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São Paulo
2018
MAURÍCIO DE OLIVEIRA JÚNIOR
São Paulo
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
MAURÍCIO DE OLIVEIRA JÚNIOR
________________________________________________
Prof. Dr. Mauricio Funcia de Bonis
Unesp – Orientador
_______________________________________________
Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva
Centro Universitário Fundação Santo André
Maurício Pazz
Outubro de 2018
AGRADECIMENTOS
Maurício Pazz
Outubro de 2018
SUMÁRIO
1
Citação de Citação Sobre a estética diaspórica, citação de Kobena Mercer:
[final da pág. 33]
“Numa gama inteira de formas culturais, há uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria criticamente de
elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os ‘criouliza’, desarticulando certos signos e
rearticulando de outra forma seu significado simbólico. A força subversiva dessa tendência hibridizante fica mais
aparente no nível da própria linguagem (incluindo a linguagem visual) onde o crioulo, o patois e o inglês negro
desestabilizam e carnavalizam o domínio linguistico do ‘inglês’ — a língua-nação [nation-language] do
metadiscurso — através de inflexões estratégicas, novos índices de valor e outros movimentos performativos nos
códigos semântico, sintático e léxico.”[MERCER, Kobena. Diaspora Cuture and the Dialogic Imagination. In:
Welcome to the Jungle: New Positions in Black Cultural Studies. London: Routledge, 1994. p. 63-64]
2
“Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e
‘autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só
podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido
para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da ‘floresta de signos’
(Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memoriais (‘relíquias
secularizadas’, como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhados a
constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o
movimento e dar-lhe forma. Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e
9
torna o próprio Caribe, por excelência, o exemplo de uma diáspora
moderna (HALL, 2009, p. 34, grifos meus).
3 Cultura é uma construção histórica, seja como concepção, seja como dimensão do processo social. Ou seja, a
cultura não é “algo natural”, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um
produto coletivo da vida humana. Isso se aplica não apenas à acepção da cultura, mas também à sua relevância,
à importância que passa a ter. Aplica-se ao conteúdo de cada sociedade. Cultura é um território bem atual das
lutas sociais por um destino melhor. E uma realidade e uma concepção que precisam ser apropriadas em favor
do progresso social e da liberdade, em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra,
em favor da superação da opressão e da desigualdade”. (SANTOS, 2006, p. 45).
10
desdobrará em preconceitos, é a confusão que se faz em relação a importância do
ritmo.
A colonização gera um pensamento e um olhar eurocentrado, que faz com que,
dentre tantas outras coisas, as culturas e as músicas sejam pensadas a partir dos
valores dos colonizadores, portanto o fato de a música “erudita” não ter desenvolvido
o ritmo de uma maneira complexa, faz com que os colonizadores, ao hierarquizarem
estes elementos (melodia, contraponto, harmonia, ritmo) destinem ao ritmo o lugar de
menor importância.
Este mesmo processo de hierarquização valorativa — um empilhamento
sistemático de que e/ou quem “vale mais” sobre o que e/ou quem “vale menos” —
poderá ser observado não só nas áreas artísticas mas em praticamente toda a
sociedade.
11
Em uma das passagens (do último livro citado), a personagem principal, Velho,
descreve em tom de explicação:
4
SILVA, Fernanda Dias da. Como Fazer Amor Com Um Negro Sem Se Cansar de Dany Laferrière:
uma análise pela teoria pós-colonial. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, 2017.
12
suscitar apenas uma pequena parte diante de tudo o que eu gostaria de dizer sobre o
referido trecho!
Como já dito por Fanon:
Velho nos apresenta, com o seu tom sarcástico característico, uma “escala de
valores ocidentais”, na qual podemos observar uma intersecção das categorias de
gênero e raça, nela, os homens estão acima das mulheres, por consequência do
machismo. No entanto, por consequência do racismo, brancos e brancas estão acima
de negros e negras. A partir disto temos a seguinte escala (do mais importante à
menos importante): homens brancos, mulheres brancas, homens negros e, por fim,
mulheres negras.
A mesma personagem defende que as relações sexuais são desiguais e
portanto, obedecendo a esta mesma “escala de valores ocidentais”, serão diferentes
os direitos e/ou deveres de cada pessoa no ato sexual.
Arrisco dizer que a desigualdade que aqui se apresenta nas relações sexuais
é fruto de todas as demais relações desiguais, pautadas nos diferentes privilégios
concedidos aos machos pelo machismo e aos brancos pelo racismo. Portanto talvez
pudéssemos concluir que as desigualdades sexuais apresentadas por Laferrière não
inauguram as desigualdades do mundo ocidental, muito pelo contrário, elas reafirmam
e realimentam estas cadeias de desigualdades de direitos e privilégios e, no que tange
as relações étnico-raciais, vale lembrar o que já nos alertara Fanon:
13
econômico — seguido pela interiorização, ou melhor, pela
epidermização dessa inferioridade. (FANON, 2008, p. 28, grifos meus)
Na cena que se passa acima, Velho põe-se a pensar sobre algo que
aparentemente “não tem nada a ver com o que está acontecendo agora”, no entanto
os seus pensamentos estão intimamente ligados ao fato de que ele, um homem negro,
está, neste momento, se relacionando sexualmente com um mulher branca, é isto “o
que está acontecendo agora”. FANON (2008) nos diz o seguinte: “Historicamente,
sabemos que o negro acusado de ter dormido com uma branca era castrado”
(FANON, 2008 p. 75).
Com esta informação podemos observar que os pensamentos de Velho estão
conectados com as suas ações, em outras palavras, os traumas e as memórias do
racismo e do escravismo atravessam a psique da personagem, mesmo quando estes
pensamentos aparentemente parecem não ter “nada a ver com o que está
acontecendo agora”.
Escutemos mais uma vez as indagações de nossa personagem principal…
14
trepar, ter certeza de que tudo isso é verdadeiro ou falso. Aqui. Direto.
Definitivamente. De uma vez por todas. Ninguém lhe dirá meu amigo.
O mundo está abarrotado de ideologias. Quem quer se meter com um
assunto desses? Como Negro, não tenho o distanciamento necessário
em relação ao Negro. Será o Negro esse porco sensual? O Branco,
esse porco transparente? O Amarelo, esse porco refinado? O
Vermelho, esse porco sangrento? Somente o porco é porco. Eu não
sei por quê, mas sempre imaginei o universo como aquela tela do
Matisse. Ela me impressionou. É a minha visão essencial das coisas.
