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A COMÉDIA DA MARMITA
PLAUTO

Textos Clássicos -- 22

A Comédia
Da
Marmita

Plauto

Introduçäo, versäo do
latim e notas de
Walter de Medeiros

Instituto Nacional de
Investigaçäo Científica

Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da
Universidade de Coimbra
Coimbra
1985

Transcriçäo para Braille:


Núcleo de Apoio
à Deficiência Visual
DREC
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Introduçäo

1. A História

Um dia em que andava a tra-


ficar na lareira (arranjos de
pobre, quem os faz? só o lavor
de suas mäos), Eucliäo en-
controu de repente o tesouro
que seu avô ali guardara, ha-
via muitos anos. Ficou-se a
contemplar, maravilhado, aque-
la panelinha acogulada de pe-
ças de ouro; e nem cuidou, na
sua turvaçäo, que fosse dádiva
divina, acomodada a outrem de
sua casa.
Pois era, realmente: a
prenda do Lar de Família pa-
ra Fedra, a filha especiosa
que floria aquele cepo velho e
maltratado. Os deuses, como
os homens, säo rendidos a quem
lhes faz a bichinha-gata sobre
o lombo; e Fedra, que o sa-
bia, amiudava de grinaldas e
libaçöes o altarinho do bra-
seiro. A moça näo tinha dote
(afora o rosto, espelho de
formosura) nem a virtude, que
perdera, sem culpa da vontade,
em uma velada pérfida de Ce-
res. Bem precisava, assim
mesquinha, que um deus benigno
a socorresse. E socorreu, co-
mo devia, na hora maior da
provaçäo.
Com aquele pai, a bem di-
zer, näo se podia contar: an-
dava a leste. E tanto que nem
tinha dado pela desonra da fi-
lha, grávida já de nove meses.
O sedutor era um rapaz de
sangue limpo que pretendia re-
mir a sua falta: minguava o
empurräo. Por isso ia adiando
e aguardando que a noiva lhe
fosse servida em uma bandeja
de prata. Fedra e a criada,
por sua vez, näo tinham aberto
boca: temiam Eucliäo. O ve-
lho era sisudo, de estampa an-
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tiga, afeito à disciplina do
trabalho e à dureza da vida:
näo o podiam descongelar, com
duas tretas, os verdes foga-
réus da mocidade.
Nos últimos tempos, para
mais, andava estranho, ermo de
sono, ora meditabundo, ora
agitado, estilo fala-só, e
presa fácil de iras repenti-
nas. Como a filha, por bons
motivos mal se via,
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era a criada que passava as
penas do inferno. Dez vezes
em um só dia, a pobre Estáfi-
la, já velha, ia parar ao meio
da rua, zurzida a bom zurzir
das fúrias do paträo: e näo
lograva descobrir, por mais
que futurasse, os motivos
reais de tanto despautério.
Eucliäo, esse sim, sabia mui-
to bem: era a obsessäo dos
olhos espreitadores, que es-
ventravam, como lanças, o ar-
cano daquela marmita abarrota-
da de ouro; e as moedas ex-
pluíam às rebatinhas, como o
cascalho de um muro esbarron-
dado; e todos podiam afundar
as mäos no seu tesouro inerme,
envilecido... A desolaçäo.
Ainda o pior é que tinha de
sair de casa, algumas vezes, e
de se apartar, uma hora ou
duas, da sua marmita bem-ama-
da. Mas como evitar esse
apartamento, logo naquele dia,
com dinheiro a correr, embora
pouco, em distribuiçäo de fa-
vor, uma moeda por cabeça?...
Toda a gente suspeitaria:
Eucliäo tem peças, lá por ca-
sa: já Lhe näo servem uns pa-
taquinhos... Pois que signi-
ficava tanta gente à sua volta
-- entäo essa bizarria? e a
família? Os teus negócios
correm de feiçäo? --, as sau-
daçöes afectuosas, as perlen-
das, tudo verbo-de-encher e
farelório, senäo o mel que
afoita as moscas varejei-
ras?... Por isso ia tomar se-
veras precauçöes: queria a ve-
lha de plantäo; a porta, bem
fechada; os vizinhos, com do-
no; do lume, nem tiçäo; a
água? levou sumiço; faca, ma-
chado, panela, almofariz --
tudo roubaram os ladröes. Até
a Boa Fortuna, se batesse,
devia ficar na rua desolada.

A Boa Fortuna, por sinal,


morava perto: em casa do rico
Megadoro. E queria ajudar, a
todo o custo, a moça desvali-
da. Seguindo, porém, à sua
moda, um trilho sinuoso.
Eunómia, a mäe do sedutor,
näo conhecia nem sonhava a
proeza do filho. Por isso, o
seu empenho, na altura, era
arranjar um casamento bom para
o irmäo. Bom -- quer dizer
com noiva rica e bem cotada;
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os anos... muitos ou poucos,
näo contam para o negócio.
Megadoro, para mais, já tinha
entrado na casa dos durázios:
ficava, se näo desempatasse,
maninho como o chäo depois da
salga. Assim, quando a irmä o
salteou, só resistiu para sal-
var a honra da bandeira. Os
solteiröes lá têm a sua hora,
em que se cansam de olhar para
o umbigo. Mas näo cedeu --
era demais -- ao bom partido;
nem quis, também,
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as bodas de aparato. É que,
para dizer a verdade, já tinha
a sua escolha. Quem era a
pretendida?... A filha de
Eucliäo, o pobretana. Eunó-
mia näo gostou -- mas entendeu
que era arriscado protestar.
Quem vitória alcançou, e näo
contava, respeite, ao menos, a
pele melindrada.
Megadoro foi logo inter-
ceptar (vinha da cúria) o
seu vizinho recatado. E mos-
trou-se caloroso, exuberante,
a técnica pior quando há sus-
peitas. Eucliäo, carrancudo,
arrenegava. Ai a criada --
espiona de um raio! -- que an-
dara a badalar! E acudiu à
defesa, queixou-se da penúria:
as terras, um sorvedouro; a
filha, já crescida, mas sem
dote... Megadoro, entusiasma-
do, aproveitou: com gosto lhe
oferecia ajudas a granel. E
Eucliäo, horrorizado, a re-
cuar... Até que desatou a
correr para casa: o ouro, o
ouro, quem o salvaria?...
Megadoro, quando ele vol-
tou, fez o pedido: com títulos
de família e de riqueza, pro-
messas de felicidade... Mas
Eucliäo näo abocou, formali-
zou-se: era uma afronta? ou
näo sabia que burros e bois
näo säo para misturar? E
quanto mais o ricaço argumen-
tava, mais o velho, rijamente,
advertia: "Dote näo há nem
ouro sonegado." E foi neste
ponto que sentiu, ao mesmo
tempo, um baque na terra e no
coraçäo. Alguém roubava a sua
marmita bem-amada!... Megado-
ro, paciente, ainda explicou:
"É o meu jardineiro no quin-
tal" -- mas já Eucliäo, fora
de si, tinha voado para casa e
conferia, pela milésima vez, o
ouro ameaçado.
Entre berros do anciäo
(essa língua, que ta corto,
Estáfila maldita!...), quei-
xumes do vizinho (mas estava
a caçoar?...), o casamento,
por fim, ficou tratado. E sem
tardança: para aquele dia!
Megadoro, com Pitódico, o
servo de confiança, seguiu pa-
ra o mercado, enquanto o ve-
lho, à porta de casa, intimava
à criada (nem a filha cha-
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mou) a sua decisäo. Estáfila
reagiu, apavorada, pediu adia-
mento: mas Eucliäo, peremptó-
rio, impôs silêncio e partiu
também a caminho do foro.

Pitódico foi o primeiro a


regressar. Trazia dois cozi-
nheiros, Antrax e Congriäo,
e os seus ajudantes, duas
flautistas, duas cestas de
provisöes e dois cordeiros. O
vinho estava para chegar.
Cortejo e mantimentos seriam
divididos: metade para cada
lado. Megadoro, na hora pró-
pria, agia em grande.
:,
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E Eucliäo? -- queriam sa-
ber os cozinheiros. Porque
näo fazia as despesas da bo-
da?... Porque näo havia
(Pitódico explicava) pe-
dra-pomes mais seca do que o
velho. Se até chorava o fumo
da chaminé, a água despendida
a tomar banho... E recolhia o
bafo que exalava, os cabelos
cortados, as aparas das
unhas... E apresentou queixa
ao pretor contra um milhafre
que lhe pilhara a almôndega da
ceia!... Milhentas histórias
para contar, se o tempo e o
lazer o consentissem.
Congriäo protestou, quando
o mandaram para casa de Eu-
cliäo: ali faltava todo o ma-
terial; o seu cordeiro, para
mais, era raquítico... Ora,
ora! Que mal-agradecido!
(Pitódico instruía.) Em
casa de Eucliäo, nada haveria
que roubar; e, em compensaçäo,
das duas flautistas, levava a
mais gordinha... Estáfila,
desobedecendo ao paträo, abriu
a porta; o inimigo entrou den-
tro da praça... Até se propôs
incendiá-la, por näo haver le-
nha para o jantar!

