas duas entidades clínicas estão em planos diferentes: en-
quanto a melancolia se diferencia do luto por se tratar de um trabalho
distinto - Freud fala, referindo-se ao melancólico, do "trabalho in-
terior que devora o seu eu" (Idem, p. 244) -,a psicose alucinatória
de desejo seria antes uma recusa do trabalho, com a qual se mantêm
separados o eu e o objeto, mas ao preço da ruptura do semblante e,
mais radicalmente, do exílio do discurso. Como ilustração, pode-
mos pensar em uma mulher que, tendo perdido um ft.lho recém-
nascido, continua a agir como se ele estivesse vivo, aninhando nos
braços um objeto qualquer que ela pretende ser o seu ft.lho. Ela não
se identifica com o ftlho no sentido do que ocorre na melancolia,

212
Romildo do Rê.go Barros

mas tampouco investe um novo objeto, o que Freud reconhecia como


0 essencial do trabalho do luto. O que há aí, o que impede o luto,
não é simplesmente o fato do objeto não poder ser substituído, mas,
e sobretudo, o do próprio objeto perdido não poder ser encarado
como substituto, isto é, como já de origem dependente da lingua-
gem, com a perda de ser que isso implica.
Nós podemos aqui citar o comentário de Lacan sobre o
luto, em oposição justamente com o que acontece nas psicoses, no
5 eminário: o des9o e sua interpretação:
O buraco criado por esta perda, que provoca no si!Jeito o luto, onde se
situa? Encontra-se no reaL Entra então numa relação inversa à que
promovo diante de vós sob o nome de Verwerfung.
Do mesmo modo que o que é rtjeitado do simbólico reaparece no rea~ o
buraco da perda no real mobiliza o significante. Este buraco oferece o
lugar onde se prqjeta o significante que falta, essencial à esfrllfllra do
Outro (1989, aula de 22 de abril de 1959, p. 99).

A partir disto, pode-se postular, com efeito, que a identifi-


cação melancólica, com a radicalidade que acarreta para o destino
do sujeito, não se dá com o objeto perdido, ou, como diz às vezes
Freud, com o objeto de amor perdido - que, dependente dos
significantes, é por definição e de saída substituível, é um ersatz -
mas com a Coisa, das Ding. Temos aqui o que Éric Laurent chama de
'identificação narcísica com a Coisa" (1988, p. 12). É claro que resta
uma questão importante: dada a pelo menos aparente incompatibi-
lidade entre os dois termos extremos da expressão de Laurent, iden-
tificação e a Coisa, ter-se-ia que demonstrar como e em que medida o
adjetivo narcísica é capaz de fazer a ligação entre os dois. Um argu-
mento em favor dessa aproximação entre identificação e Das Ding
é sem dúvida o fato de que, justamente em Luto e Melancolia, Freud
reintroduz um termo que já empregara na Interpretação dos Sonhos e
em O Chiste e sua Relação com o Inconsciente: Dingvorstellung, em lugar
de Sacheorstellung. Esta diferença entre Ding e Sache é discutida

213
A Dor de Existir

por Lacan no Seminário: a ética da psicanálise, em uma passagem onde


diz que "A Sache é bem a coisa, produto da indústria ou da ação
humana posto que é governada pela linguagem". E, mais adiante:
"Sache e Wort são pois estreitamente ligados, formam um par. Das
Ding se situa alhures" (1986[1959-60], p. 58). Em outro trecho do
mesmo Seminário, Lacan resume a questão dizendo, em alemão, que
'Vie Sache(...) ist das Worl des Dinges", e em seguida traduz em francês
como "l'a.ffaire est /e motde la Chose". Quanto aDas Ding, Lacan afirma
que "no nível das Vorstellungen, não é que a Coisa não seja nada, mas
literalmente não é - ela se distingue como ausente, estrangeira"
(Idem, p. 78).
Podemos dizer que o paradoxo que há na junção de Ding e
Vorstellung é o mesmo que há entre identificação e a Coisa. Em ambos
os casos, trata-se de aproximar o significante de algo que lhe é por
definição exterior.

NOTAS

1. Este texto é uma patte da conferência que fiz nos Sábados da Escola da
Seção-SP da EBP em 13 de abril de 1996, e no então Pólo-PE em 15 de junho
de 1996.
2. Recíproca: "Diz-se de toda ação ou de toda relação que, sendo dados os
dois termos A e B, se exerce ou subsiste ao mesmo tempo no sentido de A a
B e no de B a A. 'O continente e o conteúdo são às vezes iguais, como acon-
tece nas proposições recíprocas"' Leibniz, Novos Ensaios W. Cap. XVII, pará-
grafo 8 (cf. Lalande, 1996, vol. II, p. 392).
3. "A impotência da fantasia em se constituir(...) torna o sujeito uma presa de
um gozo sem nome, do qual a culpa que o acompanha nas suas queixas, por
exemplo, não é mais do que o efeito da mortificação pelo puro significante"
(Cottet, 1985, p. 83).
4. Existe uma passagem de Lacan em La chose freudimne que bem poderia
servir de comentário para essa história contada por Kierkegaard:"(...) a uva

214
Ro111ildo do R~o Barros

verde da palavra através da qual a criança recebe cedo demais de um pai a


autentificação do nada da existência, e o cacho da cólera que responde às
palavras de falsa esperança com as quais sua mãe o tapeou ao nutri-lo com o
leite do seu verdadeiro desespero, estraga (agace) mais os seus dentes do que
ter sido desmamado (sevre) de um gozo imaginário ou mesmo ter sido privado
de certos cuidados reais" (1966[1955], p. 433-4).
S. "0 luto consiste em identificar a perda real, peça por peça, pedaço por
pedaço, signo por signo, elemento grande I por elemento grande I, até o esgo-
tamento. Quando isto está feito, está terminado" (Lacan, 1991 [1960-61], p. 458).
6. Cf. a nota do tradutor em castelhano da Amorrortu:"( ... ) Ding indica a
coisa material, enquanto Sache é a coisa do pensar, a coisa humana" (1950,
vol. XIV, p. 211).

Referências bibliográficas

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215
A Dor de ExiJiir

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216
OS QUADROS NOSOLÓGICOS:
DEPRESSÃO, MELANCOLIA E
NEUROSE OBSESSIVA.

Sonia Alberti
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Dos primórdios

Em Freud, é o Manuscrito G (1950[1984]) da correspondên-


cia com Fliess que irá lançar as bases para se pensar a doença do
afeto por excelência. O afeto é uma questão de paixão, e a paixão,
desde sempre, é para o homem uma questão de sofrimento. O afeto
divide o sujeito pelo lado da paixão (Alberti, 1989). O Manuscrito G
trata da melancolia de forma que podemos hoje diferenciá-la da
depressão, mas inicia com sua definição a partir do luto:
O afeto correspondente à melancolia é o do lt1to, q11er dizer, da nostalgia
por algo perdido. Provavelmente, trata-se, na melancolia, de 11ma Ver/tis!
(perda), e isso na vida pt~lsional (..).A melancolia se constiltliria do l11to
pela Venust da libido (1950[1894), p. 113).

A perda, então, inclui a perda do prazer (Ltts~, até mesmo


etimologicamente, provocando a disjunção entre o sujeito e o pra-
zer da libido.
Em Luto e melancolia (1975[1917]), Freud desenvolve a ques-
tão do luto a partir do desligamento dos investimentos do sujeito
no objeto amado. Freud observa que o eu do sujeito se rebela contra
esse desligamento e o justifica pelo fato de que o homem não gosta
de largar uma posição libiclinal, mesmo quando percebe o aceno de
um substituto ou equivalente. Freud aqui aponta uma questão, a da
A Dor de Existir

rigidez do eu, que aparece nesse processo de luto e nos permitirá


fazer a ponte entre o luto e a depressão como afeto, da qual nos fala
Lacan em Televisão (1974).
De saída, ·dois conceitos a serem explorados em qualquer
aprofundamento das afecções afetivas: a perda, sua particularidade
de perda da libido, e o eu, que aqui aparece em toda sua multiplicidade,
já que nem mesmo no texto de Freud ele quer dizer sempre uma e
mesma coisa: às vezes trata-se do ego, às vezes do sujeito- que para
a psicanálise é sempre inconsciente-, às vezes ainda do puro objeto
de investimento narcísico. Veremos agora que se acrescenta mais um con-
ceito no estudo psicanalítico da depressão e da melancolia: a inibição.

Depressão e sintoma

No texto Inibição, sintoma e angústia (1975[1926]), Freud ob-


serva que os estados depressivos - e o pior de todos, a melancolia
(sic) -,se dão a conhecer através da inibição generalizada. Sabemos
que neste texto Freud distingue radicalmente inibição e sintoma: as
inibições são limitações das funções do eu, fugas por precaução ou
por empobrecimento de energia. Porém, enquanto estudamos a ten-
tativa de fuga do eu, ficamos longe da formação do sintoma, posto
que o processo que leva do recalque ao sintoma se afirma fora da
organização do eu e independente dela. Não só esse processo mas
também todos os derivados gozam da mesma prerrogativa, poderí-
amos dizer, da extraterritorialidade (Extraterritoria/itaf), e é ali onde
se encontram associativamente com partes da organização do eu
que se deve quesitionar se o isso não as puxa para si, alastrando-se
com esse ganho, em detrimento e às custas do eu.
O sintoma é para Freud, então, um corpo estranho para o
eu - corpo ancorado no recalcado - e a coisa culmina no fato de
que o compromisso entre moção pulsional e defesa (pelo recalque)
-compromisso esse que é o sintoma- é seguido por uma luta inter-

218
r Sonia Alberli

minável do eu contra o sintoma. Essa luta, que é da ordem da


extraterritorialidade, funda-se sobretudo no fato do eu se ver sem-
pre novamente movido a se defender contra algo que lhe escapa.

Na inibição, não: é para não entrar em conflito com algo


que lhe escapa que o eu empobrece funcionalmente, mantendo, no
entanto, a sua supremacia sobre o recalque. Não é funcionalmente
um ego forte, mas ele o é fatualmente, uma vez que se subtrai ao que
determina o sujeito pelo discurso do Outro, no qual as próprias pulsões
se inscrevem conforme o registro da demanda. Se ele não é funcional-
mente forte, não podemos tampouco identificá-lo ao sintoma, como
poderia fazer pensar a função do ego em Joyce (cf. Lacan, 1975).

A depressão é, pois, um afeto que aparece no momento em


que o eu evita a determinação inconsciente, razão pela qual Lacan
pode dizer, relembrando Spinoza, que a depressão é, basicamente,
uma covardia moral. Ou ainda, como Lacan esclarece em Televisão, a
depressão é um afeto normal porque ele reenvia ao fato de estrutura
de que nos furtamos de bem dizer nossa relação ao gozo - ao inverso
do sintoma, novamente, que surge para dizê-la de alguma forma.

Quebra de I(A) e i(a}

Mas, como já vimos acima, não é só de inibição que o qua-


dro da depressão se constitui. A demanda de amor, por exemplo,
aponta uma q uebra do narcisism o que, com o Freud escreveu em
1914, implica no investimento pulsional do eu como objeto. Assim
temos o par que pode parecer paradoxal, de um ego fatualmente
forte, super-resistente, provocando a inibição, e de uma baixa no
investimento libidinal do eu, provocando a quebra do amor narcísico.
Paradoxo aparente, pois teoricamente eles se sustentam perfeitamen-
te: a inibição das pulsões e da libido, provocada pelo ego forte, in-
clui a inibição das pulsões do eu, de for ma q ue as amar rações
(Bandigungen) da libido no objeto amado - o eu - se desfazem .

219
A Dor de Existir

Em termos lacan.ianos podemos aí entrever uma disjunção


entre i e a, deixando a descoberto a identificação do sujeito ao obje-
to na sua acepção de resto jogado fora, acepção frente à qual o
sujeito neurótico pode, perfeitamente, ficar fixado. Nem sempre.
Para fazer frente, muitas vezes o sujeito se desespera por novas amar-
rações, dirigindo então uma demanda infinda ao Outro, na tentativa
de colmatar este encontro com o insuportável de uma travessia não
advertida da fantasia, onde o sujeito é o objeto a. Isso, finalmente,
nos permite uma associação da tentativa de suicídio na depressão
com o atravessamento selvagem da fantasia, quando o sujeito cai -
tal a Jovem Homossexual de Freud (1975[1920]) - como objeto
rebotalho do Outro; no caso, como objeto olhar.

Complexo de Édipo

Normalmente a ferida narcísica que implica uma queda na


sustentação do sujeito só ocorre após o desmoronamento de I(A) -
o ideal do eu freudiano-, a partir da desidealização do Outro. Nos
tempos que correm, tal fenômeno não é difícil, já que a consistência
do Outro, a cada dia, sofre novos abalos (cf. Alberti, 1997): o Outro
do Estado (por exemplo, os escândalos da corrupção), o Outro
parental (por exemplo, a falência do pai) - razão talvez desse enor-
me aumento estatístico da clínica da depressão. Não há quem não
fique deprimido diante dessa situação (cf. também Miller, 1997, p. 13).
Freud já o verificara ao introduzir seu texto Ltto e melancolia, associ-
ando a perda ao Pai, à Pátria e aos Ideais, como uma série de ideais
do eu que, por alguma razão, sofrem um abalo na história do sujeito.
Mas se o sujeito é neurótico, ele tem uma possibilidade - o
que não implica, necessariamente, que dela lance mão - pois fez
uma escolha, inicial, fundamental, de pagar, a qualquer preço, o di-
reito de ser desejante. Esse direito ele o adquiriu - o que ainda não
quer dizer que desfrute dele - no momento que:

220
S onia Alberti

1. renunciou ao gozo da relação dual com a mãe,


2. construiu para si um sintoma que tem por função interdi-
tar aquele gozo que implicava sua aniquilação de sujeito.
É necessário que seja um sintoma porque ele surge ali onde
algo não vai bem no real do gozo, uma vez que esse gozo implica a
própria perda, a flxação do sujeito como objeto de gozo do Outro,
da mãe. E o sintoma, justamente, tem essa função de apontar isso e
de fazer o sujeito tomar uma atitude frente a isso, como já dizia
Engels, depois de Marx, de mudar a situação - como mostra a
acepção do sintoma por Marx, o primeiro a apontar sua função no
laço social (cf. Alberti, 1997a).
O complexo de Édipo é, para Freud, esse sintoma, como
todo psicanalista deve saber. Ou melhor, o complexo de Édipo é
esse sintoma que melhor faculta ao sujeito o acesso ao desejo, e é
difícil que numa análise - ato de sustentar o desejo e por este sus-
tentado - o sujeito não termine por se deparar com ele. Razão tam-
bém da ocorrência entre os autores da psicanálise de colocar o Édipo
como divisor de águas entre a neurose e a psicose (por exemplo
Quinet, 1990).

A clínica

Se um sujeito vem nos procurar fora do contexto psiquiátri-


co - normalmente fora do surto - não é evidente um diagnóstico.
Há que se fazer um diagnóstico diferencial entre a neurose e a psi-
cose, a partir das referências clássicas das quais a clínica lacaniana
lança mão: alucinações verbais, automatismo mental, distúrbios da
linguagem. Quanto à melancolia, a psiquiatria clássica nos ensina a
forma de seu delírio: delírio de negação que, ao contrário do para-
nóico que orgulhosamente tenta contrapor-se à crítica e à persegui-
ção do Outro, condena o sujeito antes mesmo de um julgamento

221
A Dor de ExiJtir

justo por um pecadinho qualquer, condenação frente à qual o sujei-


to assume a posição de máxima humilhação, concordando, desde
sempre, com a culpa que lhe é imposta.

Fora disso, o sujeito pode se manter num semblante no qual


tenta nos convencer da franca fraqueza, da franqueza que ocasiona
seu apelo. Demanda de amor enorme com a qual nos acostumamos
na clínica com neuróticos.

E la era a queridinha de seu pai. Mas seu pai começou a be-


ber e já não a amava. "É muito pior perder o que já se conheceu do
que nunca tê-lo conhecido". Mas ela ainda procurou se agüentar. Co-
meçou a trabalhar e vendo que dava certo o que fazia, anunciou que o
queria ensinar. O problema é que surgiram alguns alunos e foi então,
caindo na real de sua própria inconsistência, que ela fugiu, literalmente,
deixando os alunos no ar. "Como poderia eu ensinar o que não sabia?
Ensinar o que não tinha direito? O que não podia sustentar?"

Chamada a assumir uma posição no desejo frente ao Outro


ela não se depara com ele mas, ao contrário, foge em sua covardia sim,
mas fundamentalmente em sua covardia de ser um sujeito do desejo.
Dessa época lembra-se muito pouco senão da errância, da perda, da
vergonha, o vexame de não apostar. Como depois encarar de novo as
mesmas pessoas que já não são as mesmas pois acusam, olhares que já
não refletem nenhum ideal, senão o escracho do qual ela própria é
autora? Ela própria já não sabe quem é pois não dá prá mais nada.

Então pede, esmola, suplica o amor que não consegue rece-


ber, e acaba, com suas súplicas, se tornando tão insuportável que
sempre novamente é rejeitada e não consegue fazer nenhum traba-
lho. Reação maníaca à sua desesperança, durante a qual não pára de
falar, insistir, procurar.

Éric Laurent (1988) em seu texto, agora já clássico, sóbre a


melancolia observa: o melancólico procura forçar a barra sobre o
Outro - ela realmente força a barra, de tão chata. A vertente maníaca

222
S onia Alberti

disso é essa forçação, enquanto que na melancólica a saída chega às


raias do suicídio, onde o sujeito, num último impulso, tenta se sub-
trair do Outro, caindo como objeto para descompletá-lo. Não é por
nada que o melancólico só se suicida quando está na fase
hipomaníaca, quando sai da depressão profunda. Naquela, ele se
encontra como que petrificado sob o jugo do Outro absoluto, sem
poder se mexer. Ele é todo submetido ao Outro, até o ponto do
estupor. Quando consegue disso sair de alguma forma, aí a tentativa
de descompletar esse Outro absoluto aparece.
No caso acima, a tentativa de desmascarar a inconsistência
do Outro jamais arrefece, enquanto que o melancólico, submetido
ao Outro sem barra, produz o ato suicida, como forma última de
subtrair-se desse jugo do Outro, deixando de existir. Suicídio de
separação por excelência, como aliás já apontava Cottet em 1985.
A demanda de amor pode se tornar desmesurada, pertur-
bando o interlocutor, dando provas de que qualquer prova de amor
que se dê não se sustenta, não cria história, não se associa, como se
a tentativa não fosse justamente a de reconstruir um ideal mas, ao
contrário, desmascarar sempre, novamente, uma inconsistência.
Por que o sujeito tem que cair doente para se dar conta da
enorme verdade dessa inconsistência? Pergunta que se associa àquela
de Freud sobre a melancolia, onde dizia: ''Por que o homem tem que
cair doente para se deparar com a verdade de sua própria mesquinhez?''
Se é preciso ficar doente para se dar conta da enorme verda-
de da inconsistência é porque essa inconsistência a priori é vivida
como insuportável. Veja-se, por exemplo, o recente texto de Colette
Soler (1997) que mostra que para aquele que realmente assume esta
inconsistência, como se assume a castração, o afeto decorrente não
é de tristeza. O encontro com a castração é um horror de tal ordem
que não pode provocar como efeito senão o entusiasmo. Mas se não
há essa inconsistência, então o ideal que cai numa experiência de
o
perda, ideal que está no lugar do Outro para sujeito, deixa a desco-

223
A Dor de Exiiiir

berto um Outro que só lhe quer mal e frente ao qual o sujeito acaba
por ser o pior. Eis também a referência ao mau trato que sofre o eu
do melancólico pelo supereu, apontado por Freud inúmeras vezes.
A depressão algumas vezes verificada no final de uma análi-
se, não é portanto efeito do encontro com a castração mas reação
do sujeito à inexorável perda da libido vinculada à fantasia que o
sustentava até então. No lugar de uma reação terapêutica negativa-
que poderíamos traduzir como uma perda da libido investida no
próprio tratamento - , quando ao contrário se acirra aquela vinculação,
o final da análise leva o sujeito à travessia da fantasia.
Para além do luto, a depressão talvez possa trazer luz ao
tema da escolha da doença. Pois a melancolia implica essa covardia
que tão bem Lacan soube explorar a partir de Spinoza. Covardia
moral ali onde o sujeito, em princípio, se depara pela primeira vez
com seu ato.
Freud estabeleceu esse momento. Ele o descreve já no
Projeto, quando diz que é na experiência de satisfação que o sujeito
adquire os motivos morais. O Outro primordial tem sua atenção
despertada pela necessidad~ do sujeito, permitindo a este a ex-
periência de satisfação. Mas para que isso ocorra, de alguma for-
ma é preciso que o sujeito promova nesse Outro primordial o
despertar da atenção.
Se algo levasse ao querer, não haveria essa covardia de pro-
mover no Outro a atenção. Quem quer não impõe limites a este
querer e diante desse querer não se acovarda de forma que o m e-
lancólico está entre o não querer e o não poder, não querer já e
o não poder ainda, assim como o neurótico fica entre o não
penso e o não sou.
Covardia que, é claro, não se reduz à psicose, mas que nela
encontra toda sua explicação, provocando no sujeito essa dor de
existir quando não se é apossado pelo entusiasmo por uma ação.

224
S onia Alberti

Melancolia ou neurose obsessiva?

Muitos pontos em comum há entre a melancolia e a neuro-


se obsessiva. Convencionou-se chamar de melancolia, no Campo
freudiano, a afecção psicótica descrita já pelos autores clássicos do
século XIX. O próprio Freud, sobretudo em 1923, aponta para uma
diferença que diz respeito à forma pela qual o eu reage frente às
acusações que lhe são dirigidas: na neurose obsessiva, o eu do sujei-
to rebela-se contra as auto acusações; na melancolia "seu eu é um eu
todo culpado, ele equivale ao objeto estranho para o supereu e por
ele criticado" (Alberti, 1996, p. 106).
No entanto, não podemos deixar de levantar as questões, igual-
mente apontadas por Freud, que aproximam a neurose obsessiva da
melancolia. Se há algo que identifica a melancolia à neurose obsessiva,
é essa pulsão sádica dirigida ao próprio eu. Só que na melancolia ela
assume a característica de pulsão de destruição - não só dirigida ao eu
mas ao mundo inteiro-enquanto na neurose obsessiva trata-se da pulsão
de dominação, o que, na referência lacaniana, inscreve o obsessivo no
jogo petrificador entre o mestre e o escravo (cf. Quinet, 1991, cap. 1).
Em ambos os casos a ambivalência está na origem do luto
patológico pela perda que não se cura. Essa perda do amor - perda
da libido - pode provocar tanto uma idealização do amor - como
uma tentativa de retomar agesta/tidealizada, o que aparece, por exem-
plo, na excessiva demanda de amor -, quanto a descrença nele e a
dúvida- às vezes delirante - em relação à sua existência. Na melanco-
lia, essa dúvida pouco persiste, transformando-se numa certeza deliran-
te: ninguém pode amar alguém tão vil. Na neurose obsessiva, ao con-
trário, persiste a demanda de amor, apesar da vergonha, do vexame de
não apostar, como dizia aquela paciente. Não há perda de um objeto
que não promova, de alguma forma, a ambivalência, pois se, por um
lado, ao ente querido que se vai estão ligados os melhores sentimentos,
por outro, a ira que esta partida provoca é de igual pertinência.

225
A Dor de Existir

Assim, para concluir sobre o caso acima, coloca-se a hipóte-


se de uma neurose obsessiva feminina, ressaltando a crueldade des-
sa neurose para a mulher. Por mais difícil que seja um diagnóstico
neste caso, a patente covardia em se assumir como sujeito do desejo,
as dificuldades de escolher - para não perder - e o sadismo - a
fantasia sexual, no caso, é a de obrigar o homem à cópula -, não
deixam dúvidas quanto à inscrição do sujeito a partir da estrutura da
linguagem, da sua referência à significação fálica, e a frase inicial-
mente emitida- "É muito pior se perder o que se conheceu do que
nunca tê-lo conhecido"-, e referida ao pai, atesta o complexo de
Édipo como inscrito no simbólico. A ausência de memória da qual
se queixa se deve ao fato de investir todos os objetos ao mesmo
tempo, o que podemos chamar, com Freud, de um padecimento do
próprio pensamento. Já não se lembra o que disse, nem para quem,
pois diz a todos ao mesmo tempo, o que na psicose implicaria um
vazio de memória que atesta o inconsciente a céu aberto.
Podemos dizer então que, algumas vezes, sem a referência à
teoria psicanalítica, o diagnóstico diferencial por não implicar a dife-
rença entre neurose e psicose, só referido aos DSMs, pode confundir o
clínico, já que a fenomenologia engana, como enganam as aparências.

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CampoFreudiano. São Paulo, abril de 1997.
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Sonia Alberti

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dm An.fiingen der Psychoana!Jse. Op. cit.
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SOLER, C. "Lâcheté morale ou... gai savoir" in Silho11eltes du diprimé. Op. cit.

227
UMA DOR DE MEDÉIA

Maria Anita Carneiro Ribeiro


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Em Obsessões e Fobias (1985[1894]), elaborando uma série de


observações sobre a neurose obsessiva, Freud cita genericamente o
caso de mulheres com a idéia obsessiva de matar seu próprio filho.
E mAs neuropsicoses de defesa (1985 [1894]) descreve com mais minúcia
um destes casos. Trata-se de uma mulher que tem duas idéias obses-
sivas: a de jogar-se da janela e a de esfaquear seu filho único. No
deciframento dos sintomas, Freud atribui o jogar-se dajanela a uma for-
mação substitutiva do chamar um homem dajanela como o fazem as pros-
titutas, porém a idéia de esfaquear o filho permanece não decifrada.
A senhora em questão tem, de fato, uma vida sexual bastan-
te insatisfatória, o que é revelado com grande esforço a Freud. Esta
insatisfação, na verdade, se iniciara após o nascimento do filho, com
as medidas contraceptivas precárias do século passado, que incluí-
am sobretudo o coito interrompido ou a ausência, pura e simples,
do comércio sexual entre os parceiros.
Uma primeira possibilidade de deciframento deste sintoma
poderia ser, então, a de que esta mulher atribuísse inconscientemen-
te a causa dos seus males a este filho e desejasse destruí-lo. Porém a
clínica com mulheres obsessivas nos faz observar que este mesmo
sintoma, com algumas variações, aparece mesmo quando o elo cau-
sal - filho -7 privação sexual - não aparece clara ou ocultamente.
As variações deste sintoma encontradas na clínica são as
seguintes:
A Dor de Exütir

1. excessivas preocupações com a segurança e o bem-estar


do filho, evidenciando-se na idéia obsessiva de que "algo de mal"
pode lhe acontecer. Estes pensamentos tornam-se insistentes e tor-
turantes. Uma sutil variação desta fórmula é indicada pela idéia:
"Se eu pensar nisto (no mal que vai acontecer), não acontece. Se eu
me esquecer de pensar, acontecerá".
Uma mulher obsessiva pensa sem parar, por exemplo, que
seu filho será atropelado, com requintes de morbidez: o corpo es-
magado, o sangue etc. Se parar de pensar nisto, acha que o filho será
de fato atropelado e, ainda mais, por um caminhão. Ao falar de si
mesma, deftne-se como "um trato r".
2. excessiva preocupação com a saúde física do filho, levan-
do a mãe obsessiva a interpretar pequenas doenças inevitáveis na
infância como risco iminente de vida, e transformando crianças sau-
dáveis em doentes crônicos, ou seja, matando-as aos poucos por
excesso de medicação indevida. Nestes casos, é interessante notar
que o tratamento psicanalítico da mãe resulta em melhoria do esta-
do de saúde física da criança.
Em todos os casos citados, as mulheres em questão têm em
comum o fato de que seus maridos perderam, pelas mais variadas
razões, o interesse sexual por elas.
Estas manifestações clínicas nos fazem reinterrogar um nos-
so primeiro deciframento apressado do sintoma descrito por Freud.
Ele próprio nos adverte que na neurose obsessiva a falha do recalque
faz aparecer na consciência idéias de morte de pessoas queridas que, caso o
recalque tivesse sido realmente bem sucedido, seriam censuradas.
No caso do Homem dos Ratos, Freud nos diz sobre o obsessivo:
Porém, sobretudo, eles necessitan1 da possibilidade da morte para solucio-
nar os cotiflitos que deixam sem resolver( .. ) Assim, em cada cOiiflito
vita~ esperam a morte de 11ma pessoa significativa para eles, na maioria
das vezes uma pessoa amada, s9a um dos pais, s9a um rival ou um dos
objetos de an1orentre os quais oscila sua inclinação (1985[1909), p. 184).

230
Maria Anila Carneiro Ribeiro

Nossa pergunta é: por que a mulher obsessiva inclui o


filho nesta série, já que não observamos este fenômeno no homem
obsessivo?
Não estamos negando a hipótese da emergência de um ódio
mortífero de um homem obsessivo contra o filho. Porém, quere-
mos examinar a equação proposta por Freud para além de uma in-
terpretação simplista, invertendo nossa hipótese inicial - perda do
lugar de objeto de desejo do homem~ idéias obsessivas de matar o
filho - com todas suas variantes: medo de que ele morra, que fique
doente etc.
Propomos, então, que as fantasias mortíferas em relação ao
filho independem de qualquer atribuição causal àquele f.tlho da pri-
vação sexual da mulher obsessiva, mas que estas fantasias decorrem
da perda do lugar de objeto de desejo do homem. Para examinar-
mos melhor nossa nova hipótese, será necessário estudar de perto a
forma específica pela qual a mulher obsessiva "banca o homem",
em comparação com a estratégia usada pela histérica.
Antes porém, um outro passo se impõe: trata-se de traçar o
limite necessário entre "ser um homem" e "bancar o homem", uma
vez que se, como nos diz Freud, anatomia é destino, este destino
não é dado automaticamente ao sujeito pelo simples fato de nascer
homem ou mulher. O destino é traçado pelo Outro do significante
que, mapeando o corpo do sujeito com palavras que designam suas
várias partes, o mortifica e o transforma em corpo significante. As-
sim, um sexo é atribuído ao sujeito numa operação complexa em
que a intervenção do desejo do Outro deixa suas marcas.
Aqueles que são designados como homens portam um tra-
ço identificatório comum, marcado no imaginário do corpo pelo
órgão peniano, o que permite a eles se inscreverem na ordem do ter
e se colocarem do lado do todo sob a égide do significante: todo
significante. Àquelas que são designadas como mulheres caberá um
fardo a mais, ou seja, na falta de um significante que dê conta do que

231
A Dor de Existir

é ser uma mulher, arranjar por sua conta e risco uma maneira espe-
cífica de tornar-se mulher. É o que Lacan resume no Seminário: mais,
ainda, através das fórmulas quânticas da sexuação:

:3x <I>x :3 x <I>x

'<f X <l> X 'Vx <I>x

s ($)

\t
<I>

(1982[1972-73), p. 105)

Evidentemente, inscrever-se do lado masculino- todo fálico


-não resolve a questão do ser do sujeito. É o que está representado
na.fórmula pela seta que vai de$ até a, do lado feminino. O sujeito
do inconsciente ( Í ), representado pelo significante para outro
significante, não encontra na cadeia o último significante que dê
conta de seu ser, pois este último significante não há. Lacan assim o
diz no Seminário: RS.I:

232
Maria Anita Carneiro Ribeiro

[..] aqueles que tem este estmpício, que um dia qualifiquei como
penduricalho, bom, terá que se acomodar com isso, ou sda, que ele se case
com esse falo. É onde o homem nada pode. A m111her, que não ex-siste,
pode sonhar em ter 11m mas o homem é afligido por isso, ele só tem essa
m11lher (1974-75).

Em outras palavras, àqueles que tomam seu "penduricalho"


como falo só resta buscar no objeto de sua fantasia o complemento
de seu ser e, facilizando uma mulher, torná-la sua: seu sintoma.
Stella Jimenez, no trabalho que apresentou na abertura das
jornadas sobre$Mu/her, denuncia o engodo "desse aparente con-
formismo masculino com o significante", ao observar que "o con-
junto fechado não existe, que todo conjunto contém em si mesmo o
conjunto vazio e, portanto, todo conjunto está aberto ao infinito"
(1995, p. 31). É o que demonstra o homem histérico que, sendo
homem e inscrevendo-se na partilha dos sexos como tal, não se
deixa iludir pelo semblante que o significante oferece e, na estraté-
gia de sua neurose, denuncia a falta que é de estrutura.
Quanto às mulheres, que se inscrevem do lado não-todo
fálico, resta "bancar o homem" para se sustentarem como seres fa-
lantes, sujeitos da linguagem - $ - do lado masculino. Genevieve
Morei mostra como histeria e feminilidade podem coexistir numa
mesma mulher: "a histeria pode então se representar como um todo
fechado, quer dizer contendo seu limite no aberto precedente [o
não-todo]: o todo do bancar o homem, que não coincide com ser um
bomenl' (1993, p. 104). A autora, entretanto, faz de certa forma coin-
cidir histeria com feminilidade, uma vez que só reconhece esta for-
ma de "bancar o homem" e não acredita na existência de mulheres
obsessivas, como teve oportunidade de afirmar na sua última visita
ao Rio de Janeiro.
A nosso ver, este tipo de questão não cabe pois, uma vez
que a neurose obsessiva é uma invenção de Freud, como já desen-
volvemos em outro lugar (1997), neurose obsessiva é o que Freud

233
A Dor de Existir

defmiu como tal, e já que Freud se refere não a uma, mas a várias
mulheres obsessivas, só nos resta estudar esta forma específica de
"bancar o homem". Talvez seja mais fácil para nós, analistas
lacanianos, aceitarmos sem discussão a histeria masculina pelo fato
de Lacan ter dedicado dois capítulos do Seminário: as psicoses ao as-
sunto, mas não devemos nos esquecer que, em pelo menos dois
outros seminários, Lacan trabalha casos de mulheres obsessivas, sendo
que em um destes o diagnóstico é feito por ele próprio (1985[1954-55]).
É justamente neste caso, o de uma paciente de Fairbairn,
diagnosticada pelo autor como psicótica maníaco-depressiva e por
Lacan como obsessiva, que este vai nos indicar a maneira particular
da mulher obsessiva "bancar o homem": "É na medida em que ela
se identifica com o homem imaginário, que o pênis adquire valor
simbólico, e que vai haver problema" (Idem, p. 341).
Na histeria, o "bancar o homem" também vai estar suporta-
do na identificação, porém não da mesma forma. No caso Dora,
temos em primeiro lugar a identificação ao pai pela via do sintoma-
do traço simbólico - denotado na afonia, através da qual ela "banca
o pai", sustentando seu desejo. No caso, o objeto de desejo em ques-
tão é a Outra mulher, a Sra. K., na qual Dora interroga o enigma de
sua própria feminilidade. É o que fica claro quando a jovem se iden-
tifica ao Sr. K ., tolerando sua corte para melhor "bancar o homem"
na interrogação constante do que é uma mulher.
Na neurose obsessiva a questão relativa ao feminino fica
ocultada por trás da questão relativa à morte, para homens e para
mulheres. Na verdade é a mesma questão, vertida em dialeto, uma
vez que também não existe no inconsciente o significante que re-
presente a morte, o que poderia ser resumido dizendo-se que um
dos nomes d'A mulher é a morte. O homem obsessivo questiona a
morte inscrevendo-se do lado todo-fálico, todo significante, por cair
no engodo de que tem o falo.