A tela é o Grande interior vermelho (1948) (LAFERRIÈRE, 2012, p. 44,
grifos meus).
Podemos estabelecer conexões entre o que fora dito aqui por Laferrière e
Fanon, podemos observar que os mitos do “Negro grande garanhão” e “o mito do
Negro animal, primitivo, bárbaro, que só pensa em trepar” dialogam com esta fixação
— feita por brancos colonizadores — do negro ao genital, ao biológico. Um biológico
a serviço de uma mentalidade racista e hierarquizante. Outras abordagens sempre
serão possíveis e talvez o trecho que Velho cita Matisse cumpra esta função, de arejar
as nossas mentes com outras possibilidades e abordagens. Explico:
A literatura pode conseguir, e muitas vezes consegue, trabalhar intensamente
com o imaginário dos leitores e leitoras a partir das palavras. No campo literário e
poético as palavras podem construir imagens. Portanto, as palavras que compõem o
título de uma pintura têm o potencial de construir, no imaginário do leitor, a imagem
15
do próprio quadro citado (para aqueles que o tiverem como repertório na memória) ou
uma nova pintura que o imaginário do leitor possa criar, sobretudo nos casos de
leitores que não conheçam a obra citada. Portanto, no contexto em que é citada a
obra de Matisse, o seu título “O grande interior vermelho” ganha significados múltiplos,
que talvez extrapolem à própria pintura. Uma vez admitido a pluralidade de sentidos
interpretativos que uma mesma obra pode gerar, não podemos afirmar que o autor
tenha tido a intenção de nos comunicar algo em específico, no entanto podemos sim
dizer o que a obra nos comunicou, portanto me vejo obrigado a falar em primeira
pessoa para dizer o que este trecho me comunica.
Para mim, os diferentes porcos — negro, branco, amarelo e vermelho —
representam respectivamente as populações negras, brancas, asiáticas e indígenas
com as tuas respectivas estereotipais construídas pelos brancos ocidentais ao longo
dos diversos processos coloniais. Não é atoa que, no trecho citado, os brancos serão
representados por “porcos transparentes”, essa pretensa neutralidade no mundo
ocidental é um privilégio que coube apenas à branquitude. Bem, voltando a nossa
análise, após citar as diferentes humanidades, Velho nos diz:
Somente o porco é porco. Eu não sei por quê, mas sempre imaginei o
universo como aquela tela do Matisse. Ela me impressionou. É a minha
visão essencial das coisas. A tela é o Grande interior vermelho (1948)
(LAFERRIÈRE, 2012, p. 44, grifos meus)
Para Velho e para Laferrière (já que nesta autoficção o primeiro representa o
segundo) “o grande interior vermelho” representa a visão de mundo de ambos,
representa a “visão essencial das coisas”. Em outras palavras, o que há em comum
entre todos os porcos — desde o porco que é apenas um porco, até aos porcos que
representam etnicidades humanas distintas — é o seu interior, no limite, as vísceras
de todos, todos no seu interior são iguais por serem todos vermelhos.
Talvez poeticamente aqui tenhamos encontrado uma alternativa pós-colonial
frente a esta barbaridade colonial que fizera dos brancos a referência e o padrão de
humanidade. Fanon (2008) nos diz que nessa nossa sociedade se humanizar significa
se branquear. Quiçá aqui, para Velho e Laferrière, se humanizar seja, a partir da
grandeza do interior, se avermelhar, uma forma de se humanizar recusando o
branqueamento como a única alternativa.
16
Se por um lado vimos todos estes atravessamentos em campos como os da
afetividade e do psiquismo, veremos agora outros exemplos que pertecem aos
campos da educação, do trabalho e de outros tantos campos que veremos mais
adiante.
Luiz Antônio Cunha, no livro “O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros
no Brasil escravocrata” nos diz o seguinte:
5 É importante dizer que esta análise piramidal se refere ao exemplo citado de Sérgio Buarque de Holanda, pois
embora seja possível afirmar que a população indígena não sofrera os mesmos tipos de violências e privações
de direitos que a população negra, é evidente também que não foram todos os indígenas que puderam ocupar
o cargo de capitão-mor… Porém o fato de ter havido indígenas que ocuparam tal posto, demonstra que nesta
hierarquização, respaldadas por teorias evolucionistas e eugenistas, os índios estavam “acima” dos negros.
Não se trata aqui, portanto, de avaliar quem sofreu mais ou menos (entre negros e indígenas), o objetivo desta
análise é evidenciar que de fato houve e há uma hierarquização social, na qual a população negra, desde o
processo colonial e escravagista, sempre esteve na base desta pirâmide social.
6 “Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram os filhos de fazendeiros, educados nas
profissões liberais, quem monopolizava a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando
os parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das instituições
nesse incontestado domínio” (HOLANDA, 1995, p.73).
7
“Mas, sempre que podiam, os mestres faziam escravos aprenderem ofícios para pô-los a trabalhar em suas
tendas, dispensando-se de pagar salários a obreiros (livres). O trabalho manual passava, então, a ser ‘coisa de
escravos’ ou da ‘repartição de negros’ e, por uma inversão ideológica, os ofícios mecânicos passavam a ser
desprezados, como se houvesse algo de essencialmente aviltante no trabalho manual, quando a exploração do
escravo é que o era” (CUNHA, 2000, p. 16).
18
colonizadas —, na música não será diferente, uma vez que, como já dito outrora, a
música é fruto da cultura, tal qual o colonialismo e o mesmo podemos dizer do
pensamento social brasileiro.
Os estudos sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos, têm sido
mediados por preconceitos acadêmicos, de um lado, comprometido com uma
pretensa imparcialidade científica, e, de outro, por uma ideologia racista
racionalizada, que representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao
mesmo tempo, sua continuação, na dinâmica ideológica da sociedade
competitiva que a sucedeu. Queremos dizer, com isto, que houve uma
reformulação dos mitos raciais reflexos do escravismo, no contexto da
sociedade de capitalismo dependente que a sucedeu (…).
Uma visão mais vertical do assunto irá demonstrar, também, como esses
estudos acadêmicos, ao invocarem uma imparcialidade científica inexistente
nas ciências sociais, assessoram, de certa forma, embora de forma indireta,
a constelação de pensamento social racista que está imbricado no
subconsciente do brasileiro médio (MOURA, 1988, p. 17, grifos meus).