Eucliäo -- era de prever --


tornou depressa. Vinha indis-
posto do mercado. Em dia ex-
cepcional, homem excepcional:
tinha de fazer boa figura.
Mas viu os preços... ficou
arrepiado. Careza de vida!
Em vez de carne ou peixe
(quem lhes chegava?), com-
prou um punhado de incenso,
umas grinaldas de flores: o
deus Lar, sorridente, ia
abençoar o casamento de Fe-
dra.
Näo abençoava, lá isso näo,
o seu tesouro. Que escândalo
era aquele?... A porta escan-
carada, a gente a cirandar...
E a voz fatal: "Uma marmi-
ta maior, que esta näo dá!"
Era a liquidaçäo. Apolo sal-
vador, as tuas flechas!...
Correu alucinado. Dali a
pouco, pancadas, gritos e ge-
midos precediam a fuga, em
correria, do cozinheiro, dos
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ajudantes, da flautista. Con-
griäo ainda reagiu, de faca em
punho: mas tinha sido sovado a
bom sovar. E os outros todos.
Nem o galo, pecúlio de Está-
fila, escapou: pena de morte
-- por esgaravatar em terra
proibida. Outro espiäo, afi-
nal: tinha abichado uma gorje-
ta dos ladröes. Pobre marmita
cobiçada!... Em casa, näo. O
esconderijo tinha de ser alhu-
res.
Ia a sair, avistou Megado-
ro. O nubente vinha feliz da
sua escolha e do aplauso dos
amigos. Mulher sem dote é um
tesouro
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para o marido. As outras, à
força de exigências (só o
cortejo dos fornecedores!),
levam o paciente à bancarrota.
Eucliäo ouviu, ouviu, deli-
ciado (aquele Megadoro! de-
viam nomeá-lo prefeito dos
costumes femininos), depois
interveio para se queixar dos
cozinheiros ladröes, da flau-
tista beberrona, do cordeiro
esquelético... Quando o vizi-
nho, para desanuviar, lhe pro-
pôs vinhaça e borracheiras fi-
cou indignado: era outro laço
para o deitar a terra e pilhar
o ouro! Mas näo se deixaria
cativar: ia esconder a marmita
no templo da Boa Fé. E a
Boa Fé lha guardaria, melhor
do que ele sabia fazer.

Enganos sobre enganos. Os


deuses, como os homens, detes-
tam encomendas: preferem ras-
gar a sua própria estrada.
Eucliäo, toldado como andava,
tinha o mau hábito, execrável
de falar sozinho -- e de forma
bem clara, algumas vezes. À
porta do templo, fez uma últi-
ma advertência, sonora, à Boa
Fé. E o trêfego Estrobilo,
criado de Licónides, que an-
dava por ali ao mando do pa-
träo, a pescar notícias --
pescou aquela: sensacional.
Uma marmita acogulada de ou-
ro! Era preciso rastreá-la,
quanto antes. Enfiou-se no
templo, entusiasmado... mas
näo contava com os terrores de
Eucliäo. O velho ouviu um
corvo, do lado do bosquete: um
corvo a crocitar e a escavar a
terra. Sinais de mau agoiro!
Veio numa fúria, de coraçäo
queimado, a tempo de caçar
Estrobilo na pesquisa. Sob
um dilúvio de estorcegöes,
murros e pontapés, o escravo
foi arrastado para fora, in-
terrogado, revistado, arrepe-
lado. Uma mäo, outra mäo... e
a terceira?... Sim, a mäo das
roubalheiras! Aquele homem
estava alucinado. Larvas do
submundo ouravam-lhe a cabeça.
Agora, até já via a sombra de
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um cúmplice a mergulhar no
templo... Foi o processo de
largar a sua vítima. Mas näo
se bate assim num escravo ino-
cente!... O velho merecia uma
liçäo. E ia tê-la, bem de-
pressa.
Se a Boa Fé assim falhara
-- era uma deusa urbana, inça-
da de perfídia --, mais valia
implorar um deus dos bosques,
extramuros. Eucliäo lembrou-
-se de Silvano. Na sua mata
havia um salgueiral, profundo,
impenetrável, seguro como uma
caixa-forte... Bom esconderi-
jo para o ouro! O pior (näo
reparou) é que estava outra
vez a falar alto. E Estrobi-
lo, sempre à espreita,
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ouviu de novo. Correu como
uma flecha, trepou a uma árvo-
re do bosque... e foi um brin-
quedo para ele, quando o velho
abalou, desenterrar a presa.
Eucliäo perdera, por muito
acautelar, a sua marmita bem-
amada.
Licónides, entretanto, ti-
nha decidido agir. Um pouco
tarde, valha a verdade, mas a
tempo de evitar males maiores.
Näo tinha coragem de enfren-
tar o tio, foi pedir à mäe que
o fizesse por ele. Eunómia
ficou passada e desolada: ou-
tra esperança a desmoronar-se!
Também o filho näo soubera
eleger um bom partido. Aquela
moça era uma perseguiçäo: pri-
meiro o tio, agora o sobri-
nho... Mas, quando ouviu os
brados de Fedra -- era chega-
da a boa-hora --, näo teve
mais hesitaçöes: foi suplicar
a indulgência do irmäo. E
Licónides lá a seguiu, pouco
depois, envergonhado.

Correram alguns minutos. O


tempo de Estrobilo ressurgir,
jubiloso, com a marmita, gri-
tar o seu triunfo, e correr
para casa, a amochilar o ouro.
O tempo de Eucliäo reapare-
cer, desvairado, e urrar a sua
desgraça aos quatro ventos.
Uma desolaçäo de cortar a al-
ma. Parecia frenético. Agar-
ra de um lado, agarra do ou-
tro, quem poderia agarrar?...
Ninguém. Este mundo -- que
mundo!... Uma estrumeira.
Tudo gente velhaca e escar-
nenta. O seu viver... näo era
viver. Tinha desbaratado -- e
para quê? para nada! -- as
suas alegrias e tormentos.
Mandassem agora resistir: é
bom dizer... Ele é que näo
podia.
Um escarcéu dos grandes!
Licónides veio à porta.
Olhou, tremeu: era Eu-
cliäo!... Espada na garganta:
o velho descobrira a desonra
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da filha. Entre fugir e
aguentar... aguentou. Era o
culpado, vinha pedir perdäo.
O velho, surpreso, duvidava.
Culpado, aquele alfenim de
goma e cheiros?... Mas o ouro
é täo lindo... até os meni-
nos-bem se sentem enviscados.
Porque fizera aquilo? O vi-
nho e o amor -- eram os res-
ponsáveis. Aqui Eucliäo ar-
remeteu. O vinho e o amor?!
Barata feira, se o vinho e o
amor escusam ladroeiras!... E
ainda queria -- com licença do
dono -- conservar a presa ra-
pinada. Era demais. Masmorra
com ele e torniquete!... O
quiproquó
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durou assim, mais um bocado:
Eucliäo falava da marmita;
Licónides, de Fedra. Até
que o velho, depois de muito
vacilar, disse as palavras to-
das; e o jovem recuou, indig-
nado. Qual ouro, qual marmi-
ta!... Näo tinha roubado na-
da. Ou antes: tinha roubado
alguma coisa: daí a renúncia
de seu tio às bodas. A fúria
de Eucliäo subiu de ponto.
Uma renúncia, àquela ho-
ra?!... Com a mesa posta, tu-
do aparelhado?!... Raios par-
tissem Megadoro e mais os
seus contratos!... Por causa
dele é que a marmita ardera.
Näo, näo, o motivo era outro:
uma culpa. Uma culpa que era
preciso resgatar. E o jovem,
a medo, disse a verdade escu-
ra: nas festas de Ceres, Fe-
dra fora violada; o violador
ali estava, arrependido, e
confessava o seu pecado.
O velho urrou de novo.
Mais forte, mais fraco?...
Mais fundo, por certo. Licó-
nides, assustado, tentou com-
por o ramo. Havia um neto pa-
ra as bodas, näo estava com-
pensado?... Podia ir ver, lá
dentro, as contas batiam cer-
to... Eucliäo mal ouvia -- e
chorava. Nem protestou contra
o violador. Que derrocada à
sua volta!... Pesadamente se-
guiu o caminho de casa.