234
Maria Anila Cameiro Ribeiro

A mulher obsessiva, melhor do que a histérica, denuncia


que o falo não é o pênis, que o falo é semblante por excelência. Não
tendo no corpo o suporte imaginário do falo, identifica-se ao ho-
mem imaginário, falicizando o que no caso vier a propósito: sua
inteligência, seus bens, qualquer qualidade que suponha que o Ou-
tro lhe atribui e através da qual imagina que pudesse saturar a falta
no Outro: 1}. O <p (a~ a'~ a'" ... )
É o que nos mostra uma mulher obsessiva que optou, há
mais de quarenta anos, pela vida religiosa. Não sendo mística, seu
lugar de esposa do Senhor é sustentado no cotidiano pela relação
que mantém com os outros com quem convive e de quem espera a
confirmação de seu valor fálico. Considerada como uma grande em-
preendedora, mulher de organização impecável, indispensável na
direção de um dos colégios de sua congregação, vê-se subitamente
destituida de todo valor fálico por uma súbita e inesperada transfe-
rência de instituição, com a respectiva destituição de cargo. Lançada
no vazio da falta, é tomada por pensamentos de desgraças e tragédi-
as que aconteceriam no colégio do qual fora transferida: as crianças
morreriam, o prédio se incendiaria, as irmãs iriam ser violentadas
num assalto. Em suma, pensamentos nada adequados a uma religio-
sa, o que provocava insistentes auto-recriminações.
Vemos aí se repetir com uma variante curiosa - a opção de
vida religiosa- os casos citados no início do trabalho. Em se tratan-
do de mulheres que não são freiras, a fragilidade do "bancar o ho-
mem" da obsessiva se revela ainda mais claramente, pois toda sua
consistência fálica passa a estar na contingência de ser amada e de-
sejada por um homem.
Se a histérica "banca o homem" para sustentar a questão do
seu ser na Outra mulher, a obsessiva faz o curto-circuito destaques-
tão pela identificação à imagem do homem: ela é o pai morto, e é no
eixo imaginário que vai buscar aquele- igual e/ ou rival - que subs-
tituirá o pai amado, falicizando-a como sua mulher. É o que de-

235
A Dor de Existir

monstram os clássicos casos freudianos das damas do tapete


(1985[1913]) e da lavagem (1985[1907]), que sustentam, com seus
sintomas e rituais, seus únicos, insubstituíveis e inesquecíveis maridos.
A idéia obsessiva de matar o filho com todas as suas varia-
ções, inclusive a da freira que imaginava as crianças do colégio mor-
rendo queimadas no incêndio, aponta para a verdadeira natureza do
ato obsessivo presente nos rituais das damas citadas: uma defesa
contra o ato de Medéia. Estas mulheres, deixadas cair do lugar de
causa de desejo por seus maridos impotentes, misógenos ou desin-
teressados, aferram-se aos a tos repetitivos em que "bancam seu ho-
mem" diante do terror de serem tragadas pelo abismo da ausência
da representação- S (fi.) - diante da pergunta que se reabre na falta
do desejo do Outro que sustentava sua pseudo-resposta: ''Afinal, o
que sou eu, uma mulher?"
A histérica, ao "bancar o homem", sustenta esta pergunta e
se furta, ou se recusa com asco, a presentificar este objeto -libra de
carne - que causa o desejo masculino: é a anestesia sexual que sus-
tenta o repúdio histérico em ocupar o lugar de objeto. A obsessiva,
escrava, se presta solícita a encarnar este papel que lhe é duplamente
conveniente: satisfaz sua hiperestesia sexual, fornecendo-lhe a satis-
fação fálica da pulsão genital, e a adorna com o brilho agalmático,
ao encarnar o falo para um homem pela via do desejo. Ou seja:

Assim, ao contrário da histérica, cuja neurose se adscreve à


não aceitação da posição de objeto, para a mulher obsessiva ser dei-
xada cair do desejo de seu homem é ser tragada pelo inominável do
vazio da pulsão de morte lá onde Isso cala, lá onde não há represen-
tação significante:

236
Maria Anila Carneiro Ribeiro

s (i)
s ~

~~
<I>

É do horror desta posição de total desvalimento que as da-


mas do tapete e da lavagem se protegem com seus rituais que sus-
tentam seus homens. As idéias obsessivas da paciente de Freud que
pensa em esfaquear o filho, da freira que pensa no colégio incendi-
ado com as crianças mortas e das outras mulheres citadas que te-
mem o desastre iminente e a doença que lhes levaria suas crias reve-
lam, pela falha do recalque peculiar ao mecanismo do deslocamen-
to, o que está na verdade em questão: decaída da posição fálica de
objeto agalmático de desejo, a mulher obsessiva não faliciza mais o
seu filho, que só é equivalente do falo uma vez que é o dom de amor
de um homem que a faliciza em primeiro lugar.
A posição desesperadora da mulher obsessiva diante da
ameaça de ser tragada pelo furo no Outro [S ($)] faz com que, mui-
tas vezes, a dor de existir própria da neurose obsessiva feminina seja
confundida com a melancolia. É o que sucede com a paciente de
Fairbairn, cujo caso é reavaliado por Lacan no Seminário: o eu na teoria
de Freud (1985[1954-55]), com uma jovem cujo caso descrevi em
outro trabalho (1997) e com a freira que inutilmente tomava lítio por
prescrição psiquiátrica, sem melhoria de suas condições clínicas.
Em seu debate com Karl Abraham, cujo ápice se condensa
em Luto e Melancolia (1985 (1917]), Freud insiste que a pulsão parcial
em causa na melancolia era sobretudo a pulsão anal. Ejetado do
Outro pela foraclusão do Nome-do-Pai, o melancólico é o dejeto
merdificado deste Outro, o excremento podre, ferida aberta por onde
se esvai a libido, pulsão de morte encarnada e assumida pela auto-
recriminação. O objeto da pulsão anal aproxima a melancolia à neu-

237
A Dor de Existir

rose obsessiva, o que faz com que uma obsessiva, no desespero de


sua dor de existir, diga à analista: "Eu sou a maior merda do mun-
do!". Se considerarmos que a auto-recriminação é o recurso último
de que se valem as mulheres obsessivas que, na falha de rituais pro-
tetores, são assoladas pelas idéias de destruir seus fllhos, como dis-
tinguir entre a auto-recriminação obsessiva e a auto-recriminação
melancólica?
No Rascunho K (1985[1896]), Freud centra a distinção entre
neurose obsessiva e paranóia no destino dado à auto-recriminação
que é a representação do trauma. Trata-se de uma representação
auto-recriminatória devido ao excesso de gozo que acompanha o
encontro traumático com o sexo nas duas estruturas clínicas. Na
histeria é o menos de gozo, sob a forma de repulsa ou nojo, que
marca a cena traumática, e o destino dado à representação obedece
ao seguinte esquema:
HISTERIA:

Tra11111a ~ menos de gozo ~ representação ~ complacillcia somática~ COI/versão ~si11toma


I (co11densação)

v
recalque

Na neurose obsessiva e na paranóia temos:

NEUROSE OBSESSNA:
..,.. gozo . . _ d , jon11ação de .d,. b .
1rauma~ . ~ auto-remmmaçao ~~ u.ocammto~ ~ 1 e1a o sesnva
exresnvo compromisso

v
recalque
PARANÓIA:

Trauma~ gozo ~ aulo-remmillação ~ ausê11cia de represmtação ~ retorno 110 rral


exrmi110 (projeção da auto-rtmmillação) ( 110zes)

238
Maria Anila Carneiro Ribeiro

O diferencial que demarcarará a distinção entre neurose


obsessiva e paranóia é a crença na auto-recriminação, ou seja, a cren-
ça no significante. Na neurose obsessiva o sujeito crê na auto-recri-
minação, ou seja, crê no significante como efeito da operação da
metáfora paterna, e assim o significante funda o inconsciente, cain-
do sob a barra do recalque. Na paranóia o sujeito retira a crença da
auto-recriminação, ou seja, não crê no significante, a metáfora pater-
na não opera, o significante é foracluido e retorna no real.
Ora, se tomamos como Freud a melancolia como uma psi-
cose, deveríamos encontrar aí também a retirada da crença na auto-
recriminação, e no entanto embora a auto-recriminação não seja um
fenômeno obrigatório na melancolia, ele é aí freqüentemente en-
contrado. Freud nos dá a resposta a esta aparente contradição, em Últo
eMelancolia, quando nos diz que a auto-recóminação melancólica é, na
verdade, recóminação ao Outro, lamento e queixa dirigidos contra o
objeto perdido, cuja sombra caiu sobre o sujeito. Teríamos assim:

MELANCOLIA:

hemorragia ausência de 'd hift - rurinJinação auto-


Trauma~ J [b 'd ~ • ~ I en raçao ao~ ronlra o ~
oa 1 1 o repmenlaçao objelo perdido oijelo perdido mriminação

Assim sendo, a auto-recriminação na melancolia não impli-


ca na crença no significante. O que a melancolia revela é o estatuto
real do objeto cuja sombra recai sobre o sujeito. O que é foracluido
do simbólico retorna no real no sujeito.
A aúto-recriminação das mulheres obsessivas não recai so-
bre o objeto, mas sobre os próprios pensamentos carregados das
moções destrutivas da pulsão de morte. Ao imolar imaginariamente

239
A Dor de Existir

o filho no altar da pulsão de morte, a obsessiva denuncia que a mu-


lher não é a mãe e que o filho não é o falo. Em seu artigo sobre
Neurose obsessiva efe!11inilidade (1993), Esthela Solano nos adverte para
o cuidado que o analista deve ter ao tentar desalojar a mulher obses-
siva de seu lugar fálico. A dor de Medéia das mulheres obsessivas,
que perderam o brilho fálico do amor de seus homens, ecoa a voz
do corifeu da tragédia de Eurípedes:

"Q11e poderia acontecer de mais terrível?


Ah! Leito n11pcia~ Ject~ndo em sofrimentos
para as m11lheres, q11antos malesjá ca11saste!" (1995, p. 69)

Referências Bibliográficas

EURIPEDES. Medéia, Hipólito e As Troianas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Edi-


tor, 1995.
FREUD, S. ""Las neuropsicosis de defensa" (1894). Em: Obra.; completas. Vol.
III.. Buenos Aires, Amorrortu, 1985.
_ __ _ "Obsesiones y fobias (1894). Em: Obras conlj>letas. Idem.
_ _ _ _ "Manuscrito K"(1895). Em. Obras completas. Idem.
_ _ _ _ '~cciones obsesivas y práticas religiosas" (1907). Em: Obras com-
pletas. Vol. IX. Op. cit.
_ _ _ _ '~ proposito de un caso de neurosis obsesiva" (1909). Em: Obras
completas. Vol. X. Op. cit.
_ _ _ _ "La predisposición a la neurosis obsesiva" (1913). Em: Obras com-
pletas. Vol. XII. Op. cit.
_ _ _ _ "Duelo y melancolia (1917). Em: Obras conlj>lelas. Vol. XIV Op.
cit.
JIMENEZ, S. ''Mulheres. .. entre o ser e o nada". Em:A Mulher: na psicanáli-
se e na arte. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1995.
LACAN, J. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise
(1954-55). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

240
Maria Anila Cameiro Ribeiro

- - - - O Seminátio, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge


Zahar Editor, 1982.
____ O Seminário, livro 22: RS.I. (1974-75). Inédito.
MASSON, J. M. Correspondência completa de Freud para Fliess. Rio de Janeiro,
Imago, 1986.
MOREL, G. "Conditions féminines de juissance". Em: L'Autre sexe, n. 24.
Paris, Navarin, 1993.
RIBEIRO, M. A. C. "Faire la fenêtre". Em: VII Encontro Brasileiro do Cam-
po Freudiano. São Paulo, 1997. Inédito.
SOLANO, E. "Névrose obsessionnelle et féminité". Em: L'Autre sexe. Op. cit.

241
A MULHER DA DÍVIDA

Silvana Maria Esteves Freire


Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro

Introdução: luto, depressão e melancolia

O que difere o luto da melancolia? A que vicissitudes cada


um desses estados de dor leva o sujeito? O que o aprisiona nessa dor?
Estas são questões bastante atuais que mobilizam os profis-
sionais de saúde - sejam eles psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas
- e os levam a uma reflexão sobre o tema, visto que na clinica as
diferenças, por vezes, são sutis. Estas questões, tão atuais, são atuais
desde Freud, desde 1895 no Rascunho G, do Freud de 1897 no Rascu-
nho N, e mais precisamente desde 1915 em Luto e Melancolia.
Mas não só as questões são atuais, como também é atual o
que Freud nos ensina desde aquela época. Já em Luto e Melancolia
Freud nos descreve estes estados de dor nas suas três modalidades,
ou seja, o luto, a depressão e a melancolia. Ao luto ele dá o cunho de
"afeto normal"; à depressão - que nomeia de "estados obsessivos
de depressão" - e à melancolia, o cunho de "patológico". O que
esses estados de dor têm em comum diz respeito a uma perda
significante, e o que determina a patologia é a presença do conflito
devido à ambivalência amor-ódio expresso na depressão como auto-
recriminação, e na melancolia como autotortura.
A Dor de Existir

Na verdade, temos que aprofundar os termos deste primei-


ro diagnóstico diferencial. Luto não é depressão e depressão não é
melancolia. No luto o sujeito está atravessado ~ela falta. Na melan-
colia ele é absorvido na falta, ele é a própria falta, a sombra do
objeto perdido que recai sobre ele. Na depressão o sujeito tenta
tamponar a falta que não tolera.
A depressão é uma resposta neurótica ao luto. Não é um
sintoma, mas está associada ao sintoma, como Freud o indica quan-
do nos fala de "estados obsessivos de depressão". O neurótico ob-
sessivo pode fazer um quadro de depressão que se assemelhe à me-
lancolia. Freud aponta a proximidade fenomelológica entre melan-
colia e neurose obsessiva dizendo que:
onde existe uma disposição para a neurose obsessiva, o cotiflito devido à
ambivalincia empresta um cunho patológico ao luto, forçando-o a expres-
sar-se sob forma de auto-recriminação no sentido de que a própna pessoa
enlutada é culpada pela perda do oljeto amado, isto é, que ela a desqou
(1990[1917], p. 283).

Mais adiante acrescenta que o conflito de ambivalência amor-


ódio, que está na base dos "estados obsessivos de depressão", é
uma das "pré-condições da melancolia". Diz ainda Freud:
Das três pré-condições da melancolia -perda do oljeto, ambiva/incia e
regressão da libido ao eu - as duas primeiras também se encontram nas
auto-recriminações obsessivas que surgem depois da ocorrência de uma
morte" (Idem, p. 291).

E eu acrescentaria, de grandes perdas.


Já em 1915, portanto, Freud nos alerta para a questão do diag-
nóstico diferencial como estratégico para a direção da cura apontando
que a analogia entre luto e melancolia é fenomenológica e a diferença é
estrutural. O luto é da ordem da neurose e a melancolia, da psicose. O
que resulta do trabalho de luto é "o eu outra vez livre e desinibido"
(Idem, p. 277) ou, em outras palavras, um reviramento dialético, uma

244
Silvana Maria EIItvu Freire

retificação subjetiva. Já a melancolia pode reverter para a mania que


funciona como um curativo numa ferida nardsica dilacerada.
Na verdade, o conflito devido à ambivalência amor-ódio só
está presente na neurose obsessiva, uma vez que na melancolia a
hemorragia da libido resulta no império da pulsão de morte que se
dirige ao objeto perdido, ao qual o sujeito está identificado, e assim
sendo recai sobre o sujeito sob a forma da autotortura.
Na melancolia o que se vê, então, é um apagamento do su-
jeito sob o peso do objeto, o que, segundo Freud, aponta para dois
caminhos. Se levada às últimas conseqüências tem como resultado a
passagem ao ato, o suicídio. Se não, o que pode advir é um estado de
"mania" que não corresponde em nada ao oposto da melancolia,
muito pelo contrário. A mania é tão-somente o avesso da melanco-
lia. O que se articula na mania é um absoluto "Eu me amo"; na
melancolia, um absoluto "Eu me odeio". Mas nas duas vertentes o
que está em jogo é o imperativo do gozo. O sujeito em estado de
luto vê sua imagem especular maculada, enquanto o melancólico a
vê esfacelada na quebra do espelho.

Fragmento de caso: A Mulher da Dívida

"E diante disso tudo não sei se vale mais a pena estar viva
ou estar morta" é o que diz uma senhora de meia-idade de aparên-
cia muito jovem, neurótica obsessiva, após uma longa digressão na
tentativa de formular uma queixa.
Muito inteligente e dotada de excelente fluência verbal, arti-
cula sua fala em metáforas onde tudo está subentendido. Detentora
de um saber irrefutável, tem plena "consciência de si" e de suas
mazelas que expõe num discurso narcísico repleto de chavões tais
como: "mania de onipotência", "processo de autodestruição", "ten-
dência ao masoquismo" etc. Recusa-se a contar a sua história, uma

245
A Dor de Exiitir

vez que "não gosta de falar de si, pois só tem perdas". Falar de seu
sofrimento lhe é impossível pois "simplesmente dói".
Já passou por duas análises que, segundo ela, "acabou enro-
lando e saindo fora", mas que lhe foram úteis, num dado momento,
como "reforço de ego". Hoje não acredita que análise possa lhe
ajudar porque "as palavras só servem para encobrir, para disfarçar".
Na tentativa de falar de si, fala de um "eu que teve" em
contraponto a um "eu que tem", e conclui: "Não aceito o eu que
tenho e não consigo resgatar o eu que tive. Me sinto esquizofrênica".
Quando indagada sobre o "sentir-se esquizofrênica", responde sem
titubear: "Dividida".
De tudo sabe. E o que fazer com isso tudo que sabe? Eis a
questão que ela não ousa se perguntar. Esta jovem senhora de meia-
idade se diz "absolutamente independente". Lançou-se no mercado
de trabalho ainda muito jovem e foi "muito bem sucedida". Hoje
está aposentada mas continua trabalhando no segmento de artes
plásticas. É solteira, mas em sua trajetória de vida, segundo ela, "sem-
pre teve todos os homens que quis".
Como causa de suas dificuldades atuais, destaca um episó-
dio de sua vida: a vinda de seus pais para morarem na mesma cidade
que ela, em virtude de seu único e mais novo irmão estar acometido
de doença grave já em estado avançado. Esta mudança altera toda a
sua rotina. Como o convívio com seus pais é desde sempre da or-
dem do insuportável, opta por dividir-se entre duas residências, a
sua e a deles, mesmo que isso implique em um ônus ftnanceiro, pois
seu pai "sempre trabalhou como autónomo e, por nunca ter-se pre-
ocupado com aposentadoria, hoje não tem nenhum rendimento". E
como "a eles nada pode faltar", banca o pai. Para sustentar essa
situação constrói sua vida num mar de dívidas que vão desde as
fmanceiras até as de gratidão. Como escrava, trabalha de sol a sol,
garantindo ao outro o lugar de Mestre sempre reverenciado, para
poder, assim, se manter fixada num mais de gozar.

246
Silva11a Maria EJieves Freire

Deparar-se com o "não ter'' enquanto falta, enquanto furo,


implica em pagar o preço de se implicar em sua própria vida, impli-
ca em abrir mão desse gozo para poder desejar. Mas desejar
lhe é impossível uma vez que, por estrutura, o desejo só é
desejo enquanto impossível.
A Mulher da Dívida goza de seu sofrimento, de sua imen-
sa dor para, assim, "não ter". Afinal de contas, quem "não tem",
tem. É falicizando a falta que ela garante seu lugar na triangulação
edípica, a saber: já que não pode ter o pai, vai ser o pai manten-
do-se no lugar de falo da mãe, na medida em que supõe ser o pai
o objeto de desejo dessa mãe.
Para ser o pai é preciso corresponder a um ideal de eu, ou
seja, ser "absolutamente independente" visto que seu pai "sempre
trabalhou como autônomo". Para tanto, constrói um eu ideal dando
consistência ao "não ter". Começou a trabalhar muito jovem como
funcionária pública no segmento de artes onde desenvolveu vá-
rios projetos que "não tiveram o devido reconhecimento" e cuja
remuneração "não era das melhores', mas, em contrapartida, pos-
sibilitaram viagens à Europa para contato com centros culturais
mais avançados. Não se casou mas "teve todos os homens que
quis". Não teve filhos mas afeiçoou-se a sua sobrinha "como se
sua filha fosse". Constrói um "eu" de tal ordem consistente que
até o nomeia "o eu que tive". Quando esse "eu" capenga, vai em
busca de análises que só sustenta enquanto lhe servem como
"reforço de ego".
Lacan, em Psicanálise e se11 Ensino, aborda a histeria e a
neurose obsessiva como "uma espécie de resposta" do sujeito às
questões quanto ao seu sexo e a sua existência. Alerta-nos que
essas respostas não são "simplesmente ilusórias" e que só são
imaginárias na medida em que fazem revelar da verdade sua
estrutura de ficção. Desdobra a questão do porque o neuró-
tico se engana em a quem ele engana, para, mais adiante, nesse

247
A Dor de Existir

mesmo texto, numa articulação do "masculino para o sujeito


da estratégia obsessiva", nos dizer:
Aqui, é a morte que se trata de enganar com mil asl1ícias ( ..). E essa
as/1ÍC'Ía, q11e lima razão suprema SIIStenta de Um Ca111jJOfora do St!}eito que
se chama inconsciente, é também aquela que tanto o meio quanto o seufim
lhe escapam. Porque ela é a que retém o st!Jeito e também o arrebatafora
de combate, como Vêm1s fez com Paris, fazmdo-o estar se111jJre noutro
lugar que não aquele onde se corre risco, não deixando 110 lugar senão uma
sombra de si mesmo, pois an11/a de antemão oganho e aperda, abdicando
em primeiro lugar o des~jo q11e está em jogo (1984, p. 432).

Pois bem, esta jovem senhora chega à meia-idade e se depa-


ra com a aposentadoria que a obriga a lançar-se num mercado de
trabalho informal e competitivo. A doença de seu irmão a obriga a
um convívio mais próximo com seus pais. Convívio esse que traz à
tona os conflitos edipianos dos quais ela não mede esforços para se
esquivar. Mais uma vez em nome dessa "absoluta independência",
banca o pai assumindo o seu sustento. Joga-se no trabalho e na mes-
ma proporção em que trabalha suas despesas aumentam tendo como
saldo: dívidas. O acúmulo de dívidas faz cair por terra essa imagem
de "absolutamente independente" pondo à nu o "não ter" enquan-
to falta e fazendo eclodir uma dor indizível que "simplesmente dói".
Depara-se, então, com o "eu que tem", um "eu" faltoso, um "eu"
endividado, dividido. E como resposta, deprime. Busca o isolamen-
to, perde o interesse pelos prazeres da vida, torna-se irritadiça e arisca
a tudo e a todos, porém a responsabilidade pela dívida e pelo caos
em que se transformou a sua vida, ela confere ao pai.
Esta jovem senhora de meia-idade, então, deprime ao se
deparar com o luto por sua imagem narcísica, ou seja, ao se deparar
com as dívidas que não pode pagar. O significante "dívida" ao qual
ela, usando de astúcia, se agarra para poder "bancar o pai", também
a faz confrontar-se com uma vida feita de dívidas onde há sempre
um "a mais" não computável que reveste esse eu ideal.

248
Silva11a Maria Esteves Freire

Seu irmão, cuja morte está anunciada, mesmo doente não


abre mão de seus vícios: cigarro e bebida. Ela, então, se espelha
nesse irmão que desafia a morte, para desafiar a própria depressão e
anunciar à analista que se o preço de sair da depressão é abalar ainda
mais o seu precioso eu ideal, ela prefere não se analisar pois o que
ela quer é "reforço do ego".
A análise possibilitaria a essa mulher tocar no luto que ela
não fez de uma vida perdida na busca do puro brilho fálico; de ver
que, de todos os homens que ela teve, nenhum lhe deu seu nome; de
ver que a sobrinha não é filha e que ela não teve fllhos; que sua
independência não existe e que ela é profundamente dependente de
seus pais. Não é uma jovem senhora, é uma senhora de meia-idade.
São todos esses lutos que a depressão vem camuflar.
A Mulher da Dívida frente ao luto pela imagem narcísica é
tomada por uma depressão e, por que não dizer, pela "covardia
moral" (Lacan, 1993).

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Luto e Melancolia" (1917). Em: Obras Completas. VoL XIV Rio
de Janeiro, Imago, 1990.
_ _ _ _ "Rascunho G" (1895). Em: Obras Completas. VoL I. Op. cit.
----"Rascunho N" (1897). Idem.
LACAN, J. "E! Psicoanalisis y su Ensei'ianza". Em: Escritos. Madrid, Siglo
XXI, 1984.
_ _ _ _ "Televisão". Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.

249
MEMÓRIAS (NÃO PÓSTUMAS):
0 DIALETO MANÍACO

Thais Ribeiro

O que pretendo ressaltar aqui é a relação entre a melancolia


e a mania, tendo em vista que a mania expressa não mais do que
uma variação de uma causalidade subjetiva própria à melancolia. Tal
causalidade diz respeito a um dos efeitos da foraclusão na estrutura
do sujeito e de sua posição diante da problemática da culpa.
Aceder à condição de falante coloca para o sujeito dois pro-
blemas básicos e o condiciona a uma virtualidade melancólica. O
primeiro diz respeito à aquisição da linguagem implicar na morte da
coisa, pois ao inserir-se na linguagem o sujeito perde algo da vida, e
coloca-se numa posição de ex-sistência com relação ao Outro. Esse
processo não se efetua dissociadamente de suas relações para com o
Pai, melhor dizendo, com o assassinato deste em lugar do qual se
estrutura ou não a lei e o campo simbólico. A dor de existir, o peca-
do original de ser, a culpa e a divida são portanto questões desde o
início colocadas para o falante, questões as quais cada estrutura cons-
tituirá uma resposta.
A perda da coisa marcará para o neurótico a existência de
uma falta, que sob o crivo da castração simbólica se inscreverá como
significação fálica e o lançará no movimento metonímico do desejo
em direção ao objeto de mais gozar que estabelece uma forma de
compensação. O objeto visado pelo desejo é circundado por um
véu idealizado onde reluz o brilho fálico que encobre e ofusca o
objeto a em seu despudor essencial. A dívida para com o simbólico
irá demandar um trabalho, uma incessante produção de sentido.
A Dor de Existir

A foraclusão do Nome-do-Pai resulta numa rejeição do in-


consciente e implica em um retorno a partir do real daquilo que foi
rejeitado. Se o paranóico se enlaça ao Outro em seu gozo, ele tenta-
rá, a partir da produção delirante, re-alojar aqueles significantes que
se desprendem da cadeia, e se o esquizofrênico queda como puro
objeto do gozo do Outro, restando-lhe a produção de aparatos
metonímicos que o resguardem deste gozo ou o reajuntamento de
seu ser sobre partes do corpo, devemos nos perguntar agora qual o
destino do melancólico.
O melancólico objeta precisamente à comédia do falo e pro-
duz o objeto miserável que o falo deveria supostamente encobrir
como véu. O objeto de desejo é desnudado em sua realidade obsce-
na, aparecendo não como falo, mas como objeto a, indigno de qual-
quer idealização. A condição de complementariedade do objeto não
opera no melancólico que cai sob a exclusiva negatividade da lin-
guagem. O sujeito melancólico alimenta o objeto com toda a con-
sistência de seu eu. A despeito de uma aparente ambição de
desvendamento e da exposição de seu saber sobre a comédia do
falo, o melancólico reivindica uma ignorância absoluta e reclama
pela via do insulto dirigido ao exterior ou a si mesmo, a ilusão e a
máscara. Assim ele irá preencher o vazio deixado pelo objeto perdi-
do com o seu próprio ser; neste sentido ele é a encarnação do resto
deixado pela operação significante. "O fio mortal da linguagem"
recai sobre ele e seu gozo reside em mortificar-se. Ele é a sede de
um gozo mau, gozo não regulado, como sempre acontece quando
ocorre uma alteração ao nível do discurso. A falta no Outro adota a
significação de culpa subjetiva.
O encontro com o Pai, que se tem como desencadeante do
surto psicótico, tomará a forma de um encontro com a perda para o
melancólico. O melancólico não tem um registro inconsciente desta
perda que o permita em algum momento elabora-lá. Esta perda pode
ser material, ética ou afetiva mas será sempre a partir do real que ela

252
Thais Ribeiro

reclamará sua presença e demandará do sujeito uma resposta. Res-


posta essa que nos melhores casos vem através dos delírios de in-
dignidade, de ruína, de culpabilidade e auto-acusação, e nos piores
pela passagem ao ato suicida. O vetor de apetência que vai do sujei-
to ao objeto involui para o próprio corpo.
Lacan unificou a causalidade subjetiva da melancolia e da
mania em torno de um mesmo pecado: a covardia moral, ou seja,
uma falta perante o bem dizer, perante o seu dever de se reconhecer
na estrutura que lhe provém da linguagem. Ao ignorar que o desejo
se fundamenta no desejo do Outro e em sua própria falta de gozo, o
melancólico e o maníaco se precipitam nos afetos, sempre engana-
dores, da tristeza e da raiva respectivamente, pecando no que cedem
ao desejo de saber em nome da ignorância.
Melancolia e mania implicam numa negação da perda ao
nível do significante. Em contraste com a mortificação do melancó-
lico encontramos o estado de exaltação maníaca. O tipo de fala
maníaca que foi descrita pela psiquiatria como "fuga de idéias" as-
sume nestes estados o caráter de fenômeno elementar, independen-
temente de se fazer acompanhar ou não por alucinações, ou seja, a
forma usualmente tomada como única e paradigmática do retorno
do real. Trata-se aí de um discurso que não mais se desenrola senão
no veto r da antecipação da significação, sem que nenhuma retroação
venha estabelecer um ponto de amarração, apresentando-se numa
infindável justaposição de frases. Como se o objeto a tivesse sido
destituído em sua função de ancoragem do discurso no real, sendo
o que causa a produção de sentido.
Na mania o sujeito está imerso em uma existência que per-
Eleu sua historicidade, há uma ausência do tempo histórico e o sujei-
to está disperso no infinito da linguagem que o atravessa. Inversa-
mente, na fala do melancólico é o vetor da antecipação que é posto
de lado, o discurso perde sua fluidez e sua capacidade de deslizar de
um significante para o outro. Ao congelar a significação, o sujeito se

253
..
A Dor de Existir

deixa grudar num real inerte e informulável. Subsiste, então, apenas


o vetor da retroação que reconduz o sujeito ao mesmo ponto; a
significação é invadida pelo peso do objeto real, chegando a desapa-
recer sobre ele.
A mania pressupõe uma dupla negativa. A melancolia nega
a perda ao nível do significante e o sujeito se identifica ao objeto
perdido; como disse Freud: "A sombra do objeto recai sobre o eu".
O maníaco realiza aí uma segunda operação que é a de expulsar para
fora de si esse objeto. É neste ponto que Freud reconhece a virada
efetuada pelo maníaco e seu conseqüente triunfo sobre a perda do
objeto. Em suas últimas observações sobre a mania, Freud afirma
que o maníaco triunfa sobre o ideal de eu, ligado à figura do pai. A
excitação maníaca tem, entretanto, menos um caráter festivo e
orgiástico derivado de uma liberação positiva das pulsões, do que a
marca inequívoca do mais além do princípio do prazer; ela só faz o
sujeito precipitar-se em uma nova catástrofe. O maníaco é antes
presa das exigências de gozo do supereu, do que liberto de seu catá-
ter limitador e proibitivo.
A excitação maníaca com a anarquia da intencionalidade e a
desregulação dos ritmos vitais que a caracterizam é tão arriscada
quanto a mortificação melancólica. Assim um falar maníaco carrega
não raramente um conteúdo melancólico. Em sua busca de novos
objetos e catexias o maníaco torna-se infatigável, animado por uma
vida paradoxal que marcha para a morte com a mesma firmeza que o
melancólico. O maníaco elege negar a perda e expulsar o objeto, colo-
cando no lugar da tristeza e da culpa, a excitação, a raiva e o rancor.
Tais parâmetros doutrinários irão agora nos orientar na lei-
tura e na construção de um caso de melancolia, bem como nos au-
xiliar na reflexão sobre a direção clinica aí adorada.
Carlos me procura dizendo inicialmente que coisas muito
estranhas estão lhe acontecendo, mas que é "muita loucura para poder

254
Thair Ribriro

lhe contar" devido "ao problema epistemológico da linguagem que


não dá conta da velocidade de meu pensamento". Pergunta-se por
que foi escolhido para a missão de curar doentes e relata diversos
casos onde é chamado para salvar pessoas. Diz ter desafiado forças
poderosas, e por tê-las vencido tornou-se dotado de poderes sobre-
naturais, podendo fazer contato com o mundo espiritual. Diz que
sua "via crucil' começou na adolescência, quando, estando acompa-
nhado por um primo, deparou-se com um disco voador. Pouco tempo
depois esse primo suicida-se. A partir daí começou a ter crises, e
ocorreram diversos acidentes e mortes envolvendo parentes e ami-
gos. Separou-se de três mulheres a quem se refere como Ml, M2 e
M3. No ano anterior infartou, após ter tido diversas relações sexuais
com sua última mulher.
Durante este primeiro momento dos atendimentos de Carlos,
seu relato é bastante fragmentado, as frases justapostas, os fatos
volumosos, e nada parece fazer sentido ou situar-se numa história.
Carlos insiste em dizer que não sabe fazer análise, invade outros
espaços onde trabalho, dispara telefonemas em todas as direções e
me convida para encontrá-lo fora do consultório insistentemente.
Convido-o a falar e também a escrever. A fala por si só coloca em
jogo certos limites, no sentido do não se poder chegar a dizer tudo.
A escrita, além de constituir um modo de fixação da linguagem, leva
a um certo esvaziamento do gozo, já que o ato de escrever compor-
ta a perda da letra que se marca no papel. Como analista me situo
como o endereço ao qual tal produção deve ser remetida; estabeleço
um ponto fixo, um lugar, um tempo. É esse ponto fixo que vai aos
poucos viabilizando a amarração da fala, o processo de significação
e o movimento de historicização deste sujeito.
O resultado deste trabalho chega através de um escrito, onde
penso que se instaura um segundo momento de sua análise, posto
que algo da ordem da estrutura, da posição deste sujeito diante do
Outro e da causalidade subjetiva que a sustenta se revelam. Este

255
A Dor de Existir

escrito é intitulado Memórias (Não Póstumas). Reprcxluzo agora parcial-


mente esse texto para, em seguida, retirarmos dele algumas conseqüências:
Fazmdo um retrospecto de minha vida, não de caráter tempora~ mas de
caráter emociona~ pois o que pesa realmente é a emoção que os fotos
transmitem. Tudo começo11 com a morte de meu pai, por suiddio. C11mpre
ressaltar que a nossafamília, ou sqa, eu, m811 irmão eminha tia vivíamos
de 11ma maneira 111f(ito pemliar.
A minha mãe passou grande parte de sua vida, n11m balão de oxigénio,
por ser cardíaca. Em razão disto a nossa casa era uma casa tristonha e
todafechada. Era uma casa sem so~ sem alegria e eupassava mais tempo
com minha tia, pois erapen'odicammte afastado da minha casa em razão
da domça de minha ntãe. Eu também era o.filho captla, sendo qtte pelo
que meu irmão conta, 811 já era.fr11to de 11m casammto falido. Éramos
11mafamília e.rfocelada. O eco daq11ek tiro ecoa até hoje em mel/s 011vidos.
Tem momentos de vivência que eu gostaria de ressaltar, como quando me11
irmão viqjou para a Europa, abalado pela morte de sua esposa. Na
véspera da viagem, comecei a sonhar que o meu pai queria se comunicar
comigo. Num primeiro momento começaram a aparecer no mm sonho
.figuras de um braço pondo em destaque a abotoadura com as iniciais do
nome de mmpai. Eu relutei, pois eu não quisfalar com um morto. Logo
em segmda, ainda no meu sonho, eu me encontrava na casa de umprimo
e opai dele me dizia, o seu pai está quermdo se comtmicar com você. De
repente ett acordo efalo. Não estou sati.ifeito que seu irmão vai para a
Europa e deixe sua mãe aí e você tome cuidado com os est11dos. HomJCram
ainda na infância outras experiências em relação à espiritualidade...

