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CARTA ACF

ÉTICA E TERAPÊUTICA

Jorge A. Pimenta Filho

“Ao contrário do que pensa o senso comum


sobre psicanálise, à existência do inconsciente
não desculpa o homem de seus atos. Não se
admite, neste campo, um “não fiz isto, foi meu
inconsciente”.1

Coloquemos de início o seguinte: será o objetivo da psicanálise ofertar ao sujeito o Bem, sua
felicidade? E ainda: mas não é isso que o paciente (analisando) vem buscar no dispositivo
analítico?

Vamos primeiro discernir o que entendemos por ética a partir da psicanálise. Lacan dedicou
um ano inteiro de seu Seminário para trabalhar esse tema (1959-1960). A ética pensada a
partir da psicanálise não é da mesma ordem daquela distinguida pelas profissões ou os
ofícios: aquilo que normalmente é definido como a deontologia. Como a deontologia do
médico, a do dentista, por exemplo, que são definidas por um código de regras. A ética para
a psicanálise se define ou concerne ao desejo dos seres falantes e do real do gozo que o
determina. A ética está, assim, intimamente associada, a descoberta freudiana do
inconsciente e do desejo indestrutível que exige satisfação imperiosa.

A ética concerne às ações dos indivíduos, sendo a arte de dirigir a conduta, ou como definido
pelo Dicionário Lalande de Filosofia: é a ciência que toma como objeto os juízos de
apreciação qualificados como bons ou maus. Assim toda ética apresenta um ponto a partir do
qual é possível admitir-se um juízo de apreciação – ponto a partir do qual serão traçados os
meios para atingir os objetivos que se visa alcançar.

II

Aristóteles – em sua Ética a Nicômaco, distingue que toda a ação tende para um bem último
que constitui seu objetivo: o Bem Supremo, o que é compreendido como aquilo do alcance
da felicidade. Ele pensava esse bem a partir da contemplação – o que chamou de teorética,
que ao se bastar a si mesma, possuía plena suficiência. Esse bem supremo relacionava-se ao
ofício do sábio, que ao ser um homem feliz, segundo propunha Aristóteles, não necessitava
mais do que o mínimo de tudo que era material – pois a atividade do trabalho, considerada
indigna para o senhor, ficava restrita ao escravo. São Tomás de Aquino retoma de certa
forma essa ética, elaborando a noção de beatitude – que é a contemplação, vista de outra
maneira. Então no lugar do Bem Supremo de Aristóteles ele coloca Deus e propõe a
beatitude como nada menos que a abolição do desejo. Então temos aqui éticas da
completude voltadas para o alcance de um bem supremo que prometem o máximo de prazer
onde nada mais há que desejar. O que as religiões, por exemplo, distinguem como o objetivo
último: a verdade inteiramente revelada.

E a psicanálise? Com relação a esse serviço do bem Lacan é taxativo: “Uma parte do mundo
orientou-se resolutamente no serviço dos bens, rejeitando tudo o que concerne à relação do
homem com o desejo...” e ainda: “Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado,
pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo. Essa proposição,
aceitável ou não em tal ética, expressa suficientemente bem o que constatamos em nossa
experiência. Em última instância, aquilo que o sujeito se sente efetivamente culpado quando
apresenta a culpa, de maneira aceitável ou não pelo diretor de consciência, é sempre, na
raiz, na medida em que ele cedeu de seu desejo”.2

Com a psicanálise aprendemos que o Bem Supremo, a verdade inteiramente revelada, a


completude é da ordem do imaginário, pois o sujeito é desde sempre marcado pela falta,
falta-a-ser: seu complemento está perdido para sempre. O objeto que poderia trazer
satisfação ao sujeito completando-o, proporcionando-lhe satisfação total – é o objeto
proibido pela lei que barra o incesto: Das Ding – a Coisa. Coisa inominável que está fora dos
significantes, mas que se articula à primeira experiência de satisfação, construída
logicamente por Freud. Esse é um ponto interessante porque mesmo proibida a Coisa – o
aparelho psíquico tende a buscá-la.

É em relação a essa Coisa original, alheia ao sujeito, que se forma a orientação subjetiva, ou
seja, a fantasia fundamental que sustenta seu desejo e que se encontra determinada pelo
que Freud chamou de a etiologia da neurose. O bater de cara primeiro com a Coisa é uma
outra maneira de falar do encontro com o real do sexo.

III

Se nos situamos na clínica vemos que no caso da histeria trata-se de um encontro de caráter
desprazeiroso marcado pela indiferença, aversão ou nojo, por exemplo. Na neurose
obsessiva esse encontro é prazeroso, em demasia. A partir daí, no caso da histeria o afeto
ligado à representação é somatizado e a representação do encontro recalcada, e na neurose
obsessiva em seguida ao prazer, advém uma auto-recriminação que nada mais é do que a
manifestação da lei marcando a Coisa como proibida, que será desinvestida para dar lugar à
idéia obsessiva.