O resto, depois daquele


golpe, foi como o Lar previ-
ra. Os estremeçöes da crosta
no fim do terramoto. Estrobi-
lo, ufano do tesouro, decantou
a proeza, pediu a liberdade:
quando o paträo, de cenho car-
regado, mandou restituir, ain-
da tergiversou. Eram balelas,
näo tinha encontrado nada...
Mas o testemunho de Eucliäo
foi decisivo: era aquele Es-
trobilo, o ladräo do seu ouro.
O ouro que tornou, pouco
depois, às mäos desenganadas
de Eucliäo. O ouro que pas-
sou, logo a seguir, para as de
Licónides: Eucliäo queria
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ver feliz a sua filha, queria
ver feliz o seu neto. E que-
ria dormir, a sono solto, como
näo dormia há tantos anos.
Mas, aquela noite, o sono
havia de esperar. Era tempo
de banquete, tempo de alegria,
tempo de esquecer -- na vida
breve -- os erros do passado.
:,
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2. O Protagonista

O sangue de Eucliäo tinha


peçonha. Difícil de esvurmar,
porque era antiga. Correm as-
sim as chagas na família; e, à
força de trilhadas, se corrom-
pem. O pai, pior que pobreta-
na, era mesquinho: enxada em
punho, coraçäo na gleba, nunca
uma grinalda afeiçoou ao Lar
da sua casa. Mas o avô ainda
levava a palma: era o somítico
escarrado -- destes que nem na
morte se desfazem do bem que
aferrolharam. Era um tesouro,
para mais, luzente e caro.
Como o ganhou (labuta? acha-
do? herança?), näo vamos in-
dagá-lo: a panelinha ali esta-
va, encafuada nas pedras da
lareira; e o velho a desfilar,
por entre os dedos, aquela fa-
lange perfilada de filipos de
ouro. Já tinha os dias
cheios, a tumba encomendada:
mas nem um óbolo tirou para a
barca de Caronte; nem uma pa-
lavra disse ao filho sobre a
marmita bem-amada. Queria um
tesouro?... Bom remédio!
Cuspisse ao côncavo das mäos.
E assim partiu e o deixou es-
cravizado aos seixos do tor-
räo.
A avareza é como a sarna,
impertinente: dá para coçar em
muitas geraçöes. Mas Eucliäo
näo era igual ao pai e ao avô
-- embora a fama, como Pitó-
dico, o despintasse com cores
semelhantes. Porque Eucliäo
tinha uma filha. E essa fi-
lha, sem ele o pressentir, mu-
dara as coisas. O aroma da
casa, o coraçäo dos deuses, a
própria razäo de ser daquela
vida. O pai parecia ignorá-
-la, talvez ignorasse, como se
ignoram, de os ver todos os
dias, os móveis de uma sala:
mas, se alguém os transferir
ou mutilar, o protesto é vee-
mente -- e até irado. Estavam
lá. Como uma parcela, desta-
cada, do ser interior: que se
quer íntegro e preservado.
Ainda mais se for de carne.
Da nossa própria carne.
Eucliäo näo era um misan-
tropo. De poucas falas, isso
sim, e de uma parcimónia exas-
perada. Caricata, digamos o
termo, para gente de outra
formaçäo, que näo tivesse, so-
bre as costas, um fardo de es-
treiteza e privaçöes. Eu-
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cliäo, sem o tesouro, era
realmente pobre; e como tal
considerado entre os vizinhos.
Tinha uma casa, modesta, uma
nesga de terra, e nada mais.
O amanhä, numa leira de ossa-
das, é feito de incertezas:
louco seria quem näo se preca-
vesse. Mas ninguém o vira em-
barcado
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.he 17
em negócios escuros, para adu-
bar o magro passadio. Era um
cidadäo honesto, de bom conse-
lho, um pouco rude no trato,
mas capaz de ilustrar o seu
juízo com fabuletas do tempo
antigo. Um jeito que lhe fi-
cara de aldeäo, apesar de re-
sidir agora em uma praça de
Atenas. O mesmo jeito que o
levava a detestar aqueles cir-
cunlóquios e sofismas dos ur-
banos: ai tanto parlam, os
quebra-esquinas, que até engo-
lem, com as palavras, as mos-
cas e as nuvens que väo pas-
sando!...
Foi neste ramerräo de vida
dura que o tesouro caiu como
uma alcanzia de fogo. Eucliäo
ficou pávido e transtornado.
Já näo parecia o mesmo homem.
Perdeu o sono, perdeu o tino.
Passou de rude a apopléctico,
de recatado a solipsista. So-
vava a criada, falava sozinho
e pretendia que a sua casa an-
dava cheia de unhas rapinantes
e olhos espreitadores. Era a
obsessäo. O trauma de uma vi-
vência inesperada -- ouro e
mais ouro, a riqueza a bater
de rijo no peito de um mesqui-
nho. Extravagou. Mal se
atrevia a sair de casa: anda-
va, numa freima, a enterrar o
tesouro, a desenterrar o te-
souro, a ver se alguém bulira
no tesouro. E assim, de es-
tranho a desaustinado, baquea-
vam as pontes do real. Eu-
cliäo näo via a tristeza de
Fedra, Eucliäo näo via que
Fedra engravidara. O seu
mundo era outro, um mundo de
vesânia e suspeiçäo. Tudo
forrado a íris e gadanhos, que
o fascinavam e acuavam, como a
lâmina da faca a lampejar nas
mäos do assaltante. Aquelas
falinhas mansas, sorrisos de
embair, os votos refalsados,
um farelo de conversata vazia
ou insidiosa eram uma fateixa
arremessada ao ouro da marmi-
ta. Pobre marmita estremeci-
da, o pardalinho implume as-
sombreado pela águia predado-
ra! E Eucliäo sentia ternu-
ras maternais e acalentava ao
peito o seu tesouro como a
puérpera ao filho desejado.
Era um amor grotesco e dis-
solvente. Mas um amor que näo
chegava, para matar o outro --
o verdadeiro. Quando o vizi-
nho lhe pediu Fedra em casa-
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mento, Eucliäo ficou horrori-
zado. Pensou na marmita --
era um assalto ao seu tesouro!
corrida para casa a verificar
--, mas pensou também na sorte
da filha, que ia entregar a um
homem já velho e de mais alta
posiçäo. Näo o deslumbrava
(é significativo) o bom par-
tido, a riqueza de Megadoro,
a ucharia de um genro disposto
a prescindir do dote e a
:,
.he 18
assumir os encargos da boda.
Insistiu, pelo contrário, nas
condiçöes -- negativas -- do
enlace, a distância que vai
dos burros para os bois, a in-
capacidade para a preencher
(e aqui mentia) com os bens
de uma fortuna que näo tinha.
Era a vesânia -- näo se dis-
cute -- de afastar os outros
do tesouro, mas era também a
preocupaçäo -- larvada no
egoísmo, expressa no resto --
de evitar um casamento que
sentia inadequado, um casamen-
to que ia desertar-lhe a casa,
sem oferecer à requestada uma
contrapartida segura de feli-
cidade. Fedra -- só porque a
tinha ali ao pé -- era um bem
precioso que importava conser-
var: enquanto fosse possível,
pelo menos. Por isso hesitou,
contrapôs as suas razöes, ce-
deu a contragosto. (Depois,
havia de resignar-se e aplau-
dir aquele genro avisado e pé-
de-boi que se insurgia contra
as extravagâncias e caprichos
da mulher dotada.) Mas ti-
nha-lhe ficado a convicçäo --
bem definida -- de que devia
propiciar o deus da sua casa:
aquele era um matrimónio
abrupto e desigual. No merca-
do, rejeitou a carne e o pei-
xe: achava-os caros e näo con-
vinha, afinal, quebrar as re-
gras da sä economia. Mas näo
se dispensou, apesar disso, de
comprar uma pitada de incenso
e umas grinaldas de flores.
Despesa insignificante, sem
dúvida, mas de valor simbóli-
co, já que a oferenda se des-
tinava ao deus Lar da Famí-
lia, "para ele dar sorte a
Fedra no seu casamento" Mas
näo disse Fedra -- disse
*gnatae* "à filha querida do
seu coraçäo".
Eucliäo näo era um avaro
desarraigado dos laços da fa-
mília: Eucliäo era um pobre-
tana aturdido por uma riqueza
assolapada. O seu espírito,
sem descontinuar, criava vi-
söes, criava pesadelos. O ou-
ro acossado, o ouro assaltado,
o ouro espalhado nas pedras da
calçada. A obsessäo corria
para a possessäo: o demónio do
ouro a circular por todas as
veias e artérias. Mas, naque-
le momento, o mal era curável.
.he 18-19
O sonâmbulo estende os braços
-- e näo se sabe se quer evi-
tar o obstáculo ou encontrar a
mäo que o reconduza ao leito.
Eucliäo näo era um sonâmbulo:
Eucliäo era um obsesso. Pre-
cisava de bofetadas, três en-
contröes, um murro forte, na
arca do peito, para se liber-
tar. E as bofetadas, os en-
contröes, o murro forte vieram
de enfiada. Foi a salvaçäo.
Os cozinheiros dentro de
casa, o galo denunciante, o
brado de enregelar "Uma mar-
mita maior, que esta näo dá!"
:,
.he 19
-- foi o primeiro choque. De-
pois Estrobilo apanhado a es-
furoar no templo da Boa Fé,
a sombra que se esgueirava e
podia ser de um cúmplice --
foi o segundo. Por fim, o
roubo do tesouro, a demonstrar
que todas as precauçöes eram
baldadas, que o seu segredo
estava assoalhado, que o seu
viver naqueles meses era um
sudário de disparates -- foi o
terceiro.
Mas a pancada maior estava
para vir: e veio, quando menos
a esperava, direita ao cora-
çäo, onde a brecha do último
golpe sangrava ainda, encarni-
çada. Foi a notícia da deson-
ra da filha, daquela filha que
ele amava, daquela filha que
ele supunha acautelada, daque-
la filha que -- agora o enten-
dia -- era o bem maior da sua
vida. Eucliäo acordou, viu o
abismo -- e retraiu-se.
O resto é natural, como a
água que retoma o seu curso
depois das convulsöes da tem-
pestade. Diante da filha ma-
goada, do neto esberraçante
(o mundo -- teimam os recém-
-nascidos -- é feio e descon-
fortável), o coraçäo alancea-
do do velho reencontrou a paz
e o enternecimento. Que para-
lelo podia haver entre aquela
vida, pulsante e recatada, e o
seu tesouro, inerte e profana-
do? Mais valia ser pobre -- e
livre, como dantes. Feliz, se
possível, como o sapateiro da
fábula, depois de restituir o
ouro que, para ele, näo convi-
nha. Também Eucliäo se des-
fez do seu, quando o recupe-
rou. Era o dote da filha aca-
rinhada; a prenda do casamento
que apagava a mancha; o berço
do neto, bem macio, para ele
esquecer o choque com o mundo.
O deus Lar da Família sor-
ria satisfeito: os afectos da
casa tinham prevalecido.