8
É importante salientar que neste trabalho não há a menor pretensão de se construir uma genealogia do mito da
democracia racial, no entanto é possível encontrarmos, nas publicações das revistas do IHGB, idéias que serão
utilizadas e reelaboradas nos anos subsequentes, desdobrando-se das mais diversas formas, dentre elas o mito
da democracia racial.
20
narrativas historiográficas hegemônicas. Estas, muitas vezes se permitem falar do
“outro” e pelo “outro” sem o conhecer. Quiçá, porque o outro, em situações como
estas, seja visto apenas como objeto de pesquisa, objeto da ciência, ou simplesmente
objeto.
Na historiografia da música (popular ou não) brasileira é comum e frequente a
associação (direta9 ou indiretamente10) entre as palavras “negro” e “batuque”, quase
como categorias indissociáveis. Pesquisadores e demais observadores em seus mais
diversos relatos, por desconhecerem completamente (ou parcialmente, pra ser
generoso) as especificidades das musicalidades negras — desconhecendo os
possíveis sistemas musicais destes povos, incluindo nisso seus diferentes modos de
construção melódicos e harmônicos — se permitiram dizer, muitas vezes, daquilo que
não conheciam, o que na prática se desdobrou em algo que podemos resumir em uma
palavra: preconceito.
Batuque: substantivo genérico demais11, nome que não nomeia… Talvez por
ser um nome dado pelo senhor12, que em muitos momentos, hierarquicamente,
demarcava a distancia abismal de direitos e privilégios que havia entre ele (senhor) e
o objeto: negro escravizado. No Brasil, do mesmo modo que toda uma serie de
musicalidades complexas fora resumida à palavra “batuque”, resumiram à palavra
“negro” um número incontável de pessoas que pertenciam a diferentes grupos e
identidades étnicas. No entanto, talvez mais cruel ainda tenha sido o fato de, por meio
de uma narrativa historiográfica limitada e carregada de preconceitos, a indissociação
destas duas palavras/categorias (“negro” e “batuque”) acabou por encerrar uma na
outra, fomentando ainda mais “a constelação de pensamento social racista que está
imbricado no subconsciente do brasileiro médio” (MOURA, 1988, p. 17).
9
“É ponto pacífico, hoje, que o lundu descende diretamente do batuque dos negros” (KIEFER, 2013, p.35).
10 “Na Bahia, em 1807, o Conde da Ponte se queixava: ‘Os escravos [negros] nesta cidade não tinham sujeição
alguma em consequência de ordens ou providencias do governo; juntavam-se quando e onde queriam;
dançavam e tocavam os estrondosos batuques por toda cidade e a toda hora; nos arraiais e festas eram eles só
os que se assenhoravam do terreno, interrompendo quaisquer outros toques ou cantos”” (SODRÉ, 1998. p.12)
11
“A palavra batuque, segundo José Ramos Tinhorão, tem sido aplicada tradicionalmente e ‘com sentido genérico
a todos os ritmos produzidos à base de percussão’” (KIEFER, 2013, p.35).
12
O conceito de “batuque enquanto uma categoria senhorial” foi apresentado por Rafael Galante no curso Por uma
iconografia musical do Atlântico Negro entre os séculos XVII e XIX, em julho de 2018 no MASP.
21
Bruno Kiefer, no livro “Raízes da música popular brasileira: da modinha e lundu
ao samba”, mais precisamente no capítulo sobre a modinha, ao nos falar sobre o
compositor mais importante do gênero, o negro13 Domingos Caldas Barbosa, Kiefer
nos diz o seguinte:
José Ramos Tinhorão defende a tese de que: “se a partir de 1775 Caldas
Barbosa já aparece cantando suas modinhas em Lisboa, tais canções só
podiam constituir autêntica música popular da colônia…” Aduz, entre outros,
o argumento seguinte: “Ora, tanto na vida de estudante quanto na militar, ou
ainda na de boêmia a que se entregou durante mais de dez anos, após sua
volta ao Rio, em 1762, todos os contatos de Domingos Caldas Barbosa terão
sido com mestiços, negros, pândegos em geral e tocadores de viola, e nunca
com mestres de música eruditos (que, por sinal, por essa época praticamente
não existiam no Brasil)” (KIEFER, 2013, p. 17, grifos meus).
13
Frente aos diferentes projetos de branqueamento do Brasil e de suas memórias, diferentemente dos autores
José Ramos Tinhorão e Bruno Kiefer, me recuso a chamar de “mulato” o compositor Domingos Caldas Barbosa
(filho de pai branco e mãe preta). Frente às disputas de narrativas e ciente de que não existe a possibilidade de
um texto ser imparcial, deixo posto e registrado aqui o meu posicionamento enquanto pesquisador que considera
necessário que se faça um movimento contrário às práticas correntes que há séculos (e por inércia!) branqueiam,
sempre que possível, sujeitos e as respectivas memórias produzidas a partir deles. Penso que se faz necessário
enegrecer a memória, portanto é por uma escolha consciente que chamarei de negros aqueles que frequentemente
são chamados de mulatos.
22
Portanto neste trecho de Tinhorão em questão, ainda que de maneira sutil,
subentende-se que os “mestres de música eruditos” são brancos, enquanto os
“mestiços” e “negros” não passam de “pândegos em geral e tocadores de viola”, ou
seja, aqui, negros e mestiços nem músicos são. Em suma, o universo popular está
associado ao negro, e o universo erudito está associado ao branco. O que veremos
adiante é que, ao olharmos atentamente para as produções musicais do século XVIII
no Brasil veremos que estas idéias (que associam a negritude ao popular e a
branquitude ao erudito) são altamente discutíveis, para não dizer falaciosas.
Kiefer, em resposta a Tinhorão, ainda sobre Domingos Caldas Barbosa
prossegue nos dizendo:
Agora podemos observar que Kiefer se opõe às idéias propostas por Tinhorão,
pedindo aos leitores — através de argumentos extremamente frágeis e nada
convincentes — que deixem de lado os possíveis contato de Caldas Barbosa com
negros e mulatos. Além disso, também de maneira sutil, se opõe a Tinhorão ao negar
os contatos com o universo chamado de popular, reivindicando a presença e as
influências da música chamada de erudita.