Na paranóia, Freud deduz que o encontro com a Coisa é também marcado por um prazer
demasiado, só que o sujeito não acredita na auto-recriminação e a projeta no Outro dando
assim a origem à desconfiança e à perseguição. O que apreendemos nas três modalidades
clínicas é a divisão, a esquize que se produz no sujeito com respeito ao encontro com o sexo.
Essa esquize, segundo Lacan “constitui a dimensão característica da descoberta e da
experiência analítica e nos faz apreender o real como originalmente mal-vindo”. O que
governa o sujeito, não é, pois o Bem Supremo, mas o que se concerne a Das Ding, à Coisa.

A psicanálise não é, pois, uma técnica da felicidade; sua ética, o que rege o ato do analista,
não pode sustentar-se em nenhum suposto Bem supremo. Isto implica que o analista não
responda a demanda do analisante, a nenhuma – pois todas são demandas de
complementação – para fazê-lo experimentar a falta e o impossível de uma satisfação total.
Impossível a ser dito, pois a Coisa que comanda está fora do dizível. A associação livre é
uma maneira de fazer surgir o desejo nas representações. Essa operação é uma tarefa do
analisante. A associação livre foi o dispositivo descoberto por Freud que consiste no
desenrolar das cadeias significantes do sujeito, sustentado pelo amor de saber dirigido ao
analista: a transferência. Desenrolar este que permite desatar os nós do recalque do
sintoma, cabendo, por sua vez, ao analista a direção da análise apontada para a construção
da fantasia fundamental no intuito de fazer o sujeito atravessá-la, ou seja, ir para além
desta. Se a fantasia é uma resposta do sujeito ao enigma do sexo que representa o desejo
do Outro, atravessá-la é experimentar o estado de desolação absoluta ou de desamparo -
Hilflosigkeit, ou seja, a mais completa solidão e a inexistência do Outro – S(A/). Esta é
uma conseqüência técnica na direção da cura proposta ética da psicanálise em sua premissa.
Não existe a possibilidade na psicanálise de se promover o Bem Supremo.

Lacan em seu Seminário sobre a ética extrai de Kant duas expressões para falar do Bem:
distingue das Wohl de das Gute.

Para Kant o bem é pensado de uma maneira radicalmente diferente (em relação a
Aristóteles): há uma autonomia da lei em relação ao Bem – o que era antes uma submissão
da lei ao Bem, passa a ser visto como submissão do Bem à lei. É o que ele, Kant chama de o
imperativo categórico. “O edifício da ética kantiana assenta por inteiro, no essencial, numa
única fórmula, a qual é resumida por Kant na Crítica da Razão Prática (Livro I, Cap. I, § 7):
“Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo
3
tempo como princípio de uma legislação universal”.

O das Wohl diz respeito ao bem estar, o prazer, o princípio da felicidade pessoal. Portanto,
é correlato ao princípio do prazer.

Pelo contrário, o das Gute, o Bem, um bem pleno e completo, renasce como objeto da lei
moral, que fundada na liberdade da razão, independe de toda a inclinação sensível. Articula-
se, portanto ao gozo, ao para-além do princípio do prazer. A faculdade de desejar superior
baseia-se no pressuposto de que o homem pode ser um ser puramente racional, pelo fato da
vontade que determina a ação deve ser livre, autônoma. A realização daquilo que é
moralmente justo só tem valor quando se faz por puro respeito à lei, por dever. Isso é o que
propõe Kant.

O imperativo categórico é um ato puro de enunciação; sem conteúdo. Lacan lembra que é no
momento em que o sujeito não tem mais nenhum objeto diante de si, que vai encontrar a
lei, na forma de uma voz na consciência, que é já um significante, um fenômeno. O objeto
da lei moral tem, deste modo, a mesma natureza que o objeto do desejo: ele esquiva-se,
não sendo nunca encontrado. A ética kantiana é a do recalcamento, submetendo o prazer à
universalidade.

Lacan apresenta-nos em seu “Kant com Sade”, o conceito de Vontade de gozo, como
equivalente da noção de pulsão (de morte) em Freud. O que Kant quer é um gozo superior, o
das Gute.