3. Uma Espécie De
Moralidade

A carranca de Eucliäo de-


sapareceu: como uma máscara de
comédia que se pendura no su-
.he 19-20
porte e serve apenas para as-
sustar meninos. O velho podia
ir para a festa; e foi e sabo-
reou os pratos que lhe deram.
Até os queria mais condimen-
tados. Era a vida que ressus-
citava e retomava os seus di-
reitos.
E o outro velho, Megadoro,
que perdera a noiva para con-
tentar o sobrinho? Pois näo
se aborreceu -- é lícito agoi-
rá-lo. Aquele projecto (se-
rôdio) era uma bolha de sol-
teiräo: quando explodiu,
:,
.he 20
sarou. Ditoso o vemos, afi-
nal, nas bodas de Li-cónides.
O sobrinho casava rico: era
uma pena. Ou talvez näo.
"Bom Megadoro (di-ziam-lhe
os amigos), o teu pensar pre-
cisa de um retoque: o dinheiro
näo dá felicidade -- mas uma
marmita de ouro, ao canto da
lareira, ajuda muito à festa."
Informaçäo Complementar

1. Depois do achamento do
*Dyskolos* -- que ofereceu,
em Cnémon, o desenho esclare-
cedor de uma figura "parale-
la", embora muito diversa da
de Eucliäo --, parece difícil
recusar a Menandro a paterni-
dade do modelo da *Aulula-
ria*; mas alguns autores, como
Sandbach e Della Corte,
ainda se mostram reticentes ou
negativos a este respeito. A
comédia utilizada seria o
*Apistos*, no entender de
Webster e Gaister; uma das
duas (?) peças intituladas
*Thesauros* ou mesmo um hipo-
tético *Philargyros*, segundo
Ludwig: a *Hydria*, para
Kraus e Aloni. Nenhum dos
argumentos invocados pode, em
boa verdade, considerar-se de-
cisivo.

2. Os últimos estudiosos
que se têm ocupado da cronolo-
gia da *Aulularia* säo con-
cordes em situar esta comédia
no período da maturidade de
Plauto (entre 195, data da
ab-rogaçäo da *lex Oppia*
contra o luxo feminino, e 186
a.C., ano do senato-consulto
de *Bacchanalibus*: mais
exactamente entre 194 e 191
a.C., se *commutare coloniam*
do v. 576 aludir à institui-
çäo de numerosas colónias em
194 a.C., e as prováveis re-
ferências aos Gauleses nos
vv. 395 e 465-472 se expli-
carem com as campanhas dos
Romanos contra este povo, de
196 a 191 a.C.). A re-
quintada estrutura dos *canti-
ca* -- pouco numerosos, aliás
-- confirmaria essa dataçäo.

3. Com o mesmo nome


*Strobilus* aparecem na *Au-
lularia* dois escravos dife-
rentes: o do velho Megadoro,
que o paträo encarregou de
distribuir por duas casas -- a
de Eucliäo e a sua -- os co-
zinheiros, as flautistas e as
provisöes da boda (280-
-282); e o do jovem Licóni-
des, a quem o amo confiou a
missäo de espiar os movimentos
das pessoas das duas casas
(605), a fim de se tentar
impedir, na hora própria, a
realizaçäo do projectado casa-
mento. Mas os vv. 363-370
säo atribuídos, näo ao *Stro-
bilus* de Megadoro, como a
sequência pediria, mas a um
outro escravo, designado nos
códices por *Fitodicus*, nome
que o humanista Giorgio Me-
rula, responsável pela primei-
ra ediçäo do *corpus* plautino
(1472), emendou para *Py-
thodicus*. A soluçäo mais
simples do problema -- já
.he 20-1
adoptada, na esteira de
Dziatzko (1882), por Leo
(1895), e seguida por vá-
rios editores recentes (ex-
ceptuam-se, no entanto,
Ernout e Stockert) -- con-
siste em admitir
:,
.he 21
que Pitódico é o escravo de
Megadoro, e Estrobilo, o de
Licónides; um *retractator*
teria unificado abusivamente
os dois nomes, sem alterar, no
entanto, a atribuiçäo dos vv.
363-370, decerto porque a
mesma figurava em uma brevís-
sima cena insignificativa,
omitida na representaçäo
(Della Corte). Mas algu-
mas dúvidas subsistem: já sem
insistir na singularidade do
antropónimo aventado por Me-
rula (Schmidt preferia
*Philodicus*), *Fitodicus*
dos códices pode ser uma cor-
ruptela antiga: de uma origi-
nária final do v. 362 *eite
ocius* (Bader); de uma nota
marginal, *fit odiosus seruus*
(Duckworth); de uma indica-
çäo do realizador, *pythauli-
cis* sc. *tibiis* (Gaiser);
ou até da própria grafia de
*Strobilus* no cursivo do sé-
culo II da era cristä
(Ludwig, Handley). Além
disso, nos vv. 264 *Strobi-
le, sequere [<...>] strenue* e
334 *O Strobile subdole*,
em que *Strobile* deveria ser
substituído por *Pythodice*,
a liçäo dos códices parece
confirmada pela aliteraçäo.

4. Perderam-se as últimas
cenas da *Aulularia*, mas --
graças ao prólogo proferido
pelo Lar da Família, aos
fragmentos citados por Gélio
e Nónio, e às informaçöes
contidas nos dois argumentos
de abertura -- é possível co-
nhecer o desfecho da peça.
Nos fins do século Xv,
quando aumentava o interesse
pelas comédias latinas, o hu-
manista Codro Urceo, profes-
sor em Bolonha, redigiu, para
possibilitar a representaçäo
da *Aulularia*, um texto des-
tinado a suprir a parte desa-
parecida.