Ora, mas por que chamar de frágeis e pouco convincentes tais
argumentações?
A resposta está nas contradições do próprio autor, que para reivindicar a
presença da música erudita no Brasil, precisou recorrer ao testemunho de um
navegador francês que nos diz, categoricamente, que encontrara uma “companhia de
mulatos”. Mais adiante Bruno Kiefer nos diz mais:
Além do mais, é preciso não perder de vista que a Sé do Rio de Janeiro foi
criada em 1676 e que, como era costume no período colonial, funcionava
23
junto a ela um mestre de capela e um conjunto maior de músicos e cantores
(em 1798 esse posto seria ocupado por José Maurício Nunes Garcia)
(KIEFER, 2013, p. 17).
José Maurício Nunes Garcia foi o compositor mais importante das Américas no
século XVIII, fora nomeado mestre de capela real (um dos postos mais altos — quiçá
o mais alto — que um músico poderia atingir na época) no período em que a família
real mudou-se para o Rio de Janeiro. Pois é, no modo como foi apresentado pelo autor
Bruno Kiefer, não fica claro que o compositor desta importância e envergadura era
negro e filho de escravos forros.
Sendo assim, em uma sociedade racializada em que “os não brancos são
aqueles que têm a visibilidade da raça”, invisibilizar historiograficamente a negritude
de José Maurício é, portanto, um modo de branqueá-lo e também branquear a
memória que temos e/ou teremos dele.
Todas estas estratégias e narrativas, que pretendem encerrar o negro em
determinadas categorias, constroem e perpetuam idéias completamente equivocadas
quanto às vastas e complexas produções culturais e musicais das populações negras.
Vez em quando também, estas mesmas narrativas amparam idéias que roubam dos
negros os protagonismos destes enquanto agentes produtores de suas próprias
culturas. O trecho citado de Bruno Kiefer é um nítido exemplo disso, nas linhas do
autor não é possível enxergamos a polivalência musical e cultural de negros e negras.
Portanto, não serão negros apenas os “pândegos em geral e tocadores de
viola”, também serão negras as companhias de mulatos, os “mestres de música
eruditos” e serão também negros os compositores Domingos Caldas Barbosa e o
padre José Maurício Nunes Garcia, que são respectivamente o mais importante
compositor de modinhas e o compositor mais importante do século XVIII das
Américas.
Estas narrativas, amparadas por um pensamento social racista (Moura, 1988)
atravessam a historiografia da música brasileira
24
Portanto, no Rio de Janeiro do século XVIII poderíamos encontrar músicos
negros e mulatos tocando, compondo e regendo essa música chamada de erudita.
Sendo assim, encontraremos negros não só na “companhia de mulatos”, mas também
“mestres de música eruditos” e o mestre de capela real.
Dito tudo isso podemos perceber quão falha é a argumentação de Kiefer, ainda
que Domingos Caldas Barbosa não tivesse tido contato com “pândegos em geral e
tocadores de viola” (que no modo como escrito por Tinhorão estes parecem ser
sinônimos de “negros e mestiços”), não podemos excluir a possibilidade dele ter tido
contato com músicos negros, pois neste período, conforme apresentado aqui, muitos
negros, na condição de escravizados ou não, eram músicos populares e eruditos.
Após todas estas reflexões podemos observar o quanto estas hierarquizações,
de modo transversal, atravessam a sociedade em diferentes esferas. Logo, ao
pensarmos música a partir da “escala de valores ocidentais” veremos que o ritmo
estará na base desta pirâmide, e que não será gratuita a associação do ritmo ao
negro14. Além disso pudemos observar também parte dos desdobramentos nocivos
do encerramento do negro às categorias estritamente biológicas, algo que também
estará a serviço das deslegitimações das produções culturais e intelectuais das
comunidades negras. Com isso pode se dizer que: encerrar a população negra nas
categorias biológicas é, no limite, resumir e essencializar toda uma pluralidade de
humanidades e culturas, ignorando também todas as relações sociais e seus
respectivos desdobramentos. Em síntese, resumir às categorias biológicas é,
necessariamente e objetivamente, ignorar as categorias culturais e sociais.
Portanto se quisermos refletir sobre o lugar do ritmo na música ocidental, se
faz necessário pensar, de maneira interseccional, as mais diversas hierarquizações e
categorizações presentes no mundo ocidental. Sendo assim, através da
interseccionalidade, poderíamos refletir e investigar, por exemplo, o que há em
comum entre os lugares destinados aos negros e negras (e demais não-brancos), à
percussionistas (homens, mulheres e demais gêneros) e ao ritmo no ocidente?
14
É de suma importância lembrarmos e frisarmos que este modo de associação que encerra o negro na rítmica
só foi possível a partir de pensamentos e discursos preconceituosos que, muitas vezes, evidenciaram e evidenciam
um nítido desconhecimento das musicalidades dos povos africanos e afrodescendentes, bem como o
desconhecimento destes mesmos povos e seus respectivos valores culturais, simbólicos e civilizatórios.
25
Temos a seguir um exemplo em que a autora Goli Guerreiro intersecciona a
percussão, o papel de percussionistas nos espaços (físicos e financeiros) do mercado
e as relações étnicos raciais no Brasil.
Embora o que fora abordado acima (e o que será discutido abaixo) não esteja
exatamente relacionado ao papel do ritmo na linguagem musical, podemos dizer que
há uma analogia simbólica (portanto não há uma correspondência exata) entre o que
tange as esferas dos percussionistas no mercado da música e o ritmo na linguagem
musical.
O lugar, que se discute e que se pensa aqui nesta pesquisa, tem mesmo um
sentido vasto. Abrange desde os lugares físicos, propriamente ditos (tais como os
palcos, teatros e salas de concerto), passando pelos espaços virtuais (como os
construídos nos fonogramas a partir dos recursos tecnológicos de áudio, que
possibilitam causar no ouvinte uma sensação de espacialização do som e dos
instrumentos musicais gravados; recurso este amplamente utilizado nos mais diversos
tipos de mixagem sonora), e chegando a tangenciar os outros possíveis significados
e dimensões sociais, econômicas e simbólicas que a palavra “lugar” pode denotar.
