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Resenha

As rosas negras
da tecnologia
Bernardo Felipe Estellita Lins1

Atlas of AI
Autora: Kate Crawford
Publicado em 2021 pela
Yale University Press, New
Haven (CT), EUA

Tecnologia não é neutra. Qual-


quer inovação implica, ao ser ado-
tada, um compromisso entre ga-
nhos e perdas. Com a inteligência
artificial e outros avanços da com-
putação, o quadro não é diferente.
Há contrapartidas a considerar em
todos os níveis de arquitetura das
soluções. Há o acréscimo de danos
à natureza para a extração e benefi-
ciamento dos metais usados em se-
micondutores, fiação, painéis, pela
geração de energia elétrica para o

1 Doutor em Economia pela Universidade de


Brasília. Consultor Legislativo da Área XIV -
Ciência e Tecnologia, Comunicação Social,
Informática, Telecomunicações e Sistema
Postal.

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uso de um número sempre crescen- uma sociedade policiada. O tex-
te de dispositivos, pela produção to, no entanto, flui elegantemente
de polímeros com elevada emissão entre boas narrativas de episódios
de tóxicos usados no plástico das históricos e revelações de procedi-
carcaças. Há o prejuízo ambiental mentos discretamente escondidos
decorrente do descarte desses ma- pela indústria. Não é uma leitura
teriais. Há as falhas nos programas, cansativa ou revoltante. Mas é uma
as imperfeições em sua calibração. ducha de água fria.
Há as enfermidades ocupacionais Crawford é uma jornalista
decorrentes de má postura ou do australiana com doutorado pela
cansaço devido ao uso abusivo dos Universidade de Sidney. Autora
aplicativos. Há o desgaste enfren- premiada, é pesquisadora da Mi-
tado pelas pessoas que são supervi- crosoft Research (MSR), professora
sionadas por sistemas inteligentes, visitante do Centro de Mídia Cívi-
com pouca ou nenhuma conside- ca do MIT, fellow do Instituto de
ração pela má ergonomia de postos Legislação da Informação da NYU
de trabalho e pela aceleração do rit- e professora associada da Univer-
mo das operações fabris.
Kate Crawford faz um apanha-
do abrangente desses problemas.
Sob o rótulo da crescente adoção
de soluções baseadas em inteligên-
cia artificial, reconstrói o edifício
da indústria da computação e suas
várias ramificações, examinando o
mercado em camadas que se so-
brepõem: a mineração dos mate-
riais utilizados, a industrialização
dos computadores e smartphones,
a pressão da publicidade para seu
consumo, a acumulação de dados
em desrespeito à privacidade das
pessoas, o teste e a calibração de
programas com massas de casos em
que vieses preconceituosos são in-
corporados, e a supervisão de todos
os aspectos da vida dos cidadãos em

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sidade de Nova Gales do Sul. É uma fé ou um encantamento com
também compositora e produtora a inteligência artificial, ela desenha
musical. Especializou-se na difícil um mapa dos seus contrapontos,
intersecção entre a computação, a lembrando-nos que, como toda
mídia e seus efeitos sociais. É uma solução tecnológica, a computação
área de investigação que se iniciou deve conhecer limites. Deter a tec-
nos anos 1970 e produziu um vo- nologia significa, em última aná-
lume expressivo de contribuições lise, deter controle e poder sobre
nas décadas seguintes. Pesquisado- os processos em que esta pode ser
res como Philip Agre, Kevin Kelly, aplicada. E a inteligência artificial,
Nicholas Negroponte e Rosaria com os avanços dos últimos anos,
Conte e filósofos como Jean-Fran- vem rompendo as fronteiras para
çois Lyotard estão entre os nomes suas aplicações, com o agravante
dessa época cuja importância per- de que, aponta a autora, a cada dia,
siste, apesar do passar dos anos. a escala dos sistemas é mais com-
Muitos dos dilemas que hoje plexa; os volumes de dados trata-
vivemos, submersos em uma inter- dos, maiores; as correlações, mais
net que nos envolve e com a qual surpreendentes; e a capacidade de
interagimos continuamente, re- supervisão sobre as aplicações, mais
definindo nossos valores e nossos limitada.
hábitos para adequar-nos a micro- A adoção desses avanços traz
comunidades em que vivenciamos consigo, portanto, desafios éticos
nossos jogos de relacionamento e importantes, que não estão sendo
compartilhamos uma linguagem adequadamente tratados. A área
legitimada por nossos interlocu- da computação convive com uma
tores, foram antecipados por esses situação em que a responsabilida-
autores. Crawford segue essa trilha, de por eventuais danos não é re-
desbravando a realidade em que es- conhecida por desenvolvedores de
tamos envolvidos. Contrariamente soluções e criadores de conjuntos
aos futurólogos que buscam anteci- de dados, ou é vista como uma
par tendências, por vezes com tin- questão além do escopo do projeto.
tas ficcionais, ela é uma arqueóloga Dada a rapidez com que os avanços
do presente, uma observadora dos na teoria vêm sendo incorporados
fatos como se apresentam. aos sistemas, não há tempo para
A visão de Crawford é de um que uma avaliação apropriada dos
saudável ceticismo. Em vez de ofe- dilemas éticos possa ser empreendi-
recer uma bíblia apologética de da. Crawford aponta, porém, que

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definir parâmetros éticos não será
uma tarefa suficiente. Na medida
em que toda tecnologia tende, em
última instância, a reforçar e per-
petuar o status quo, sua adoção,
mais do que uma questão de ética,
é uma questão de poder.
Esse pequeno atlas é, portanto,
uma leitura importante, quiçá ne-
cessária, para que possamos manter
um olhar corretamente calibrado
sobre esse mundo que se aparenta a
cada dia mais artificial. Uma leitura
densa, desafiadora, que coloca em
questão convicções que aprende-
mos na escola que frequentamos e
no marketing que nos bombardeia
de modo avassalador. Tudo o que é
tech é pop, até olharmos o reverso
obscuro da medalha. É esse reverso
que Crawford nos mostra, e o faz
com surpreendente elegância.

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