5. As imitaçöes -- por ve-


zes remotas -- e as simples
influências começam, no início
do século V, com a comédia
anónima *Querolus siue Aulu-
laria*, que, a despeito do ca-
rácter filosófico-religioso de
algumas cenas, correu com o
nome de Plauto e sugeriu, no
século Xii, uma reelabora-
çäo, em verso elegíaco, de
Vitale de Blois. Com uma
representaçäo no Quirinal, em
1484, se inaugurou a voga
desta comédia no Renascimen-
to: por esse tempo, Armonio
Marso imitava a *Aulularia*
em uma peça, o *Stephanium*,
escrita em latim; depois, a
figura de Eucliäo inspirava
os avarentos de *La sporta*
(1543) de G. B. Gelli e
*La Aridosia* (1536) de
Lorenzino de' Medici; esta
peça influenciaria, por seu
turno, Pierre de Larivey em
*Les esprits* (1579). O
odioso Shylock, de *O merca-
dor de Veneza* (1597), de
Shakespeare, e Filargaro, do
anónimo *Timon of Athens*
(c. 1600), revelam o conhe-
cimento da peça plautina.
Hooft seguiu as linhas gerais
da *Aulularia* na sua comédia
*Warenar* (1617); *The
case is altered* (c. 1597),
de Ben Jonson, manifesta a
influência simultânea dos
*Captiui* plautinos; em *The
projectors* (1664), de
John Wilson, há reflexos de
Plauto e de Ben Jonson.
Mas a mais famosa das imita-
çöes da *Aulularia* (caldea-
da embora com o aproveitamento
de várias peças italianas e
francesas, e observaçöes da
realidade do seu tempo) havia
de ser representada, pela pri-
meira vez, em 1667: é
*L'avare*, de Molière, que
com o seu Harpagon criou uma
figura imortal de autêntico
avarento, abominado e enganado
pelos próprios familiares.
Inumeráveis as traduçöes da
*Aulularia* em todos os paí-
ses de cultura greco-latina:
esta peça figura, logo após o
*Amphitruo*, entre as comé-
dias mais divulgadas de Plau-
to.

.he 29
A Comédia Da Marmita

Pessoas Do Drama (1)


por ordem de entrada

*O Deus Lar Da Famí-


lia*, que recita o Prólogo
*Eucliäo*, burguês pobre,
pai de Fedra
*Estáfila*, escrava de Eu-
cliäo
*Eunómia*, irmä de Megado-
ro, mäe de Licónides
*Megadoro*, burguês rico,
tio de Licónides e pretenden-
te a Fedra
*Pitódico*, escravo de Me-
gadoro
*Antrax*, cozinheiro ao
serviço de Megadoro
*Congriäo*, cozinheiro ao
serviço de Megadoro
*Estrobilo*, escravo de
Licónides
*Licónides*, filho de Eu-
nómia, sobrinho de Megadoro e
pretendente a Fedra
*Fedra*, filha de Eucliäo,
pretendida por Megadoro e
Licónides

E ainda, como figuras mu-


das, as flautistas *Frígia* e
*Elêusio*, e os moços ajudan-
tes dos cozinheiros.

Uma praça de Atenas. A


breve distância uma da outra,
no centro da cena, a casa de
Eucliäo, modesta, e sobre a
direita, a casa de Megadoro,
vistosa. Do lado da casa de
Eucliäo, no extremo da rua, o
templo da Boa Fé, com um
bosquete à volta. Diante da
casa de Eucliäo, um altar de
Apolo. A rua da direita leva
ao foro e à casa de Eunómia;
a da esquerda, às cúrias e ao
bosque de Silvano. (2)

.he 30
Argumento I

Um velho sovina, Eucliäo,


mal acredita nos seus olhos
quando encontra, enterrada na
própria casa, uma marmita a
abarrotar de dinheiro. Trata
logo de a sepultar de novo,
bem fundo; e, amarelento,
transtornado, passa o tempo
todo a vigiá-la.
Eucliäo tinha uma filha,
que Licónides desonrara. En-
tretanto, o velho Megadoro,
induzido pela irmä ao casamen-
to, vem pedir para si a filha
do sovina. Mau de levar, o
anciäo resiste, mas empenha a
sua palavra; e, temendo pela
marmita, tira-a de casa e vai
enfiá-la ora neste, ora naque-
le esconderijo.
Até que lhe arma uma espar-
rela o servo do tal Licónides
que desonrara a rapariga. Mas
o jovem acaba por pedir ao tio
Megadoro, que lhe ceda como
esposa a moça de que o rapaz
andava enamorado. E Eucliäo
-- que, pouco depois, à falsa
fé, tinha perdido a marmita --
vem a reencontrá-la, sem con-
tar e, todo satisfeito, conce-
de a Licónides a mäo de sua
filha.

Argumento II

Eucliäo encontrou uma mar-


mita cheia de ouro. Com todo
o afä se pöe a guardá-la, numa
inquietaçäo e num tormento.
Licónides desonra-lhe a fi-
lha. Megadoro quer casar com
a rapariga, mesmo sem dote; e,
para Eucliäo aceitar de bom
grado, oferece-lhe cozinheiros
e provisöes (para a boda).
Mas Eucliäo teme pelo seu
ouro e vai escondê-lo fora de
casa.
O escravo matreiro do vio-
lador, que tinha espiado tudo,
consegue larapiar a marmita.
Licónides, porém, conta a
proeza a Eucliäo; e este pre-
senteia o jovem com o ouro, a
esposa e o filho.

Estes argumentos -- que


aparecem, nos códices palati-
nos, à cabeça das comédias de
Plauto -- näo säo obra do
poeta nem do seu tempo. Foram
escritos, em senários iâmbi-
cos, por gramáticos dos sécu-
los seguintes; e o segundo
(neste caso; mas, às vezes, é
o único subsistente) reveste
a forma de acróstico.
A título excepcional, aqui
se däo traduzidos, visto con-
terem elementos úteis para o
conhecimento do desfecho, per-
dido, desta peça.

.he 31
Prólogo

*Sem rumor nem esforço, co-


mo accionada por uma força
misteriosa, abre-se de par em
par a porta da casa de Eu-
cliäo. Uma figura serena e
jovial, de alta estatura, pre-
enche o väo escancarado. Ves-
te uma túnica ligeira, cingida
por uma faixa cor de púrpura,
e traz na mäo o corno da abun-
dância. Depois de saborear
por instantes o efeito da sur-
presa, avança lentamente para
o proscénio. Na sua voz lím-
pida e desenfadada lateja a
segurança de quem está habi-
tuado a ver ao longe e ao per-
to: com igual clareza*.

O Deus Lar Da
Família (3)
*em toada amena*

Escusam de se admirar e
perguntar: "Quem é?..." Em
poucas palavras eu lhes vou
dizer.
Eu sou o Lar da Família
-- desta família de onde me
viram sair. (4)

*O tronco e o braço execu-


tam uma breve rotaçäo para
trás. Mas os olhos näo acom-
panham o movimento demonstra-
tivo: cintilam apenas, sem
desfitarem o público*.

5
Esta casa, há muitos anos
já que é meu senhorio e mora-
da: (5) para bem do pai e
do avô do fabiano que actual-
mente aqui reside.

*Um aceno discreto do pole-


gar mitiga o hieratismo da fi-
gura. É um contador de histó-
rias que se prepara, com bono-
mia, para cativar os seus ou-
.he 31-32
vintes.*

10
Realmente o avô deste tipo
é que me fez o pedido e me
confiou um tesouro... De ou-
ro, sim, senhor! Às escondi-
das de todos, no forro da la-
reira o foi enterrar; e de
joelhos me suplicou que lho
guardasse só para ele. Nem
quando estava para morrer
(tal era a esganaçäo daquela
alma!...), nem mesmo nessa
altura quis revelar o segredo
ao filho. Ao próprio filho,
vejam lá!...

*Abana a cabeça com desa-


grado.*
:,
.he 32
E preferiu deixá-lo na pe-
núria a mostrar-lhe o esconde-
rijo do tesouro. Isto a um
filho, hem!... (6)

*Pausa, a propiciar um re-


toque comedido, em nome da
verdade.*

Um campo -- foi o que lhe


deixou: uma leira de pouca
monta, para ir vivendo dela
com trabalho insano, à custa
de muitas privaçöes. (7)

*Suspiro breve sobre as


fraquezas humanas.*

15
Quando morreu este fulano
que me confiou o ouro, comecei
a observar se por acaso o fi-
lho me trataria com mais aca-
tamento do que tinha tratado o
pai. Pois a verdade é que ele
cada vez menos importância me
ligava e cada vez menos home-
nagens me prestava.

*Abre as mäos para mostrar


a consequência inevitável.*
20
Na mesma moeda eu lhe pa-
guei: que na mesma penúria ele
morreu.