Podemos observar que a maior parte das reflexões feitas até aqui nos
possibilitaram pensar o sentido de “lugar”, muito mais, a partir das dimensões que
pertencem aos campos sociais e simbólicos. Como não será possível dar conta de
todo este assunto em um trabalho de conclusão de curso (e talvez nem ao longo de
minha vida inteira), doravante me permitirei dar exemplos mais sucintos a partir de
reflexões e indagações mais enxutas. Veja:
Nos palcos, teatros e salas de concerto é comum encontrarmos os
instrumentos de percussão e os percussionistas quase sempre ao fundo do palco,
enquanto os instrumentos melódicos e harmônicos normalmente ocuparão as frentes
dos palcos, temos aqui um exemplo concreto de lugar no sentido físico da palavra.
26
Nos fonogramas e gravações em geral — talvez como reflexo desta
espacialização mais comum citada acima (em que o ritmo quase sempre está
localizado ao fundo) — é comum que seja reproduzido o padrão de colocar as
percussões ao fundo e com intensidade sonora muito mais baixa do que a dos demais
instrumentos, de modo que em muitos casos para um ouvinte desatento ou menos
aficcionado por música, muitos dos instrumentos de percussão passarão quase que
despercebidos. Este portanto é um exemplo de uma virtualização do espaço e do
lugar.
Além disso, conectando as duas primeiras categorias de lugar supra citadas
(físico e virtual), podemos observar que em muitos casos, como na bossa-nova por
exemplo, diluir a quantidade de informação rítmica, juntamente com a diminuição e/ou
a exclusão de um número considerável de instrumentos de percussão (se comparados
com o samba), implicarão em um branqueamento do samba, portanto tais
modificações acabam por interferirem simbolicamente neste não-lugar ou novo lugar
destinado ao ritmo nesta musicalidade em questão. Ao lembrarmos que no caso da
bossa-nova, os músicos negros também foram suprimidos, podemos concluir que
estas mesmas diluições também ganham dimensões sociais e econômicas.
Voltando a refletir sobre as hierarquizações presentes na música, poderíamos
comentar as estruturas internas de cada uma das linguagens musicais das diversas
culturas, a partir de diversos parâmetros do discurso: como melodia, campo de
tessitura, harmonia, métrica, ritmo, textura, forma e etc. Esses parâmetros do discurso
podem ser associados aos parâmetros básicos do som: altura, duração, intensidade
e timbre (lembrando que esses mesmos parâmetros, por sua vez, também são
culturais e, portanto, estão ligados a uma escuta específica). No entanto não podemos
dizer categoricamente, em relação a todos esses parâmetros, que o ritmo sempre foi
o "último da escala" entre os elementos do discurso musical. O que se pode dizer com
mais segurança é que, na música erudita ocidental, e em diversas músicas folclóricas
e populares ocidentais, o principal parâmetro a ser organizado era a altura, em uma
complexidade infinitamente maior do que os outros.
O timbre em geral estava ligado a uma escolha instrumental que era dada pelo
gênero em questão. A intensidade era resultante de gestos de expressão. Dessa
forma, na maior parte dos casos - e coerentemente com os sistemas tonal e modal -
os parâmetros que são de fato manipulados de uma forma particular em cada obra
27
são altura e duração. Entre esses, a duração e os parâmetros do discurso a ela
associados (pulso, métrica, ritmo, andamento) estão em um papel secundário na
maior parte das linguagens musicais ocidentais, e em especial na história da música
erudita e nas músicas populares de grandes centros urbanos.
Estas hierarquias musicais não carregam consigo cargas ideológicas. Uma vez
que hierarquias como estas são necessárias e estão presentes em quaisquer
linguagens. O que ocorre, entretanto, é que as linguagens são campos fundamentais
da ação ideológica e política; são condicionadas pela esfera econômica em última
instância. Dessa forma, predominam os traços de linguagem da cultura que está no
poder - e são as linguagens de origens europeias que priorizam as alturas por
excelência.
A partir disso, podemos depreender que: embora estas hierarquias se façam
necessárias e presentes nas mais diversas linguagens, não podemos ignorar os usos
ideológicas destas. Portanto, se por um lado não podemos responsabilizá-las, por
outro precisamos refletir sobre, para quem sabe transformar, os usos simbólicos e
ideológicos das linguagens, pois também será por meio delas que expressamos e
expressaremos nossas ideologias.
Ora, o que se pretende apresentar aqui é, em resumo: 1.) podemos notar que,
na musica ocidental, o ritmo (enquanto um parâmetro do discurso associado à
duração) acabou por ficar em segundo plano; 2.) em diversas instâncias desta
sociedade racista, que muitas vezes insiste em dividir o mundo entre negros e
brancos, será possível notar que à população negra também fora destinado o segundo
plano. 3.) algo também já apontado aqui, é a frequente associação destas duas
categorias que foram relegadas ao segundo plano, de modo que em diversas
situações estas mesmas categorias, negro e ritmo, sejam encerradas uma na outra.
Em outras palavras, pode-se verificar a força da argumentação sobre o lugar
conferido ao negro na sociedade e na cultura em autores como Clóvis Moura, Lia
Schucman, Sérgio Buarque e, especialmente, Frantz Fanon. A partir deles, é possível
apontar para uma rede de conclusões análogas relacionadas à música, pelo quanto
ela é uma esfera inseparável das abordadas por eles. Se não foi encontrada ainda
uma bibliografia que documente e discuta esses fenômenos no campo da música,
essa pesquisa aponta para a necessidade de que pesquisas futuras se dediquem a
essa argumentação, e propõe uma contribuição pontual para esses trabalhos.
28
29
Ciclos Rítmicos nas músicas
das diásporas africanas:
“Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe,
possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo
assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”
(FANON, 2008, p. 33).
15
Fanon cita Karl Marx, especificamente sua XI tese sobre Feuerbach. (Nota do tradutor)
30
humanidade análogo à “imagem e semelhança” dos colonizadores (homens brancos).
Portanto, o autor considera que – diante deste quadro de desumanização racializada
– a humanização se dará por meio do branqueamento dos colonizados. Uma das
possíveis formas de se branquear se dará, advoga o autor, por meio da linguagem.