A Vontade de gozo é, assim, inerente ao imperativo categórico. “A lei moral é então uma
lei feroz que não admite desculpas – “podes porque deves” – e ganha por isso, o ar de
4
centralidade malfazeja, de uma indiferença malévola.” Sade em a Filosofia na Alcova
apresenta a Vontade de gozo que Kant esconde; mas também o objeto: os agentes do
tormento. É neste sentido que Lacan afirma que a Filosofia na Alcova de Sade completa e dá
a verdade da crítica de Kant. (conforme o seu “Kant com Sade”). “A grandeza da ética
kantiana está em haver formulado pela primeira vez, o “além do princípio do prazer” – o
imperativo categórico, que é uma lei do supereu que vai contra o bem-estar do sujeito, o,
mais precisamente, que é totalmente indiferente a seu bem-estar, que é, do ponto de vista
do princípio do prazer, seu prolongamento, o princípio de realidade, totalmente não-
econômico e não economizável, absurdo.”5

Vejamos, então, segundo Lacan, como poderia ser enunciada a lei moral ou o imperativo
sadiano:

Enunciação (DIZER) S(A/)--------$<>D

“Eu tenho o direito de gozar do teu corpo, pode-me dizer quem queira...
... e esse direito eu o exercerei sem que nenhum limite me detenha no capricho das exações

das quais eu tenho o gosto de saciar”.

Esta máxima respeita a enunciação kantiana e o modo como Lacan a coloca tem a vantagem
de a enunciar no lugar do Outro (...pode-me dizer quem queira...).

Enunciado (DITO) s(A)--------A


O desejo – se o tomamos a partir de Lacan, poderia ser chamado Vontade de gozo se,
frente a esta, ele não fosse impotente, já que ele parte submetido ao princípio do prazer. O
prazer fornece um objeto preciso ao desejo. Entre a pulsão e o desejo está a fantasia que
introduz uma miragem de gozo.

Conclusão

Situamos as psicoterapias no campo da Ética do Bem – pois ofertam, entre outros,


complementos, saberes suturáveis ao sujeito. A psicanálise é situada a partir do bem-dizer o
que circunscreve a relação entre o real e o sujeito, criando vias possíveis para o sujeito
tratar seu mal-estar. “O sujeito da psicanálise é plenamente responsável pela sua tristeza. É
justamente essa responsabilidade ética que lhe confere a possibilidade de percorrer o circuito
de seus significantes-mestres, desfazendo os grilhões imaginários de sua tristeza. Torna-se
possível, a partir daí, encontrar-se com o gozo de seu sintoma e abrir-se à contingência
radical do real, o que, se não garante o fim da Tristeza e a instauração da Beatitude,
6
permite, certamente, um modo original de autonomia na relação com o Outro e seu gozo”.

Jacques-Alain Miller7 ao falar do que nomeia o tormento do sujeito, diz que esse, ao não se
dispor em abrir mão da coerência de seus ditos, continua preso a essa coerência
atormentadora de seu sintoma, faltando ao dever ético da associação livre.

A associação livre como regra fundamental da psicanálise, constitui um convite a que o


sujeito da experiência tome distância da coerência, como condição de poder bem dizer da
verdade do sintoma que o invade. Assim a psicanálise valoriza mais o incoerente que o
coerente do sintoma e o consultório do analista é o lugar de se desfazer desses laços da
coerência do sintoma para na linha de um novo laço – transferencial, o sujeito, enlaçado não
ao analista, mas a esse lugar do desenlaçamento, buscar dar conta de seu sintoma e
elabora-lo.8

Concluindo com o que nos propôs Miller, podemos dizer que se a psicanálise permite a
“irresponsabilidade” quanto à coerência dos ditos, ela, por outro lado, estende o campo da
responsabilidade do sujeito, pois de nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis.

__________

O autor é Sociólogo, Mestre em Educação pela UFMG, Membro da Equipe de Saúde do


Adolescente do Hospital das Clínicas da UFMG, Analista Praticante e Aderente da Escola
Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano.

RESUMO:

O autor distingue a ética da psicanálise daquela das profissões – a deontologia. Retomando o


Seminário 7 de Lacan, mostra que a psicanálise não está dirigida a serviço do bem-estar,
como é proposto pelas psicoterapias, pois que essas ofertam saberes complementares
suturáveis ao sujeito. A psicanálise se situará a partir de um bem-dizer que concerne à
relação entre o real e o sujeito, criando-lhe vias possíveis para tratar seu mal-estar.

PALAVRAS-CHAVE: Ética, Bem, Bem-Estar, Psicanálise, Psicoterapias, Transferência.

Notas

1
VIEIRA M. A. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
2001: 116

2
LACAN, J. O seminário, livro 7 – A ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1988: p. 82 e 383

3
PEREIRINHA, F. Uma lei insensata? – Carta da ACF nº 13, Portugal, nov-dez/99.

4
ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem, Rio de Janeiro, Zahar Ed., p. 65

5
Idem, ibidem p. 66.

6
VIEIRA M. A. Op. cit. p. 154.

7
MILLER, J.-A. “Le Lieu et le Lien” – Deuxième séance du Cours, mercredi, 22, novembre , 2000.
Université Paris VIII, Saint Dénis, inédit.

8
Idem, ibidem.

http://members.tripod.com/jmpeneda/cartaacf/etica.htm

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