Algum tempo depois Carlos me fala que seu pai se matou


no dia em que o médico de sua mãe teria lhe falado que ela morreria
em breve. Deste pai conta ainda que escondia, usando sempre mei-
as, o fato de não ter alguns dedos do pé, pois foram decepados nos
trilhos do bonde. "Ele tinha uma ferida na perna que sempre abria e
me dizia: quando você crescer vou tirar um pedaço de sua coxa para
colocar aqui". Carlos diz reproduzir o lado psicológico de seu pai;
peço-lhe que escreva sobre as lembranças que tem dele e Carlos me
traz o seguinte texto:

256
Thais Ribeiro

A lembrança maisforte que tenho de minha injándafoi a morte dele. Eu


era muito pequeno, tinha sete anos. Foi de madrugada. Acordei com o
estampido da arma. Pelo eco paredam três tiros mas na realidadefoi um
só. Eu levantei da cama e corripara o banheiro. A porta estava encostada
eao abrir me deparei com o meupai caído no chão...Eufiqueiparado, sem
entender nada. É como se ocorrese um branco na mente.. A polida veio e
levou o corpo dele... Outra lembrançaforte, foi a empregada com um ródo
jogando o sangue dele para dentro do ralo. Depois, no dia seguinte foi o
enterro, minha tia me obrigo11 a dar 11m befjo no rosto dele. Foi terrível.
Ainda me lembro da pele dele gelada.

As alucinações que Carlos relata no início de sua análise


podem agora ser lidas como o retorno desta morte pelo real. Há
nelas sempre a presença de uma ameaça de morte ou de doença aos
seus entes queridos. Diante disso Carlos assume a posição de salva-
dor ou provedor do outro, pois de outra forma, identificado a esse
objeto perdido que é o pai, só lhe resta matar-se ou mortificar-se.
É interessante destacarmos esse Não que se inscreve entre
Memórias e Póstumas pois a negativa aí contida não se refere ao que
está recalcado no inconsciente, mas ao que foi excluído dele. Esta
perda uma vez rejeitada involui sobre o própio sujeito identificado
então a este pai morto. O que restou do pai, restou no real, como
letra: "figuras de um braço pondo em destaque a abotoadura com as
inicias do nome de meu pai". "De repente eu acordo e falo. Não
estou satisfeito...". A ausência de dois pontos entre uma frase e ou-
tra é representativa da fusão de Carlos a seu pai, eles são um só.

Me arrependo de não ter gravado a voz


de meu pai. Para mim ele era
enorme. Muito inteligente. Falava so:dnho em tomo da mesa com sua
bengala. Vou usar a bengala dele pois estou sem equilíbrio. Me dava
sempre)'!Jubas. Até hqje quando bebo cervqas no bar peço)'!Jubas para
acompanhar. Não quero faltar para os meus filhos pois sei a falta que
mm pai mefl~ Quando eu morri, ele tinha sete anos".

257
A Dor de Existir

Do pai não restou sequer o objeto voz. Percebo então que


não por acaso Carlos grava diariamente fitas com a voz de seus en-
tes queridos e cantores prediletos, bem como freqüentemente me
presenteia com tais fitas, como a oferecê-las a alguém que possa
arquivá-las, secretariando-o.
A análise tomou aí uma só direção, ou seja, fazê-lo falar
desta perda e do pai. Os estados maníacos e as produções
alucinatórias cedem lugar à tristeza e à dor. Carlos fala de seu desâ-
nimo e de seu cansaço diante da vida e de sua doença, sofre por ter
perdido sua capacidade de amar e por não ter uma rotina e interes-
ses. Carlos ensaia alguns namoros e algumas atividades mas não as
sustenta por muito tempo. Sendo seus atendimentos realizados em
uma instituição pública, Carlos engaja-se nos trabalhos do Grupo
Pela Vida a fim de ajudar os portadores de AIDS e retribuir à comu-
nidade a ajuda que lhe foi prestada no ambulatório da instituição.
Num certo momento, propõe à analista ser atendido em seu consul-
tório particular com os mesmos objetivos de ajudar e retribuir. Tal
proposta é aceita após uma longa avaliação com relação ao lugar
ocupado pela analista na transferência. Carlos passa a falar mais de
seus filhos, aproxima-se deles em seu cotidiano e não raro refere-se
à analista como "minha filha". Diante do pai zerificado são os filhos
que vão dar-lhe uma sustentação ao nível do imaginário e permitir
mesmo que ele permaneça vivo para provê-los e esperar pelos ne-
tos. "Sou teimoso", diz Carlos.
Como o equilibrio e a estabilização são sempre tênues na
psicose, analista e analisando se verão sacudidos por uma nova crise,
que considero como um terceiro momento na análise de Carlos que
já se estende por três anos. Um novo sintoma: a impotência sexual.
Novamente o irmão viaja para a Europa. O filho também. A analista
e a psiquiatra dele irão tirar férias. Carlos desaba, descuida-se, quer
morrer. Neste momento é. a ausência do Outro materno que
comparece em sua análise e ele se revela em toda sua pequenez:

258
Thais Ribeiro

Nasci de sete meses, minha mãe morreu no parto, teve eclámpsia. As


enfermeiras disseram ao meu avó: ele vai viver. Eu era tão pequenino que
cabia em uma caixa de sapato
Quando minha mãe estava doente, eu fumava cinco maços de cigarro por
dia, tive uma cicatn·z no pulmão eparei de falar

Duas mortes, duas feridas que não se fecham e pelas quais a


libido se esvai hemorragicamente como o sangue dentro do ralo.
Algo peculiar ao melancólico e que torna difícil a condução
da análise é o fato de, após viver episódios mais críticos, parecer
querer ignorá-los e não mais tocar no assunto. Carlos vem demons-
trando novamente interesse pela vida e particularmente por ativida-
des que impliquem no convívio social. Pergunto-lhe como havia
superado o momento de dor tão profunda que vivera recentemente
e Carlos me responde:
A análise qjudou. Foi bom vir aqui e chorar. Apesar de não acreditar em
psicologia, vocêfez uma boa fam/dade. Análise é uma coisa séria. Não
posso parar. Tenho que mrtir o que me resta da vida, mesmo com os
limites que agora tenho.

Referências bibliográficas

ANDRÉ, S. A impostura perversa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995.


FREUD, S. "Luto e melancolia" (1915). Em: Obras Completas. Voi.XIV. Rio de
Janeiro, Imago, 1980.
____ "Psicologia das massas e análise do eu" (1921). Em: Obras Comple-
tas. Voi.XVIII. Op. cit.
LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
SOLER, C. Estudios sobre las psicosis. Buenos Aires, Manancial, 1991.

259
TOXICOMANIAS ANTIDEPRESSIVAS

Lenita Rentes
Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

Corpus hippocraticum, conjunto de tratados médicos que data


do século V, define a enfermidade como o. efeito da desarmonia da
phisis que perturba o equilibrio dinâmico do interior do corpo e des-
te com o cosmos.
Diferentemente de Hipócrates, Platão propõe que aquilo
que ocorre no corpo depende do que ocorrerá na alma. Em ambos
o que é visado é a idéia de harmonia. Além dela a estética reboca
modelos segundo a época em que se configuram, o que pode ir do
ideal de harmonia das formas, até ao bem estar supremo, onde o
humano e o divino se superpõem.
O saber científico organiza-se em torno da harmonia dos
sistemas e da proporcionalidade das funções, conferindo unidade a
um corpo que resiste a funcionar segundo o ideal científico. Atra-
vessado pela linguagem o corpo pulsional não pode gozar de har-
monia. Se para a medicina o sintoma fala de uma desarmonia, para a
psicanálise ele é harmônico à castração, à falta estrutural da qual
resulta gozo. A causa é opaca para o sujeito e motor da consulta ao
analista e ou ao médico.
Medicar como ato visa restabelecer a harmonia ou, ao me-
nos, fazer alguma correção neste amontoado de carnes, ossos e ór-
gãos. Como resposta à demanda de cura de um mal - nem sempre
A Dor dt Exittir

orgaruco - é um ato de peso extraordinário: menos pelos efeitos


sobre o corpo físico, que pelos efeitos subjetivos que pode produ-
zir, autorizando o corpo a permanecer amordaçado. Um corpo que
ainda vivo na queixa escapa morto na ingestão autorizada.
Se a causa e o sintoma são abordados diferentemente pelo
discurso analítico, também a cura o é. O paciente faz a doença e o
médico faz a cura, e em nenhum dos atos encontramos o fracasso
que dá dignidade ao que a psicanálise chama de ato.
A escalada medicamentosa se instala quando o sujeito pro-
cura sistematicamente o produto que o curará de seus males. A pres-
crição de remédios pode levar à cumplicidade medicina-doença. Na
dupla armadilha que aí se estabelece: falsa demanda do paciente e
falsa resposta do médico, de nada se trata.
Sujeitos há que consomem de maneira ritualistica quantida-
des quotidianas de comprimidos que não podem ser modificadas
sem reprovação e indignação do paciente. Não se pode tirar um
comprimido mas se pode acrescentar mais um. A dependência se
estabelece, fortalecida a crença no aplacação do sintoma oferecido
pelo medicamento. Diluído o sintoma e iludido o sujeito da possibi-
lidade de calar o desejo. Tarefa irremediável, como diz o poeta: "É o
que não tem remédio e nunca terá, o que não tem juízo"; resta-lhe
tornar-se o testemunho da solicitude e da corroboração da realidade
de seu sofrimento.
Não ser solícito, sair do circuito da resposta à demanda
do paciente, coloca muitas vezes em risco o tratamento. Entre-
tanto um desvio de rota é possível sempre que o médico, posto
no lugar do saber, nega-se a atender o paciente naquilo que de
sua demanda remete a uma falsa aliança. A palavra do médico
ganha eficácia terapêutica quando viabiliza um corte na relação
de dependência com a medicação, introduzindo a possibilidade
de uma mudança de discurso.

262
Lenila Bmtes

Em um bom número de casos, há na origem do consumo


uma justificativa medicamentosa. Diante da permanência dos sinto-
mas ou do surgimento de novos, a escalada medicamentosa se insta-
la. Quer pela busca do produto que o curará, quer pela busca de
novos medicamentos ou pela mudança de posologia, a relação do
sujeito com sua dor de existir terá encontrado no discurso da ciên-
cia o alívio necessário para sempre se desiludir. Ligação fetichista
com a medicação, na crença no sintoma e no desejo de medicação,
que fortalecem a dependência
A exclusão do pulsional faz da abordagem científica, da
medicalização, algo perfeitamente consonante com a definição dada
pelo discurso científico à toxicomania: ''Toda substância que, introduzida
no organismo vivo, possa modificar uma ou várias de suas funções" .
A escolha de uma droga não é absolutamente casual. Das
socialmente aceitas as que não o são, esta escolha tem uma
especificidade na economia libidinal do sujeito. Tanto assim que
tornou-se acordo entre os que se ocupam da pesquisa das toxicoma-
nias que "o toxicômano faz a droga". Há os que elegem o alimento
(os adictos a carboidratos), outros que escolhem os rituais místico-
religiosos, alienando-se em seitas da felicidade que não são muito dife-
rentes da alienação em receitas da felicidade, apostando num mais além
onde o encontro com o real é opacificado pelo encontro com o
ideal. O objeto existe dentro dos frascos ou mais além da vida. Há
ainda o álcool, o tabaco e as outras drogas, alvo de apelos publicitários
que desvirtuam a questão, enfatizando a ingesta e não a sua gestação.

Uma questão: a toxicomania se coletiviza?

No início do século fazia-se uso de substâncias tóxicas de


forma esporádica, sendo escassos os casos de dependência química.
Como se compreender a passagem do uso ao abuso?

263
A Dor de Existir

Em Freud encontramos numerosas passagens em que se


refere ao uso de drogas. Uma delas está no Mal Estar na Civilização:
"Sendo o objetivo evitar o sofrimento, o método mais grosseiro
porém o mais eficaz é o químico" (1969(1930], p. 96).

No conhecido episódio da cocaína relatado por seu biógra-


fo Ernest Jones, Freud analisa os efeitos da cocaína sobre a fome, o
sono e a fadiga. Indicava o uso de cocaina para interromper o uso da
morfina. Contudo, o que contava para Freud na cocaína era a sua
extraordinária capacidade de levantar o vigor físico e mental sem
aparentemente produzir qualquer efeito danoso. Vemos o pai da
psicanálise às voltas com a medicalização .Entretanto Freud vai de-
ter-se no que faz o sujeito fazer, na enfermidade como benefício
secundário, descobrindo um corpo discursivo.
Mais tarde, a mais importante de suas vantagens, o poder
analgésico de uma dor corporal. À denúncia de que teria descoberto
a terceira praga da humanidade, uma vez que alguns morfmômanos
teriam se tornado cocainômanos, Freud responde: ''Nenhuma forma-
ção de hábito é devida, como se acredita comumente, ao resultado da
absorção de uma droga prejudicial, mas liga-se a alguma peculiaridade
de que é portador o paciente, tanto assim que não há cocainômanos
que não tenham sido eroinômanos". O que é razão suficiente para
que a medicalização siga um rigoroso critério ético, posto que estes
efeitos colaterais também não podem deixar de ser reconsiderados.
O advento da teoria freudiana dá a doença um novo pata-
mar, ou seja, seu interesse reside na leitura que faz dos expedientes
usados pelo sujeito para encobrir a angústia como efeito da relação
entre o saber e a verdade, no encontro com o real.
Freud inova quando percebe traços do impossível nas exi-
gências que a civilização impõe, tais como as do laço amoroso e do
laço social, opondo-se à felicidade do sujeito. As toxicomanias são
uma manifestação do discurso do mal-estar como efeito da conju-
gação do discurso da ciência com o discurso do capitalismo.

264
Lenila BmltJ

Se todo discurso produz efeitos, o da ciência, tecnológico,


tem nas substâncias químicas um objeto privilegiado. Objeto cujo
consumo estanca de imediato o sofrimento. Uma enorme gama de
composições químicas é colocada à disposição do sujeito pelo mes-
tre moderno. Os efeitos de sentido banidos pela ética capitalista
mostram o sujeito às voltas com sua depreciação.
A partir de certo momento o cientificismo incide sobre a
psicanálise produzindo efeitos em seu corpo teórico. A proliferação
de abordagens acerca do ego faz desaparecer o sujeito do inconsci-
ente, do recalcado, do impossível, como Freud o concebe desde o
Prqjeto. Trata-se, para usar uma feliz expressão de Bernard Lecoeur,
de uma "foraclusão standard' do sujeito do inconsciente.
Em Ciência e verdade diz Lacan:
Transportado pelo significante em SI/a relação com outro significante, deve
distinguir-se-lhe severamente tanto do individuo biológico como de toda
evolução biológica mbsmnivel como sl!ftito da compreensão. Recordo-lhes
que enquanto st!Jeitos da ciência psicanalítica, é a solicitação de cada um
destes modos da relação com a verdade como causa a qual tem 110cês que
resistir (1984(1965]).

Os modos de relação com a verdade das outras ciências aos


quais Lacan alude excluem a impossibilidade e a transmissão, comu-
nicando a possibilidade e a consistência de seus modos de
acercamento da verdade por fora do eixo da linguagem como regis-
tro do furo, portanto da mais radical incompreensão.
Diante dessa incompreensão, do mal-entendido, do furo, o
sujeito responde com a fobia, a histeria ou a obsessão, no seu tem-
po, nesse passo vacilante que é a neurose. "O falo não é outra coisa
que este ponto de falta que o sujeito indica".
Outra questão: em que medida o supereu hoje seria a resul-
tante de uma insuficiência das famílias, entendida como o efeito do
discurso da ciência?

265
A Dor de Existir

Lacan em seu artigo sobre criminologia diz:


A autoridade que se deixou ao pai, tínico traço que subsiste da estmt11ra
origina~ se mostra cada vez mais instável(...) O supereu se deve tomá-lo,
digamos, por uma manifestação individual vinCI/fada às condições sociais
do edipismo" (1984[1950]).

A Ciência e seus objetos fazem supor ao sujeito que ele


pode prescindir do Outro. Tal maneira de buscar a satisfação é sub-
sidiária da pulsão de morte em resposta ao imperativo: "Goza!" Tra-
ta-se de um saber que artificializa uma unidade com um objeto que
não é resto de uma operação. Objeto consistente, às vezes de ação
rápida outras de ação prolongada, que subverte o tempo cronológi-
co e anula o tempo lógico.
A felicidade está à mão, na boca dos vidros de remédios, a
arrolhar as bocas dos seus consumidores, reforçando com seu gesto
o ato solitário da compulsão à intoxicação. Se o discurso do mestre
veicula a lei - lei do significante que viria a representar um sujeito
frente a outro significante - , se o discurso universitário veicula o
saber que faz agir o objeto tornando o sujeito impotente, no discur-
so do capitalista a lei do outro é selvagem e impõe gozar. Gozar do
consumo, do monótono gozo do Um.
Há dois anos o medicamento Prozac foi alvo de matéria do
Jornal do Brasil no caderno Ciência e Ecologia. O título da matéria: "Fe-
licidade em Cápsulas dos anos 90". Na mesma matéria um contra
argumento: "Da Depressão à Insanidade", onde a FDA (agência
americana que controla drogas e alimentos) critica a doutrina da
cientologia. Vejamos, para nos aproximarmos de concluir, alguns
fragmentos da referida matéria:
Droga anti-depressiva devolve autoconftança e éprocurada até por quem
enfrenta tém1ino de namoro e entrevista para emprego.
O anti-depressivo dos anos noventa promete afelicidade em cápsufa.r mas
dá o troco. Procurado por quem desqa ficar better than well (melhor do
que bem), o Prozac está em todo lugar.

266
Lmila Bmtu

Ganhou capa na Newsweek e estampaJ em camisetaJ efoi o tema de


best-sellers que chegaran1 a marca dos 250 mil exemplares, além de ter
virado destaque na mídia britânica.
É também o desencadeador de histórias tristes do The Prozac Survivors.
São tragédiaJ da psicofarmacolcgia, com episódios de tentativaJ de sutd-
dio, ansiedade, aJsassinatos, ansiedade incontrolável e impotência.
Segundo o livro Listening to Prozac uma psicofarmacolcgia cosmética
molda uma personalidade culttlralmente des9áveL Seria uma versão da
Soma, a droga usada pelos personagens de Aldo11s Huxlry no livro Ad-
mirável Mundo Novo.

O que seu texto nos faz to listen é que com o Prozac se pode
competir mais e melhor numa era de recessão económica. O Prozac
é a mais comentada droga legalizada desde o Valimn. O Prozac difere
do Valium- uma droga relaxante - porque aumenta a disposição.
Enquanto isso, vários pesquisadores subscrevem o parecer
de que a depressão, a ansiedade, a incapacidade de lidar com a pró-
pria vida são manifestações saudáveis, e a medicalização em larga
escala dá enquadramento à insanidade. Um número expressivo de
psiquiatras brasileiros olham de forma cautelosa o entusiasmo em
torno das novas drogas e alertam para os efeitos colaterais de
antidepressivos como a imipramina, cujos efeitos a longo prazo ge-
ram conseqüências na área cardíaca.
Quando foi divulgado que o Prozac reduzia o peso- notícia
desmentida - as ações do laboratório que o fabricava subiram oito
pontos. Uma jornalista norte-americana diz tê-lo experimentado mas
prefere voltar ao vinho para curar seu baixo astral.
Para concluir, inúmeros são os benefícios que o saber da
ciência tem apartado à humanidade. São avanços da inteligência
humana. Entretanto, seduzido o homem vai ao delirio de criação
reduplicando criaturas. Os filhos do amor ou da discórdia, wanted or
umvanted, cedem a vez ao puro engenho.

267 .''
A Dor de Existir

Destinado a gozar livremente, a psicanálise oferta um dis-


positivo que, fazendo ceder a toxicomania, permite ao sujeito ser
interpelado pelo sintoma, e num só-depois avistar seu valor de ape-
lo nas condições modernas do edipismo, num: "Pai não vês que
estou gozando!"
A psicanálise faz oposição ao discurso do capitalismo e sua
crueldade - o único que segundo Lacan não pode ser chamado de
discurso por não deixar lugar à falta - e questiona o discurso da
ciência. Como aplacar a angústia sem sedar o desejo? Como cons-
truir um saber sob uma ética que não legifere?
Recentemente recordava-me de um artigo de François Léguil
que dizia: ''A ciência ri das significações porque ela foraclui o sujei-
to. A ciência diz que a depressão não tem sentido, ela tem uma cau-
sa. A psicanálise diz, não, a depressão tem um sentido e esse sentido
é a causa" (1996).

Referências bibliográficas

FREUD, S. "O mal estar na civilização" (1930). Em: Obras Completas .Vol.
XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
GODOY, C. "A Euforia da Cocaína". Em: Pharmakon, n. 4/5. 1996, p. 87-93.
JONES, E . Vida e Obra de Sigmund Freud Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.
JORNAL DO BRASIL. Cademo Ciência e Ecologia. Rio de Janeiro, 20 de feve-
reiro de 1994.
LACAN, J. Le Sémi11aire, livre XVII: L'mvers de la P!Jchana!Jse. Paris, Seuil, 1991.
_ ___. "La ciência y la verdad" (1965). Em: Erm'tos. México, Siglo XXI, 1984.
_ ___. "Introdución teór:ica a las funciones dei psicoanalisis en criminologia
(1950). Em: Escritos. Op. cit.
LECOEUR, B. O Homem Embriagado. Belo Horizonte, Centro Mineiro de To-
xicomania, 1992.
LÉGUIL, F. ''As Depressões". Em: Correio, n. 14. 1996, p. 4-12.

268
A INTERPRETAÇÃO DA DROGA

Ernesto Sinatra
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana

"Do novo tJan·z ao transexua~ a oferta da cimrgia cosmética tem


modificado as demandas legitimamente admissíveis pela instituição
médica, abrindo assim um novo campo. Podemos dizer que a
psicojarmacologia acaba de precipitar-se neste novo domínio. Sem
dtÍvida, épreciso esmtar os debates qtle acompanharam a publica-
ção do livro de Peter Kramer Escutando o Prozac. Mas além
das criticas dos profissionais quejá denunciam essa nova concepção
dapanacéia, o verdadeiro debate se dá em tomo de umapsiquiatria
cosmética e do uso de psicotrópicos não como droga ilícita ou contra
uma angústia existencia~ mas simplesmente para reparar o que o
st!}eito estima ser uma it!Justiça da natureza. Uma nova casuística
se anuncia, apaixonante".
Éric Laurent

A busca da felicidade química da satisfação

O mal estar da civilização, tratado por Freud a partir da armadilha


paradoxal do supereu- que exige cada vez mais renúncias pulsionais sobre-
tudo àqueles cujo proceder pretenderia ser o mais virtuoso - foi
reformulado por Lacan a partir de sua conceitualização do gozo.

Se a busca da felicidade constitui uma eterna demanda à


qual os Estados têm se confrontado desde a sua constituição, a res-
posta de Freud neste texto foi muito precisa: não há felicidade, mas
satisfação. Lacan desenvolve rigorosamente esta asserção até as suas
A Dor de Existir

últimas conseqüências: o stf)eito ésempreftli~ já que o gozo que obtém


em sua vida corresponde precisamente ao que demanda silenciosa-
mente, ainda que- e especialmente- sem sabê-lo. Esta satisfação-
que descreve o oxímoro freudiano do instinto de morte - tem uma
estrutura paradoxal, já que vai contra o bem-estar do sujeito.
O reconhecido escritor e cineasta Jean Cocteau escreveu não
sem ironia que, existindo aqueles que, em nome do bem comum,
proíbem o consumo do ópio e perseguem os que nele são viciados,
argumentando com os transtornos que produz no organismo, exigia
dessas mesmas pessoas que trabalhassem para produzir uma droga
que proporcionasse a ele a mesma satisfação que o ópio, porém
despojando-a de seus efeitos nocivos.
Existem atualmente outras drogas: os assim denominados
animadores do humor ou timoanalépticos, drogas que supostamen-
te não produziriam adição e que deveriam conjugar, de um modo
aparentemente eficaz, a relação risco-benefício que rege o mercado
capitalista. Estas drogas não somente serviriam para tratar a depres-
são como para modificar a personalidade, oferecendo uma felicidade
química prêt-à-porter acessível em farmácias.

Mas o que sucede quando a droga é quem interpreta?

A mensagem da cápsula
Escutar o Prozac é, como o mesmo medicamento a q11e se refere, um
acontecimmto ct!}a ressonância social repermfe para afim dos limites do
público especializado. Quatro milhões e meio de norte-americanos tonJa-
ram esse antidepressivo desde quefoi comercializado, e muitos deles adqt~i­
riram maior cotifiança em si mesmos e dizem terem se tornado mental-
mente mais ágeis, maisflexíveis e resistmtes do ponto de vista emocional.
O q11e significa q11e 11ma cáps11/a tomada no café da manhã faça 11ma
pessoa timida tomar-se sociável? Pode 11m medicamento nos dizer o q11e é
caráter e o q11e é cirmnstância biokfgica? Estamos entrando na era da
farmacolcgia cosmética, na q11alpoderianJOS tomar 11m remédio para me-
lhorar nossa personalidade?" (Kramer, 1994, Introdução).

270
Ernesto Sinatra

Um psiquiatra americano- em nome da psicofarmacologia


rnais avançada- considera a proposta de "escutar as drogas como se
estas nos pudessem dizer algo acerca de como estão construídos os
seres humanos"(Idem, p. 75).
O Prozac constitui na atualidade o paradigma de um tipo de
droga que promete o que nenhum Estado logrou fazer: "O êxito do
Prozac nos diz que hoje o capitalismo de alta tecnologia valoriza um
temperamento muito diferente. Confiança, flexibilidade, rapidez e
energia- os aspectos positivos da hipertimia - são objeto de muita
solicitação" (Idem, p. 335-6).
Trata-se de um timoanaléptico que possui sensíveis vanta-
gens sobre as anfetaminas, a maconha, a heroína, o LSD, o álcool, o
ópio ou a cocaína: não produz adição, não promove uma experi-
ência autista, posto que reduz as barreiras para o trato social nas
personalidades socialmente inibidas; além disso, ao não gerar de-
pendência ao tóxico, favorece a autonomia pessoal, eleva o nível de
decisão, e se a esta lista de promessas acrescentarmos que não é
prazeiroso em si mesmo, mas que estimula um prazer indireto, per-
mitindo empregar as capacidades individuais sem induzir distorções
nas percepções ...
Encontramos um medicamento destinado em principio a tra-
tar um sintoma - a depressão - e se descobriu que "tem o poder de
transformar a pessoa" (Idem, p. 304). Quer dizer, ter-se-ia cumprido o
ideal de fabricar "a pílula que modifica a personalidade" (Idem, p. 336).
Creio saber o que vocês - ao menos alguns - estão pensa-
do. Por isso, rapidamente, antes que se levantem para conseguir Prozac
na farmácia mais próxima, tentarei situar os eixos da polémica
provocada pelo consumo de Prozac no campo médico-psiquiá-
trico. Posteriormente, exporei os problemas que se apresentam
para a psicanálise a partir da fundamentação e aplicação da men-
sagem da cápsula, tal como é definido por Peter Kramer, seu prin-
cipal intérprete e médium científico.

271
A Dor de Exittir

Dilemas éticos da psicofarmacologia cosmética


O hedonismo médico

''Vemo-nos obrigados a indagar-nos se na realidade deseja-


mos usar drogas para melhorar o humor das pessoas normais" (Idem,
p. 287). Kramer formula os dilemas éticos suscitados pelo Prozac em
seu emprego pelos médicos: utilizado para eliminar um sintoma,
logo se torna um remédio capaz de modificar o humor das pessoas;
com que direito "devemos usar drogas- produzindo uma felicida-
de quimica - para obter prazer?" (Idem, p. 300).
O fundamento quimico existe: a fluoxetina cumpre uma fun-
ção de inibição da recaptação da serotonina- principal neuro transmissor
cerebral; a maior quantidade de serotonina disponível potencializa
as sensações de bem-estar e de satisfação.
Uma psicofarmacologia cosmética assenta aqui suas bases: foi
montado um equivalente farmacológico da cirurgia plástica; não
somente os indivíduos deprimidos teriam acesso ao Prozac, como
também as pessoas saudáveis que preferem modificar sua personali-
dade tímida e submissa por outra... mais alegre, mais socialmente
participativa e mais decidida. Em nome do quê negar-lhes a possibi-
lidade que a tecnologia de ponta pode lhes proporcionar?

O feminismo timoanaléptico e a diferença biológica

Aprofundando-se nas conseqüências factuais da constru-


ção do Prozac, Kramer cita Octávio Paz para fazer uma associação
entre o capitalismo moderno e a virilidade. A agressividade, o espí-
rito de competição e emulação, a combatividade são- corretamente
colocados - valores adotados pela sociedade norte-americana como
de suapropriedade. A dedução que Kramer extrai é muito precisa: "os
timoanalépticos podem se transformar em drogas feministas já que cu-

272
Emesto Sinalra

ramas mulheres de seus traços femininos tradicionalmente passivos,


permitindo a configuração de um ideal feminino mais robusto"
(Idem, p. 307-8).
O Prozac se tornaria desta forma o significante amo da his-
térica moderna, tornando-se quase um tipo defetiche químico que per-
mitiria ct1rar as diferenças sexuais anatômicas por outros meios que
não a cirurgia transexual. O direito das mulheres de ser como os
homens - a versão mais ingênua e reivindicativa do feminismo
obteria sua legitimação no domínio da personalidade.
Alguns páginas mais adiante, Kramer formaliza sua argu-
mentação etiológica:

'Todos os homens foram criados iguais - ao menos em nossos


ideais políticos e morais - porém foram criados biologicamen-
te heterogêneos em seu temperamento e em sua predisposi-
ção a uma variedade de traços específicos que se relacionam
com o temperamento. No momento que chegam à idade adulta, as
pe.r.roas também se diferenciam biologicamente segundo a .rua boa
ou máforttma no.r períodos de desenvolvimento mai.r críticos. A medica-
ção psicoterapêutica (. ..) no.r leva a cmtrar-no.r na diferença bioló-
gica, mquanto, durante anos, no.r.ra Clllfura decidiu ignorar características
biológicas pré-determinadas(...)" (Idem, p. 336).

Esct1tando o Prozac, Kramer aprendeu que a diferença bioló-


gica determina o temperamento elevando-se sobre as outras diferen-
ças sexuais.