Mas de qual linguagem ele nos fala? Fanon, para construir suas
argumentações, utiliza como exemplo a linguagem falada por antilhanos que, por sua
vez, foram colonizados por franceses. Vejam:
31
contraponto)16. Com isso, quero dizer que por mais complexas que possam ser as
músicas do colonizador, ritmicamente elas serão simples; portanto o ritmo está longe
de ser um território dominado ou vigiado pelos nossos colonizadores. O grande legado
cultural da música erudita, de fato não está no tratamento dado ao ritmo, mas sim no
modo como são tratadas as alturas. Portanto, a não apropriação deste “território” do
ritmo por parte dos colonizadores, conferiu aos colonizados uma maior liberdade para
articularem os seus respectivos modos de pensar e tratar ritmicamente suas
respectivas musicalidades.
Portanto, as dinâmicas de resistência serão mais viáveis nos espaços onde a
“mão do colonialismo” não chega, ou onde ela chegou de maneira enfraquecida. Para
ficar mais nítido, pensemos nos quilombos. Os territórios, ocupados e construídos por
quilombolas, estarão localizados não nos centros das cidades coloniais. Uma vez que
os projetos de civilização quilombolas são muito destintos dos projetos coloniais
escravagistas de civilização, tornou-se estratégico e necessário a construção de
quilombos em territórios ainda não ocupados pelos colonizadores. Vale lembrar que
estamos falando aqui de uma dinâmica de opressão (por parte dos brancos,
colonizadores, escravagistas) e resistência (por parte da população escravizada e de
todos e todas que eram contrários a este sistema colonial escravista).
(De um mulato-escuro de 87 anos): Minha mãe sempre fazia festa para reunir
os meus colegas e amigos de origem. A festa durava às vezes dias e dias.
Tinha comes e bebes e não faltavam o baile na sala de visita, o samba-raiado
na sala dos fundos e a batucada no terreiro. Para fazer a festa minha mãe ia
buscar o alvará na polícia. Lá o chefe dava conselho, pois na opinião da
polícia, negro só se reunia pra brigar, para fazer malandragem. Mesmo com
autorização, a polícia não deixava a gente em paz. Ela aborrecia sempre.
Quando a polícia “apertava” a gente num canto, a gente ia para outro. Nós
fazíamos samba na planície. Quando a polícia vinha nós nos escondíamos
no morro. Lá era fácil esconder. É por isso que muita gente pensa que samba
nasceu no morro. Antes de ter morro habitado já havia samba (PEREIRA,
2001, p. 212).
E ainda:
Como em toda a história do negro no Brasil, as reuniões e os batuques eram
objeto de freqüentes perseguições policiais ou de antipatia por parte das
autoridades brancas, mas a resistência era hábil e solidamente implantada
em lugares estratégicos, pouco vulneráveis. Um destes era a residência na
praça Onze da mulata Hilária Batista de Almeida — a Tia Ciata (ou Aceata)
— casada com o médico negro João Batista da Silva, que se tornaria chefe
16
Não quero com isso dizer que não há um modo específico de se trabalhar o ritmo na musica erudita, mas o
fato é que se fossemos escolher um elemento musical que, por metonímia (a parte que “representa” o todo)
pudesse representar a música erudita na sua complexidade, certamente este elemento não seria o ritmo.
32
de gabinete do chefe de polícia do governo Wenceslau Brás (SODRÉ, 1998,
p. 14).
Talvez seja por isso, dentre tantos outros fatores, que podemos observar com
certa facilidade (se olharmos por estas perspectivas) as inúmeras contribuições
negras para as diferentes musicalidades resultantes das diásporas africanas nas
Américas. E inclusive, veremos mais adiante que, nestas musicalidades afro-
17“Dizemos em ‘parte’, porque na realidade houve também influências melódicas e harmônicas africanas na
música brasileira (…)” Nota do próprio autor, Muniz Sodré.
33
diaspóricas, esse “conceito rítmico de organização” não será apenas “um pano de
fundo”, uma vez que ele estruturará, em inúmeros casos, as rítmicas das melodias e
os ritmos das conduções das harmonias e dos baixos — muitas vezes fazendo com
que as alturas se subordinem às durações — isto será muito nítido em músicas18 de
compositores como Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho), Moacir Santos,
Paulo Moura, Gilberto Gil e João Donato, por exemplo.
“Todo idioma é um modo de pensar, dizem Damourette e Pichon” (FANON,
2008, p. 39) é o que nos lembrou Frantz Fanon. Já dissemos anteriormente que é
possível traçar paralelos entre as linguagens verbal e musical, no entanto se faz
necessário que tenhamos certos cuidados para não cairmos em comparações
inadequadas ou falaciosas. Portanto eu adoraria lhes dizer que, a partir desta citação,
o ritmo neste caso seria o equivalente ao idioma nas linguagens verbais. Adoraria
poder dizê-lo, uma vez que isto encurtaria muito o árduo caminho das palavras que,
com muito custo, vão emergindo uma a uma por aqui. Adoraria, mas não posso. Não
posso porque esta analogia não nos contemplaria por completo, musicalmente. No
entanto, esta frase balizará os nossos próximos passos.
Já que estamos discutindo simultaneamente linguagem e música, me permitirei
fazer uso, através da linguagem escrita, de um recurso do discurso musical (muito
comum inclusive!): a repetição de um motivo... sim, embora este paralelo, da nossa
última citação de Fanon, não seja totalmente transponível para a linguagem musical,
devo admitir que esta idéia motívica nos é muito cara! Idéia motívica? Qual? Quem
aqui se lembra dela? Motivo… vos digo e repito:
18
Deixarei aqui como referência, o nome de uma obra de cada um dos autores citados, para que quem desejar
possa pesquisar e ouvir posteriormente. Procurei selecionar obras onde o ritmo está muito longe de ser apenas
um “pano de fundo”.
Seu Lourenço no vinho (Pixinguinha), destaque para a gravação do disco “Na Lapa” de 2004 do músico Nicolas
Krassik; Coisa nº1 (Moacir Santos), do disco “Coisas” de 1965; Tarde de Chuva (Paulo Moura), destaque para a
gravação do disco “Dois Irmãos”, gravado em duo com o músico Raphael Rabello; Babá Alapalá (Gilberto Gil),
destaque para a gravação do disco “Refavela” de 1977; e por fim a música “Patumbalacundê” (João Donato),
destaque para a gravação do disco “Lugar Comum” de 1975.