*Nova pausa, agora de edi-


ficaçäo, para uso dos indife-
rentes. E é tempo de entrar
na última fase da história.*

Pois o tipo deixou este seu


filho -- o mesmo que agora
aqui habita --, retrato chapa-
do do pai e do avô.

*Abre um sorriso largo, de


complacência.*

25
O nosso homem tem uma fi-
lha, uma apenas. (8) E
ela, todos os dias (näo falha
um), lá está a reverenciar-me
com incenso ou com vinho ou
com alguma coisa do género; e
ainda me oferece grinaldas.
.he 32-3
Foi em atençäo a estas home-
nagens que eu fiz com que o
nosso Eucliäo descobrisse o
tesouro. (9) Assim, será
mais fácil dar a rapariga em
casamento, se o velho estiver
pelos ajustes.

*Rebaixa a voz ao tom da


puridade.*

30
É que a moça foi violada
por um jovem da alta-roda. O
jovem sabe quem é a moça que
ele violou, mas ela näo sabe.
E o pai, esse nem sequer sabe
que a moça foi violada.
:,
.he 33
*Com um ar lampeiro, apro-
xima-se mais da assistência.*

Pois eu vou fazer que este


velho de aqui de ao pé da por-
ta

*Aponta a casa de Megado-


ro.*

35
lhe peça a moça em casamento.
A minha intençäo é fazer que
o jovem possa, mais facilmen-
te, casar com aquela que vio-
lou. Porque o velho que a vai
pedir em casamento é tio, por
banda da irmä, do jovem que a
desonrou, na noite das festas
em honra de Ceres. (10)

*Brados exaltados e gemidos


no interior da casa de Eu-
cliäo. O Lar cala-se e fica
um momento à escuta. A alter-
caçäo continua e cobre em par-
te as palavras seguintes do
deus.*

Mas já lá está o velho Eu-


cliäo, dentro de casa, a le-
vantar o alarido do costume.
Vai empurrar a criada velha
para a rua, só com o medo de
ela apurar alguma coisa. Des-
confio que quer dar uma vista
de olhos ao ouro... Näo fosse
alguém palmá-lo!...

*O génio recua lentamente


para a porta, sempre de olhos
fitos nos espectadores. No
limiar, troca um sinal de in-
teligência com o público. De-
pois desaparece no interior da
casa. A porta fecha-se com a
mesma suavidade com que se
abriu.*
.he 34
Acto I

Cena I

Eucliäo Estáfila

*Cresce o rumor de vozes em


casa de Eucliäo. A querela,
agora, é à beira da porta. Os
gonzos gemem como se alguém os
esventrasse. Estáfila é pro-
jectada de escantilhäo para a
rua, e logo submersa num dilú-
vio de murros e pontapés do
amo que a repele.*

Eucliäo *furibundo*
40
Sai, já disse!... Vamos,
sai!...

*A velha, atordoada, resis-


te ainda e os golpes caem a
granel.*

Cum raio, tu tens de sair


daqui para fora, minha esqua-
drinhadeira dos olhos de fu-
räo!... (11)

Estáfila
*a arquejar sob a tormenta*

Mas afinal... porque malhas


numa desgraçada como eu?...

*Chovem mais pancadas sobre


a infeliz.*

Eucliäo
*encarniçado na tunda*

Para seres mesmo desgraçada


e levares uma velhice de mal-
diçäo, digna de uma maldita
como tu. (12)
Estáfila
*com a teimosia suicida
dos velhos*

Mas afinal... porque me es-


.he 34-5
corraçaste agora para fora de
casa?...

*O amo, crescendo para ela,


aplica-lhe duas bofetadas apa-
ratosas.*
:,

.he 35
Eucliäo
*de olhos fuzilantes*

45
E a ti é que eu hei-de dar
satisfaçöes, minha seara de
aguilhadas?... (13)

*Estáfila desiste de resis-


tir, mas desloca-se tropega-
mente ao longo da casa, sem
se afastar muito da porta. O
velho, enervado, aponta-lhe o
fundo da praça.

Para ali!... Desvia-te


desta porta!...

*Estáfila dá alguns passos,


lentos e rígidos, na direcçäo
indicada. O paträo, que lhe
segue os movimentos, abana a
cabeça, num misto de escárnio
e irritaçäo.*

Vejam-me aquilo, por fa-


vor... (14) É o que se
chama um andar em procissäo!

*Arremete de novo, como um


possesso.*

Mas sabes o que te vai


acontecer?... Se -- cum raio!
-- eu deitar agora as mäos a
um varapau ou a uma aguilhada,
eu te farei espaçar esse passo
de tartaruga!... (15)
Estáfila *entre dentes*

50
Antes os deuses me atirem
para a forca do que eu ande a
.he 35-6
servir em tua casa nestas con-
diçöes!...

*Era um murmurinho de de-


sespero: mas ao velho, que näo
destrinçou palavras, parece
logo um resmonear de ameaça.

Eucliäo *preocupado*

Ah, como aquela safada con-


sigo segreda sozinha!...
(16)

*Avança de dedos espetados


para o rosto da escrava.*

Esses olhos -- cum raio!


--, eu tos hei-de arrancar,
maldita, para me näo poderes
espiar no que eu ande a fa-
zer!...
:,
.he 36
*À força de cotoveladas e
safanöes, vai empurrando Es-
táfila para o extremo da pra-
ça.*

55
Arreda-te mais -- coa bre-
ca!... Mais -- coa breca!...
Mais... Alto! Aí é que de-
ves parar!... (17)

*Pára ele também, resfole-


gando forte. Obriga a escrava
a manter-se de costas para a
casa. Depois faz um aviso pe-
remptório.*

Se tu -- cum raio! -- saí-


res desse lugar um dedo tra-
vesso que seja ou a largura de
uma unha... (18) ou se
olhares para trás sem eu te
mandar... direitinha -- cum
raio! -- eu te irei entregar à
escola da cruz. (19)

*Recua para o meio da cena,


sem perder Estáfila de vis-
ta.*
60
Maior safada que esta velha
-- eu posso garantir que nunca
vi. (20) E tenho um medo
terrível dela... näo se ponha
a armar esparrelas ao meu des-
cuido... ou näo comece a fare-
jar o sítio onde o ouro está
escondido... Que até no ca-
chaço tem olhos, (21) o es-
tafermo!... (22)

*Pausa angustiada. Por


fim, uma decisäo.*

65
Agora vou ver se o ouro es-
tá como o escondi. Esse ouro
que, de tantas maneiras, ator-
menta um desgraçado como
eu!...

*Um último olhar para Es-


táfila, imobilizada e curva
diante da assistência. Depois
entra em casa e fecha imedia-
.he 36-7
tamente a porta.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena II

Estáfila

*A velha conserva-se imóvel


e de cabeça baixa, até sentir
o bater da porta. Entäo leva
as mäos à cabeça e exala um
suspiro desolado. A sua an-
gústia exprime-se em frases
entrecortadas, de nexo proble-
mático.*
:,

.he 37
Estáfila

70
Näo, palavra de honra...
Gostava de saber o que é que
deu ao meu paträo... que coisa
ruim... ou que maluqueira...
Mas näo consigo imaginar.
Pois é... deste jeito... a
uma desgraçada como eu... säo
vezes e vezes -- dez em um dia
-- que ele me escorraça de ca-
sa. (23)

*Mais calma.*

Näo sei, palavra, que fre-


nesis é que se apossam daquele
homem. Passa noites inteiras
sem pregar olho; outras vezes,
enquanto dura o sol, passa
dias inteiros assentado em ca-
sa... nem que fosse um sapa-
teiro manquitola!

*Mas havia outro problema


-- e era pior. A velha agarra
novamente a cabeça.*

75
Já näo consigo, näo... Co-
mo é que hei-de encobrir a de-
sonra da filha do meu paträo,
que tem o parto à porta?...
(24) Näo, já näo consigo
imaginar.

*E vem uma onda de desespe-


ro.*

Melhor saída näo tenho,


cuido eu, do que fazer de mim
uma letra...

*Leva as mäos à garganta e


pöe a língua ao dläo-dläo.*

... daquelas bem compridas,


quando apertar o meu pescoco
com o baraço. (25)
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena III
Eucliäo Estáfila

*Abre-se de novo a porta da


casa de Eucliäo. O velho
sai, visivelmente repousado e
satisfeito, de passo escotei-
ro, quanto lhe permite o peso
dos anos.
.he 38
Eucliäo

80
Ufa!... De alma desembor-
rada (26) -- era tempo --
eu posso sair de casa. Já ve-
rifiquei que lá dentro está
tudo a salvo... tudo.

*Vai direito à escrava e


abana-a.*

Agora, sim: torna lá para


dentro. E, lá dentro, vi-
gia!...