O trauma do nascimento do Prozac

"Ma.r e.rCIItar o Prozac me tornou tão atento à.r origens ftlogenéticas, ao.r
.ruporte.r biológicos da atuiedade e da melancolia carentes de cawa.r concre-
tas, que me foi diftcil interpretá-los como comtmicaçõe.r e.rpeciai.r que tor-
nam o.r humanos di.rtinto.r da.r bestas'~

273
A Dor de Existir

A conclusão de Kramer tem rigor lógico: já que o Prozac


tem êxito em fazer desaparecer "forças sociais auto-alienantes(...) o
sentir-se ferido, a ansiedade, a melancolia e a inibição, cabe então
perguntar se estes estados são sinais privilegiados da condição hu-
mana(...) já--que-se apresentam nos animais inferiores em resposta a
um simples traumd' (Idem, p. 332).
O autor chega inclusive a se perguntar se a angústia existencial
do estrangeiro de Camus, o ensimesmamento do jovem Werther de
Goethe ou o tremor de Kierkegaard ante a existência da morte não
seriam simples manifestações de um transtorno da serotonina. "O
Prozac nos convenceu através de sua capacidade de modificar a per-
sonalidade de que essas emoções - angústia, sentimento de culpa,
vergonha, pena e timidez- não são somente humanas" (Idem, p. 338).
Peter Kramer deixa escapar um sonho que transtornou os
cientistas envolvidos nas ciências exatas e naturais: a demonstração
de que a etiologia de nossos pathos emotivos corresponderia a um
suporte neurobiológico. Nossos afetos diruptivos seriam efeitos
mecânicos de um trauma ao nível neuronal - património comum
com os animais - e uma pílula corretiva da serotonina liberaria a
humanidade do flagelo desses estados.
O poderdoProzacé curiosamente posto em dúvida por Kramer
com a diminuição do poder da psicanálise, a partir de uma cisão que rea-
liza entre o crer e o saber. A crença fica do lado do que se tornou -
graças à construção de Kramer - um humanismo psicanalítico; o saber
se sustenta do lado das ciências dos neuro-humores.
O Prozac constitui a arma mais poderosa das novas ciências
neuronais para que aconteça o que já dão por ocorrido: apregoa-se a
diminuição do poder da psicanálise e oferece-se o Prozacpara substituí-lo.
A modificação que opera na intensidade do conceito de
neurose é paradigmática. Kramer nos propõe que as neuroses do
século XX não resistirão mais às modificações dos tempos; não se

274
Emulo Sinafra

tratará mais "do eu do sujeito às vicissitudes da ansiedade de castração, do


conflito edípico e da sexualidade reprimida. A nova neurose do século XXI
tratará dos efeitos da herança e do trauma- risco e stress- sobre uma
diversidade de funções neuropsicológicas codificadas pela
neuroanatomia e pelos estados dos neurotransmissores".
Ao mesmo tempo que Kramer precisa o .fracasso da estraté-
gia diagnóstica da psiquiatria descritiva de Kraepelin, furtivamente
vai contra os fundamentos da psicanálise instaurados por Freud.
Qual é o surpreendente ganho obtido por Kramer? É simples: um
retorno ao século XIX com os conceitos de herança e trauma
atualizados em risco e stress.
A operação é clara desde que aprofundemos a argumenta-
ção de Kramer: a herança filogenética proporia um patrimônio uni-
versal da humanidade a partir do qual as diferenças de base seriam
biológicas; as emoções e os estados afetivos seriam um simples efei-
to de tais causas. Esses afetos e emoções já não consistiriam nas
diversas respostas de cada sujeito ao desejo do Outro a partir do seu
gozo íntimo - o que chamávamos de fantasia- nem sua confrontação
angustiada diante da causa que o impulsiona ou o preço pago pela
covardia moral que evidenciou em seus atos- e que Lacan denomi-
nara tnsteza seguindo a orientação de Spinoza.
O eixo da responsabilidade que cabe a cada um frente a
seus próprios atos aparece dissimulado- uma vez mais- após a heran-
ça filogenética. É difícil não pensar em Otto Rank no seu intento de
fixar por meio de um trauma comum à espécie a etiologia biológica
da sexualidade, repudiando- ainda que sem sabê-lo- a conseqüên-
cia maior da teoria da sexualidade: o complexo de castração que,
regulado pela linguagem, forja o limite ao gozo em cada ser falante.
Ao referir-se aos "medicamentos como importantes agen-
tes de transformações pessoais(...) é cada vez menos uma questão
de autocompreensão, e cada vez mais questão de ser compreendido
po r um experto" (Idem, p. 337). Kramer produz uma radical

275
A Dor de Existir

foraclusão do saber inconsciente. Já não se trataria de uma impossibi-


lidade de gozo devida à inadequação radical do sujeito ao sexo bioló-
gico, porém da possibilidade de transformação do Prozac a partir do
saber do experto, isto é, do mesmíssimo Kramer.
O livro termina com um apêndice que se intitula Violência e
que Kramer não quis que flzesse parte de sua parte principal. Neste
apêndice ele tenta menosprezar os ataques dirigidos à panacéia do
Prozac devido aos suicídios, assassinatos e outras respostas que são
imputadas a sua ação "benéflca".
Sabemos certamente que não é o Prozac o responsável por
todas essas iniqüidades, mas também sabemos que estes atos crimi-
nosos constituem uma irânica resposta à pretensão de Kramer de
desvincular os afetos e emoções da responsabilidade dos sujeitos.
É freqüente na prática psicanalítica confrontarmo-nos com o
problema do lugar que uma droga- ou várias - ocupam na economia
libidinal de uma pessoa. Freqüentemente e a partir da interpretação do
analista é possível alcançar o lugar - a verdadeira causa do desejo - que
revela a função de velatura que a droga encarnara com sua substância.
No início perguntávamos que sucede quando é a droga quem
interpreta o sujeito? A droga interpreta Kramer: ele tornou-se adicto
dela, a popularizou, é responsável pelo seu uso e por seus atos ele
deve agora responder.

Referência bibliográfica

KRAMER, P. Esct~chando a/ Prozac. Barcelona,. Seix-Barral, 1994.

*Tradução do espanhol: Marcos Baptista, membro aderente da Escola Brasileira de


Psicanálise
*Revisão da tradução: Ines Autran Dourado Barbosa, membro aderente da Escola
Brasileira de Psicanálise

276
A DOR NA PRÓPRIA CARNE
PSICANÁLISE E DOENÇA TERMINAL, UM CASO.

Andréa Vilanova

A dor de existir se apresenta em modalizações diversas na


clínica. A pluralidade de suas manifestações tem ressonâncias que
indicam a especificidade da psicanálise na abordagem do real que a
dor representa.
O campo do sofrimento humano é vasto, possuindo inf.tni-
tas formas de manifestação. Freud o def.tniu a partir de três clire-
ções: o mundo externo, as relações entre os homens e o corpo. No
que se refere ao corpo, especificou que o mal-estar orgânico consti-
tui uma fonte de sofrimento não passível de sublimação, ressaltan-
do portanto o aspecto imperativo da dor ao afligir o sujeito. Mas do
que trata a psicanálise ao falar do corpo?
Em Freud o olhar da psicanálise sobre o corpo repousa na
constituição egóica do sujeito, numa perspectiva econôrnica que o cons-
titui como fonte e objeto de investimento libiclinal. O percurso narcísico
do sujeito faz o objeto da pulsão coincidir com a fonte somática - a
zona erógena. Assim o próprio corpo do sujeito é tomado como
objeto- um corpo para o Outro. Como propõe Lacan na Conferência
de Genebra (1975), o auto-erotismo é o que há de mais hetero.
Com Lacan o corpo passa por redescrições que supõem, a
partir de uma topologia específica, dimensões que o instituem em
três perspectivas: ser libiclinal, suporte de inscrição significante e
unidade imaginária. Pode ser lido como um objeto de mediação na
A Dor de Existir

relação do sujeito ao Outro da linguagem, como superfície de ins-


crição onde o Outro vai deixando suas marcas num traçado que
ordena um esquartejamento que a linguagem inaugura ao nomear o
corpo em suas partes, seus órgãos, seu funcionamento. Há, no en-
tanto, uma impossibilidade do significante em inscrever o vivente.
A linguagem dá ao sujeito um corpo desvitalizado, um corpo afeta-
do pelo significante que, nos recortes que produz, estabelece o gozo
do corpo-todo como impossível; daí a referência às bordas corporais.
Tomando o gozo em sua afinidade com a dor, com o além
do princípio do prazer, podemos reconhecer os paradoxos da satis-
fação pulsional na economia da dor.
Avaliando a influência da doença orgânica sobre a distribui-
ção da libido, Freud afirma que a dor e o mal-estar orgânicos provo-
cam um recolhimento do sujeito que deixa de se interessar pelas
coisas do mundo, já que não dizem respeito ao seu sofrimento, pois
"enquanto sofre deixa de amar". Freud aponta que um grande dano
físico diminui as possibilidades de uma neurose se desenvolver. O
sujeito experimenta um desamparo mental, o sofrimento configura-
se como uma experiência de exílio.
Uma clínica da dor suscitada por um mal-estar orgânico é o
que pretendo enunciar, a partir do trabalho que realizei com pacien-
tes portadores de doenças crônicas em um hospital da rede pública.
A irrupção de uma doença, ao afetar o corpo do sujeito,
certamente captura-o. As circunstâncias que envolvem o adoecer
são marcadas pela ruptura de laços. Em psicanálise não se pretende
abordar o paciente crônico, mas cada paciente e sua relação única
com a doença. É portanto ao sujeito em sua singularidade que nos
dirigimos. Tarefa difícil fazer falar alguém tomado pela angústia ante
o sofrimento físico. Freud propõe que o investimento narcísico do
ponto doloroso tende a esvaziar o eu, o que representa um
desinvestimento libidinal.

278
Andria Vilanova

Foi assim que um certo jovem de 16 anos, a quem chamarei


Jean, me recebeu pela primeira vez. Fôra internado uns três dias
antes de minha primeira abordagem, em função de um derrameplettral
e uma linfoadenomegalia a ser esclarecida. Como proposto por Lacan,
a medicina funciona no registro da demanda e a psicanálise, no re-
gistro do desejo. Ouvir a demanda de Jean, sustentando sua angústia
com o desejo de analista que põe o sujeito a trabalhar, conduziu-o
para além do gozo da doença, articulando-a em termos de sintoma,
no sentido mesmo do: "Sim, tô mal".
O trabalho de entrevistas quando o sujeito sofre de uma
doença orgânica requer um tempo de fazê-lo retomar a possibilida-
de de articulação da cadeia significante. Freud observa que "a tran-
sição da dor física para a mental corresponde a uma mudança de
catexia narcísica para a catexia de objeto", ou seja, da paralisação do
gozo ào movimento produzido pela transferência.
A demanda inicial havia sido uma demanda pedagógica da
equipe médica que, suspeitando de um diagnóstico de câncer, solici-
tou atendimento para o jovem, para que ele pudesse aprender a lidar
com sua doença. Ao abordá-lo, fiz uma oferta de escuta. Calado,
mostrou-me o dreno em seu tórax, suspirou com dificuldade. Seu
rosto crispado fez ver a dor que seu silêncio anunciava. Sua resposta
foi então o silêncio. E foi neste estado de desânimo que Jean perma-
neceu por algum tempo apesar das visitas diárias que a analista fazia.
O sujeito pede uma presença que suporte a sua angústia, algo de
uma demanda começa a se inscrever.
"Os traços mentais distintivos da melancolia são um desâ-
nimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qual-
quer atividade e uma diminuição da auto-estima". Neste fragmento
Freud apresenta traços de uma fenomenologia da tristeza nomeada
depressão pelo discurso da ciência.

279
A Dor de Existir

Com a possibilidade da inscrição da demanda dirigida a um


Outro que se dispõe a reconhecer um sujeito que fala, falando de
seu corpo Jean começou a tomar a palavra. O discurso analítico faz
laço social ao promover a reinserção do sujeito na cadeia significante,
uma operação possível à medida que o analista, ao tomar para si o
silêncio da ignorância acerca da verdade do sujeito, permite sua
enunciação, pois não se diz coisa qualquer diante da dor de quem so-
fre. Não se trata de acalmar, fazer o bem, mas de possibilitar que diante
do impossível de falar da coisa o sujeito possa falar de alguma coisa.
É somente a partir do momento em que o sofrimento toma
a forma falada que o sintoma se faz, implicando a particularização do
sujeito e suas respostas em relação ao real, dimensão que articulando-se
com o impossível de dizer constitui para o sujeito um ponto de impasse.
Cerca de dez dias após a internação, o diagnóstico foi fecha-
do: tratava-se de um linfoma de alta malignidade. Ao ser comunica-
do, Jean não esboçou qualquer reação, apesar de ter sido informado
sobre a gravidade de sua doença.
Com a expectativa de sucessivas reinternações para realizar
o tratamento quimioterápico,Jean foi para casa. Ao retornar na se-
mana seguinte, seu ar de perplexidade havia dado lugar a uma in-
quietação extrema, expressa em dúvidas: "Mas o que é essa doen-
ça?" "O que é essa tal de malignidade?" Jean parecia nada compre-
ender daquilo que os médicos diziam, o que os levou a me aborda-
rem com dúvidas a respeito do QI do rapaz. Não se tratava de uma
questão de déficit cognitivo, mas de uma impossibilidade de inscrever
tais representações.
''A lesão orgânica é da ordem do real, mesmo que ela possa
entrar no simbólico por meio de sua correlação com o sintoma"
afirma Quinet em O corpo e seusfenômenos. Invadido por esse real bio-
lógico da doença, Jean emudecia, apontando para o impossível de
simbolizar. A doença, através da possibilidade de morte que ela vem

280
A11dréa Vila11ova

representar, torna presente o impossível de suportar da castração,


uma vez que a angústia frente à morte é uma elaboração da angústia
frente à castração, como nos propõe Freud. Uma castração no Ou-
tro, retoma Lacan.
Em atendimentos subseqüentes trouxe a morte como pos-
sibilidade: "O que é morrer?" "Não quero pensar nisso... Sou tão
novo... " "Mas sempre penso... Tenho medo". Nas entrevistas que
se seguiram, pôde esboçar algumas questões relativas à situação de
privação que a internação representava. Falava de saudades que o
conduziram à abertura do obituário registrado em sua memória. As
lembranças de seus mortos, constituíram durante algum tempo o
assunto das entrevistas. No decorrer dos encontros foi construindo
associações entre morte e covardia, até o momento que colocou seu
adoecimento em questão: "É, fui pego na covardia! Por que isso foi
acontecer comigo?!"
O significante malignidade tornou-se passível de alguma
inscrição posto que Jean se identificou a outra paciente, portadora
de leucemia, que "também era tratada pela turma da hemato". Essa
paciente morrera na semana anterior e também era acompanhada
pelo serviço de hematologia. "É... Ana morreu ..." Silenciou.
À medida que seu tratamento avançava, via seu corpo trans-
formar-se, sua imagem desvanecer-se; emagrecia, seus cabelos ca-
íam, surgiam estrias, sua pele ficava áspera ... "E agora?!" "Olha
só, estou todo furado!" "Vê como estou magro!" "Quero ver
como vai ser!" Esbravejava!
Quinet nos adverte que o corpo humano não se reduz ao
mapeamento biológico que a medicina se encarrega de atestar, mas
trata-se de um corpo recortado pelo significante, que obedecendo a
uma geografia peculiar a cada sujeito lhe oferece as dimensões desta
estrutura apreendida pela linguagem e só então nomeada corpo. É a
linguagem portanto que dá ao sujeito um corpo.

281
A Dor de Exiltir

Queixava-se insistentemente das marcas que o tratamento


ia deixando em seu corpo. Reclamava dos procedimentos relativos
ao seu tratamento, da demora das intervenções, dos exames aos quais
tinha de submeter-se.
"O gozo da queixa é rival das satisfações próprias ao bem-
dizer" propõe Colette Soler (1993). Desatar o nó do gozo requer que
o analista introduza a ruptura na relação intersubjetiva imaginarizada
por aquele que demanda ajuda - pois tomado como pessoa ele não
responde- colocando-se num ponto de não complementariedade, pre-
cipitando uma mudança de registro, introduzindo o simbólico, ten-
do como efeito uma mudança de posição: de pessoa a sujeito.
Com Lacan reconhecemos a presença do analista como uma
manifestação do inconsciente. O analista como função funda-se na
condição de presença, uma vez que presentifica o real a partir da
demarcação da não reciprocidade que é estrutural à condição huma-
na, pela submissão à ordem da linguagem, pois o significante vem
representar, re-apresentar o que falta.
Durante as entrevistas, o adolescente começou a desdobrar
sua queixa acerca da doença, inc~uindo outros elementos relaciona-
dos à sua história. O sujeito está sempre à espera de uma resposta
do Outro, endereçando-lhe demandas, cujas respostas podem ou
não ser atendidas, pois não se trata do pedido de um objeto propri-
amente, já que se pede um dom, diante do qual o valor real do obje-
to desaparece, efetivando-se para o sujeito a dimensão simbólica.
Temos, então, o dom como objeto simbólico, cujo valor está ligado
ao Outro sob o signo do amor. É no amor de transferência que se
sustenta a clínica analítica, exatamente no que o manejo do analista
possa produzir como efeito de trabalho.
Transformar o sofrimento em queixa, pois a queixa su-
põe um Outro a quem o sujeito endereça sua demanda de cura, de
cessação da dor, de bem-estar. O gozo do sofrimento do corpo -

282
Andréa Vilanova

um gozo fechado em si mesmo - não produz laço; o vivente situa-


se no tempo da urgência, do silêncio da angústia, do calar do sujeito.
Este gozo ao ser domesticado pelo significante adquire o estatuto
de gozo fálico, produzindo um corpo regulado pela ordem fálica,
pela função de ciframento da lógica significante - a lógica do in-
consciente - e tornando-se passível portanto de deciframento.
Lacan retoma em Televisão a questão dos afetos, partindo da
tristeza para caracterizá-los como algo que afeta o corpo, que incide
sobre ele. Quando se trata do corpo afetado, Lacan nos mostra que
por constituição ele é afetado desde sempre pelo significante, que
em sua dimensão mortífera desvitaliza-o, marcando o corpo como
morto, pois o simbólico é incapaz de inscrever o vivente. E o que dá
a consistência a esses recortes aglutinados numa forma chamada
corpo é a Gesta/timaginária que mantem juntas as partes ao preço da
alienação cativante à imagem que o Outro subjetivado oferece.
A psicanálise se ocupa do impossível de suportar a partir
das formas que ele ocupa no dizer. Como nomear o inominável do
sofrimento provocado pela doença orgânica? Operando pela pala-
vra, a psicanálise aponta para o impossível do tudo dizer, mostran-
do sua eficácia na abordagem da dor. Uma eficácia que diz respeito
à ética, uma regulação da ordem do bem-dizer que em nada se asse-
melha a um bem-querer.
Jean realizou, durante os seis meses de vida que lhe resta-
ram a partir do diagnóstico de sua doença, uma travessia que lhe
permitiu ultrapassar o irremediável de um câncer descoberto em
estágio avançado, sobre o qual as medidas terapêuticas da medicina
se mostraram incapazes de produzir efeito. Ele pôde namorar, tra-
balhar, divertir-se, fazer uma história daquilo que lhe restava: uma
vida, ainda que breve.
Alguma construção o sujeito pode realizar em torno desse
real impossível de suportar, que é condição de estrutura. Isso que

283
A Dor de Existir

escapa e não cessa de não se inscrever vai encontrar na ficção uma


forma de representação. Se por um lado Lacan retoma a tristeza
como covardia moral, por outro propõe a coragem de dizer que o
discurso analítico porta: uma coragem de suportar o impossível.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. "Tratamento psíquico (ou mental)" (1905). Em: Obras Completas.


Vol. VII. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
_ _ _ _ "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914). Em: Obras Compk-
las. Vol. XIV Op. cit.
----'~ém do princípio do prazer" (1920). Em: Obras Completas. VoJ.
xvm.op. cit.
_ _ _ _."0 ego e id" (1923). Em: Obras Completas. Vol. XIX. Op. cit.
_ _ _ _ "O mal-estar na civilização" (1930). Em: Obras Completas. Vol.
XXI. Op. cit.
LACAN, J. "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise." (1953).
Em: Escritos. São Paulo, Perspectiva, 1992.
_ _ _ _ "A significação do falo" (1958). Em: Escritos. Op. cit.
O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1960). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1985.
_ _ _ _ "Conferência de Genebra" (1975). Em: lnteroendones y lexlos 2.
Buenos Aires, Manancial, 1989
MALENGREAU, P. "Pour une clinique des soins palliatifs." Em:Rev11e Men-
tal. École Européenne de Psychanalyse, março de 1996.
QUINET, A. "O corpo e seus fenômenos" (1988). Inédito.
SOLER, C. "Impossible à supporter". Em: Fe~lil/ets d11 Co11rtil, vol. 6, 1993, p.
9-11.

284
AS LÁGRIMAS DE MARIA

Maria Vitoria Bittencourt


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Nova forma do mal-estar na civilização, a depressão não


existe para a clínica psicanalítica, pois sob essa denominação estão
designadas modalidades diferentes de expressão do sofrimento do
sujeito. No entanto, com uma freqüência crescente nos deparamos
com sujeitos que se apresentam como deprimidos. Essa queixa se
justifica nas diversas agressões de que o homem de nossa sociedade
moderna é vítima, como se a procura da felicidade tivesse se torna-
do um objeto de consumo onde a falta não teria mais seu lugar.
Através do significante depressão, o sujeito histérico pode encon-
trar uma via para afrontar com uma nova luta a impostura do mes-
tre. Seria uma nova forma de sintoma histérico? Tentaremos res-
ponder a essa questão através de um caso clínico.
Maria vem me ver seguindo a indicação de um psiquiatra
com quem se tratava por sua depressão. Como remédios não havi-
am obtido o resultado esperado, pois suas lágrimas não se esgota-
vam, ele considerava que Maria precisava falar de sua tristeza para
sair de sua apatia. Segundo o psiquiatra, tratava-se de um caso de
depressão grave, com aparência de melancolia.
De fato, Maria chora bastante. Com suas lágrimas, ela de-
monstra seu estado de desolação. Ela se queixa de sua inutilidade,
de não prestar para nada. Seu marido ficou desempregado e ela cai
A Dor de E x iitir

doente justamente no momento em que deveria ajudar. Não quer


mais trabalhar e nada lhe interessa. Antes desse episódio, ela tinha
muita energia: era uma mulher dinâmica. Hoje sua vida sexual é um
deserto. A maneira como se apresenta é o retrato deste vazio. Aos
46 anos de idade, Maria parece ter uns sessenta anos. Suas roupas,
de uma grande sobriedade e mesmo uma certa severidade, me fa-
zem pensar numa freira. Tudo que ela fez em sua vida não serviu
para nada. Ela vive essa situação como um fracasso. Como ela mes-
ma diz: "O mundo é injusto". Fala também de uma degradação da
vida em fanúlia, de uma decadência da qual se sente culpada. Com
efeito, as primeiras entrevistas podem ser resumidas em uma série
de lamentações e auto-acusações que poderiam evocar a melancolia.
Maria exprime seu sofrimento através desse mar de lágri-
mas, mas surge a questão: será que essas lágrimas poderiam servir a
outro objetivo, o de não querer ver? Segundo Freud "o sofrimento
acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas
para a tendência masoquista" (1969(1924], p. 207). O vazio depressivo
pode efetivamente esconder um pleno de gozo? Tentaremos saber
do que se trata. Antes de tudo, é preciso saber como o fenômeno
depressivo se enuncia, para poder localizar a posição do sujeito em
relação ao seu enunciado e, desta maneira, emitir uma hipótese de
diagnóstico.
Após algumas entrevistas onde as lágrimas não se esgotam
(não secam), Maria consegue me falar do inicio de sua desolação, ou
seja, o desencadeamento de sua depressão. Esse estado depressivo
começara há um ano por ocasião da morte de uma tia. Tratava-se da
irmã mais nova de sua mãe, figura muito ligada a Maria. Elas eram
vizinhas na casa de campo, o que permitia a Maria ter um contato
permanente com sua tia: uma mulher rica porém muito infeliz. Num
determinado momento, Maria decidiu não mais visitá-la, pois tinha
muitos conflitos com o marido de sua prima: um homem descrito
como vulgar e grosseiro. Isso trouxe muita tristeza à sua tia, que

286
Maria Vitoria Billmtollrl

estava muito doente e se sentia muito sozinha e abandonada. Segun-


do Maria, sua prima era muito ciumenta da relação afetiva entre elas.
No dia de sua morte, essa tia teria dito: "Felizmente vou-me embo-
ra". Para Maria, isso se tornou insuportável, sendo que o pior era
ver como "uma filha podia abandonar sua mãe, como uma filha não
amava sua mãe". Ela teve muitos remorsos de não ter ajudado sua
tia que a tratava como filha. "Sua tristeza era não ter podido fazer ou
mesmo de não ter feito o que deveria fazer" diz Maria, "sua impo-
tência é o equivalente de sua tristeza".
Isso nos faz lembrar o que Jacques Lacan considera um ponto
de coincidência entre o luto e a melancolia. Diz ele:
'Trata-se de um remorso de 11m certo tipo( ... ) que concerne ffm oijeto q11e
entroff no campo do desdo e q11e desapareceu( ...) É preciso sondar esses
remorsos dramáticos( ...) talve~ aq11i, retorne contra o st!}eito, 11mapotên-
cia de inSII/tos q11e pode se parecer com a que se manifesta na melanco-
lia"(1991 (1960-61], p. 459).

A partir desse esclarecimento, pensamos tratar-se de um


estado depressivo devido a uma perda de objeto que se situa, sobre-
tudo, numa estrutura neurótica. Poderíamos evocar o que se chama
de um luto patológico, que se traduz por uma incapacidade do sujei-
to de renunciar aos laços com o objeto perdido. O que Maria perdeu
nesse objeto? Referimo-nos ao Seminário: os escritos témicos de Freud,
onde Lacan nos diz que: "o ideal do eu é um organismo de defesa
perpetuado pelo eu para prolongar a satisfação do sujeito. Mas, ele é
também a função mais deprimente, no sentido psiquiátrico do ter-
mo"(1979[1953-54], p. 11). Podemos concluir que a perda do obje-
to de Maria remete a sua impotência: ela não estava à altura de seu
ideal cristão, que a intimava a ajudar o próximo; ela não era mais o
que acreditava ter/ser até então. Durante toda sua vida se dedicou a
ajudar sua família. De fato, sendo filha única, Maria se apresenta
como o objeto que substitui os cinco bebés perdidos por sua mãe
(um antes de seu nascimento, e quatro depois). Ela afirmou: "Nós

287
A Dor de Existir

somos seis irmãos". Esse enunciado pronunciado com uma certa


indiferença - enunciado onde ela se inclui nesta série de mortos -
nos faz pensar que exprima um fantasma.
A primeira versão de seu mito individual consiste em consi-
derar que ser filha única implicaria em se sacrificar para o proveito
dos outros. Nas suas lembranças infantis, Maria exemplifica essa
posição de sacrifício do sujeito: "Dentro do forno de sua casa, há
vários pedaços de frango que ela distribuia aos vizinhos". Numa
outra lembrança, ganha um anel de seu pai e dá a sua amiga do
colégio. Isso desencadeia uma grande raiva por parte de sua mãe. Ao
localizar essa lógica de sua vida, Maria se pergunta: ''Deverá sempre
pagar o preço de estar viva?". Isso nos remete à relação do luto com o
"crime de existir'', articulado por Lacan no seu comentário de Hamlet.
Durante sua infância Maria era o centro de atenções de seu
pai. Ele lhe dava tudo, para ele era "um Deus no céu e ela na terra".
Um dia, vangloriava-se Maria, ele lhe deu mil balas como presente
de Páscoa. Desta relação amorosa com o pai a mãe tinha ciúmes.
Esse pai muito atencioso e rico, que fazia todas as suas vontades,
perdeu tudo na guerra. Segundo Maria, não foi por culpa sua mas de
um sócio que o roubou. Mas depois ele conseguiu um trabalho num
cassino, graças a um certificado falso, onde ganhou muito dinheiro;
"muito honestamente", Maria justifica. A partir de um sonho onde,
durante um jantar com ministros, ela é substituida por um ministro
e sai para salvar a vida de uma pessoa, ela constata que se tratava de
um alcoólatra. Desde então, surge uma outra versão do pai: ele teve
duas falências, dívidas de jogo e se tornou um alcoólatra.
Esse momento corresponde à adolescência de Maria, quan-
do as coisas se complicaram: com a falência do pai tudo se afunda,
ela perde sua situação. Ela vai viver durante um ano com sua mãe,
tendo muitos conflitos. Sua mãe é descrita como uma pessoa muito
autoritária, uma mulher muito vaidosa que nunca trabalhou.
Depressiva e caprichosa, a mãe acusava seu marido de incompetên-

288
Maria Vitoria Bittençourt

cia, não sabendo administrar seus negócios. Esses momentos são


narrados por Maria com o sentimento de ser abandonada pelo pai:
ela não era nada para ele, ele a deixou, ela se tornou uma "pobre
coitada, traída pelo Outro".
Maria encontra uma solução para essa situação com o seu
casamento. Aos 18 anos, casa-se com um exilado politico muito mais
velho que ela, mas "muito alto e muito bonito". Devido à dificulda-
des financeiras, eles vão viver com os pais dela, onde nasce seu pri-
meiro filho. Poderíamos qualificar essa solução como bem freudiana,
ou seja, "o desejo do pênis leva a menina a se afastar da mãe e a se
refugiar na situação edipiana como um porto" (Freud). O refúgio de
Maria se encontra na maternidade que lhe deu, como ela mesma
afirma, "um filho perfeito". Dois anos depois, seu marido tem um
problema de saúde e Maria é obrigada a trabalhar. Assim ela denun-
cia a impotência do marido, incapaz de se estabelecer profissional-
mente. Ela o trata de "fraco", "covarde", reencontrando desta ma-
neira seu lugar de vítima, desta vez no casamento. Neste período,
sua vida profissional começa a se afirmar. Ela retoma seus estudos,
aperfeiçoa-se e inicia sua carreira de arquivista. Funcionária exem-
plar, queixa-se de trabalhar mais que seus colegas. Não sem uma
certa satisfação, pois Maria toma o lugar do Mestre, e todos vão
depender dela. Através de sua identificação viril, a estratégia do su-
jeito restaura o pai ideal, sustentando seu desejo (défaillanf) e denun-
ciando os semblantes masculinos. Assim, neste destino de infelici-
dade o sujeito encontra sua felicidade fálica. Como diz Goethe: "Sa-
borear até a última gota a amargura que o destino nos traz".
Finalmente, as acusações que no início da análise Maria diri-
gia a si mesma escondiam que é o Outro - os corrompidos, os
incapazes, os incompetentes - no caso seu marido, o responsável
por seu sofrimento. Nesta afirmação todo seu dinamismo retorna,
sua depressão está bem longe ... A partir de associações em torno de
um sonho com o globo terrestre - sonho que toma a forma de um
pesadelo - onde caminha e destrói países, ela revela que não é tão

289
A Dor de Existir

forte como pensava ... Seu eterno cansaço encontra sua razão de ser,
e ela decide parar essa inclinação ao sacrifício.
Nesta virada o trabalho analitico em torno dos ideais leva o
sujeito a questionar um outro ponto que pode ser articulado à expe-
riência de perda. Um dia, um comerciante lhe diz que sua filha é
muito bonita: "É o diabo". O horror desta revelação da sexualidade
de sua filha adolescente toca num ponto insuportável. Ela recrimina
o fato de sua filha querer se exibir, de vestir roupas justas, de ser
vaidosa como sua própria mãe. E, neste momento, as lágrimas vol-
tam à cena. Ela confessa: "É sua infelicidade". Para Maria essa filha
encarna "o pecado", mesmo termo utilizado para "o pecado" do pai.
O pecado de sua filha representa a sensualidade feminina da qual ela
fazia tudo para se afastar. Com efeito, 12 anos depois de ter seu primei-
ro filho, Maria fica grávida "por acaso". Uma gravidez difícil com com-
plicações de placenta, em que a hipótese de gêmeos foi evocada. Ela
teve medo de perder o bebê por não ter desejado realmente. Finalmen-
te, a filha nasce sem problemas, tudo vai bem ... até a adolescência.
Assim, essa filha que se tornava uma mulher remeteu Maria
à questão da feminilidade e de sua relação com sua mãe. Segundo
ela, esse é o "nó da questão"; sua depressão deve ser localizada nes-
te ponto, pois "ela fica louca por causa de sua ftlha(...) ela pode se
perder(...) ela roubou o que Maria amava mais: seu pai e seu mari-
do". Daí surge um outro ponto da saga da família. Quando Maria
tinha 15 anos, sua mãe descobre que seu pai tinha uma amante e
tenta se suicidar, tomando uma dose elevada de remédios. Uma
hospitalização se faz necessária, e um grande momento depressivo é
diagnosticado. Essa descoberta da mãe é um novo choque para Maria
pois ela se considera traída por seu pai pela segunda vez.
Nesse segundo tempo, a frase "uma filha que não gosta de
sua mãe" coloca em jogo a rivalidade e sobretudo o ódio na relação
mãe-filha. Por trás do personagem materno, que é apresentado como
uma vítima, se coloca a questão da mulher. A depreciação do Outro

290
Maria Vitoria Bittencourt

materno, enganada por um homem alcoólatra, interdita o acesso de


Maria à feminilidade? Assim, atrás da questão do luto impõe-se uma
outra vertente das lágrimas, impõe-se o desejo de não ver. Segundo
Guy Briole "é menos a recriminação que toca o sujeito deprimido
que o olhar que o visa e o julga" - para além do falo, o olhar, causa
de desejo- não é a visão (1996, p. 36).
O tratamento analítico prossegue e Maria decide não acom-
panhar seu marido que encontrou um trabalho numa outra cidade.
Ela resolve ficar, pois quer continuar sua análise e também "para
não largar sua f.tlha". Sozinha com sua filha Maria percebe a parte
que ela toma na desordem de seu mundo. Sua f.tlha é uma mulher, é
a revelação tardia de "a mãe é uma mulher", portanto alguma coisa
lhe falta. Opera-se uma mutação que vai reorganizar os eventos de
sua infância, aos quais Ma.ria vai conferir um novo sentido. Ela en-
contra seu marido nos fins de semana e consente ter uma vida sexu-
al. Mais tarde, ela reconstitui o casal não sem um certo prazer. Ela
interrompe sua análise e deixa sua f.tlha tranqüila, o que eu encorajo.
Dando meu acordo quanto à essa saída, pensei na indicação de Lacan
que nos diz em 1975: "Quando o analisando pensa que é feliz no
viver, então basta" (1976, p. 15).
Assim, esse caso pode nos mostrar que a aparente depres-
são grave de cunho melancólico se revelou como um estado
depressivo que deve ser inscrito no registro da neurose. Aliás, em
útto e melancolia Freud formula que na melancolia trata-se de uma
experiência de perda que comporta "uma depressão profundamen-
te dolorosa, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, a per-
da da capacidade de amar, a inibição de toda a atividade". Esses
pontos são comuns com o luto. Freud afirma tratar-se da mesma
coisa nos dois casos. Mas em seguida ele estabelece um traço dife-
rencial: a perturbação da auto-estima que se manifesta por auto-
recriminações. Daí a distinção: no luto "é o mundo que se torna pobre
e vazio, na melancolia é o próprio eu" (1974[1915], p. 276-78).

291
A Dor de Exülir

As auto-recriminações de Maria se referem sobretudo ao


campo do Outro, este Outro falido (défail/anf) e injusto que a remete
à sua impotência, a se manter numa posição idealizada. Não é so-
mente a perda de um objeto amado que a faz chorar, mas a perda de
seu "brilho fálico". Seu estado depressivo é um efeito do buraco no
Outro, irreparável, que leva o sujeito a remanejar suas identificações
imaginárias, com as quais ele tenta preencher o que lhe falta. Na
melancolia as auto-acusações se articulam com um buraco no eu,
onde o sujeito se identifica ao objeto perdido, objeto sem nenhum
revestimento narcísico. Segundo Lacan, o luto pode se aparentar à
melancolia "em razão da insuficiência dos elementos significantes
para fazer face ao buraco criado na existência. É o sistema significante
no seu conjunto que é posto em causa com o rrúnimo luto" (1989,
p. 100). Diante do buraco no Outro, buraco real provocado pelo luto,
o sujeito é convocado pela realidade a desinvestir o objeto e reduzi-lo
aos únicos significantes que o representavam. Para o psicóóco é o oposto,
pois o buraco no simbólico (foraclusão) reaparece no real, sob a forma
de uma desvalorização que pode levar até ao delírio de inferioridade
moral e à dissolução imaginária que é sua conseqüência.