34
Compartilho com os leitores duas abordagens distintas (dos autores Muniz
Sodré e Kazadi wa Mukuna) que demonstram que os modos19 de se estruturar,
arquitetonicamente, o ritmo, revelam modos próprios do pensar de africanos e
afrodescendentes. Lembrando que estes “modos próprios” pertencem aos campos da
cultura, pois é evidente que não pretendemos nem essencialiazar e nem encerrar as
populações africanas e afrodescendentes dentro das categorias biológicas, estes
“modos próprios” são frutos da cultura e não da biologia.
19
Veremos mais adiante parte destes modos de estruturar e pensar o ritmo.
20
Em todo este parágrafo “um” será utilizado com o sentido de artigo indefinido, portanto não tem
significado quantitativo, numérico.
35
um modo africano de pensar o ritmo; c) há um conceito de organização africano; d)
estes modos africanos de pensar podem organizar, africanamente, o ritmo;
Aqui cabe uma observação, acabamos de utilizar acima, por diversas vezes, a
palavra “um” (nos trechos que dissemos “um modo” e “um conceito”). Em todos estes
casos, a palavra “um” fora utilizada com o sentido de artigo indefinido, portanto esta
mesma palavra (que por razões didáticas resolvi grifá-las no parágrafo anterior) não
possui aí significado quantitativo, numérico, pois para se pensar e olhar para as
culturas africanas e afrodescendentes todo plural será pouco para dar conta de tanta
diversidade.
Dando continuidade aos exemplos e análises, sigamos… Se em Mukuna o
conceito rítmico é africano, em Sodré este modo de pensar poderá ser tanto africano
quanto afro-diaspórico:
Nesta citação de Sodré, vemos que “as forças desse processo sociabilizante
dos negros na diáspora” possibilitou à população escravizada construir e reconstruir
suas diversas culturas. Resistindo, transcendendo e transgredindo os mais diferentes
e adversos contextos de opressão. Este “processo sociabilizante” ocorreu de uma tal
forma que se tornou perceptível e evidente as semelhanças entre manifestações
culturais da Afro-América21 e de certos lugares de África. Lembrando que estas tais
semelhanças podem ser melhor compreendidas se levarmos em consideração as
origens culturais das quais elas são descendentes. Um exemplo disso é o próprio livro
que estamos citando de Kazadi wa Mukuna. Nele o autor investiga e demonstra as
contribuições dos povos africanos, pertencentes ao tronco linguístico Bantu, para a
música popular brasileira.
21
Todos os lugares do continente Americano, incluindo suas ilhas, onde houve e há influências culturais de
africanos e afrodescendentes.
36
Levando em consideração que os Bantu — assim como outros grupos étnico-
culturais africanos que foram escravizados — foram retirados à força de seus locais
de origem e foram espalhados — em diferentes proporções demográficas e em
diferentes tempos — por diversas regiões do continente americano, conseguiremos
notar as semelhanças entre as manifestações culturais que possuem uma maior
influência de um determinado grupo étnico-cultural, que no caso do nosso exemplo
em questão seria o grupo Bantu.
Estas semelhanças não estão subordinas às divisões e fronteiras que dizem
respeito aos estados-nação.
Dessa maneira podemos conectar o que foi dito acima por Stuart Hall e o que
já nos dissera Muniz Sodré. Este utiliza como exemplo as semelhanças entre lugares
como Congo Square (em New Orleans), e a Praça Onze (no Rio de Janeiro), que a
partir de Hall podemos compreender ambas as praças como sendo “zonas de
contato”. Algo que também é importante frisar é: as semelhanças entre os processos
sociabilizantes que ocorreram nestas praças, tão distantes geograficamente, podem
ser compreendidas, dentre tantos outros fatores, a partir do fato de que em ambos os
lugares houvera uma grande concentração (mas não com exclusividade) de africanos
pertencentes ao tronco linguístico Bantu, portanto tais semelhanças não são mera
coincidências.
37
Algo que será apresentado, tanto por Sodré quanto por Mukuna, são as
estruturas rítmicas cíclicas. No primeiro será apresentado da seguinte maneira:
Vemos aqui que, para Sodré, estas estruturas que se repetem ciclicamente
estão intimamente ligadas às visões e cosmo-visões africanas e afrodescendentes
sobre a vida e a morte. Tais estruturas cíclicas já foram abordadas por diferentes
pesquisadores, recebendo inclusive diferentes denominações. Deixarei aqui apenas
uma parte destas denominações.
38
referência tanto para as polirritmias quanto, em alguns casos (como no samba,
maracatu, ijexá, baião, e etc.), balizar as rítmicas presentes nas melodias e nas
conduções harmônicas. Com isso não quero dizer que todos tocarão esta mesma
célula. Certamente, para quem faz uso deste modo de pensar, ou estaremos tocando
esta célula guia (também chamada de clave, termo que tenho preferência), ou se está
tocando outras células que dialoguem com ela. Vale lembrar que estas células,
embora se repitam em ostinato, sofrem pequenas variações ao longo das inúmeras
repetições.
Funcionalmente, o ciclo [rítmico], (…) serve não só para dar um pano rítmico,
como também para marcar uma divisão do tempo (time line), a que Nketia se
refere como um ponto de referência constante pelo qual a estrutura da frase
de uma canção, assim como a organização métrica da frase, são conduzidas.
Nas canções de samba, esse padrão combina muito bem com as divisões
das frases na linhas melódicas. Para cada segmento melódico, há um ciclo
rítmico completo (MUKUNA, 2000, p. 104).
Algo muito interessante sobre estes ciclos rítmicos, time lines ou claves é que
frequentemente são executados nos instrumentos mais agudos. Mukuna comenta que
nas instrumentações de samba o ciclo rítmico “é frequentemente dado pelo tamborim
na orquestração de percussão, ou pelo cavaquinho na orquestração com instrumentos
de corda”.
Por desconhecer uma bibliografia que fale especificamente do que pretendo
dizer, peço licença aos leitores para dizer a partir das vivências, aprendizados e
experiências que tive ao longo de minha vida convivendo e aprendendo com grandes
mestres e mestras que muitos deles — talvez pelas disputas de narrativas ou pelo fato
de que à certas classes ainda não fora possível se apropriar dos meios e modos de
produção ao ponto de podermos, nós mesmos, produzir e registrar nossas próprias
memórias, a partir de materialidades como filmes, discos, livros, quadros, fotografias
e etc. —, simplesmente não existem nas historiografias oficiais.