Estáfila
*com um ar mofento de
desforço*

Ah, porque näo?... Que eu,


lá dentro, vigie?!... Se ca-
lhar, para ninguém levar as
paredes?... Sim, aqui, na
nossa casa, näo há outro engo-
do para os larápios... täo
cheia está ela de cotöes e de
aranhöes!... (27)

Eucliäo *carranqueando*

85
Só me admira que, pelos
teus lindos olhos, Júpiter me
näo transforme no rei Filipe
ou em Dario! (28)

*A indignaçäo começa a re-


ferver.*

Bruxa, bruxa, três vezes


bruxa!... (29) Os tais
aranhöes, eu quero que mos vi-
giem. Sou pobre, confesso,
alombo com o fadário. O que
os deuses me däo... pois eu
aguento. (30)

*Pausa de mau humor.*


Vai lá para dentro, fecha a
porta. Daqui a pouco eu cá
.he 38-9
estarei.

*Chegou a hora das recomen-


daçöes. Eucliäo martela as
palavras.*

90
Livra-te de meteres algum
estranho cá em casa. (31)
Pode vir alguém pedir lume:
por isso eu quero-o apagado --
para näo haver razäo de alguém
to andar pedindo. Se o lume
estiver aceso, és tu que serás
apagada: em um abrir e fechar
de olhos.
E diz que a água se esca-
pou, se alguém a pedir.
(32)
:,
.he 39
95
Faca, machado, piläo, almo-
fariz... esses utensílios que
os vizinhos andam sempre a pe-
dir emprestados... vieram os
ladröes e levaram-nos -- é o
que tu hás-de dizer. (33)
Em suma -- na minha casa,
na minha ausência --, ninguém!
Näo quero que deixes entrar
seja quem for.

*Devia bastar: mas pareceu-


-lhe que faltava a hipérbole
de remate.*

E ainda te faço esta solene


advertência: se vier, näo a
deixes entrar.*

Estáfila *sardónica*

Caramba, tenho a impressäo


de que ela, por sua conta, se
livra bem de pôr os pés cá
dentro. Da nossa casa nunca
se abeira, por muito perto que
daqui ande. (34)

*Com o polegar designa a


casa de Megadoro.*

Eucliäo *de má sombra*

Cala-te e vai lá para den-


tro.

*A escrava encolhe os om-


bros e dirige-se lentamente
para casa.*

Estáfila

Pois calo-me e vou. (35)

Eucliäo *sempre preocupado*

Fecha a porta, vê lá, com


os dois ferrolhos. (36)
Daqui a pouco eu cá estarei.

*Estáfila entra em casa.


Rumor da porta que bate e dos
ferrolhos que säo corridos.
Eucliäo circula nervosamente
de cá para lá, sem perder de
vista a entrada.*

.he 40
105
Säo as penas do inferno que
eu sinto na alma, só por ter
de sair de casa. E -- cum
raio! -- é bem contra vontade
que eu saio.

*Paragem brusca: parece que


vai tomar uma decisäo.*

110
Mas sei o que devo fazer.
O nosso presidente -- o pre-
sidente da nossa cúria --
(37) anunciou que ia dis-
tribuir uma moeda de prata por
cabeça. (38) Se deixo a
moeda e näo a vou reclamar,
logo toda a gente -- tenho es-
sa impressäo -- vai desconfiar
que eu tenho ouro em casa.
Sim, näo é razoável que um
pobretana se desinteresse de
uma moeda, por poucachinha que
seja, ao ponto de näo a ir
buscar. (39)
*Com uma careta de mártir.*

115
Pois é... Quanto mais eu
escondo esta coisa de toda a
gente, com muito cuidado, para
näo saberem -- mais me parece
que toda a gente sabe. E toda
a gente me saúda com mais de-
ferência do que saudava dan-
tes. Vêm ter comigo... armam
tenda... däo-me apertos de
mäo... E fazem-me pergun-
tas... como é que vai a minha
saúde... que é que eu tenho
feito... de que negócios me
ocupo... (40)

*Suspiro fundo, de olhos


pregados na porta.*

Bem, agora lá vou para onde


me dispus a ir... Depois, pa-
ra casa outra vez: o mais de-
pressa que eu puder, ali me
virei recolher.
*Afasta-se a passo lento e
hesitante, olhando várias ve-
zes para trás, até desaparecer
pela esquerda.
::::::::::::::::::::::::::::::
.. :::::: linha 5
.he 41
Acto II

Cena I (41)

Eunómia Megadoro

*De casa de Megadoro saem,


pausadamente, Eunómia e o ir-
mäo. Eunómia olha várias ve-
zes, de soslaio, para Megado-
ro, no jeito de quem espreita
a melhor oportunidade para
sondar um terreno inseguro.
Mas o rosto de Megadoro es-
pelha uma bonomia plácida e
receptiva.*

Eunómia *entrando pela mansa*

120
Desejaria que tu, meu ir-
mäo, considerasses estas pala-
vras ditadas pela minha since-
ridade e pelo teu interesse:
como é justo da parte de uma
irmä que o seja de verdade.
(42)

*Megadoro acena um sorri-


dente e grato assentimento.
Eunómia sente-se animada a
prosseguir e embarcar num gra-
cejo tradicional.*

125
Bem entendido que eu näo me
iludo: nós temos fama de maça-
doras. Tagarelas de marca é o
conceito que granjeámos to-
das... e com razäo. E dizem
que mulher muda -- mas muda de-
veras --, foi coisa que nunca
se encontrou, nem agora nem em
tempo algum. (43)

*Megadoro abre mais o sor-


riso, que assume uma ponta de
irónica expectativa. Por isso
a irmä arrepia caminho e volta
ao intróito parenético.*

.he 41-42
130
Mas há uma coisa, meu ir-
mäo, que deves ter presente...
E é a seguinte: que tu näo
tens parente mais chegado do
que eu, nem eu do que tu. Por
isso é justo que ponderemos o
que convém a um e a outro...
que tu a mim e eu a ti nos dê-
mos conselhos e advertên-
cias... e näo andemos com ar-
cas-encoiradas nem a bichanar
entre dentes, por temor... an-
tes devemos partilhar confi-
dências com igual franqueza:
eu contigo e tu comigo.
:,
.he 42
*Pausa. Como a bonomia de
Megadoro perdura inabalada,
aquele prefácio podia termi-
nar.*

Foi por isso que, nesta al-


tura, eu te chamei cá fora, à
puridade: para conversar con-
tigo, aqui, de um assunto que
respeita ao interesse da tua
casa. (44)

*O irmäo reage com um gesto


de zombeteiro aparato.

Megadoro *efusivo*
135
Ora deixa cá ver essa mäo-
zada, mulher às direitas!...
(45)

*Eunómia, sorrindo, finge


procurar à sua volta.*

Eunómia
Onde está ela?... Quem é,
afinal, essa mulher às direi-
tas?...

Megadoro *caloroso*
Tu!...

Eunómia
*simulando incredulidade*
"Tu"?!... Foi o que dis-
.he 42-43
seste?...

*Megadoro retira a mäo que


estendera e coloca-se em ati-
tude de cómica defensiva.*

Megadoro
Bem... se dizes que näo...
eu digo que näo!...

Eunómia
*no mesmo tom de desenfado*

140
A um homem como tu, só fica
bem dizer a verdade... Mas
olha que mulher às direitas...
nenhuma se pode eleger. Caro
irmäo, säo todas umas piores
do que as outras. (46)
:,
.he 43
Megadoro *rindo*

Lá essa é também a minha


opiniäo. E posso garantir-te,
cara irmä, que nunca te vou
contradizer sobre esse pon-
to...

*Mas Eunómia acha que, pa-


ra brinquedo, já chegou. E
torna ao sisudo.*

Eunómia
Ora dá-me a tua atençäo,
por favor.

Megadoro *pressuroso*
Está às tuas ordens: dispöe
e manda, como te aprouver.

Eunómia *ainda hesitante*


145
Trata-se de uma coisa que
me parece excelente para a tua
vida... É um conselho que te
venho dar. (47)

Megadoro *com malícia*


Cara irmä, bem te conheço o
jeito...

.he 43-44
Eunómia *acudindo à deixa*

Pois eu gostava que o jeito


fosse feito!... (48)

Megadoro *na retranca*

Mas de que se trata, cara


irmä?...

Eunómia *mais determinada*

... De assegurar para sem-


pre a tua felicidade. Para
teres filhos... (49)
:,
.he 44
Megadoro *num pio alvoroço*

Praza aos deuses!...

Eunómia *com decisäo*


150
... gostava que te casasses.