É necessário questionar a função da depressão na estrutura


neurótica, no caso na histeria . Para Freud, a depressão é
conceitualizada como o efeito de uma limitação funcional do eu,
que não consótui um sintoma. Esse desinvestimento se manifesta
para Maria por uma inibição no trabalho, uma pane do desejo. Sua
queixa não comporta uma interrogação que poderia abrir à dimen-
são metafórica, mas ela se exprime por lágrimas. Chorar a morte de
sua óa pode eqüivaler a chorar o abandono do pai, uma renúncia ao
seu lugar de "ftlha preciosa de um pai digno de admiração". Mas
isso recobre para Maria uma outra questão; sob a falta do Outro é a
sua própria questão que está em jogo: o que é uma mulher? Ai, falta
o significante, não há resposta. O buraco é de estrutura, a falta fálica
da mulher é irreparável. Para Maria, uma solução é fechar os olhos
(reivindicação fálica). É Freud que no final do século passado dizia:

292
Maria Vitoria BittetJ(OIIrl

"Temos que concluir que uma dose maior de coragem moral teria
sido vantajosa para a pessoa em questão" - (em vez da histeria)
(1974[1893-95], p. 171).

Para concluir, colocar a depressão como uma "verdadeira


doença" é uma maneira de instalar o sujeito no lugar de vítima dos
acontecimentos, ou seja, você não é nem culpado nem responsável
da dor de existir. Para o sujeito histérico seria colaborar em sua rela-
ção com o discurso do Mestre, fazendo consistir sua falta-em-ser.
Esta é a ocasião para refletirmos sobre os efeitos do discurso da
ciência que, graças à eficácia dos medicamentos sobre o organismo,
tenta negar a causalidade psíquica do sujeito no fenômeno da de-
pressão. O certificado de "deprimido" permite ao sujeito gozar sem
experimentar a falta: será este um novo modo de gozo de nossa
época? Será que estamos vivendo, como anunciou Lacan há trinta
anos, no reino da criança generalizada?
Fica essa questão.

Referências bibliográficas

BRIOLE, G. "Quelques notes sur inhibition, honte et dépression". Em:


Conjluent, n. 20. 1996.
FREUD, S. "Estudos sobre a histeria" (1893-95). Em: Obras Completas. VoL
II. Rio de Janeiro, Imago, 1974.
_ _ _ _ "Luto e Melancolia" (1915). Em: Obrar Completas. VoL XIV Op. cit
_ _ _ _ "O Problema econômico do masoquismo" (1924). Em: Obras
Completas. VoL XIX. Op. cit.
LACAN,J. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines"
Em: Sdlicet, 6/7. Paris, Seuil, 1976.
_ _ _ _ "Hamlet. Cap. VI - o desejo e o luto". Em: Shakespeare, Duras,
Wedekind, ]f!Yce. Lisboa, Assírio e Alvim, 1989.
_ _ _ _. 0 Seminário, livro 1: os escritos témicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1979.
_ _ _ _ Le séminaire, Livre VIII: Le transferi. Paris, Seuil, 1991.

293
O FEMININO E A DOR DE EXISTIR

Maria Luísa Duret


Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

"Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com


dor a teus filhos" - injunção do Senhor à mulher, segundo as Anti-
gas Escrituras. Seguindo ainda este percurso religioso, a ação de gra-
ças usada nas sinagogas era expressa da seguinte forma: ''Bendito
sejas meu Senhor e meu Deus que não me fizeste mulher", porque os
judeus da antigüidade consideravam que as mulheres não tinham alma.
Para a psicanálise, o lugar da mulher é o da própria indaga-
ção e a famosa pergunta lançada por Freud sobre "o que quer uma
mulher?" não cessa de insistir. Lacan nos fará jogar com o equívoco
ditfemme (diz mulher) e diffame (difamar). No Séminaire: encore lemos:
'~quilo que de mais famoso a história guardou das mulheres é, pro-
priamente dito, aquilo que de mais infame se pode dizer". Encerra
sua aula de 17 de fevereiro de 1976 do Séminaire: /e sympthome, obser-
vando: "Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que
se queira, a saber, uma afecção pior do que um sintoma; podem artict~lá­
lo como lhes convenha: uma devastação, inclusive" (grifos meus).
Então, o que se pode dizer sobre a mulher que já não tenha
sido dito? Ou melhor, não dito? Lembremo-nos aqui da injunção de
Emmy a Freud: "Fique quieto, não diga nada, não me toque!" Um
não que Freud torna um sim, criando a psicanálise.
A Dor de Existir

Sabemos que para a psicanálise a diferença dos sexos não é


anatômica. Se ela existe, seria somente como Freud enunciava em
1925: por suas "conseqüências psíquicas" (1969[1925], p.309). Na
prática analítica, o que se observa mesmo é a dificuldade para todo
sujeito de assumir seu sexo. Que sexo, se este não é anatômico? Ele
nos dirá: ''Não se encontra para o ser humano pura masculinidade
ou feminilidade, nem no sentido psicológico, nem no sentido bioló-
gico" (1969[1905], p. 135).
A psicanálise então, sempre circundando um impossível,
tentará dar uma conceitualização lógica às questões que mais tocam
os seres humanos, como o mal-estar, a dor de existir, a não-relação
sexual, os lugares em que se localizar como homem e mulher.
Sabemos que homem e mulher nascem ambos sob o regime
da falta. Distinguem-se, entretanto, pelo destino que a falta-a-ser
toma em cada um. No homem este destino se liga ao fato de que
tem um pênis. Já para a mulher, que se situa na falta a ser, ter ou não
é do registro do imaginário.
O homem procura suturar sua falta- quando o pênis já não
é mais suficiente- por um saber; enquanto a mulher por mais apai-
xonada e curiosa que possa ser não se deixará arder por este desejo.
Isto porque sobre a origem ela sabe algo.
Então, a mulher participa da criação sendo também criatu-
ra. Localizamos aí sua divisão e sofrimento. Por seu lado, o homem
é criatura e criador, mas a linha de divisão não passa nele neste pon-
to. Passa entre a mulher e ele. Ela é a verdade que ele interroga para
furar o segredo da criação: furar para encontrar. Ele a interroga como
fonte de vida e da origem que ela evidentemente não o é.
Lacan no Seminário: RS.I. nos dirá:

Uma mulher na vida de 11m homem é algo ql/e ele m, ele crê que há l/ma,
às ve~s dilas 011 ms ... }porém lima m111her sintoma por vez É 1/m crer
absol11to, vizinho dafé. Acreditar, crer em seres q11e podem dizer alg11ma

296
Maria Luila Dure/

coisa. Q11em nos promra e nos apresenta 11m sintoma acredita. Se pede
nossa '!}tufo, éporq11e acredita q11e o sintoma sqa capaz de dizer alg11ma
coisa, q~~e basta apenas decifrar. É ig11almente do qtte se trata com ttma
m11lher; a nmlher-sintoma para o homem é a m11lher capaz de decifrá-lo.
Acredita no qJte ela di~ acredita qHe elo diga efetivammte algo. É o q1te
se chama amor. É o amor maior qHe estáfim dado nisso. Acreditar "nela"
é algo em qHe o homemfica totalmmle cego, qHe serve de rolha, de tanpa,
para tornar possível o crer absol11to" (1974-7 5).

A mulher não interroga o homem. Sofre por sua divisão e o


invoca como o ideal mesmo de unidade. Mas aí um tropeço; este
ideal é aquilo que ela não é: UMA.
No seu gozo fálico o homem faz da mulher o Outro sexo, e
assim tenta reunir o saber e o ter. Mas este saber não o divide. Inter-
roga a verdade na mulher, verdade que não é ciência mas o ômega
da ciência. A pergunta sobre A mulher parece ser o começo de todo
o conhecimento da ciência e de toda poesia. Sobre este furo - es-
sência do feminino - assim se expressará uma paciente em análise:
"É assim tão complexa essa coisa do ser... Isso de ser a matéria
amorfa daquilo que se molda e toma formas, e constantemente se
transforma até que chega o dia - e esse dia é sempre certo - que
retorna a não-forma original do ser. E esse não é ainda o fim".
Gostaria de trazer aqui um recorte de uma análise de uma
paciente do sexo feminino que evidencia esta busca pela unidade -
ser UMA - e a dor aí suscitada quando é confrontada com este im-
possível. M., 36 anos, relata intensa angústia que fora provocada por
uma notícia que escuta na televisão: um médico mata a esposa e o
motivo é que ela iria denunciá-lo por exercer ilegalmente a medicina.
A partir daí ela começa também a reconstituir sua história no pro-
cesso analítico: "Eu também cometi um crime".
Mas de que crime ela falava? Como estudara no exterior
seu diploma fora revalidado no Brasil por uma universidade com-
petente. Nesta época, ela escuta a seguinte frase de um professor:

297
A Dor de ExiJiir

"Os créditos que você realizou não são os mesmos, mas vou validar
seu diploma". Ela prossegue: ''Percebo que não sou nada. Deve existir
uma outra saída. Um dia, o Ministério da Educação ou o Conselho
vão descobrir que cometi um crime. Não me dava conta que tudo isto
tinha pés de barro. Se perder meu emprego, como irei pagar meu apar-
tamento? Onde vou morar? Sou uma sem-teto".
Na mulher, vamos encontrar a dimensão da máscara. Más-
cara que na verdade oculta o vazio angustiante da falta de um
significante que a represente. M. ao falar de si mesma faz uso de
significantes como: alta demais, desajeitada, magra, colocando-se
desta forma numa posição degradada e inferior. Quando percebe
que o médico não tem um diploma- é preciso dizer que esta noticia
também coincide com uma crise no casamento - algo claudica. O
homem, como ela, não tem. E isto provoca neste momento de sua
análise um sentimento insuportável. Por não ter, assim como o mé-
dico, é criminosa. Sem-teto, feia, sem-diploma (sublinho este
significante sem) poderá ser presa.
Incorreu no crime de "falsidade ideológica". Por isso,
diz que "não poderá ter filhos". Inicia uma crise depressiva, tudo
o que possui é "falso". Referindo-se ao marido observa: ''Acho
que nos escolhemos porque somos pobres e feios". Talvez toda
esta falsidade a que ela se refira seja sua forma de dizer "não há
relação sexual".
Em um momento preciso de sua análise M. dirá: "Mas o
que será que os homens têm de tão valioso?" Silêncio. Prossegue:
"Não pode ser só o sexo, a relação sexual, não é só isso ..."
Procura repetidas vezes uma resposta para a pergunta: "Sou
masoquista? Por que todos são melhores do que eu? Sempre há a
mulher mais bonita, atraente e inteligente". Ela coloca fotos de ami-
gas que considera "melhores" em porta-retratos espalhados em sua
casa, denunciando assim, sem dúvida, sua fantasia histérica.

298
Maria Lrtisa Dure/

Mas se falamos de masoquismo feminino como "expressão


do ser da mulher", não podemos elevá-lo à eqüivalência de "a mu-
lher é masoquista". Os textos sobre a feminilidade em Freud con-
vergirão para uma solução feminina fálica suportada pela equação
simbólica: bebê = seio = fezes = pênis, onde a saida será dada, por
exemplo, pela maternidade. Mas como M. poderá ter filhos, ser mãe,
se é "falsa"?
Ao mesmo tempo em que faz uma série de atos falhos, en-
tre eles "esquece o diafragma", traz para a análise um sonho. Neste
sonho, empurra um carrinho de bebê mas começa a brigar com al-
guém na rua, usando o próprio carrinho. "Esquece" o bebê. Quan-
do se dá conta, ele está todo roxo e parece morto.
A partir deste sonho muitas seriam as interpretações possí-
veis. Uma delas é a de que também este filho não poderá suturar sua
falta. De qualquer forma, pela via do falocentrismo do inconsciente
e da sua equação simbólica, o próprio Freud percebe que isso é
insuficiente para responder os mistérios do enigma da feminilidade
e sua dor.
M. queixa-se de que é a última, "aquela que apaga a luz".
Talvez ainda não possa saber da escuridão onde todo e qualquer sujei-
to é lançado, sendo guiado apenas por uma luz: o próprio desejo.

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Em: Obras


Co"'pletas. Vol. VII. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
_ _ _ ·~gumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os
sexos (1925). Em: Obras Co!J/pletas. Vol. XIX. Op. cit.
LACAN,]. Se111inário, livro 22: RS! (1974-1975). Inédito.

299
AS CRIANÇAS E SUA DOR DE EXISTIR

Ana Ruth Najles


Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana

Quando tentamos dar conta das formas que adquire a dor


de existir na clínica com crianças neuróticas uma evidência se im-
põe: elas não sabem utilizar os ditos da depressão para dirigir-se a
um analista. Não é freqüente que uma criança diga "estou deprimida",
"já não tenho mais ... forças, coragem", "não dá mais", "entreguei os
pontos" etc. (cf. Soler, 1997). Além disso, devemos precisar o marco
no qual vamos desenvolver estas considerações em torno da dor de
existir das - assim denominadas pelo Outro social - crianças.
Para começar, notemos que depois de Jacques Lacan ter
posto em função a posição do analista no discurso, a tradicional dife-
rença sustentada entre adultos e crianças adquire uma nova dimen-
são. Para a psicanálise trata-se da relação do sujeito com o discurso
em suas duas vertentes: a significante e a do gozo. A partir desta
perspectiva os diferentes estados do sujeito devem ser considerados
com respeito a sua posição discursiva e não em relação às etapas do
desenvolvimento cronológico.
A psicanálise nos ensina que a castração do parlétre - pela
entrada do vivente num mundo da linguagem - é estrutural. Esta
castração equivale à falta de um nome próprio, o que é o mesmo que
a falta de uma identidade do ser ao nível do significante. É assim
que se impõe o sintoma como aquela invenção que outorga um ser
si11gt1lar ao sujeito (o que como tal é pura elisão significante).
A Dor de Existir

Lacan vai precisar a estrutura do sintoma ao demonstrar


que este não é somente um modo de dizer, mas fundamentalmente
um modo de gozar. Na aula de 18 de fevereiro de 1975 de seu Semi-
nário, defmiu sintoma como "o modo que cada um goza do inconsci-
ente, enquanto o inconsciente o determina".
Podemos precisar também que o gozo de que se trata é o
gozo fantasmático, o gozo-sentido:jouissance/jouis-sens. Se a lógica do
tratamento está regida pelo fim próprio da análise que consiste em
alcançar a pulsão, já que esta é definida pela psicanálise como a me-
lhor conjunção entre o inconsciente e o isso- tal como conceitualizou
Lacan- então este tratamento está regido pela lógica da fantasia, dire-
ção que implica seu atravessamento (cf. Miller, 1994).
Como dizíamos mais acima, a clínica analítica com crianças
nos permite verificar que o termo depressão não é o mais usado
para designar o mal-estar que as afeta. Por outro lado, é verificável
que, assim como sucede com muitas mulheres, o afeto que aflige as
crianças, e em cujo nome elas se dirigem a um analista, é o medo.
É necessário acrescentar que se é verdade que as crianças, como
todo parlêtre, chegam apresentando-se como objeto, com seu ser - ''Eu
sou isso" -, elas nem sempre o dizem, ainda que às vezes o mostrem,
para logo o desenvolverem no dispositivo analítico. Isto é muito cla-
ro na histeria, já que a histeria de algumas crianças, por exemplo, mostra
muito rapidamente como alguém se apresenta como objeto.
É o caso de uma menina de 11 anos que se apresentou a
mim com uma gueixa precisa sob o aspecto de um lamento: "Por
que terei nascido mulher?", acompanhada de uma acentuada falta
de interesse generalizada. Referia desse modo uma conclusão pron-
tamente extraída de freqüentes decepções amorosas, ocorridas prin-
cipalmente em seus devaneios 1•
Em pouco tempo de entrevistas produziu-se o
desmascaramento de uma anorexia, que ao ser localizada sob trans-

302
Atia &th Nqjles

ferência permitiu situar uma anorexia infantil sofrida por ela aos
dois anos de idade. Tal repetição sob transferência culminou na irrupção
de uma recordação que indicava um saber recalcado2: ela se via choran-
do com a idade de dois anos enquanto sua mãe era revistada pelos
guardas de um supermercado ao ser surpreendida roubando.
Este episódio anoréxico encontrava apoio em suas identifi-
cações (ser ladra como todas as mulheres de sua fanúlia materna;
não parecer-se com sua mãe que é gorda; ser "modelo", ser como
sua amiga anoréxica que causa desespero à mãe, ser "ossuda" como
sua avó paterna), constituindo-se por isso como sintoma.
Observa-se então o gozo da castração manifestando-se sob
a forma de um "estado depressivo", gozo que irrompe no corpo no
momento de vacilação da sua posição histérica ante a aparição do
Outro gozo - feminino - que se tenta recalcar.
Colette Soler afirma que "na lalangue mais comum o estado
depressivo se diz essencialmente em metáforas corporais. Declina-
se em imagens de corpo detido, imobilizado, que "não dá mais",
que "não consegue mais", que "entrega os pontos" etc. E acrescen-
ta, fazendo referência às observações de Lacan em seu Seminário: a
angústia, que "se diz me encosto para dizer renuncio de tanto que a dor é
evocada com uma imagem de petrificação e de movimento impedido".
É assim que formula que "os ditos da depressão designam sempre uma
interseção onde se conjugam a tristeza e a inibição" (1997, p. 92).
Recordemos que Lacan afirmava que:

A tristeza, por exemplo, é qualijicada como depressão, quando se lhe dá


a alma por suporte. Porém não é 11m estado d'alma, é simplesmente uma
falta mora4 como se expressava Dante, inclusive Spinoza: 11m pecado,
que quer dizer uma covardia mora4 que somente se situa em ríltima ins-
tância pelo pensammto, ou sqa pelo dever de bem-dizer ou de reconhecer-
se no inconsciente, na estrutura (1977, p. 107)

303
A Dor de Existir

Meu interesse nestas observações de Colette Soler reside na


freqüência com que notamos esta conjunção da tristeza com a inibição
não somente no modo em que se mostram algumas crianças frente a
um analista (como exemplificamos mais acima), mas também nos enun-
ciados com os quais nos apresentam aqueles que as trazem.
É o caso dos ditos de uma mulher que veio à consulta, di-
zendo estar preocupada porque seu filho de sete anos não se relaci-
onava com outras crianças, e além disso se mostrava taciturno e
desanimado.
Quando recebemos esse menino e o convidamos a falar,
apareceu em primeiro lugar o medo. Esse medo tomava a forma de
múltiplos temores noturnos; o mais consistente era o de que algo de
ruirn aconteceria a seu pai, por exemplo ser assassinado. Mas tam-
bém dizia sentir um grande medo da violência, razão pela qual evita-
va brincar com companheiros de sua idade. Da mesma maneira, no
curso das primeiras entrevistas, relatou que não suportava gritos,
acrescentando que seus pais, embora convivessem, "se matavam a
gritos". Na entrevista em que este menino relatou sua versão do
conto da Chapeuzinho Vermelho- versão na qual Chapeuzinho e o
Lobo crivavam-se de tiros de metralhadora enquanto a avó no ba-
nho se desfazia em cinzas-, perguntei a respeito da ocasião em que
tomara conhecimento desse conto; respondeu que o havia visto na
televisão no Mundo da Disn'!Y quando era pequeno. Acrescentou nes-
se momento que o recordava porque nesse dia seus pais lhe disse-
ram que iriam se separar. Quando perguntei sobre sua reação, res-
pondeu: "Pensei que tudo ia ser melhor a partir dali, mas não disse
nada". Ao incitá-lo a continuar falando, disse que naquele momento
teria gostado de ter tido uma grande diarréia. Frente a sua surpresa,
terminei a entrevista nesse instante.
Sabemos que trata-se de que nesse momento o que fala en-
contre o intervalo que lhe possibilite confrontrar-se com o que ali "se
disse". O que o analista faz é por em forma o discurso do mestre

304
A11a Rnth Najlu

para que algo do gozo apareça, indicando a porta de entrada da


análise, já que é o S1 que introduz o gozo sob suas vestimentas
identificatórias. Esta é a posição do sujeito como '']e não penso" na
qual se apresenta com seu ser, habitado em seu gozo por seu fantasma.
Por meio do ato analítico o analista então facilita a instauração da trans-
ferência como SsS, produzindo a emergência do mais de gozar {S2/ a}.
Porém, além disso, enquanto o ato analítico - que Lacan localiza no
lugar do semblante no discurso analítico- sustenta a partir do equivo-
co o lugar de Outro dizer, para que a interpretação indique o real no
lugar da verdade, trata-se de que o analista, colocado nesse lugar, possi-
bilite a passagem do discurso do mestre ao discurso da histérica. É
neste discurso que o parlétre se encontra na posição de "]e não sou",
posição que dá lugar ao pensamento inconsciente como "pensarpen-
sar" (1988). A localização do intervalo permite que a pergunta do
sujeito apareça e que se abra caminho até a pulsão que está velada
pela fantasia, estando o sujeito no plano da identificação significante.
Depois da entrevista que relatamos, este menino começou a
falar de como gostaria que seu pai fosse. Devemos destacar que,
como habitualmente sucede, seu ideal de pai não coincidia com o
progenitor, fato doloroso que a criança começou a reconhecer em
seus ditos. Numa ocasião começou a interrogar-se sobre a posição
sexuada de um companh eiro- semelhante- de quem disse: "Não é
viado!", momento em que foi efetuado o corte da entrevista. Atra-
vés do semelhante, esta reflexão remete à pergunta sobre o gozo de
"seu Outro", modelo de identificação sexuada.
O temor noturno a respeito do pai, máscara de um desejo
criminoso, ocultava sua covardia, entristecendo-o. Mas também esse
temor impedia a aproximação a seus semelhantes. Por outro lado,
aparecia uma inibição na escrita.
Notamos que a posição do analista como produção do in-
consciente em ato faz equivaler, desta maneira, a lógica do dispositivo
a11alítico à lógica do consenti!JJento. Tal como afirmou Lacan, todo sujeito

305
A Dor de Existir

se apresenta frente a um analista em posição de objeto enquanto


não sabe o que diz. Apresenta-se como dono de seu ser sem saber
de que ser se trata. A histerificação do discurso consiste em fazer
aparecer esse "]e não estou ali onde penso", posição do st!Jeito
analisante. Trata-se nesse ponto de por em forma a pergunta do su-
jeito, pergunta que o divide, fazendo aparecer a sua divisão - com
toda a angústia que isso implica.
Em relação ao proposto acima, notemos que é o trabalho
analítico o que pode transformar o medo em angtístia (não sem obje-
to), condição do trabalho analisante (cf. Najles, 1996a). É assim que
a angústia sob transferência põe em relevo que o analista, quando
funciona, o faz como objeto causa da divisão do sujeito. Portanto se
o medo inibe, a angtístia é motor - sempre e quando o analista saiba
manobrar com ela para empurrar na medida necessária o sujeito na
direção do real, mas sem precipitá-lo pela janela de sua fantasia.
Intervir sobre a angústia dá conta da introdução pelo analis-
ta das diversas modalidades dafimção da pressa como conclusão do movi-
mento. Deste modo o ato analítico se sustenta nesse tempo lógico que
antecipa uma certeza que indica a saída. O intervalo que acompanha o
movimento que se produz nas entrevistas comentadas dá como re-
sultado o tempo (da sessão/ cessão) como tal, realizado por um ato,
limitando a eternidade da repetição (Najles, 1996b).
É evidente que a psicanálise opera pela aposta na função da
causa do desejo, opondo-se através da posição do analista ao
desfalecimento da mesma.
Sabemos que a causa articula a falta de gozo (que chama-
mos castração) com o objeto mais de gozar, produzindo o marco da
realidade que denominamos fantasia e que rege o gozo do parlétre. A
prática analítica nos demonstra que é o analista, enquanto se oferece
como o que suporta o peso desse objeto no discurso analítico, o que
permitirá ir contra as quedas do desejo que não supõem outra coisa
senão a irrupção de um gozo.

306
Ana F.Pth Najlu

Foi assim que, a partir da colocação em funcionamento


do laço discursivo sob a forma do dispositivo analítico, a reali-
dade deste parlêtre começou a modificar-se. A partir da seqüên-
cia comentada, a criança à qual nos referimos pode começar não
somente a estabelecer laços com outras crianças de sua idade,
coisa que desejava, como também começou a pôr em prática
uma gama de interesses até então desconhecidos, desaparecen-
do sua inibição para escrever.
A partir desses dois fragmentos clínicos voltamos a cons-
tatar que a covardia moral se faz presente como "estados
depressivos" que correspondem a quedas do desejo, que trazem
consigo um aumento de gozo: no caso da menina manifestando-
se a partir de uma decepção amorosa; no do menino, a partir de
um desejo criminoso.

NOTAS

1. No original: enSOiiaciones di11rnas.


2. N. do T. No original: rechazado, cujo significado literal é rejeitado.
3. Tro/1, de trolo, gíria (lm!fardo) que significa homossexual masculino.

Referências bibliográficas

LACAN, J. "La logica dei fantasma 1966-1967". Em: &mias de msenanza.


Buenos Aires, Manancial, 1988.
_ _ _ _ "Televisión". Em: Radiofoniay televisión. Barcelona, Anagrama, 1977.
MILLER, J-A. Curso da Seção Clínica de Paris. 1994.
NAJLES, A. R. Una política de/ psicoanálisis com ninos. La Paz, Plural Editores,
1996.

307
A Dor de Exiitir

_____ E/ tien;po de la sesión. Conferência na Seção Clínica de Buenos Aires.


26 de junho de 1996.
SOLER, C. "Un plus de mélancolie". Em: Silhouette.r du deprimé. Revue de La
Cause Freudienne n. 35. Paris, Navarin, 1997.

*Tradução do espanhol: Sheila Abramovitch, correspondente da Escola Brasileira de


Psicanálise e Roberto Júlio May
* Revisão da Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa

308
MORRER DE BANZ0 1

Maria Sueli Peres


Membro da École de la Cause Freudienne. Correspondente da Escola
Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro.

Lacan faz da tristeza a denotação de uma falta moral, de


uma covardia, e não hesita em articular o afeto depressivo à paixão
de ignorância que contrasta com o dever de bem dizer. A tristeza é
considerada por ele como o afeto que permite nada querer saber
sobre os efeitos do inconsciente, constituindo uma traição do sujei-
to a si mesmo. Ele nos indica que a única covardia é a de ignorar o
desejo que nos habita.
Em torno de dois significantes, banzo e revolta, trataremos de
balizar como uma análise vai permitir a um sujeito verificar e modi-
ficar, em seguida a esta verificação, seu afeto depressivo, seu banzo.
É esta verificação que revelará a esse sujeito o ponto sobre o qual
apoiava-se para desenvolver sua posição sacrificial a fim de dar con-
sistência ao Outro. Banzo e revolta constituem para esse sujeito as
duas faces do desconhecimento no qual retinha seu desejo.

O banzo

Como a depressão, o banzo é uma forma de mal-estar. A


palavra banzo deriva de banza que quer dizer casa, lugar; é uma pala-
vra banto que originalmente quer dizer ser tomado pela nostalgia do lugar
de onde se é originário.
A Dor de Existir

A palavra entrou na língua portuguesa do Brasil e permane-


ce em uso. Atualmente exprime: ser tomado ao mesmo tempo de
inanição, de desgosto, de apatia, de tristeza, de abatimento. Resulta
em um estado de estupefação no qual o sujeito perde suas faculdades.
Da palavra banzo, o português vai criar banzé, que quer dizer
tumulto, barulho e confusão de vozes; banzar, olhar ao longe; banzeiro
exprime a tristeza que não tem razão aparente, a tristeza à qual al-
guém se abandona; diz-se banzar ou banzeado dos estados do mar,
para exprimir os diferentes movimentos de suas vagas, metaforizando a
tristeza. O adjetivo banzado quer dizer que se está ferido pela decepção.
O banzo era a doença mental mortal dos negros deportados
da África para o continente americano e submetidos ao horror da
lógica obscena dos negreiros. Foi definido pelos portugueses como
"loucura nostálgica" ou " loucura forçada", fundada sobre a perda
do país e levando à morte.
Podemos dizer do banzo que ele é um afeto depressivo, e
considerar que nos momentos em que o negro se via confrontado
ao horror do ato do negreiro, esse afeto se desligava da cadeia
significante e retornava como efeito da verdade do sujeito, articula-
do à dor da perda produzida no real.
O sujeito escravo então tinha apenas duas possibilidades de
escolha: ou encontrava a morte, ou aceitava um empobrecimento
considerável de seu eu e restava na posição de escravo durante o
tempo em que as condições objetivas do cativeiro não lhe permiti-
am subtrair-se dali.

Banzo e revolta

O escravo assim organizava silenciosamente sua revolta, per-


manecia habitado por seu banzo, sem dignidade, quer dizer, sem
desejo próprio, submetido à impotência e à resignação, mas em vida.

310
Maria Sue/i Peres

Assim submetido e dividido, o negro banto utilizava o canto para


metaforizar sua dor. Com sua voz e seus tambores, ele fazia um
certo banzé que visava um dizer sobre seu desamparo. Desse dizer
banzado o negro fez laço social através da música.
A revolta é, segundo o dicionário Littré, um levante contra a
autoridade estabelecida, contra o mestre. No sentido figurado com-
para-se a uma perturbação moral: "Temo esse duro combate e essas
potentes perturbações que já fazem em mim a revolta dos senti-
dos", escrevia Corneille. Na revolta, para recriar os laços sociais
destruídos quando do exílio forçado, os escravos vão apossar-se da
língua do feitor, o dono das ordens nos campos de trabalho. É as-
sim que, através de seus escravos, o Brasil vai adotar o português
como língua da nação, nação fundada no estilhaçamento da domi-
nação produtora de banzo, de revolta, de impotência e de resignação.
Vamos agora falar de Louise e de seu banzo. Seu nascimen-
to não constituiu um acontecimento. Ela foi antes um embaraço
difícil para seus pais. Sua mãe não deixava escapar uma ocasião de
lhe fazer saber que ela devia sua presença no mundo a um pacto
com a vida, contra seus pais. Essa certeza concernindo o desejo
materno era aquilo do qual Louise alimentava seu banzo. Ela tinha
um saber, ela sabia que seus pais a tinham trazido à vida como os
negreiros traziam os escravos ao Brasil, na galera.
A vantagem desse saber era de lhe permitir ter podido no-
mear de um só golpe o lugar de sua dor de existir. Mas o fato de
nomear essa dor não lhe impedia de circular na vida, incansavelmente,
ao sabor dos afetos, banzando como o oceano, entre banzo e revolta.
Cada vez que ela era tomada pela necessidade de significar
sua alienação ou sua destituição no Outro, seu banzo e sua revolta
se manifestavam. Cada vez que o simbólico não respondia, Louise
escutava nela ressoar um imperativo: "Trabalhe!" Afetada por seu
banzo, ela negligenciava o simbólico para aplicar-se a seu gozo.

311
A Dor de Existir

Ela se via diminuída como pessoa e consagrava sua vida aos outros
e à revolução. Forma de duplicar a castração, de falicizar seu corpo
através de seu ideal, fazendo-o afrontar sem cessar a morte, no real
de um país estraçalhado pelo totalitarismo. Negando sua falta-a-ser,
dava consistência ao Outro. Ela localizava a falta do lado do Outro
e encontrava-se no corpo social assassinado pelos assaltos autoritá-
rios e tirânicos do Outro.
Durante aquele tempo, ela conheceu o amor e teve homens
na sua vida, mas foi ao corpo social que ela endereçou sua demanda
de amor. Era no corpo social assassinado pela tirania que ela procu-
rava encontrar o significante de seu desejo.

Louise e o desejo de saber o verdadeiro

Ao longo dos anos, essa posição conduz Louise a um


desenraizamento forçado. Na passagem de uma lingua a outra
provocada pelo exílio ela aprendeu o que traduzir queria dizer e
pôde começar a dizer seu inconsciente. Fazendo apelo à metáfora
paterna, através da submissão às convenções da lingua do exílio, ela
pôde largar a língua que se fixara, quando criança, entre sua mãe e
ela. Descobrindo outras possibilidades para traduzir sua dor de
existir, Louise vai poder formular uma demanda de análise, cri-
ando assim as condições de um encontro entre o sintoma e o
Outro via transferência.
Sua queixa é então depositada: ela não podia mais ser
uma judia errante no umbral da vida. Isso não foi formulado
sob a forma de uma questão, mas posto sob a forma de um pro-
blema a resolver. Esta queixa- problema a resolver - articulava-
se em torno do desejo de sua mãe de fazê-la desaparecer antes
de sua vinda ao mundo. Esse desejo era duplicado pelo fato de
que seu pai jamais a olhara ou tomara em seus braços, a fim de
contrariar o desejo materno.

312
Maria Sueli Peru

O analista, visando unicamente o saber inconsciente conti-


do nessa queixa, fez surgir, articulado à enorme dor de existir bem
real que a queixa atualizava, o lado "industrioso" de Louise. Ela
pôde então entregar, na sua tristeza, seus significantes, deixando ao
Sujeito Suposto Saber, instalado, a tarefa de produzir o saber que
seus significantes comportavam.

O banzo de Louise e os impasses de seu desejo

Ela entra em análise e aceita que sua fala caia sob o golpe da
interpretação. Na formulação de sua demanda, ela aceita pôr em
causa o saber recalcado, mas com uma condição bem precisa que ela
indica ao analista em sua forma de proceder: ela sabe o que ela quer,
mas ela não quer nada saber do que ela deseja. Podemos dizer que
sua entrada em análise é uma entrada decidida. Mas esta decisão
resta subordinada a um impasse.
Como Lacan o diz a propósito de Dora, Louise encontra na
sua situação uma espécie de metáfora perpétua: sem poder nada
dizer disso que ela é. Prisioneira da impossibilidade de poder situar-
se em relação ao amor, ela vai encontrar um lugar na hlstorização de
seu destino, mas este lugar só pode dialetizar-se via tratamento de
sua questão, sob o olhar silencioso do analista. O sentido de sua
história não pode ressoar à distân~ia. Dito de outro modo, esse sen-
tido não é metonímico.
Descrente, incapaz de se sustentar da crença na significação
paterna, submetida a todas as significações, ela entrara em análise
como se entra em peregrinação. Ela queria resolver a invasão de
desejo do Outro materno através de um encontro impossível. Em
sua errância metafórica, Louise cultivava a esperança de um encon-
tro sobre o rastro histórico de uma viagem já feita: aquela de seus
avós vindos para o Brasil, da Espanha católica conservadora, do
lado materno, e da Espanha dos judeus convertidos, do lado paterno.