Ao pensarmos a orquestração dos instrumentos de percussão no samba
teremos uma divisão muito conhecida pelos sambistas. Os instrumentos serão
divididos em três funções:
1. Marcação: instrumentos encarregados de marcar o pulso, a métrica. No
samba esta função normalmente é executada por instrumentos graves, como o surdo.
2. Condução: no samba, normalmente o pulso é subdivido em quatro partes
iguais, e os instrumentos de condução são os encarregados de executar estas tais
39
subdivisões da métrica. Esta função normalmente é executada por instrumentos
agudos tais como os ganzás e as platinelas (pequenos pratos presemtes nos
pandeiros).
3. Corte: função de “cortar”, “costurar” a métrica. Se nos instrumentos de
marcação as rítmicas reforçarão a métrica (cometricidade), nos instrumentos de corte
será comum encontrarmos frases que ora podem enfatizar os “tempos”, ora podem
enfatizar os contratempos (contrametricidade). Será no naipe de corte que
conseguiremos localizar os instrumentos que tocam as claves. Vale lembrar que corte
e clave não são sinônimos, mas as claves geralmente cumprem esta função de “corte”.
Se por um lado as claves serão mais comuns nos instrumentos agudos, o mesmo não
poderá ser dito dos instrumentos de corte, pois estes últimos poderão ser graves
(surdo de corte), médios (rebolo, repique de anel, repique de mão, repinique) ou
agudos (tamborim, agogô, palmas).
Ao transpormos este modo de pensar para os instrumentos de cordas, que
muitas vezes mimetizam os instrumentos de percussão, veremos que muito desta
orquestração será respeitada.
A marcação, será executada por instrumentos graves (contrabaixo) ou pela
parte grave dos instrumentos (cordas graves do violão); a condução será executada
por instrumentos agudos como os cavaquinhos; e o corte poderá ser executados por
diversos instrumentos, como banjos (geralmente afinados como os cavaquinhos),
cavaquinhos e cordas agudas dos violões.
Sobre os ciclos rítmicos, Mukuna nos dirá o seguinte:
figura 1.
figura 2.
40
(MUKUNA, 2000, p. 104).
Algo que é muito comum aos ciclos rítmicos é o que o Simha Arom chamou de
“imparidade rítmica”.
Este fenômeno poderá ser observado em diversas claves (time lines). Seguem
alguns exemplos:
9 + 7
41
8 + 8
2ª. Os nomes (genéricos) dados aqui para um determinado ciclo rítmico, não
pretendem dar conta dos diversos usos destes nas musicalidades das diásporas.
Enfatizando mais uma vez, os nomes dados aqui são apenas e tão somemte
genéricos; um exemplo de que um nome, muitas vezes, não conseguirá dar conta das
manifestações musicais e culturais da diáspora é o próprio ciclo rítmico apresentado
por Mukuna na figura 1. Esta mesma célula fora encontrada na Zâmbia com o nome
de kachacha e documentada por Kubik, porém com a ordem da imparidade rítmica
invertida à do samba, em outras palavras, o ciclo kachacha fora agrupado em 9+7 e
o ciclo do tamborim fora agrupado em 7+9. Já em Sandroni, em pesquisa posterior a
de Mukuna e Kubik, a mesma célula do tamborim fora chamada de paradigma do
Estácio. Se numa perspectiva diaspórica, como dito por Stuart Hall, os Estados-nação
não nos são úteis para pensarmos as trocas culturais das diásporas negras, será que
nos seria útil pensar as múltiplas complexidades do samba a partir de um bairro do
Rio de janeiro (Estácio de Sá)?
Voltando ao Kazadi wa Mukuna, outro termo utilizado por ele, e que é muito
interessante para esta nossa pesquisa, é o “símbolo do ritmo”
42
Ao olharmos para os vastos repertórios das diásporas negras, é possível
encontrarmos inúmeros exemplos em que os ciclos rítmicos estarão intimamente
ligados aos “símbolos do ritmo”, de modo que em muitos casos a célula que compõe
a time line será a mesma que poderá simbolizar o ritmo. Mas para além disso, outro
aspecto importante deste conceito é que o símbolo do ritmo pode nos fazer olhar com
mais atenção para as hierarquias das alturas, presentes nos instrumentos de
percussão (que poderão ser mimetizados nos instrumentos melódicos e harmônicos)
e que serão fundamentais para certos ciclos rítmicos. Para citar alguns exemplos, esta
hierarquia de alturas será perceptível nas estruturas das claves do partido alto e do
ijexá, por exemplo. Em ambos será preferível que a clave seja executa em um
instrumento que possa produzir duas (ou mais) notas com alturas diferentes (sendo
assim uma mais grave que a outra). Portanto veremos com freqüência a clave do ijexá
sendo executada no agogô que, com suas duas campanas, consegue atender a
especificidade desta clave que simboliza o ritmo; outro exemplo será a clave do partido
alto, que poderá ser vista sendo executada em instrumentos como o pandeiro de corte
e/ou a cuíca.
Uma outra abordagem para este conceito é pensarmos os usos criativos que
ele pode nos proporcionar. Poderíamos tentar, por exemplo, buscar manter os vários
“traços de identidade”, como nos dissera Mukuna, que compõem o símbolo de um
determinado rítmo, no entanto alterando quantidade total de pulsos. Por exemplo:
partindo de um ritmo de 16 pulsos do tipo 7+9, poderíamos buscar manter grande
parte de sua identidade, porém reduzindo a quantidade total de pulsos para 12; uma
estratégia possível seria agrupar os 12 pulsos em 7+5, utilizando este 7 como um
ponto em comum entre os ciclos de 12 e de 16 pulsos.
O que esses exemplos sugerem é que a cultura não é apenas uma viagem
de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura
é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu ‘trabalho
produtivo’. Depende de um conhecimento da tradição enquanto ‘o mesmo em
mutação’ e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse ‘desvio
através de seus passados’ faz é nos capacitar, através da cultura, a nos
produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não
é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades
culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre
em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia,
de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 44).
43
Já nos dissera o filósofo Jean-Paul Sartre: “Não somos aquilo que fizeram de
nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”. O fato é que nos colonizaram,
resta-nos apenas fazer algo com isso.
44
REFERÊNCIAS
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45
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0Amor%20Com%20Um%20Negro%20Sem%20Se%20Cansar%20de%20Dany%20
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47
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procissão ao teatro no círio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
48