313
A Dor de Exütir

Os livros com teses anarquistas do tio-avô materno eram o lugar


que garantia a possibilidade desse encontro.
Que esperava ela desse encontro senão escrever sua história
de sujeito e provar por esta escritura a existência da relação sexual, a
fim de poder sair do umbral onde ela se postara?
Subordinada assim a essa metáfora perpétua, Louise
condicionava a procura de sua solução ao horror de saber isso que,
ao nível do desejo, organizava seu gozo e fazia impasse à descoberta
de sua verdade.
É essa crença na possibilidade de uma escritura da relação
sexual que a análise vai atacar, malgrado o horror de Louise. Assim,
durante vários anos de trabalho em torno de sua tristeza indignada,
ela vai endereçar uma demanda ao olhar silencioso do analista; esta
demanda vai ser recebida. A partir daí, uma mensagem contida na
elaboração subjetiva pôde construir-se e uma reordenação da histó-
ria familiar elaborou-se em torno de uma vaga de lembranças reto-
madas sem cessar, pondo a céu aberto os elementos recalcados.
Mas, à medida que se aproximava de sua história de sujeito,
Louise recusava a cadeia significnte na qual ela se inscrevera. O ban-
zo de Louise chegara então a seu paroxismo, colocando-a face à
morte. Isso não a impediu de produzir um esclarecimento sobre a
estrutura e o ganho de saber que este esclarecimento comportava
conduziu Louise a um certo bem-estar.
Dois momentos cruciais virão regular seu desejo de outra
maneira. Fatigada de exibir sua tristeza ao olhar silencioso do analis-
ta, Louise vai consentir, enfim, em largar sua onda de lembranças e
vai permitir ao sonho tomar a frente da cena analítica. Seu lado "indus-
trioso", liberado da escravidão, vai se pôr a serviço da interpretação.
Em torno dessas interpretações Louise pode então nomear
a loucura de seu pai e localizar o extravio de seu olhar fora de seu
corpo; ela localiza esse olhar extraviado do lado da errância

314
Maria Sue/i Peru

significante onde as condições do desejo dos avós paternos o havi-


am instalado e pode, então, nomear-se como ausência do olhar de
seu pai. Ela sabe agora o que ela é.
Uma modificação maior se produz: na sua vida ela pode,
enfim, olhar-se nas vias de escolher a direção a tomar. Seu banzo
encontrava-se, então, profundamente modificado. A tristeza per-
manece bem lá, porém estreitamente associada ao gosto da renún-
cia que suas escolhas implicavam. Ela não é mais prisioneira de seu
banzar infinito.
Ela descobre, enfim, que adorava errar como uma judia. Que
esta errância, separada de seu umbral, constituía sua força e sua fra-
queza. É do lugar desta errância que ela havia podido organizar sua
estratégia a fim de escapar à realização do desejo do Outro materno
e, assim , subtrair-se à morte no real. Mas o desejo produzido por
esta nova posição, regulando de outra maneira seu banzo, era ainda
o desejo de saber o verdadeiro. É então que Louise vai se interrogar
sobre como dirigir sua vida. E foi a insuportável constância decidi-
da do olhar silencioso do analista que lhe permitiu ver o caminho a
tomar para responder a essa questão.
Nesse momento, era questão de encontrar no trabalho o
acesso a uma realidade unívoca. Era tempo de sair dos múltiplos
lugares de errância e elaborar em torno dessa realidade significante
um saber capaz de traçar novas vias no real. Mas para isso precisava
abandonar o desejo de saber o verdadeiro. Ela aceita então interpre-
tar um sonho que ela sofria há anos sem querer entender.
Nesse sonho, ela se encontra na iminência de tomar o avião
para uma grande viagem que deve levá-la para longe de sua casa. Dian-
te dela encontra-se uma valise2 que deve rapidamente arrumar. Ela é
incapaz de apreender com o olhar os objetos destinados à valise; a
angústia a invade. Ela perde o avião em uma carreira sem fun e acorda.
Louise desprende-se finalmente de suas construções imagi-
nárias, e em torno da questão: "Que posso eu saber desse sonho?",

315
A Dor de ExiJtir

chega ao significante mala em português, e isola a causa de sua pai-


xão de ignorar.
De mala ela chega a Málaga, lugar de origem de seus avós
maternos e de uma tragédia amorosa em torno de uma criança as-
sassinada ao nascer. É esta tragédia que empurrou seus avós mater-
nos em um navio (malle) 3 para o exílio, tendo como única riqueza
uma mala de livros com teses anarquistas.
É nesses livros que o tio-avô materno vai alfabetizar a mãe
de Louise. A marca dessa tragédia é a corcunda de seu tio-avô ma-
terno, protuberância herdada por todas as mulheres da família. Mar-
ca que assinala o lugar onde se localiza o gozo.
A partir dessa realidade significante, Louise produzirá al-
guns outros sonhos que lhe permitirão ce-agenciar a castração em
uma ordem lógica. Declinando seus sonhos um após outro, sempre
guiada pelo sonho da mala, ela chega ao objeto inacessível sobre o
guarda-roupa com espelho, no fim do corredor do quarto familiar:
da valise que a protegia vai sair uma boneca envelopada por ouripéis,
tendo no lugar do sexo um pedaço de pano branco e chato. Página
branca na qual era impossível escrever a diferença entre os sexos.
Vazio no qual se inscrevia a falta.
O trabalho, então, vai consistir em subtrair o real da estrutu-
ra. Aqui, esse real é a parte de gozo do corpo que nela localizava-se
nas articulações em torno do pescoço, no lugar da protuberância
das mulheres da família, ao sabor dos efeitos de seu banzo.
Uma noite em viagem ao Brasil, ela se faz esclarecer sobre
as histórias de amor do tio-avô materno. A noite ela produz um
sonho. Ela está no meio de um corredor entre duas portas. De cada
lado, nas duas peças que ela não pode ver, falam. Falam duas línguas
diferentes. As palavras entram por seus ouvidos sem que ela procu-
re apreender seu sentido. Diante dela encontra-se um buraco e, em
torno de seus pés, terra. Ela se inclina e suas mãos puxam a terra
para o buraco. Fina poeira, a terra tomba como um véu. Ela se !e-

316
Maria Sueli Peres

vanta, desperta, sorri e adormece novamente com tranqüilidade. No


dia seguinte, suas dores articulares a tinham deixado.
É nesse trabalho do sonho que Louis e estabelece um limite
lógico ao saber e faz advir um limite do lado do gozo.

Para concluir
É no momento da solução ed.ipiana que, confrontada ao
real da castração, ela vai desinvestir o objeto, e a esse desinvestimento
virão juntar-se os efeitos do supereu e da culpabilidade. Louise per-
manecerá então fixada em seu banzo, trairá a si mesma, empobrecerá
seu eu, e é nessa posição subjetiva que ela entrará na vida, entre
banzo e revolta.
O tempo lógico da análise de Louise vai ser determinado
pelo trabalho de verificação de seu banzo como afeto que, pela aná-
lise, é tornado o sintoma do sujeito.

NOTAS

1. Este artigo foi escrito a partir de uma exposição feita nas ]oumées d'autotJme
1996 - IA dépression et les structures cliniques da École de la Cause Frmdienne e
publicado em Letterina n. 15: Les fins de mre. Paris, janeiro de 1997.
2. No original: Devant elle se trouve une valise... e /es oijets destinés à la valise. N. do T.
O significante valise encontra em português o sinônimo valise que permite
sustentar o equívoco entre as duas línguas, o qual se perderia se traduzísse-
mos por mala.
3. No original: C'est cette tragédie qui a propu/sé ses grands-parents maternels, dans une
mal/e, vers l'exiL N. do T. Era costume que os imigrantes viessem para o Brasil
nos porões de transatlânticos no mesmo lugar destinado ao correio postal, mal/e-
pOste. Ainda, conforme o dicionário Le Robert, mal/e: "serviço marítimo; bagagem
de grandes dimensões"; mal/e-cabine: "cabine para as viagens de navio".

*Tradução do francês- Graça Pamplona

317
A POSIÇÃO DEPRESSIVA NO
FINAL DE ANÁLISE

Ana Lúcia Ribeiro


Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

A questão do fmal de análise é um dos pontos em que con-


vergem as obras de Lacan e de Melaine Klein. Ao falar do passe e
do fmal de análise, Lacan usa o sintagma "posição depressiva", reti-
rado do obra de Melaine Klein. Na obra desta, por sua vez, temos a
desidealização do objeto como um dos nomes da depressão, o que
faz ecoar, embora longinquamente, a queda dos ideais que marca o
final de análise para Lacan.
Foi em 1934, após a morte de seu filho Hans, que Melaine
Klein formulou pela primeira vez sua teoria da posição depressiva,
numa conferência sobre depressão para o Congresso de Lucerna
(1970, p. 368). Anteriormente, havia afirmado que as crianças só
internalizavam imagens boas e amorosas do Outro com a chegada
d a genitalidade. Nesse texto, porém, insistiu em que essa
internalização começava no nascimento. Nesse sentido, Melaine Klein
passou a ver o desenvolvimento como algo moldado desde o prin-
cípio pela internalização das relações com o Outro, entendida em
termos de amor e ódio, e dos estados mentais cambiáveis - paranóide,
depressivo e maníaco - a que essa internalização dava margem.
A princípio, argumentou Melaine Klein, todo o interesse do
bebê se concentrava no seio da mãe, e à medida que este era odiado,
A Dor de Existir

o bebê também o incorporava, na fantasia, como um objeto odiado


e agressivo dentro dele mesmo. Com a afirmação reiú:rada do amor
materno essa oscilação entre o amor e o ódio diminuía. O bebê podia
então começar a suportar a vivência da mãe como odiada e amada.
Com isso, vivenda a mãe e a si mesmo como mais integrados. Essa
unidade se fundamentava não, como afirmava Freud, na fusão narcísica
das pulsões que tomam o eu como objeto, mas na identificação, com
todos os sentimentos conflitantes do bebê em relação à mãe.
A integração traz a "posição depressiva": a angústia ante a
possibilidade de, ao atacar a mãe odiada, o bebê perder a mãe ama-
da, pois a esta altura as duas eram reconhecidas como um só. Essa
angústia, escreveu Melaine Klein, culminava nas perda real do obje-
to trazida pelo desmame e só era superada pela crescente confiança
do bebê, oriunda da internalização de uma maternalização generosa
e amorosa. Ou seja, ao dispor, de fato, de uma bondade interna
suficiente para reparar qualquer dano causado à mãe pelo ódio e pela
frustração. Melaine Klein atribuirá a autocensura na depressão ao
amor pelo Outro, e ao desespero de sentir-se incapaz de reparar os
danos causados a ele pelo ódio; ou seja, a depressão para Melaine
Klein provinha do interesse pelo Outro.
Como pensar então a questão da direção da cura em Melaine
Klein? A orientação kleiniana considera as fantasias inconscientes
como parte constitutiva das relações de objeto. O objeto, abordado
desde o simbólico, é redutível ao significante e pode ser exaustiva-
mente dito. Melaine Klein despreza o fato de Freud nos dizer..que
nem tudo na·fantasia pode ser dito. Para ela, a interpretação desdo-
bra-se, decifrando os conteúdos, atribuindo significação a tudo, le-
vando a uma pregnância imaginária onde tudo do sujeito é consisten-
te, tudo tem sentido. Esse limite da teoria aparece na questão do final
de análise; aceita-se, de modo geral, que uma análise que chega ao
fim produza modificações na estrutura da fantasia e nas relações
entre instâncias psíquicas: abandono da onipotência do eu e de seus

320
A11a Una Ribeiro

objetos, diminuição da severidade do supereu. Assim, no final, o


sujeito se confrontaria com o objeto não como não faltante, mas
como objeto a ser restaurado pelo amor; ou seja, esse fim é concebi-
do não em termos de separação mas de reparação. Temos aqui os limi-
tes da clínica kleiniana que se apóia na interpretação da fantasia in-
consciente. O maior mérito de Melaine Klein foi o de impedir que a
psicanálise transitasse pelos caminhos do eu autônomo e da adapta-
ção defendidos por Anna Freud.
Nesta orientação, Melaine Klein toma como ponto de parti-
da o texto de Freud de 1908 Fantasias histéricas e sua relação com a
bissexualidade. Neste trabalho, a fantasia é para Freud precursora do
sintoma. A fantasia está ligada ao gozo masturbatório e escapa ao
saber do Outro. Afetada pela repressão, constitui-se na premissa
para a formação do sintoma. O correlato clínico da fantasia reprimi-
da na cura do sintoma consiste em fazer consciente a primeira, ten-
tando dissolver o segundo. Recuperar a fantasia que já está no in-
consciente e colocá-la à disposição do saber do paciente é o objeti-
vo da interpretação. Foi esta a trilha freudiana seguida, a seu modo,
por Melaine Klein, o que a levou à interpretação exaustiva da fanta-
sia e à confusão entre fantasias imaginárias e fantasia fundamental.
O texto de Freud Bate-se em uma criança (1976[1919]) é o tex-
to onde o tempo da clínica freudiana é o da construção da fantasia
fundamental na análise. Como pensar a questão da repetição e do
gozo na fantasia? A construção em análise é uma forma de aproxi-
mação ao real do gozo. Em 1897 (Cartas a Fliess 61 e 69, Manuscrito
L) Freud diz que a fantasia é uma reconstituição que inclui em sua
estrutura as coisas vistas e ouvidas, mas não compreendidas pelo
sujeito. A fantasia é sempre uma construção aposterion~ onde os res-
tos das cenas primitivas encontram um suporte. "O que chamamos
as coisas são resíduos que foram subtraídos ao juízo" (1995[1895]).
Esse real primeiro excluído do significante é então matéria da fanta-
sia fundamental. Neste momento, Freud processa uma passagem do

321
A Dor dt ExiJiir

acontecimento traumático real ao real indizível do trauma, e este


pode ser considerado o momento inaugural da psicanálise: "no in-
consciente não existe um signo de realidade, de modo que é impos-
sível distinguir a verdade frente à ficção afetivamente
carregada"(Cartas a Fliess 69). A psicanálise recorre à construção do
mito e da fantasia para dizer, em metáfora, algo desse real impossí-
vel, separando assim a ficção da ilusão. A construção da fantasia do
neurótico é uma operação equivalente à construção do mito na teoria.
Em Mais além do princípio do prazer, Freud marca três tempos
da intervenção psicanalitica: o primeiro consiste em decifrar o in-
consciente pela interpretação; no segundo o objetivo é comunicar
uma construção para vencer as resistências e recuperar uma lem-
brança; no terceiro temos a pulsão de morte, onde não há de todo o
domínio de representação. Há algo que se repete, que escapa aos
ditos do sujeito e que o analista presentifica: o analista ocupa o lugar
deste real excluído do significante, ou seja, do objeto. É a clínica da
fantasia fundamental que temos neste terceiro tempo. O fantasia se
constitui na análise e a construção tem a função de estabelecer um
texto, ali onde há algo impossível de ser dito. A construção não vem
dar respostas ou significação ao desejo, ou seja, constrói-se em torno
de algo faltante, onde um enigma é relançado. A verdade toca o real e as
palavras faltam para dizer toda a verdade. A construção possibilita que
um "fragmento de verdade histórica" seja dito. Há uma passagem à
lógica do não todo, lógica que a segunda fase de Bate-se em 11ma crian-
ça explicita, no sentido de que há algo que não é jamais recordado e
nunca terá acesso a consciência. A necessidade da construção se
depreende da impossibilidade que a repressão primária instaura: algo
nunca teve acesso à consciência. Assim, por esta impossibilidade
radical, a verdade é condenada a sua estrutura de ficção.
Lacan parte desta necessidade lógica de estabelecer a fanta-
sia fundamental na cura. Desta maneira separa-se radicalmente da
proliferação fantasmagórica de Melaine Klein. Para ele, as fantasias

322
Ana Lúcia Ribeiro

não estão no inconsciente à espera de interpretação, e a cura é pro-


duzida na meia verdade em que a frase é articulada à fantasia.
Como efeito da operação analítica, instala-se uma distância
progressiva entre I (ou seja, o significante do ideal do sujeito) e o a
(o objeto causa de desejo), o que leva à queda do sujeito suposto
saber no fmal da análise (1990[1964], p. 258). O objeto se despe
como causa de desejo, deixando o sujeito no máximo de sua divisão,
ou seja, em sua destituição subjetiva.
Segundo Lacan, os momentos depressivos não são
reveladores da estrutura, mas sim de que há uma análise, e de mo-
mentos, de passos que testemunham uma travessia e não uma posi-
ção terminal ou instalada. É a razão pela qual o efeito depressivo
pode ser autentificado no passo que, por excelência, é o passe.
O passe tem dupla face: a analítica e a institucional
(1995[1967], p. 10). Ele designa ao mesmo tempo uma concepção
de final de análise e um procedimento da Escola. No passe é o ana-
lisando que se presta a dar testemunho sobre o que foi sua análise.
Desloca-se assim para um depoimento posterior à análise- relativo
à verificação de um saber adquirido, e só depois transformado numa
possibilidade de teorizar sobre a própria experiência analítica - a
questão da seleção prévia à candidatura do analista. O passe é o que
sustenta a interrogação do autorizar-se para o analista. No passe
não se julga a experiência clínica, mas a capacidade de teorizar o
que foi transmitido no divã. O que o divã ensina ou transmite é
o único princípio de acesso à função de analista. Com o passe a
instituição é chamada a se posicionar sobre o que é o fim da análise
e elucidar a operação a partir da qual o analisando passa à posição de
analista.
Em Como Terminam as Análises encontramos algumas refe-
rências sobre a "posição depressiva" no fmal da análise a partir de
algumas experiências do passe, porém:

323
A Dor de Existir

Em diversos momentos, o cartel ou um de smsparticipantes se surpreen-


deram por não encontrar essa dimensão do fltto no centro dos depoimentos,
sobrehtdo entre os homens, em contraste com as colocações de analisantes
coligidas na prripria análise, que indicavan1, ao contrário, na fase fina~
uma idéia constante de perda e separação e uma tristeza diante disso. Não
é que ospassantes não deixassem transparecer nada disso, mas evocaram-
no como que a tíhllo de injom1ação (1995, p. 152).

Assim podemos pensar que um passante, que se coloca a


prestar contas de um fim, tende a ter ultrapassado a "posição
depressiva", onde o luto que condiciona a queda das demandas de
amor, saber, poder, garantia de ter ou ser solicitadas ao Outro, foi
atravessado, ou seja, a saída da análise só se oferece ao sujeito pela
travessia de um luto.
De onde poderia esperar-se um testemunho justo, sobre aquele que supe-
rotl este passe, senão de tlm outro que, como ele o "é" ainda, este passe, a
saber em que estápresente nesse momento o des-ser em que seu psicanalis-
ta guarda a essência do que lhe passou acontecido como seu luto, sabendo
assim como qualquer outro em jimções de didata, que também a ele vai
lhes acontecer isso. Qttem melhor que este psicanalista no passe poderia
autentificar até o que este tem de posição depressiva? (Lacan,
1975(1958), p. 589).

O efeito depressivo dá testemunho da estrutura da experi-


ência e não da estrutura do sujeito. Estando no extremo da signifi-
cação, o sujeito em certos momentos solta o seu apoio, ao desdo-
brar-se da sua corrente associativa, inclusive do sintoma que susten-
ta o sentido, e a depressão dá testemunho desta separação.
Sendo assim, a depressão pode ser pensada em dois mo-
mentos fundamentais da cura: no primeiro, temos a vacilação da
fantasia, marcada pela desestabilização do significante mestre e do
ideal do eu; no segundo, uma depressão que traduz um abandono
do sujeito da cadeia significante e a emergência do objeto a nas
transformações de seu próprio acesso ao desejo; momentos que são,
além do mais, momentos de angústia.

324
Ana Lúcia Ribeiro

Referências bibliográficas

FREUD, S. Projeto de uma psiçologia (1895). Rio de Janeiro, Imago, 1995.


_ _ _ _"A sexualidade na etiologia das neuroses" (1898). Em: Obras Com-
pletas. Vol. III. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
_ _ _ _ "Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade" (1908).
Em: Obras Completas. Vol. IX. Op. cit.
_ _ _ _"Luto e melancolia" (1915). Em: Obras Completas. Vol. XIV. Op.
cit.
- - - - "Inibição, sintoma e angústia" (1926). Em: Obras Completas. Vol.
XX. Op. cit.
_ _ _ _"Bate-se em uma criança"(1919). Em: Obras Completas. Vol. XVII.
Op. cit.
_ _ _ _ "Construções em análise"(1936). Em: Obras Completas. VoL XXIII.
Op. cit.
_ _ _ _'1\nálise terminável e interminável"(1937). Em: Obras Completas. Vol.
XXIII. Op. cit.
KLEIN, M. "O luto e sua relação com os estados maniácos-depressivos".
Em: Contn'buições à psimnálise. São Paulo, Mestre Jou, 1970.
_ _ _ _"O mito e sua relação com os estados maníacos -depressivos".
Em: Contribuições à pskaJtáli.re. Op. cit.
LACAN, J. '1\ direção da cura e os princípios de seu poder (1958). Em: Emi-
tos. Vol. 2. Madri. Siglo XXI, 1975.
_ _ __ O seminário, livro 11: os quatro çonçeitosftmdammtais da psicanálise (19 64).
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
_ ___ "Proposição de 9 de outubro de 1967". Em: Opção Laçaniana n•.
17. São Paulo, 1995.
SAYERS, J. Mães da psicanálise: H e/me Deutsçh, Kareh Homry, Anna Freud, Melaine
Klein. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

325
Conexões

parte quatro
A DOR DE EXISTIR EM
FLORBELA ESPANCA

Elizabeth da Rocha Miranda


Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

A poesia de Florbela Espanca toca de uma maneira contun-


dente aquilo que nos concerne: o Real inominável que está em jogo
e que em sua obra é tão bem "meio-dito". Eles, os poetas, nos ante-
cipam, sabem sem saber que o sabem da existência do inconsciente.
Florbela, poetisa, mulher, nos traz de forma exuberante o
que está em questão para todo sujeito: O Real, A Morte, A Mulher.
É a dor de existir do feminino - essa parte dos seres falantes que
objeta a ordem fálica, aquilo que ·a excede ou recusa se reduzir a ela
-que sua poesia presentifica. A prática da letra converge com o uso
do inconsciente. Lacan em Televisão aponta o dever do bem dizer
como uma das saídas para a dor de existir, dor da falta-a-ser. É a
escrita o que em sua poética tenta fazer signo, marca; mas ainda
assim ela nos diz:
Mas a minha Tortura inda é maior:
Não ser Poeta assim como tu és
Para concretizar a minha Dor! (1996, p. 120).

Ou como nessa passagem do seu Diário do último ano


Até hqje, todas as minhas cartas de amor não são mais que a realização
da minha necessidade de fazerfrases. Se o Prince Charmant vier, que lhe
direi eu de now, de sincero, de verdadeiramente sentido? Tão pobre somos
que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verda-
de!" (1995, p. 116) .
A Dor de Exiftir

A escrita é uma necessidade nessa busca de um nome, um


eu, que barre o gozo que excede a norma fálica. Não existe o
significante que diga o ser da mulher; a relação sexual é impossível
de se escrever como tal. Não há o Universal e essa verdade última,
genuína, pura, única, é perdida para o ser falante. Não há um último
significante, não há discurso que não seja do semblante, mas há algo
no feminino que escapa ao discurso. "Fazer frases" é procurar "con-
cretizar" a dor da falta-a-ser, encobrindo o real com o simbólico.
Mas dessa operação sempre algo fica de fora, uma parte do real, e na
tentativa de circunscrevê-lo surge a "necessidade de fazer frases".
Em De mtgeresy semblantes (1994) Miller nos diz que o sem-
blante é aquilo que tem função de velar o nada. Os homens
exemplificam melhor o semblante, fazendo o "parecer ter". A mu-
lher precisa tornar-se mulher, fabricar, inventar um ser a partir do
nada. Recobrir-se com máscaras que - até pela sua rica variedade -
nos apontam um quê de falsidade. Sintomaticamente a mulher faz
um "parecer ser". As máscaras do feminino são urna forma de fazer
o "parecer ser" que inscreve a mulher do lado do todo no gozo
fálico. Mas nas máscaras Florbela não acredita: "Mas tudo é sonho,
Amor! Tudo é mentira!/É mentira o que eu digo... Eu sou mu-
lher!"(1996, p. 318). Da mulher ela nos diz:
Um ente de paixão e sacri.ftcio,
De softimentos cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!
Séforte, corqjoso, não fraquqes
Na luta; sé em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão de pisar-te! (Idem, p. 52).

E ainda a mulher seria a princesa, a fraca, a forte, desgraça-


da, infanta, monja, castelã da tristeza .. . Ou como aparece no seu
conto A margem dum soneto, frígida, hipócrita, imaculada, desdenho-
sa, desencantada da vida. São tantos os desdobramentos da mulher

330
Elizabeth da Rocha Miranda

que a romancista acaba por enlouquecer o marido, que lhe escreve:


"Maria, expulsa as outras todas e fica só tu. Não queiras tanta bocas
no teu rosto que eu tenho medo de ti. Monstro com tantos nomes,
dantes chamavas-te só Maria"(1995, p. 102). Este conto tem como
tema central o poema LouC11ra:
ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!" (1996, p. 299).

Tantas almas, tantas máscaras, mas nenhuma lhe veste a fal-


ta-a-ser, nenhuma lhe diz eu sou mulher. No seu desfolhar de más-
caras, ela chega a mais um dos nomes da Mulher, a Morte.
Morte minha senhora dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiv sereno eforte
Não há mal que não sare ou não c01gorte
Tua mão que nos guia passo a passo
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aquifiquei
A t11a espera, ... quebra-me o mcanto!" (Idem, p. 301 ).

Ou ainda nestes versos do poema intitulado Mais Alto!


Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos IJUJIS divinos braços de mulher!" (Idem, p. 240).

A morte estaria aí como o Outro Absoluto, a verdade


libertadora que tudo resolveria, ou também, por que não, a Mãe na

331
A Dor de Existir

sua versão devoradora. A completude é sempre imaginária, tentativa


de tamponar a falta-a-ser. Complemento que nunca existiu, ausência
necessária ao desejo que cansado de desejar pede: "Prende-me as
asas que voaram tanto!" O que resta é um furo, um vazio, esculpido
pela linguagem sobre o real do ser vivente. No Seminário: a ética Lacan
nos diz: ''A Coisa é o que do real padece do significante". Esse real
sempre presente e incontornável, vemos também na passagem do
Diário do último ano, onde como mulher ela consulta o espelho não
para se perguntar sobre as máscaras imaginárias do feminino, e sim
sobre a verdade. O que vê é a carcaça, objeto a na sua vertente de
horror, de sem sentido. Ela escreve:
Ponho-me, às vezes, a olhar para o espelho e a examinar-me feição por
feição: os olhos, a boca, o modelado da fronte, a curva das pálpebras, a
linha da face... E esta amálgama grosseira efeia, grotesca e miseráve~
saberia fazer versos? Ah, não! Existe outra coisa... mas o quê? Afinal
para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da
vida sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa dos poetas e
neurastênicos. Só uma vi.rão de cotytmto, pode aproximar-me da verdade.
Examinar em detalhes é criar novos detalhes. Por baixo da cor, está o
desenho firme e só se encontra o que se não procura. Porque que me não
esqueço eu de viver. ... para viver?" (1995, p. 115).

Para Freud, uma das vias do tornar-se mulher seria a mater-


nidade. É nessa equação ftlho-falo que a mulher encontraria uma
ancoragem, ainda que imaginária. Florbela sobre isso nos diz em
seu diário: "Faço às vezes um gesto de quem segura um fllho ao
colo. Um filho, um filho de carne e osso, não me interessaria talvez,
agora ... mas sorrio a este, que é apenas amor nos meus braços". O
sofrimento ligado à necessidade de ser recebido pelo Outro se trans-
forma em demanda de amor a um outro como onipotência da vida.
Esse amor incansavelmente decantado em seus versos, procurado
no homem, a espera do Prince Charmant e no apelo a um deus que
nunca virá: "E nunca O encontrei!(...). Nunca se encontra Aquele
que se espera!" (1996, p. 183) e no outro verso: "Um homem? -
Quando eu espero o amor dum deus?" (1996, p. 234).

332
Elizabeth da RtJçha Mira11da

O amor de um Deus não bastaria; talvez Deus, Uno, Abso-


luto, poderia saciar sua alma inquieta. A posição feminina do não-
toda fálica dá acesso a um gozo fora do significante, um gozo suple-
mentar específico do feminino presente nos poetas, nos místicos e
nas mulheres. Gozo louco, identificado ao êxtase dos místicos que
Florbela parece experimentar num momento de sua poesia. Um
gozo de morte.
Q11em sabe este anseio de Eternidade
A tropeçar na sombra, é a Verdade
É já a mão de De11s que me acalenta?" (1996, p. 247).

Mas Deus já não suporta esse lugar do Outro Absoluto, este


Outro não sabe de sua Dor. É a falta no Outro - S(,t) - que é
insuportável.
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angiÍstia.fimda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar! (Idem, p. 158).

A nostalgia do Um se faz presente em seu poema Saudade


E q11em me dera que fosse sempre assim:
Quanto menos q1tisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim! (Idem, p. 190).

Esse Um com Deus ou com a Terra Alentejana está perdi-


do. Na verdade, ela busca Deus como um dos nomes da Coisa. Como
Lacan nos aponta no prefácio do Despertar da Primavera de Wedekind:
Como saber se, como fommla Robert Graves, o Pai mesmo, o pai etemo
de todos nós, não é mais um Nome entre outros da Deusa branca, aquela
q1te seu dizer se perde na noite por ser a Diferente, Outra sempre em sett
gozo, a q11al essas formas do infinito, Ct!fa a en11meração só começamos a
saber, que é ela que nos Sl(spenderá" (1988, p. 112).

É da posição feminina, lugar de objeto, posição insusten-


tável, que sua poesia revela um congelamento, uma mortificação.

333
A Dor de ExiJtir

Ela é pálida, triste, parece morta. "O frio que trago dentro gela e
corta /Tudo o que é sonho e graça na mulher!" (Idem, p. 156). Sua
dor responde à vida: "Que linda a cova!" (Idem, p. 139).

O gozo não se satisfaz mais no sintoma, na busca de


completude amorosa, e surge para o sujeito como esse objeto gela-
do, morto, inerte e frio, pura pulsão de morte.
Ser uma pobre morta inerte efn"a
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mtmdo há paz 011 g11erra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia,
ú1z apagada ao alto e q11e al11mia,
Boca fechada à fala q11e não erra,
Urna de bronze q11e a Verdade encerra
Ah! ser E11 essa morta inerte efria!" (Idem, p. 284)

O que se repete, "o que não cessa de não se inscrever", é o


vazio, a identificação com o nada, esse lugar de objeto a que não é
simbolizável. Florbela fala desse lugar, desse buraco, numa tentativa
de dar-se um sentido. Sua poesia a mantém nessa busca de legitimar
um eu, um ser, ser mulher. E como que suspensa no feminino, no
não-todo, ela se suicida nos deixando uma última frase. "E não ha-
ver gestos novos nem palavras novas!" (1995, p. 116).

Referências bibliográficas

DAL FARRA, M. L. Florbela Espanca. Rio de Janeiro, Agir, 1995


ESPANCA, F. PoemaJ. Org Maria Lúcia da! Farra. São Paulo, Martins Fontes, 1996
LACAN,J. "Prefácio a Despertar da Primavera de Wedekind". Em: Intervenciones
y textos II. Buenos Aires, Manantial, 1988.
____ Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993
_ _ _ _ O seminán"o, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1982
MILLER, J -A. De m1geresy semblante.r. Buenos Aires, Cuadernos dei Pasador, 1994.

334
DOR DE EXISTIR, TRISTEZA E GOZO

Marcus André Vieira


Membro da Escola Européia de Psicanálise. Membro da Escola Brasi-
leira de Psicanálise

O sintagma 'dor de existir' é utilizado por Lacan em alguns


momentos de seu ensino. Como acontece freqüentemente, a leitura
lacaniana desloca esta expressão de seu sentido habitual situando-a
num novo campo discursivo. Tentarei circunscrever esta leitura, exa-
minando suas conseqüências mais diretas no que diz respeito às re-
lações entre a dor de existir e a tristeza. Para tanto, vou apoiar-me
sobretudo no Seminário: o desejo e sua intCJpretação que reúne a maioria
das referências de Lacan a esta noção, as quais aparecem principal-
mente em seu comentário de um sonho citado por Freud em Fonmt-
lações sobre os dois princípios do flmcionamento psíquico e na Interpretação dos
sonhos. O sonho em questão pode ser resumido em uma frase: após
sua morte, um pai aparece ao seu filho, agindo como se estivesse
ainda vivo e sem saber que falecera. Poderíamos denominá-lo "so-
nho do pai morto" em oposição ao sonho do filho morto, do qual
falaremos mais adiante e que foi também objeto de uma leitura mi-
nuciosa de Lacan. A análise deste sonho vai se desenrolar ao longo
de várias sessões do Seminário. Apesar de organizar-se em torno de
um fio condutor claro, uma investigação sobre o estatuto do desejo
com relação à negatividade, ela constitui um comentário imensa-
mente rico que aborda temas diversos. Restringiremos nosso per-
curso apenas aos desenvolvimentos lacanianos diretamente associa-
dos à articulação entre a dor de existir e a tristeza.
A Dor de Existir

O Sonho do Pai Morto

Retomemos o sonho e sua interpretação tal como Freud os


situa na Interpretação dos Sonhos:

Seu pai estava vivo outra vez e falava-lhe como de hábito, mas
(coisa estranha) estava realmente morto, só que não o sabia. Este
sonho se torna inteligível se após 'ele estava realmente morto' inserimos 'de
acordo com o desf!JO do sonhador~ e logo depois de 'só q11e não sabia~ que
o sonhador tinha este desqo. O filho durante o tempo em que cuidava de
seupai tinhaJreqiientemente desqado sua tJJorte;para ser exalo, ele tinha
tido um pensamento caridoso: 'a morte deveria colocar um fim a seus
sofrimentos' (1967, p. 366).

A restituição do enunciado 'de acordo com o desejo do so-


nhador' constitui a interpretação do sonho, situando-o ao mesmo
tempo como realização de desejo (de morte do pai, veiculado pelo
sonho e materializado pela presença da imensa dor sentida pelo so-
nhador, constituindo seu castigo). Deve-se, porém, evitar uma certa
leitura redutora e bastante difundida do texto freudiano. Segundo
esta leitura, a interpretação do sonho corresponderia a fazer passar
o desejo edipiano de morte do pai do inconsciente ao consciente,
de forma a restituí-lo ao sonhador. Além de reduzir o desejo a um
simples nome da pulsão, esta leitura pressupõe um sujeito arcaico
do desejo/pulsão, anterior ao discurso, que daria fundamento ao
sonho. Um tal sujeito protopático é, porém, uma ilusão: alguém quer
matar o pai, mas quem é este alguém? Onde ele está? Se não é o
sujeito do texto manifesto do sonho, seria um sujeito inconsciente?
Podemos assimilá-lo totalmente ao sonhador? Podemos ainda nos
perguntar: alguém se satisfaz neste sonho, mas quem se satisfaz?
Constatamos então que sem descartar este tipo de leitura que situa a
verdade do sonho em um sujeito das pulsões anterior às palavras e
que teimá em se colocar fora de alcance, finalmente não sabemos
mais onde situar a verdade a não ser colando-a no saber do analista.

336
Marcm A11dré Vieira

É o que lembra Lacan: "à medida que nos afastamos do discurso,


onde se inscreve a autenticidade da relação analítica, a interpretação
depende mais e mais exclusivamente do saber do analista" (1966, p.
337). Por outro lado, a interpretação de Freud, apesar de associar-se
a um saber, restitui algo da verdade do sujeito e não de um saber
pronto do analista; dai seu efeito. A interpretação indica o lugar do
sujeito. Lacan, então, lembra que neste sonho este lugar é ocupado
pela dor, a dor de existir.

Dador

Com efeito, neste sonho Lacan situará o desejo a partir da


introdução de uma oposição deste a algo que ele designará como
dor de existir. A dor de existir insere-se em um contexto extremo.
Ela se dá a um sujeito que, após ter esgotado sob todas as formas a
via do desejo, encontra-se em um ponto onde ele não tem mais
nenhuma exclamação a proferir a não ser o me funai ('melhor não
ser', não ter existido) de Édipo em Colona. A esta altura do ensino
de Lacan, um ano antes do Seminário: a ética da psicanálise, estamos
num momento onde não se trata ainda explicitamente de Antígona.
Esta dor, entretanto, já concentra toda a dimensão trágica da ultra-
passagem da linha dos bens, seguindo uma via que leva à vociferação
de Édipo. O me funai edipiano assinala um ponto extremo onde o
sujeito se desprende das últimas amarras significantes que o susten-
tavam, e depara-se com o termo último de sua existência. Parado-
xalmente, é exatamente a via do desejo que conduz a este ponto-
limite, limiar do real. O desejo aponta para um mais-além dos obje-
tos mundanos e neste sentido ele conduz a uma zona onde o gozo
inscreve-se como o desaparecimento do desejo. É este o drama de
Antígona, castigada por haver insistido em trilhar a via que conduz
à Coisa. "Esta dor de existir, de existir quando o desejo não está
mais presente, é o castigo de ter-se existido no desejo" (1959, aula
de 7 de janeiro).

337
A Dor de Existir

"Esta dor de existência quando nada mais habita o sujeito a


não ser a própria existência ..." é o que parece ameaçar o filho no
sonho, pois este encontra-se num momento cótico descrito por Lacan
da seguinte maneira:
Trata-se de ti!JJ desdo que não é 11m desdo qualquer, mas sim o desqo de
morle do pai, desqo fim dador, fina passarela graças à qual o St!Jeito não
mais se sente diretamente invadido, engolido, pelo q11e se abre a ele como
hiância, como confrontaçãopura e simples com a angrístia de morte. Sabe-
mos que a morle do pm; cada vez que ela se prodtliJ é sentida pelo sl!feito
como o desaparecimento deste esCIIdo que se interpõe, se Sllbstitui, ao mes-
tre absoluto, a morte (Idem).

Da existência

A morte do pai faz vacilar o simbólico, abrindo perigosa-


mente as portas do real. O sonho em questão vem restaurar esta
fratura. O recalque opera uma reestruturação da ignorância habitual
deste ponto de real coordenado à castração, repelindo esta dor que
não pode e não deve ser sabida (claro está que, neste caso, 'saber'
deve ser entendido diferentemente de uma tomada de consciência).
O sujeito deve manter a qualquer preço esta ignorância 'que lhe é
absolutamente necessária e que consiste em não saber que é melhor
não ter nascido'.
Lacan indica então que o sonho tanto presentifica este real
como o afasta. Através da elisão do enunciado 'de acordo com seu
desejo' a castração se faz presente, mas é situada sobre o pai que não
sabe (que o filho desejou sua morte, que a vida é uma morte etc.)
Graças à operação significante do recalque a dor de existir, a dor do
saber sobre a castração que não pode ser subjetivada, poderá ser
vivida sob uma forma reconhecível, de tristeza. O significante do
desejo foi elidido, o que permite preservar seu lugar. Essa operação
faz com que aquilo que era pura e insuportável existência - estúpida
e inefável existência dirá Lacan mais tarde - torne-se algo reconhe-

338
Marcus André Vieira

cível e até mesmo reivindicado pelo sujeito, o afeto. A existência


torna-se dor, ou melhor, a dor de existir torna-se tristeza, algo passí-
vel de uma formulação subjetiva e de um enquadramento imaginá-
rio. A dor de existir dá-se, assim, sob a forma de afeto, fazendo com
que aquilo que está para além do sentido entre em seu quadro. A dor
de existir só é subjetivada a partir de sua incorporação afetiva, efeito
do recalque e da constituição do desejo, o que ao mesmo tempo
descarta-a como tal.
Pode-se, então, contrapor este sonho ao sonho do filho
morto analisado noSeminário: os quatro conceitosfimdamentais da psicaná-
lise. Neste sonho, o filho reaparece para recriminar seu pai por ter
adormecido e descuidado de seu corpo, o qual uma vela tombada
ameaçava incendiar: "Pai não vês que queimo?" A comparação dos
dois sonhos revela sua complementaridade na tradução dos proces-
sos em jogo, sendo que cada um deles enfatiza uma vertente especí-
fica destes processos. O sonho do filho morto intervém após a per-
da de um ser que havia adquirido o brilho fálico do objeto do dese-
jo, ou seja, o ftlho. As palavras do filho colocado em cena no sonho
correspondem, então, às 'palavras do objeto', constituindo um pon-
to de real que acorda o sujeito - através da angústia - apenas para
continuar a dormir.
A invocaÇão do f.t.lho morto é, então, assimilada por Lacan
ao real introduzido pelo significante, e toda sua interpretação deste
sonho vai centrar-se sobre a idéia de que a realidade do sonho é bem
mais real que a vigília. Enquanto este sonho tem o efeito de um
despertar, o sonho do pai morto, intervindo após a perda deste es-
cudo contra o real que é o pai, restaura aquilo que permite ao sujeito
proteger-se do vácuo do puro existir, ou seja, seu desejo. Neste caso,
a aproximação do real representada pela dor de existir não chega a
constituir-se em uma irrupção que levaria a um despertar (para o
real), pois ela é tamponada pela subjetivação da dor de existir em
tristeza.

339
A Dor de Existir

Da tristeza

Deve-se, então, opor a dor de existir à tristeza, retirando da


primeira toda conotação que aproxime-a daquilo que Lacan
descrevará no ano seguinte como o campo do mundo dos bens, do
útil e da significação, daquilo que faz sentido para o sujeito e para
seu semelhante. Deve-se tamb ém distingui-la de tudo aquilo que a
levaria a ser considerada como dor moral, referida à existência do
sujeito como essência. As coordenadas existencialistas devem ser
colocadas de lado, pois a utilização lacaniana deste termo é total-
mente diversa.
Não se trata de considerar uma existência que precede e
configura a essência tal como supunha Sartre, mas fundamental-
mente de descartar toda essência, até mesmo a essência do ser, o
que nos afasta também de Heidegger. O termo 'ek-sistência' com-
portando um hifen, introduzido por Heidegger na sua Carta sobre o
humanismo a Hm de distingui-lo de sua utilização pelo existencialismo,
também não tem lugar aqui. A ek-sistência para Heidegger é a aber-
tura do ser, espaço onde se desenrola a busca de sentido do Dasein,
campo do simbólico por excelência.
A existência da qual nos fala Lacan aqui (e que será melhor
traduzida ulteriomente por ex-sistência) situa-se em um ponto rela-
cionado ao real, anterior ao ser. O grito de Édipo transporta-nos a
esta dimensão através da recusa da existência numa dor sem essên-
cia. Podemos mesmo supor que o abandono desta expressão por
Lacan na continuação de seu ensino deva-se a esta promiscuidade
terminológica com Sartre. Com efeito, Lacan vai procurar purificar
esta noção de toda impregnação imaginária, teorizando-a de manei-
ra progressiva a partir da conceituação do gozo que é o legítimo
herdeiro da dor de existir.

340
Mam11 A11dri Vieira

Da análise

Podemos conceber, então, que o caminho da análise consti-


tui-se na direção de uma dessubjetivação da tristeza, ou seja, na des-
coberta, sob as figuras inertes das formas deprimidas do sujeito, da
força de uma dor de existir sem sujeito. Isto não quer dizer que o
analista propõe ao deprimido algo como 'esqueça sua tristeza por-
que ela não é sua, é do mundo' (entenda-se por mundo, seu corpo,
seu cérebro, seus receptores de serotonina etc.) Este tipo de pro-
posta, ·onde ressoam as coordenadas cartesianas da oposição corpo
e alma, é contraditória com o percurso da análise que aproxima-se
mais da profunda implicação spinozista do sujeito com aquilo que
ele experimenta vindo, aparentemente, do mundo, e que funda uma
exortação ética. Deve-se bem pensar (bem-dizer dirá Lacan) para
reorientar a paixão. O bem-dizer significa inicialmente assumir sua
tristeza, implicar-se na manifestação de seus sentimentos. Isto não
quer dizer tampouco que a análise agrava a depressão, como se ouve
freqüentemente, por aumentar a dimensão da culpa. A noção de
implicação subjetiva deve ser distinguida de uma catarse confessional,
pois ela confere ao analisante uma autonomia que está longe de ser
paralisante e que lhe permitirá percorrer e evacuar o circuito de seus
significantes mestres, desfazendo os grilhões imaginários de sua tris-
teza. A partir daí, torna-se possível o encontro com o gozo de seu
sintoma que comporta a medida do peso de uma configuração sub-
jetiva singular e ao mesmo tempo da leveza da abertura à contingên-
cia radical do real.
Estas considerações permitem-nos sentir ainda o impacto
da teorização do gozo no terreno das psicoses, e isto sob um ângulo
relativamente pouco explorado, o do binômio mania-melancolia. In-
terrogou-se freqüentemente na clinica psiquiátrica dita clássica so-
bre o caráter artificial da alegria maniaca. Toda uma linha de autores

341
A Dor de ExiJiir

(de Krafft-Ebing a Gatian de Clérambault) distinguiu formas exci-


tadas de mania onde a alegria era acessória, chegando até a destacar
sob a aparência de alegria inebriante do maníaco um fundo de ace-
leração incontrolável e violenta.
Através do que foi visto, compreendemos que a mania está
para a alegria como a dor de existir está para a tristeza, ou antes, que
o gozo que arrasa o sujeito e o elimina no desenrolar incessante da
torrente verborrágica da mania situa-se em relação à alegria (como
euforia de completude tal qual o neurótico a vive) a uma distância
análoga à distância entre a dor moral subjetivada em tristeza e a dor
de existir como gozo aniquilador que trancafia o melancólico em
seu corpo, tornando-o presa de um terror coagulado.

Referências bibliográficas

FREUD, S. L'interprétation des réves. Paris, PUF, 1967.


LACAN, ]. Écrits. Paris, Seuil, 1966.
O seminário, li11ro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito.

342
r
VINTE QUATRO HORAS NA VIDA
DE UMA MULHER

Eliane Schermann
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Em 1928, Freud escreve o ensaio Dostoievski e o parricídio.


Nesse texto, cita o jovem autor Stefan Zweig, que havia acabado de
publicar uma coletânea de três histórias, sob o título Cotifusão de sen-
timentos. Freud destaca uma em especial: ''Vinte quatro horas na vida
de uma mulher".
Umas breves palavras sobre Stefan Zweig. Abatido pelos
avanços nazistas na II Guerra Mundial, esse vienense, nascido em
1881, romancista e ensaísta que também escreveu biografias históri-
cas, entre elas as de Maria Antonieta e de Balzac, vem para o Brasil,
escolhendo a cidade de Petrópolis, onde se instala com sua mulher.
Sentia-se isolado no país que lhe servia de refúgio, embora o divul-
gasse com seu livro Brasil, país do futuro. Em 30 de janeiro de 1942,
numa carta endereçada a Berthold Viertl, publicada recentemente
no Jornal do Brasil, Zweig, avesso a qualquer forma de sectarismo e
ferido brutalmente em seu senso de liberdade pessoal, escreve: ''A
vida de nossa geração foi selada pelo destino, não temos nenhum
poder para influenciar o curso dos acontecimentos, e nenhum direi-
to de dar conselhos às gerações que virão, tamanho foi o nosso
fracasso". Em 22 de fevereiro de 1942, suicida-se com sua compa-
nheira, num trágico pacto de morte. Deixa-nos o retrato de um ho-
mem consumido pela estranha combinação de paixão amorosa e
dor de existir. Sua produção literária não foi suficiente para escrever

A Dor de Existir

a ex-sistência do gozo, entregando-se ao que Lacan definiu como


"o único ato que tem êxito sem falhas", o ato suicida.
Sobre a novela escrita por Stefan Zweig, Freud nos diz: "Essa
pequena obra prima dispõe-se ostensivamente, apenas a demonstrar
que criatura irresponsável é a mulher, e a que excessos e transgres-
sões, surpreendentes inclusive para ela, pode uma impressão vital
inusitada impulsioná-la". Freud ainda acrescenta que o autor sur-
preende-se com suas interpretações sobre o texto, pois seria carac-
terístico da natureza da criação artística a escrita surgir como por
um descuido, completamente alheia ao saber.
Qual o destino dado ao objeto abordado por Freud como
hostil, que só é sinalizado no nível da consciência à medida que a
dor faz o sujeito soltar um grito que, ao cumprir sua função de des-
carga, clama, chama e aponta para algo obscuro e faltante, que so-
mente pode ser conhecido se é cercado na textura do discurso? Que
destino dar a esse excesso que escapa ao sujeito e do qual nos falam
Freud e Zweig no decurso dessa novela?
Através de um quase sublime amor, a personagem feminina
da novela escrita por Stefan Zweig, a Sra. C., vive um trabalho de
luto. Cedendo de seu gozo, vai fazer dessa parte amortecida que ora
é, ora não é o objeto, e sobre a qual ela se faz imagem, uma evocação
da morte do marido. Aprisionada pela visão das mãos de um joga-
dor é capturada pela consistência imaginária do significante do de-
sejo do Outro no qual presentifica o mais-de-gozar que a sustenta,
objeto perdido que ela busca reencontrar na repetição.
No luto, o sujeito se encontra reduzido e aprisionado na
alienação a um pedaço mudo e desolado do Outro que, em sua las-
sidão, faz signo de uma história que se congela e se detém no desejo.
Enquanto o trabalho de luto mobiliza o significante fálico
pela acentuação do esvaziamento do gozo, e do qual o sujeito pade-
ce sob o modo depressivo de alienação ao Outro, no suicídio o

344
Eliallt S chm11am1

sujeito põe-se a nu como puro objeto da pulsão de morte que o


aspira. Evidencia assim que, recusando-se como sujeito, consente
em ser tão-somente a escória do Outro, do qual não retorna de sua
síncope. No suicídio, o sujeito faz coalescência com essa falta estru-
tural, entregando-se nas mãos da morte aspirado pelo não-sublimável
do gozo assexuado do Outro.
Através de sua arte, Zweig pode se servir do vazio, dele
fazendo escrita. Utilizando-se dessa face abominável do objeto, trans-
forma-o num dom de amor. Sua obra como objeto de arte é algo
que se faz para um Outro, dando o que não se tem e, se nos aproxi-
marmos do feminino, dando o que não se é. Por não ser, a mulher
pode criar o falo todo-poderoso, dele tecendo escrita. Se no amor
essa falta estrutural pode ser revestida pelos semblantes do Outro, é
para ignorar o vazio deixado pela perda do objeto, que presenti.ficaria o
mais-de-gozar essencial da posição feminina. Na relação amorosa a mu-
lher se torna o que ela mesma criou de forma imaginária, sendo e não sendo
simultaneamente o objeto. Na miragem erótica, ela se faz fulo.
A novela inicia com uma violenta discussão entre os hóspe-
des, à mesa de um hotel na Baviera, em torno de um fulminante
acontecimento: uma das hóspedes, mãe de duas jovens, casada com
um gordo e abastado comerciante, discretamente abandonara na-
quela noite o marido e as filhas por um jovem francês de espontâ-
nea elegância e amável beleza, estampadas num par de olhos doces
como uma carícia. Todos eram unânimes em ver nessa fuga de um
casamento feito de longos anos de decepção e tédio a manifestação
de uma pérfida mentira e uma manobra astuciosa do par amoroso.
Apenas o narrador se opõe ao julgamento de todos, e em especial ao
de uma hóspede que dividia a alma feminina em duas categorias, a
das mulheres de verdade e a das criaturas com natureza de rameira,
incluindo a fujona nesta última.
Opinando sobre o julgamento da fuga, o autor (a novela é
escrita na primeira pessoa) afirma ser possível a uma mulher se dei-

345
A Dor de Exútir

xar levar por forças misteriosas mais fortes que a própria vontade,
expondo num ato súbito o demoníaco de nossa natureza. Acrescen-
tamos com Miller que "as mulheres são mais amigas do real", e com
Freud, que a mulher se surpreende com seus próprios atos, excessos
e transgressões.
A altercação teria acabado mal se uma outra hóspede, a Sra
C., distinta e idosa dama inglesa, não tivesse com palavras brandas
acalmado as ondas furiosas da conversa. Indaga ela ao autor: ''Acha
que há atos que uma mulher pode julgar impraticáveis numa hora e
dos quais não possa ser julgada responsável numa outra? Se o crime
passional não é crime, para que conservar os tribunais? Pode-sedes-
cobrir em cada crime uma paixão e graças a essa paixão uma descul-
pa?". Respondendo que a missão do tribunal seria a de proteger os
costumes e as convenções sociais, além de se obrigar a condenar em
lugar de desculpar, o narrador se nega a desprezar aquela infeliz
mulher. A partir desse momento, a Sra. C. começa a buscar com
amabilidades o autor dessas palavras até convocá-lo a escutar sua
própria história.
Após a morte do marido, fugindo ao vazio torturante e ao
desejo de morrer que a perseguia, esta mulher se atira ao turbilhão
da vida e à agitação apaixonada. Passa a freqüentar as salas de jogo,
antigo hábito, "sem ser leviano", do ex-marido. Buscava na trilha
dos significantes deixados pelo marido algo que não sabia, mas que
a agarrava pelo luto à rede da inércia de um desejo desfalecente.
Nesse flanar pelas salas de jogo a Sra. C. se deixava cativar
pela indolência, nunca olhando os rostos mas os gestos das mãos
dos jogadores que, segundo seu ex-marido, pela maneira de espera-
rem quietas ou de agarrarem as cartas revelavam o âmago do ser do
jogador. Enquanto os freqüentadores das mesas de jogo de azar
logo aprendem a dominar a expressão fisionômica, ostentando a
máscara fria da impassibilidade, a mão vela e desvela sem pudor o
mais secreto.

346
Elia11e SchemJamJ

Para essa dama, cada nova mão que surgia à mesa de jogo
despertaria uma nova curiosidade que a acordasse das sombras do
desejo. Vagava pelas salas parecendo sem lugar ou paradeiro, não
podendo servir-se dos semblantes. Sua curiosidade parecia buscar
algo que ao mesmo tempo estava e não estava ali.
Numa noite, tendo entrado no Cassino, a Sra. C. ouve com
surpresa, num momento de pausa muda, plena de tensão e "durante
o qual o silêncio parecia vibrar, quando a bola estava prestes a imo-
bilizar-se, quando não oscilava mais senão entre dois números", um
ruído singular, um rangido ou estalo. Essa então jovem senhora é
arrebatada pela visão de "mãos agalmáticas, nunca antes vistas: a
direita agarrada à esquerda, como dois animais que se mordem, que
se apertam e lutam furiosamente, de um modo convulso", mas "duas
mãos de uma beleza extraordinária que a fascinavam por explodi-
rem paixão nas extremidades dos dedos" e que a impediam de afas-
tar sequer por um segundo o olhar. O essencial no enamoramento,
onde o olho se acomoda em relação àquilo que a imagem envolve,
sempre esteve ali, cuja essência é o vazio, e cuja beleza o recobre
como último véu antes do indizível. Essas mãos pertenciam a um
jovem que, perdendo tudo no jogo, abandona a sala em total deses-
pero. Arrastada por "aquela coisa superior ao lucro ou perda unica-
mente de jogo", segue pela rua aquele jovem assolado pelo vício. Ela é
tomada pelo anseio de arrancá-lo daquela indiferente insensatez, seme-
lhante ao suicídio, que o deixava prostrado num banco de praça, sob a
chuva. O luto que ela não havia elaborado desde a morte do marido
retorna no real: o par de mãos a atrai à repetição, conduzindo-a ao
encontro com o incognoscível não especularizável que era sua falta.
As mulheres são:
não-loucas de todo, antes conciliadoras: a tal ponto que não há limites às
concessões que cada uma.fazpara um homem: de seu corpo, de sua alma,
de sms bms. (. ..) Pois do amor 11ào é o sentido que conta masjwtamente
o signo (...) q11e s9a dessa insensatez por trah1reza que o realfaça s11a
mtrada no m111rdo" (Lacan, 1993, p. 70-71).

347
A Dor de Existir

Ela lhe promete dinheiro. Sentindo que aquelas mãos a pu-


xavam, sem saber por que nem para onde, como se estivesse
fulminada por um raio que deixava sua vontade inerte, pega o jovem
pelas mãos, oscilante entre a presença e a ausência, achando-se, en-
fim, sozinha com aquele estranho num sórdido quarto de hotel, do
qual "nunca soube o nome".
Naquela noite de paixão, ódio desenfreado e embriaguez,
essas duas criaturas, uma, tendo em si a fúria da morte, e outra, sem
pressentimentos, vacilam enlaçadas à beira do abismo. Fazem amor
para provar que o gozo não convém à relação sexual mas ao ato. O
casal experimenta momentos que "somente podem ser vividos por
um sujeito que sorve pela última vez a melhor gota de vida". En-
quanto seu gozo é radicalmente Outro que a mulher tem uma rela-
ção próxima com Deus.
Na manhã seguinte, com os membros gelados como têm os
mortos rígidos nos seus caixões, ela pensa tatear algo ignorado e se
vê como uma pessoa completamente estranha a si mesma. Mas esta-
va orgulhosa por imaginar tê-lo salvo. Pensava salvar nele e através
dele o objeto de amor perdido para a morte. Logo foi premida por
uma necessidade urgente de fugir daquele sórdido e repugnante lu-
gar de encontros, embora "tivesse a mesma sensação que sentira
numa igreja, uma impressão bem-aventurada de milagre e de
beatitude". Ao se retirar do quarto, só tem tempo para combinar
encontrá-lo algumas horas depois quando asseguraria a volta do jo-
vem, salvo, à sua terra natal. Havia agora um renascimento em sua
vontade de viver. Então troca seu vestido de luto por um mais
claro. Através do amor tenta aliviá-lo daquela compulsão. Essa
então jovem senhora ansiava por disjuntar o desejo, como dese-
jo do Outro, daquele insuportável domínio de um gozo pulsional
que capturava o rapaz no vício.
"Só o amor permite ao gozo alcançar o desejo". No encon-
tro marcado escuta o relato do grato rapaz, cujo vício o escravizava

348
Eliane S çhen!lall/1

completamente. Num gesto misto de adoração e de confiança, dian-


te de um altar e na presença da Sra. C., o rapaz estende as mãos com
promessas de abandonar aquela compulsão que o assolava. De pos-
se da quantia necessária para a viagem e para saldar as dívidas, com-
binam se despedir na estação de trem. Ela o tinha salvo para sem-
pre! Salvando o outro imaginário, acreditava em sua boa-fé salvar-se
alcançando o desejo através da imagem. Mas o que o sujeito salva,
se sabemos, com Lacan, que não há nenhum pior que o ultrapasse?
Diante daquela exaltação de sentimentos toda palavra parecia vã!
Ela estava num estado tal de ardor que mal queria saber de sua de-
cepção por ver que ele a obedecia tão respeitosamente. Ele não com-
preendia que ela era uma mulher que esperava ser tomada pelo amor;
ele a venerava como a uma santa.
Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, na mulher desper-
ta um desejo de ir-se junto com o rapaz. Arruma rapidamente suas
valises mas é impedida de chegar a tempo à estação. Lá, por uns
instantes, deixa-se ficar petrificada olhando o trem partir, com o
olhar fixo para agarrar ao menos um gesto de adeus.
Na tentativa de reviver traço a traço o objeto de novo perdi-
do, volta ao Cassino onde o tinha visto pela primeira vez. Desejava
retornar aos lugares nos quais pudesse recordar aquelas emoções
fugidias. Dirige-se à sala de jogos quando se depara com ele exata-
mente no local onde o tinha imaginado e como ela o tinha evocado;
aquelas mesmas mãos palpitantes que naquele instante ganhavam
no jogo até alcançar finalmente o esgotamento no vazio da perda.
Como ela, ele compulsivamente retornava, repetindo o mesmo so-
frimento, o mesmo lugar. Cada gesto do rapaz assassinava a imagem
que nela antes brilhava recobrindo o âmago de seu ser. Ela, esten-
dendo-lhe as mãos, ainda insiste em retirá-lo do jogo. Mas a mão
possessa e cheia de ódio, que antes ela vira estendida num juramen-
to sagrado na igreja, a expulsa. Não lhe bastara evocar a morte do
marido amado, mas sim fazer vibrar, no limite extremo, o resto

349
A Dor de Exi!fir

irreduóvel que a manteve nos rastros de um desejo até então suspenso.


Para tanto, deixa-se arrebatar no lugar oculto onde era sua falta, na
vertigem de sua própria imagem decaída e degradada. Fulminada,
com o olhar vidrado, a distinta senhora, num relâmpago de loucura,
precipita-se para fora da sala não antes de extravasar sua cólera num
insulto, naquele limite entre a ordem simbólica e a incidência do
real: "Mentiroso, ladrão! Indigno perjuro!" Em Luto e Melancolia
Freud nos ensina que o processo de luto só existe uma vez que o
amor ao objeto coexiste com o ódio. Lacan fala do enamoródio.
Revivendo no real o luto impossível pela perda precipitada do
marido, essa mulher reencontra a face hedionda do objeto. No
insulto extravasa o horror abjeto oculto pelo brilho agalmático
das mãos. Neste momento de verdade que sucede à exaltação
narcísica, ela pode finalmente se despedir desse objeto no qual
mira o âmago de seu próprio ser.
Antes, na primeira perda, seu sofrimento tomara a forma de
tédio que a embriagara no torvelinho da vida. Degradada no pior
descobre ter penetrado no jogo do destino. O espaço vazio do Ou-
tro que se abriu no equívoco da paixão permite a ela deparar-se com
a verdade nua e crua da existência. Despede-se do autor, anos de-
pois, estendendo-lhe as mãos já enrugadas que tremem como folhas
de outono. O demónio do seu pudor tinha sido violado, desvelando
em seu traçado o segredo mais chocante: a última mola do desejo;
aquela que sempre abriga no amor a dissimulação de seu objetivo: a
queda do Outro em outro- aquele obscuro objeto - causa de dese-
jo. Não é mais o discurso para o Outro mas sim o discurso do Outro
que desvela a hora do encontro e o lugar da verdade. Nas vias do
desejo não figura o objeto pulsional, a não ser passando pelo Outro
que não existe. É assim que vemos no luto a questão do objeto
situar-se no lugar vazio da ignorância, quando se presentifica o in-
consciente. Esse luto a Sra. C. assume numa relação narcísica do eu
e da imagem do outro, no momento em que lhe é representada num

350
Eliane S(htm1a1111

Outro a relação passional de um sujeito com um objeto que não se


vê, mas que está no fundo do quadro que as mãos capturam. Através
de uma interpretação do real como amor permite-se superar a dor.
"Que me devolvam meu desejo!" parece gritar a persona-
gem de Stefan Zweig. Onde a vida se captura e adquire sentido é no
significante, no gozo sentido quando o significante circunscreve o
mais-de-gozar. Através de sua personagem feminina Zweig nos en-
sina que sabe sobre o luto, sobre a dor da perda, sobre a elaboração
possível pela palavra. No entanto, em seu ato final, renuncia a repre-
sentar a Coisa no significante, permitindo à pulsão satisfazer-se no
seu domínio absoluto: a morte. Freud nos indica que a pulsão marca
um ponto de limite, um ponto irredutível no qual a Coisa é
introduzida, uma vez que perpetuamente cercada, para intercambiar
com o amor que o sujeito tem por sua imagem, situando-a entre a
miragem do eu e a formação de um ideal. Enfatizamos que o objeto,
tal como é estruturado pela relação narcísica, distanciando-se da
Coisa, Das Ding, verte para uma diferença fundamental que nos si-
tua no limite da questão relativa à criação. Na criação ex-nihilo "o
objeto é elevado à dignidade de Coisa" sem passar pela idealização,
quando, em lugar de se revestir imaginariamente como ocorre na
paixão, sofre um consentimento ao pulsional. Como resto "beatifi-
cado" reencontra-se na certeza da boa-hora desvelada na criação.
Na obra de arte, o artista eleva o objeto à dignidade da Coi-
sa transformando o inominável em criação. O artista é aquele que
eleva o nada à dignidade de uma obra de arte, onde algo da criação
se revela como suplência à hemorragia de vida que escoa do crime
de existir. No que diz respeito a Stefan Zweig, ali onde o artista sabe
o sujeito fracassa; ou, se quisermos, só sucede no único ato sem
retorno- a borra aspira a extréma gota da áurea taça de vida. A obra
e o saber sobre a dor que ela contém não salvam o autor. Em sua
última poesia, Zweig fala da aproximação da morte:

351
A Dor de Existir

Suave as horas bailam sobre


o cabelo branco e raro
A áurea taça a bórra cobre:
Sorvida, eis ofimdo, claro!

Pressentimento da morte
Não lttrva, é alívio prrifundo
O gozo mais puro eforte
Da contemplação do Mundo

Só o tem quem nada cobice,


Nem lamente o que não teve,
Quemjá ao partir na velhice
Sinta,- um partir mais leve

(tradução de Manuel Bandeira


E m: Antologia da Uteraltlra Mundiag

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Duelo y Melancolia" (191 5). Em: Obras Completas. Vol. XIV
Buenos Aires, Amorrortu, 1996.
"Dostoievski y e! Parricidio" (1928). E m: Obras Completas. Vol.
XXI. Op. cit.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1988
O m11inário, livro 10: a angústia. Inédito.
O seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1982.
Televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993.
MILLER, J-A. De mi!Jeresy semblantes. Buenos Aires, Cuadernos dei Passador,
1994.
ZWEI G, S. A corrente. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960.

352
PROVA DE NÃO EXISTÊNCIA

Vera Pollo
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Maurílio Rossi
Roberta Giovana de A. Martielo

"Este livro é essa resposta (...) E tudo o gue peço é gue isso
me seja concedido; gue me concedam agora o gue então poderia ter
sido uma obrigação". Com tais palavras Louis Althusser, filósofo
francês de renome mundial, introduz seu livro O futuro dura muito
tempo. Após assumir publicamente a responsabilidade pela morte por
estrangulamento de sua mulher Hélene, com guem viveu por trinta
anos, Althusser foi isentado de responder judicialmente pelo crime
homicida. Seu ato foi sancionado pela impronúncia, mas ele encon-
trou uma forma de romper esse silêncio gue lhe paracia "a pedra
sepulcral". Escrever o livro foi, em suas palavras, "expor ainda mais
abertamente à apreciação pública" aguilo gue tinha a dizer. Não por
acaso Althusser subscreve as confissões de Rousseau: "Direi com
todas as letras: eis o gue fiz, o gue pensei, o gue fui". E acrescenta:
"O gue compreendi ou acreditei compreender, isso gue não domi-
no mais totalmente, mas isso gue me tornei" (1992, p. 34).
O gue vem a ser essa resposta de Althusser se, como nos
diz, seu livro "não é um diário, nem memórias, nem autobiografia"?
Como entender seu testemunho para o gual ele identifica dois obje-
tivos: expor-se aos outros e obter algum domínio sobre o gue lhe
A Dor de Existir

escapa? Lado a lado com uma escrita que nos parece intencional-
mente votada à produção de sentido psicanalítico, chama a atenção
um certo caráter despudorado, o indício de uma "satisfação no
desmascaramento de si mesmo perante o outro", observado por.
Freud (1969 [1915(1917)], p. 253) nas auto-acusações melancóli-
cas, sugerindo-nos a possibilidade de situarmos o texto desse
livro no nível de uma elaboração do "Outro do tribunal" (Quinet,
1997, p. 147).
Entre os pareceres psiquiátricos que integraram o processo
de Althusser figurava a hipótese de 'suicídio por pessoa interposta"
ou "suicídio altruísta", que este corroborara anteriormente nos se-
guintes termos:

'~ .. estrangulei minha mulher, que era tudo para mim, durante uma crise
intensa e imprevisível de confusão menta~ em novembro de 1980, ela que
me amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de poder viver, e
talvez eu lhe tenha, em minha confusão e em minha inconsciência, "pres-
tado esse serviço'~ do qual ela não se difendm, mas do qual morreu"
(1992, p 10-11).

Privilegiando as palavras do texto, queremos levantar duas


questões interligadas: O que a teoria psicanalítica tem a dizer sobre
a melancolia? É possível uma interpretação psicanalítica do suicídio
altruísta como suicídio melancólico?

II

Freud inicia a conceituação psicanalítica da melancolia ba-


seando-se no aparte trazido pela psiquiatria que o antecedeu, em
que já se enfatizava a 'dor moral' do melancólico e a construção
delirante visando explicá-la, isto é, oferecer-lhe uma causa. No Ma-
nuscrito G de sua correspondência com Fliess, a fórmula por ele

354
Vera Pollo, Ma11rílio Roui, Roberla Martielo

construída, segundo a gual encontraríamos na melancolia "o afeto


do luto provocado por uma perda da libido", antecipa seu debate
com Abraham e anuncia com ousadia a problemática conjunta do
luto, da perda do objeto e da identificação narcísica. Se nesse mo-
mento ele ainda situa a melancolia em paralelo com as neuroses
atuais, marca, no entanto, uma diferença: nestas, é a energia sexual
que parece esvair-se; na melancolia, "o buraco é na esfera psíquica"
(1969[1895]), p. 276 e 282) .
Em 1915 Freud procurou fazer um estudo mais aprofundado
do conceito, uma atualização nosográfica e um questionamento so-
bre os destinos da pulsão na melancolia. Nessa época, ele já havia
operado a distinção estrutural entre psiconeuroses de defesa e
psiconeuroses narcísicas, situando a melancolia-mania ao lado da
paranóia e da demência precoce. Porém, antes de publicar o texto
Freud enviou a Abraham um esboço para críticas e sugestões, dan-
do inicio a um debate epistolar, que teve como eixos principais a
diferenciação entre a neurose obsessiva e a melancolia, assim como
o mecanismo da identificação em jogo.
Nessa última, Freud afirmou que o específico da melanco-
lia, aquilo que a diferencia das outras afecções narcisistas, é o fato de
que, apesar da ocorrência de um retorno da libido do objeto na
direção do eu, não há inchaço do eu. Ao contrário, ele parece ficar
totalmente esgotado. A melancolia, define Freud nessa ocasião, se
caracteriza por "um desânimo profundamente penoso, a cessação
do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a
inibição de toda e qualquer atividade e a diminuição dos sentimen-
tos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-acusa-
ção e auto-injuria até a espera delirante de punição"
(1969[1915(1917)], p. 250).
Abraham dizia estar de acordo com o essencial das idéias de
Freud. Em comum com os neuróticos obsessivos, a análise dos su-
jeitos melancólicos evidenciava "muitos elementos violentos e cri-

355
A Dor de ExiJtir

minosos", dando-lhe a impressão de que eles "queriam apossar-se


convulsivamente do objeto de amor" (1991, p. 219-228). Concorda-
va também com Freud que o melancólico perdeu alguma coisa que
ele não sabe o que é, e que ele parece não apenas obrigado a fazer,
mas a fazer em público o que os indivíduos não têm o direto de
fazer em circunstâncias normais. Abraham se pergunta se não seria
um mecanismo análogo ao proposto por Freud para a identificação
canibalística e a refeição totêmica; todavia afirma não compreender
porque as auto-acusações deveriam ser consideradas como hetero-
acusações. Freud discorda do valor explicativo dado por Abraham
ao sadismo e ao erotismo anal, que lhe parecem "fontes ubíquas de
patologia", e considera que a hipótese tópica da regressão da libido
à fase oral e da retirada do investimento do objeto inconsciente,
embora importante, necessitava ser melhor desenvolvida.
Sintetizando essa etapa intermediária do pensamento
freudiano, Lacan pôde dizer que "a melancolia é o triunfo do obje-
to", impossível de ser compreendido se não distinguirmos entre a
suspensão do desejo neurótico à imagem narcísica especular i(a) e o
objeto mais primordial [a] "envoltório pré-especular do corpo" (1963,
aula de 3 de julho), do qual ele nos dirá mais tarde que se trata de um
ser abortado, "aborto do que foi, para aqueles que o engendraram,
causa de desejo" (1992(1969-70], p. 170), ou simplesmente o que
restou de corpo real, de carne que não se deixou apossar pelo
significante. À diferença do neurótico, que persegue no objeto a sua
própria imagem, que se deixa capturar na miragem narcísica do amor
afastando-se, desse modo, da via do desejo, o melancólico parece
mais próximo do puro desejo de morte, onde Freud reconheceu a
verdade do sujeito, desdobrada por Lacan em verdade da "impostu-
ra do sujeito".
Outras não foram as palavras deAlthusser. Ofuturo dura muito
tempo é a construção escrita de um mito individual, onde o sujeito
descreve sua infância em meio a relatos da morte iminente do Ou-

356
Vera Pollo, Maurilio Roui, Roberta Martielo

tro materno e fantasias de auto-destruição: "Havia assim, em minha


cabeça de criança, ameaças de morte, e, quando minha avó me con-
tava esses episódios dramáticos, tratava-se de minha própria mãe, de
sua morte" (1992, p. 38). Mas tratava-se também da sua própria
morte, pois, algumas páginas adiante, podemos ler sua descrição
da brincadeira em que, logo após ter disparado contra uma
rolinha, ocorreu-lhe uma idéia suicida: "(...) e de repente me veio
a idéia, sem que eu tivesse refletido e, com mais razão ainda,
sem que eu soubesse por quê, de que, afirial de contas, eu pode-
ria tentar me matar"(Idem, p. 50).
O sujeito se acusa de responder ao desejo da mãe e nos
apresenta algumas metonímias em que o desejo pôde deslizar: dese-
jo por um morto, desejo de pureza e desejo de fusão. Acusando
também a mãe de não amar senão "um ser morto havia muito tem-
po", interpretou seu nome próprio como a denúncia desse amor
irrealizado:
Quando vim ao mundo, balizaram-me com o nome de Louis. (..)
Louis: um nome que por muito tempo eu tive, literalmente, horror.
Achava-o mrto demais, com uma só vogal, e a última, o i, terminava
num agudo que me feria. (..) Talvez esse nome dissesse um pouco
demais, em mm l11gar: oui, e eu me revoltava contra esse "sim" que
era o "sin;" ao des~jo de minha mãe, e não ao meu. E, sobretudo, ele
dizia lui, esse pronome da terceira pessoa que, soando como uma
chamada a um terceiro anônimo, me despqjava de toda personalidade
própria, e fazia al11são a este homem às minha costas: Lui, c"était
Louis, meu tio q11e minha mãe amava, e não eu" (Idem, p. 42).

Seu "eu" era, então, um "morto-vivo" que desde sempre


carregava um outro morto "às costas".
O desejo de pureza é associado à abstinência sexual, do
mesmo modo que a primeira "crise depressiva" é referida como
tendo seguido de imediato o primeiro rompimento deste jogo de
sedução mãe-filho através da castidade.

357
A Dor dt Existir

"Eu era, pois, comportado demais e p11ro, p11ro demais, como desqava
minha mãe. Posso dizer, sem risco de erro: sim eu realizei - e q11anto
tempo! Até os vinte e nove anos!! - o desqo de minha mãe, a pureza
absoluta. (. ..) Mas eu tinha sempre a inljJressão de não existir realmente,
mas de existir somente pelos artificias e nos artificias, j11Stamente nos
artificias da sedução que são vistos como imposturas e, portanto, de não ter
realmente conqtlistado minha mãe, mas de tê-la amfcial e, artificiosamen-
te, sedu!{jdo" (Idem, p. 58).

O texto nos descreve uma adolescência habitada pelo "fan-


tasma da estaca" e pelo "horror a entrar na briga" com os colegas e
sair com o "corpo tocado para sempre". Por um lado, trata-se de uma
fantasia sádica que nada deixa a dever à fantasia do Homem dos Ratos;
por outro, é sugerida uma relação do sujeito com o Outro do Gozo
que se lhe apresenta como alguém que poderia querer "pôr a mão
em cima dele", transpassá-lo e impor-lhe pensamentos, ou simples-
mente pressioná-lo.

Ele nos diz:


É, aliás, dessa época q11e guardo 11ma horrível lembrança. Aprmdíamos,
então, nas aulas as Cmzadas, as cidades saqueadas e incendiadas, se/IS
habitantes passando pelo fio da espada: o sanguejorrava nos riachos das
mas. EnljJalava-se tambémgrande nrímero de nativos. Eu senljJre via 11111
deles repotfsando, sem qualquer apoio, sobre a estaca que penetrava-lhe
lmtamente, pelo ânus até seu ventre e até seu coração, e só então ele
morria, em meio a sifrimentos atrozes. Seu sangue corria ao longo da
estaca e das pernas até o chão. Q11e horror! Era e11 q11e era então
transpassado pela estaca (talvezpor esse Louis morto que estava sem-
pre atrás de mim)" (Idem, p. 48).

"Transpassado pela estaca" ou por um "morto", e ao mes-


mo tempo amando no amigo Paul "um não sei quê", do qual sentia-
se em falta. Uma imagem através da qual amava "por procuração",
mas principalmente alguém que o livrava das perseguições e convo-
cações à briga por parte de um "garoto imenso e forte". No entanto,

358
Vera Pollo, Ma11rílio Rom; Roberto Martielo

a lucidez maior de que o ser do sujeito não ultrapassa seus semblan-


tes, embora também situada no decorrer dos anos de Liceu, é mais
precisamente localizada na relação aluno-professor:
"(. ..)meus artifícios, imitação da vo~ do gesto e da letra, dos cirmnfóquios
e dos tiq11es de mm prqfessor, que me davam não só 11m poder sobre ele,
mas uma existência para mim. Em s11ma, uma impostura funda-
mental, esse parecer ser o q11e e11 não podia ser: essa ausência de corpo
apropriado e, portanto, de me11 sexo" (Idem, p. 84).

Nessa relação, ele afirma ter se tornado o "pai do pai ou o


pai da mãe", acreditando que seus professores reconheciam-se nele,
projetavam nele a idéia que tinham de si próprios, além de suas nos-
talgias e esperanças. Afirma, ao mesmo tempo, ter construído para
si um "pai imaginário", em oposição àquele que "durante a vida
toda se calou sobre si mesmo", que ele nunca se atreveu a interrogar
e a "fazê-lo falar de si". Esse "pai imaginário" era
'~lfna personagem bondosa mas a11tontária e, a tal ponto enigmática em
seus borborigmos, que seus empregados haviam aprendzdo, à custa de se-
rem repreendidos, a antecipar mas decisões que eram quase
imi1teligíveis"(Idem, p. 45).

Diferentes, no entanto, são as personagens femininas, que


sobem ao palco dessa história escrita. E las são "mártir" e "chaga
aberta", mas "impotentes para amar". À mãe segue-se a persona-
gem de Hélene, e o sujeito nos fala em transferência de uma a outra:
"Mas não é de surpreender que eu tenha retomado por conta pró-
pria o sentido pavoroso dessa insensibilidade e dessa impotência
para amar realmente, e que o tenha transferido para Hélene, essa
outra infeliz, em meu entender mártir, e chaga aberta como ela" (Idem,
p. 127). Hélene é descrita como alguém que ao contrário dos de-
mais, fossem homens ou mulheres, não lhe inspirava o medo de
querer impor-se a ele pelas mãos ou pelas idéias, mas diante de quem
sentia-se "assaltado por um desejo e uma ablação exaltantes", inspi-
rado pelo "missão suprema de ajudá-la a viver, de salvá-la".

359
A Dor de Existir

Escrito por alguém que não apenas possuía conhecimentos


teóricos de psicanálise, mas que, segundo nos relata, submeteu-se
durante muito tempo às "conversas psicanalíticas tête-à-tête", O futuro
dura muito tempo traz-nos ainda o testemunho do Outro que emergia
neste contexto: aquele que parecia "ter idéias" sobre ele. Uma e
outra, as personagens de Héléne e de seu analista, confrontam-se e
se esbarram nas vias antagônicas em que o sujeito as situa: a da
ausência de um querer e a de um querer absoluto. E sobre elas pode-
mos indagar: tratar-se-iam de bengalas imaginárias de um sujeito
psicótico? Se é impossível responder a tal questão, nada nos impe-
de, no entanto, de verificar na sua fantasia literária do masoquismo
feminino: a de uma Hélene "mártir" e "chaga aberta" inspirando no
homem o desejo de "salvá-la", o ensinamento de Lacan segundo o
qual o sujeito pode sustentar o gozo de sua própria angústia na rela-
ção com uma estrutura imaginada de mulher.

III

Acerca do suicídio melancólico, Freud observa inicialmente


"que o sujeito só pode se matar... se puder tratar a si mesmo como
um objeto" (1969[1915(1917)], p. 257). O suicídio tem algo a ver
com a paixão, porque em ambas as situações, embora de forma dife-
rente, "o eu é dominado pelo objeto". Mas é no interior da segunda
tópica, com a diferenciação entre as instâncias do eu, ideal do eu e
supereu, que ele pôde retomar o tema, conferindo-lhe precisões.
Novamente, Freud encontra pontos de convergência entre a neuro-
se obsessiva e a melancolia na tirania do supereu e na exacerbação
do sentimento de culpa, que consegue, em ambos os casos, encon-
trar "apoio na consciência" (1969[1923], p. 25-76). Por um lado, a
diferença entre elas é apenas quantitativa, pois o apoio que a culpa
encontra na consciência lhe parece mais intenso na melancolia. Por
outro, a diferença é qualitativa, pois na melancolia o eu não faz ob-
jeção alguma à tirania do supereu, sendo impossível a enunciação da

360
Vera Pollo, Maurilio Roui, Roberla Martielo

pulsão agressiva ou de morte. Na neurose obsessiva, o recalque ou


desconhecimento dessa enunciação é a própria mola das fantasias e
pensamentos, mas o sujeito dificilmente entrega-se a atos que cons-
tituam auto ou hetero-destruições. Freud chega a enunciar que o
risco de suicídio na neurose obsessiva é menor do que na histeria.
Ele sustenta que a realização de um crime, especialmente a
de um primeiro crime, não é a fonte do sentimento inconsciente de
culpa, mas, ao contrário, seu produto ou resultado. Além disso, o
crime opera um certo alívio ou esvaziamento da culpabilidade in-
consciente por efetuar o laço com "algo real". A proposição do
supereu inconsciente colocou-o diante do impasse teórico da ne-
cessária concepção de representações verbais não oriundas da edu-
cação e da leitura. Ele as formulou como representações que alcan-
çariam o supereu a partir do Isso.
E voltou a abordar o suicídio, após a descoberta do maso-
quismo primário, pela conjunção do sadismo desse supereu tirano
com o masoquismo do eu (1969[1924], p. 253). E le observa que no
caso de uma excessiva supressão das pulsões pela cultura a
destrutividade retorna do mundo, o supereu a assume, e ela se une
ao masoquismo. Nesse caso, ele acredita que a melhor tradução da
expressão paradoxal: "sentimento inconsciente de culpa" seria, de
fato, "necessidade de punição" nas mãos do representante último
dos pais, em que se configura o Destino. Sadismo e masoquismo
"suplementam-se mutuamente" e se o sujeito é levado à auto-des-
truição, esta não se realiza sem alguma satisfação libidinal
concomitante.
No Seminário: a angtistia, Lacan ratifica a concepção freudiana
da "tortura sistemática do objeto" nas auto-acusações melancólicas,
distinguindo, como dissemos anteriormente, o "ciclo luto ou desejo",
que corresponde ao "ciclo do ideal", do "ciclo melancolia-mania",
que tem a ver com a função do objeto a. Se na mania o sujeito fica
entregue à "metonímia infinita e puramente lúdica da cadeia

361
A Dor de Existir

significante", a essa "dor de ex-sistir", ela é literalmente "a não-


função de a", a não elaboração da perda real em falta significante
[S(t)J, pela qual a pulsão se faz demanda direcionada ao e pelo Outro
do desejo. Há um luto do objeto que é constitutivo do desejo, uma
perda inaugural em que a presença do falo no real mobiliza o simbó-
lico de forma maciça, como um todo.
O trabalho do luto, para manter os laços em que o desejo
fica suspenso à imagem narcísica, é interpretação do desejo do Ou-
tro e reconstrução do Ideal. A não-ação, diz ainda Lacan, equivale
ao estilhaçamento do Ideal, e o luto pode ser considerado um acting-
out, porquanto endereçado ao Outro, isto é, trabalho de subjetivaçãe
da falta de objeto. Trabalho também de sublimação ou produção de
novas identificações, substitutas do falo imaginário [-<p]. Por outro lado,
o suicídio é passagem ao ato, porque nele o sujeito não se encontra
entre as objetivações da cadeia significante, mas é "objetalizado" no
real. O luto é objetivação e o suicídio melancólico é objetalização.
Então Lacan pontua que:
o melancólico necessitapassar através de SI/a própria imagem, inicialmen-
te atacando-a, para poder atingir, 110 oijeto a, que o transcende, aq11ilo
cujo comando lhe escapa, et!}a queda o arrastará naprecipitação do Sllici-
dio, com esse automatismo, esse caráter necessário eprqfundamente aliena-
do, em que são feitos os suicidios melancólicos, que não são feitos em
qHa/quer moldura (...) reettrso a uma estr11tura, que é a do fantasma"
(1963, aula de 3 de julho).

Tomamos conhecimento pelo texto O jittttro dura muito tempo


de que a morte de Hélene foi antecedida de imediato pela fala de
que ela iria embora, de que decidira separar-se de Althusser, e que
os dois ficaram confinados no apartamento em que viviam durante
cerca de dez dias consecutivos. E, ao que tudo indica, ambos fala-
vam em matar-se: "O fato é que: pela primeira vez minha própria
morte e a morte de Hélene eram uma só, tmJa só e mesma morte não
tendo a mesma origem mas a mesma conclusão" (1992, p. 142).

362
Vera Pollo, Maurilio Roui, Roberto Martielo

O sujeito nos diz que sua última internação não teve o mes-
mo efeito das anteriores, que funcionavam como "proteção para
suas crises depressivas" ou "fórmula para acalmá-las". E nos lega
como "prova de não existência" sua própria interpretação de um
"suicídio altruísta": ''A melhor prova que alguém pode se dar de não
existir é, de fato, destruir a si mesmo, destruindo aquela que o ama
e, acima de tudo, acredita na sua existência" (Idem, p. 137).
Testemunho de uma descrença derradeira ou da compulsão
inexorável, imperativa e imperiosa de um narcisismo não
humanizado? Seja como for, testemunho da radical eclipse do sujei-
to pelo objeto hostil, pois como pôde enunciar Lacan: "O suicídio
não é simples. Sem sonhar com o além, resta que o ser defunto
permanece idêntico a tudo o que articulava pelo discurso da sua
vida" (1989, p. 37).

Referências Bibliográficas

ABRAHAM, K. & FREUD, S. Correspondance. Paris, Gallimard, 1991.


ALTHUSSER, L. Oji1t11ro d11ra m11ito tempo. São Paulo, Companhia das Letras,
1992.
FREUD, S. "Rascunho G" (1895). Em. Obras Completas. Vol. I. Rio de Janei-
ro, Imago, 1969.
_ _ _ "Luto e melancolia" (1915 (1917)]. Em: Obras Completas. Vol. XIV.
Op. cit.
_ _ _"O ego e o id" (1923). Em: Obras Completas. Vol. XIX Op. cit.
_ _ _ "O problema econômico do masoquismo" (1924). Em: Obras Com-
pletas. Vol. XIX. Op. cit.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-63). Inédito.
_ ___ O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1992.
_ _ _ _ Shakespeare, D11ras, Wedekind, ]f!Yce. Lisboa, Assírio e Avim, 1989.
QUINET, A. "Melancolia nos clássicos". Em: Teoria e Clínica da Psicose. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 1997.

363
GALA SALVADOR DALI-
0 AMOR RECOBRE A DOR DE EXISTIR

Ana Martha Wilson Maia


Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro.

"Os dois motores mais violentos que fazem fimcionar o cérebro


artístico e sttpetftno de Salvador Dali são, um, a libido, o instinto
sexua~ e o outro, a angústia de n;orte... Não passa um minuto da
minha vida sem que o espectro sublime, católico, apostólico e roma-
no da morte não me acompanhe na menor e mais caprichosa das
minhasfantasias'~

Salvador Dali (em Néret, 1996, p 47)

A obra de Salvador Dali é meu objeto de estudo neste tra-


balho, onde pretendo fazer uma articulação entre o quadro, JÁ Mu-
lher e a dor de existir, comentando algumas das telas desse excêntri-
co pintor-poeta. O caminho que escolhi é aquele indicado por Freud
(1980[1932]) e percorrido, posteriormente, por Lacan (1989[1965]),
ao render homenagem a Marguerite Duras: é verdade que o artista
precede o psicanalista e que ele sabe, muitas vezes . sem saber que
sabe, da existência do inconsciente.
Inicio o meu trabalho com uma citação de Dali porque per-
cebo, em minha leitura, que de alguma forma· ele sabia que a pulsão
está em jogo na relação sujeito-objeto, numa de suas faces como
Eros, vida, e na outra como Tanatos, morte, conforme Freud a apre-
A Dor de Existir

sentou em Além do pn'ncipio de prazer. Do lado da morte, a pulsão é


vazio. Silenciosa, ela se movimenta em seu eterno percurso, buscan-
do (re)encontrar o objeto jamais possuído. A esse silêncio se refere
Dali, quando diz que a angústia de morte acompanha suas fantasias.
É do real que ele fala, do que as palavras não conseguem descrever,
daquilo que há por trás da fantasia, tela do real que procura, pela via
simbólica e imaginária, recobrir esse impossível de dizer. E Dali sa-
bia que há uma relação, como veremos no decorrer do meu traba-
lho, entre o real e 1/. Mulher.
A psicanálise não era uma desconhecida para Dali. Ele par-
ticipou do surrealismo, movimento de vanguarda que muito favore-
ceu a difusão da psicanálise na França, e, portanto, conhecia a teoria
freudiana acerca do inconsciente e da interpretação dos sonhos. Em
La vie secrete de Salvador Dali, conta que após algumas tentativas fra-
cassadas, acompanhado de Stefan Zweig e do poeta Edward James,
teve um encontro com Freud no início do verão de 1938, quando
lhe mostrou o quadro Metamoifose de Narciso (1938). Depois do én-
contro, ele pintou de memória o retrato de Freud.
Freud não participou do surrealismo e não se posicionava
sobre as idéias dos surrealistas, mas este episódio do encontro com
Dali, é importante lembrar, mudou a impressão que tinha desses l
artistas, conforme Freud relata, numa correspondência a Stefan
Zweig, a visita de Dali e o seu retrato por ele pintado:

Preciso realmente agradecer-lhe pelas palavras de apresentação que trou-


xeram a tnitn os visitantes de ontem. É que até então, ao q11e parece, eu
me sentia tentado a considerar os surrealistas, que aparentemente me esco-
lheram como santo padroeiro, como totalmente loucos (digamos, noventa e
cinco por cento, como o álcool absoluto). O jovem espanho~ com sms
ingénuos olhos de fanático e sua inegável mestria téCilica, incitou-me a
reconsiderar minha opinião (1967, p. 490).

Com Lacan, Dali também teve um significativo encontro.


Após a leitura de L'Âne Pourri, texto onde Dali apresenta o seu mé-

366
Ana Martha Wilron Maia

todo paranóico-crítico, Lacan lhe telefonou. Na verdade, esse en-


contro era esperado pelos dois. Lacan se interessou pela idéia
daliniana de paranóia-crítica e Dali acreditava que Lacan havia des-
crito brilhantemente o fenômeno paranóico, em sua tese de douto-
rado, e que essa tese confirmava sua conclusão de que o delírio pa-
ranóico era uma forma de interpretação. Lacan não participou ativa-
mente do surrealismo, mas, ao contrário de Freud, contribuiu para o
movimento com a publicação de ensaios, como os Primeiros escritos
sobre a paranóia (1987[1932]) - o primeiro sobre a relação do estilo
com a paranóia e o segundo sobre o crime das irmãs Papin, que se
encontram originalmente na revistaMinotaure, n 1 e 3. Esse encon-
05

tro entre Dali e Lacan, entre surrealismo e psicanálise, parece ter


sido enriquecedor para todos. No caso do ensino de Lacan, Maleval
(1990) sugere que este talvez tenha sido influenciado pela intuição
daliniana quando formulou sua tese sobre a natureza paranóica do
conhecimento humano, já que, para Dali, o fenômeno paranóico
pode surgir em qualquer personalidade. Não me deterei neste pon-
to, que é assunto para uma tese, mas quero marcar que não deve ter
sido à toa que Lacan nos Écrits reconhece Dali como um "de nossos
antecedentes".
A passagem de Dali pelo movimento surrealista é descrita
pelos historiadores (Nadeau, 1964; Béhar e Carassou, 1992) como
uma possibilidade de renovação do movimento, através da criação
do método paranóico-crítico. Nas palavras de Dali, "longe de cons-
tituir um elemento passivo propício à interpretação e apto à inter-
venção [...], o delírio paranóico já constitui nele mesmo uma forma
de interpretação" (1930, p. 10).
Os surrealistas até então utilizavam a técnica do automatismo,
proposta por Breton e Aragon no Primeiro Manifesto Surrealista em
1924. Neste momento, a arte era concebida como uma criação es-
pontânea que se colocava em palavras, na literatura, ou em imagens,
na pintura e escultura, o que vinha sem censura do inconsciente. É

367
A Dor de Existir

neste procedimento que se baseia Dali em sua crítica ao automatismo,


dizendo que ele impunha limites ao processo de criação porque era
pragmático como outras técnicas, inibindo a capacidade paranóica
do artista.
É interessante notar que Dali não fala em loucura mas em
'fenômeno paranóico', não restringindo a paranóia aos alienados.
Para ele, a paranóia não se refere a uma estrutura clínica como colo-
ca a psicanálise, mas a uma forma, uma arte de viver. O próprio
método paranóico-crítico é de difícil definição como ele reconhe-
ce, ao introduzir, na seguinte citação, um elemento indispensável ao
método, Gala :
Todo mundo, principalmente na América, quer conhecer o método secreto
desse sucesso. Esse método existe. Chama-se método paranóico-crítico. Eu
o inventei há mais de trinta anos, epratico-o com sucesso, embora ainda
não saiba até o momentoprese~~te em que consiste. De 11ma maneiragera~
lratar-se-ia da mais rigorosa sistematização dos fenómenos e dos materi-
ais mais delirantes, com o oijetivo de tornar tangivelmente criativas mi-
nhas idéias mais obsessivamente perigosas. Esse método só.fimciona com a
condição de se possuir um motor mole de origem divina, um núcleo vivo,
uma Gala- e só existe uma (1988(1964]), p. 165).

Gala era mulher do poeta surrealista Paul Éluard quando


Dali a conheceu. Dali havia chocado Breton e os participantes do
grupo com o quadro Ojogo lúgmbe (1929), onde aparece uma perso-
nagem, à direita da tela, com o short sujo de matérias fecais. Gala é
solicitada para que se consiga saber se Dali era coprófago ou se
apenas pretendia chocar os burgueses com este quadro. Os dois saem
para uma caminhada e assim se inicia um romance que durou até o
falecimento de Gala em 1982.
Dali descreve esse primeiro encontro com Gala: "Era ela.
Galutchka Rediviva. Acabava de reconhecê-la pelas costas nuas. Seu
corpo tinha uma compleição infantil, suas omoplatas e seus músculos
lombares, essa tensão atlética algo brusca dos adolescentes" (1952, p 241) .

368
Ana Marlha Wilson Maia

Ele reconhecera a jovem de costas que insistentemente pintava em


seus quadros, como em Rapariga de pé à janela (1925), Rapariga do
.Ampurdán (1926) e Vênus e Cupidos (1925). Como pano de fundo, as
paisagens da costa catalã invadiam as telas, enquanto a figura cen-
tral era uma mulher que não se podia identificar porque não mos-
trava o rosto justamente porque ela ainda não tinha uma identi-
dade. A partir de então, essa mulher aparece como Gala. Como bem
percebe Bona: "Desde o primeiro instante ele está convencido
de se encontrar diante da Mulher, eterna e maiúscula, mulher
que lhe está destinada desde sempre e que se lhe afigura, sob o
efeito brutal de uma verdadeira inspiração, a mulher de sua vida"
(1996, p. 211).
Gala representa A Mulher nas telas de Dali. E o que me
interessa nesta questão, colocada pelos historiadores e pelo próprio
Dali, não é identificar qual o sintoma deste artista, qual sua estrutura
clínica, mas saber o que ele como poeta e pintor tem a dizer sobre a
dor de existir. Portanto, tomo seus quadros não como um sintoma,
l como já disse, mas como uma mostração. Vejamos, então, a relação
entre o quadro e J{ Mulher.
Lacan nos diz que o campo da realidade "só se sustenta pela
extração do objeto a que no entanto lhe dá seu enquadramento"
(1966, p. 554). Subtraído da realidade, o objeto a a enquadra. Miller
(1996) visualiza esta idéia explicando que o enquadramento do furo
corresponde ao enquadramento do resto da superfície, e que o su-
jeito em sua falta-a-ser é esse furo, um pedaço subtraído do Outro.
É neste ponto que entra a fantasia como o que dá enquadramento à
janela da realidade. A fantasia obtura o campo da realidade e esse
campo é o seu lugar-tenente. O quadro é colocado no lugar da fanta-
sia, no lugar do vazio que ficou no campo da realidade do sujeito
com a extração do objeto a. Quinet explica isso de uma maneira
muito clara, dizendo que "a fantasia é o quadro que o sujeito pinta
para ver a realidade da janela de sua subjetividade" (1995, p. 78).

369
A Dor de Existir

Para Lacan, o quadro é uma armadilha do olhar pois que o


sujeito é preso, manobrado, chamado para dentro do quadro. O pin-
tor oferece seu quadro como "uma pastagem para o olho", diante
da qual ele convida o sujeito "a depor ali seu olhar, como se depõem
as armas". Este seria, para ele, o efeito pacificador da pintura: "algo
é dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta aban-
dono, deposição do olhar" (1985[1973], p. 99). Ai está o êxtase ex-
perimentado pelo espectador quando ele é capturado pela pintura, o
prazer derivado da pulsão escópica, o gozo do olhar.
Néret diz que após a aproximação com os surrealistas e o
encontro de Gala Dali "pinta dali em diante 'fotografias de trompe-
l'oei!, tornando-se assim, com um quarto de século de avanço, o
santo patrono dos hiper-realistas americanos. Mas esta precisão de
fotografia pintada à mão, utiliza-a para transcrever imagens de so-
nho" (1996, p. 26). O que me parece enigmático no fato de Dali
escolher essa técnica para pintar é que a fotografia é uma tentativa
de reproduzir a realidade, a partir da introdução de um conjunto de
lentes, a objetiva. Bazin, numa discussão sobre pintura, fotografia e
cinema, coloca que na fotografia o olho humano é substituído pelo
olho fotográfico: "Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua
representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela pri-
meira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automatica-
mente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoro-
so determinismo". Para ele, a pintura é uma técnica inferior da se-
melhança, que perde para a fotografia porque nesta "somos obriga-
dos a crer na existência do objeto representado, literalmente re-
presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço. A
fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa
para a sua reprodução" (1991 [1985], p. 22). Eu diria que nas telas de
Dali a técnica da fotografia é utilizada para tentar preencher os bu-
racos, o lugar vazio deixado pela Coisa materna, essa "monstruosa
matriz semelhante aos rochedos roídos pela água e pelo vento", como
Néret (1996, p. 23) descreve o quadro O enigma do desdo - minha mãe,

370
Ana Marlha Wilson Maia

minha mãe, minha mãe (1929). Se a Coisa pode ser representada, essa é
a sua própria representação. E Gala é o que vem preencher esse
vazio, Gala é A Mulher que existe, que Dali criou através de sua arte.
Em A acomodação do des9o (1929), o desejo materno é figurado atra-
vés de assustadoras cabeças de leão, os sintomas de que Dali se diz
curado pelo amor de Gala: "Ela seria a minha Gradiva (<aquela que
avança>), a minha vitória, a minha mulher. Mas para isso era preciso
que ela me curasse. E ela curou-me, graças ao poder indomável e
insondável do seu amor, cuja profundidade de pensamento e capa-
cidade prática ultrapassaram os mais ambiciosos métodos psicanalí-
ticos" (1952, p. 245). Dali ilustra a cura pelo amor a que Freud se
refere em seu estudo sobre o narcisismo, a escolha de "um ideal
sexual segundo o tipo narcisista que possui as excelências que ele
não p&ie atingir. Isso é a cura pelo amor que ele prefere à cura pela
psicanálise", que traz consigo "todos os perigos de uma dependên-
cia mutiladora em relação àquele que o ajuda" (1980[1914], p. 118-
119). E é assim que, num terceiro momento, o vazio deixado pelo
desejo materno aparece preenchido suavemente pelo rosto de Gala.
Refiro-me agora ao quadro Três rostos de Gala surgindo sobre rochedos
(1945), apontando que na seqüência destes três quadros há uma pas-
sagem dos buracos numa grande rocha às rochas que refletem em
sua superfície o rosto de Gala.
A partir de então, Gala está constantemente presente nas
telas de Dali. Ela enche suas telas, ela é o quadro que preenche a
janela de sua realidade. Em Ga/anna (1944-45), Dali procura descrevê-
la hiper-realisticamente: séria, com roupas da vida cotidiana e com
um seio à mostra, sem insinuar erotismo. Em quadros pintados após
a guerra, ele a transforma em deusa. Dali busca na mitologia uma
explicação para seu amor por Gala e em úda atômica (1949) ele a
transforma em Leda, a rainha de Esparta, mulher de Tindários, que
se apaixona por Zeus que para seduzi-la disfarçou-se de cisne e a
engravidou. Leda colocou dois ovos dos quais nasceram dois casais
de gêmeos. Em sua tela, Dali apresenta Gala acariciando um cisne

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A Dor de Existir

com uma das mãos. Há um livro, um ovo quebrado e, ao fundo,


duas rochas, o mar, o céu. Os objetos flutuam e Gala, no centro do
quadro, está nua, luminosa e inacessível como uma deusa levitando
acima do mundo.

Em A Madona de Port Lligat (19 50) Dali encontra no


Renascimento italiano uma outra forma de representar Gala, A
Mulher. Também em levitação e tendo ao fundo as rochas, o mar e
o céu, Gala aparece aqui santificada com as mãos unidas em oração,
o olhar baixo e o Menino Jesus a seu colo. Acima de sua cabeça está
um ovo pendurado numa concha. Gala Madona, Virgem Gala, é a
mãe de Jesus e de todos os homens.
Gala é A Mulher, é Deus, nos quadros de Dali, que torna-se
mistico e faz da mistica uma temática que perdura até o final de sua
obra. Gala é a mãe de Cristo que observa o fllho crucificado sob um
céu negro em Corpus I!Jpercubus (1954), e que, emA descoberta da América
por Cristóvão Colombo (1958), é o estandarte vivo, a santa que protege
o homem (Dali?) na chegada ao Novo Mundo. A "Gala-Gradiva,
aquela que avança" Dali dedica seu livro sobre sua vida secreta (1952),
e a "GALA GRADIVA, HÉLENE DE TROIE, SAINTE HÉLÉNE, GALA
GALATEA PLACIDA", em 1964, dedica-lhe o seu diário.

Dali mostra através da arte que o amor pode vir como ten-
tativa de cura, de recobrimento da dor de existir. Ele inicia sua obra
com o que há de mais vil no sujeito: as calças sujas de fezes. Ele sabe
do que há de divisão e"êê'f despedaçamento no sujeito, e o expõe em
sua telas através de figuras surreais, deformadas, excêntricas, não
escondendo a condição trágica humana. É pela via do amor que
Dali tenta recobrir a dor de existir, onde ele faz existir A Mulher sob
forma de Gala e fala da busca dessa união absoluta, ao descrever "os
acontecimentos mais importantes: ser espanhol e chamar-se Gala
Salvador Dali" (1964, p. 150). No quadro Dalipintando Gala de costas,
eternizada por seis cornos virtuais, provisoriamente refletidos por seis espelhos
verdadeiros (1972-73), Dali está de costas para o sujeito que contem-

372
Ana Marlha Wil.ton Maia

pla o quadro e Gala também de costas posa para ele. Os dois estão
de frente para um espelho, ou seja, o quadro mostra dois planos,
Gala e Dali, que se sobrepõem num espelho representando a junção
impossível que é buscada no amor: fazer o Um.

NOTAS

1. Agradeço a Carol Butler, Adrninistrative Assistent to the Curator of the


Salvador Dali Museum, St. Petersburg, Florida, USA, por ter prontamente res-
pondido a minha solicitação de pesquisa na biblioteca do Museu. E a Maura e
Litos, por possibilitarem esse contato e o envio do material.

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KALiMEROS

Escola Brasileira de Psicanálise


Rio de Janeiro

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