*Megadoro, que estava pre-


cavido, simula, no entanto, o
atordoamento súbito de quem
sofreu uma agressäo.*

Megadoro *protegendo a
cabeça com ambas as mäos*

Ui, ui, agora é que eu es-


tou morto!...

Eunómia *surpresa*

Entäo porquê?...

Megadoro *mantendo o gesto*

É que -- pobre de mim! --


essas conversas abanam-me o
miolo. As tuas palavras,
irmä, säo pedradas!... (50)

Eunómia *insinuante*

Anda lá! Faz o que te pede


a tua irmä...

Megadoro *de olhos em vago*


.he 44-45
Pois se me der na bolha,
faço.

Eunómia *tornando à solfa*

E é para o teu bem...

Megadoro *zombeteiro*

... que eu dê o estoiro,


claro, antes de casar.
:,
.he 45
*Com agarotada desenvoltu-
ra.*

155
Bem, se alguma mulher me
queres arranjar, eu casarei...
nestas condiçöes: a que amanhä
vier... depois de amanhä a le-
vem a enterrar!... (51)
Nestas condiçöes, se alguma
me queres arranjar... pronto!
Prepara as bodas.

*A irmä sorri ao de leve,


para comprazer, mas näo o
acompanha, desta feita, na
graçola.

Eunómia
160
Até te posso arranjar uma,
meu irmäo, com um dote de alto
preço. (52) Mas já é en-
tradota... o que se chama uma
mulher de meia idade. Se me
autorizas, meu irmäo, a que eu
a peça para ti... eu vou pe-
dir.

*Megadoro abana a cabeça


com veemência, mas sem perder
o ar de bonomia.*

Megadoro
Näo me dás licença de eu te
fazer uma pergunta?...

Eunómia *intrigada*
Por quem és!... Pergunta o
que te apetecer. (53)
.he 45-46
Megadoro *risonho*
Vamos supor que um homem
passante da meia idade casa
com uma mulher de meia ida-
de... Se o velho -- por bam-
búrrio -- engravidar a ve-
lha... näo te parece que ao
menino está reservado o nome
de... Póstumo?!... (54)

*Eunómia, algo inquieta,


näo responde. E Megadoro en-
vereda pelo sisudo.*
:,
.he 46
165
Pois bem, cara irmä, essa
canseira eu posso tirar-ta ou
reduzir-ta. Por mercê dos
deuses e dos nossos avós, eu
sou rico bastante. (55)

*Com um movimento insofrido


de desdém.*

Essas parentelas de alto


bordo... com suas prosápias...
dotes espaventosos... escar-
céus... brados de comando...
carros de marfim... xailes de
aparato... vestidos de púrpu-
ra... näo me fazem mossa ne-
nhuma. Säo coisas que, pelos
gastos que envolvem, reduzem
os homens à escravidäo.
(56)

*Eunómia, com surpresa, ve-


rifica que o irmäo está mais
adiantado do que ela supunha.
E, movida pela curiosidade,
anima-se a fazer a pergunta
capital.*

Eunómia
170
Mas entäo diz-me lá, por
favor, quem é a mulher com
quem queres casar?...

*Megadoro hesita um momen-


to, mais por pudor que por
falta de convicçäo.*
.he 46-47
Megadoro

Pois eu vou-te dizer...


Conheces o velho Eucliäo...
que mora aqui ao pé... o po-
bretana?... (57)

*Aponta a casa do vizinho.*

Eunómia *apreensiva*

Conheço... Näo é má pes-


soa... valha a verdade.

Megadoro

Pois com a filha dele, que


é donzela, (58) é que eu
quero tratar dos esponsais.
:,
.he 47
*Eunómia ainda abre a boca
para objectar, mas o irmäo
corta cerce.*

Näo gastes palavras, cara


irmä. Já sei o que vais di-
zer: que ela é pobre. Pois
pobre é que ela me agrada.
(59)

*Eunómia está desolada: um


bom partido vinha mesmo a ca-
lhar... Mas o objectivo maior
fora alcançado. Näo insis-
tiu.*

Eunómia *suspirando*
175
Os deuses abençoem esta
uniäo!

Megadoro *sorridente*

Assim o espero também.

Eunómia *com voz átona*

Näo mandas mais nada, pois


näo?...

*Megadoro pousa-lhe a mäo


no ombro, como a escusar-se do
.he 47-48
meio desencanto que lhe cau-
sou.*

Megadoro
Saúde é o que te desejo.

Eunómia
E eu a ti, meu irmäo.

*Faz um breve aceno de des-


pedida e sai pela direita.*

Megadoro *de si para si*


Pois eu vou ao encontro de
Eucliäo... Pode ser que es-
teja em casa.
:,
.he 48
*Ouvem-se passos do lado
esquerdo. Megadoro afirma-
-se.*

Mas cá está ele!... Näo


sei de onde vem o nosso ho-
mem... Sei que se vem meter
em casa.
::::::::::::::::::::::::::::::
Cena II

Eucliäo Megadoro

*Entra Eucliäo, de cenho


carregado, sem reparar no vi-
zinho.*

Eucliäo
180
Bem me agoirava (60) o
coraçäo, ao sair de casa, que
as minhas passadas eram väs.
Por isso eu me ausentava con-
tra vontade. Nem um só dos
membros da cúria se dignou
aparecer; nem o presidente,
que devia distribuir o dinhei-
ro.

*Olha para a porta da casa


e vai estugando o passo.*

Pronto, para casa é que é o


caminho -- e a toda a pressa:
(61) porque eu ainda estou
aqui, mas o coraçäo está lá em
casa.

*Megadoro adianta-se um
pouco -- quanto basta para
cortar a passagem a Eucliäo.*

Megadoro *em voz sonora*

A saúde e a fortuna, Eu-


cliäo, te acompanhem sempre!
(62)

*Eucliäo estaca, desconfia-


do, e mede o vizinho de alto a
baixo.*

Eucliäo *friamente*

Os deuses te protejam, Me-


gadoro.

*Mas o vizinho, sem olhar à


reserva, ainda redobra de so-
licitude.*

.he 49
Megadoro

Entäo tu?... Bem dispos-


to?... A tua saúde, vai-se
portando como desejas?...

*Eucliäo volta o rosto para


a assistência: sombrio e sus-
peitoso, parece tomá-la como
testemunha.*

Eucliäo *à parte*
185
Näo é por obra do acaso que
um rico saúda com deferência
um pobretana. Aquele tipo já
sabe que eu tenho ouro: é por
isso que me cumprimenta com
tanta afabilidade.

Megadoro *insistente*

Entäo, diz-me lá: tens pas-


sado bem?...

Eucliäo *trejeitando amargo*


Caramba, lá muito bem näo
direi...
*Rola o polegar sobre o ín-
dex.*
... pelo que toca às massas.

*Megadoro dá uma topetada


no ar, com a desenvoltura do
homem rico.*

Megadoro
Caramba, se o teu coraçäo
se souber contentar, tens o
bastante para levares uma vida
asseada.

Eucliäo *à parte, cada vez


mais inquieto*

A velha -- cum raio!... --


deu sinal do ouro a este tipo:
é claro como a água. (63)
Pois vou já cortar-lhe a lín-
gua e arrancar-lhe os olhos,
lá em casa (64)
.he 50
*Tanto regougo em apar-
te!... Megadoro começa a fi-
car preocupado.*

Megadoro
190
Mas que estás tu a falar
sozinho?...

Eucliäo *para compor o ramo*

Da minha pobreza me lamen-


to. Tenho lá uma rapariga es-
pigada, sem chavo de dote nem
esperança de arrumaçäo...

*Coça repetidas vezes a ca-


beça*

É que näo vejo mesmo a pos-


sibilidade de a arrumar com
ninguém... (65)

*Megadoro, deslumbrado com


a oportunidade, acorre à dei-
xa, impetuosamente.*
Megadoro

Ora deixa-te disso!... E


trata de te animar, Eucliäo.
O casório arranja-se. Quem
te vai ajudar sou eu. Diz lá
se precisas de alguma coisa.
É só mandar. (66)

*Bizarrias a mais para um


ouriço crivado de suspeitas.
O vizinho recua três passos.*

Eucliäo *à parte*

195
Promessas näo faltam, na
hora dos assaltos. E abre ca-
da goela a ver se me papa o
ouro!... Em uma mäo traz a
pedra, na outra mostra o päo.
Näo me fio do ricaço que ba-
rateia finezas a um pobretana.
Quando lhe deita a mäo com
gentileza, é para lhe pespegar
ali algum quebranto. Bem os
.he 50-51
conheço eu, os polvos desta
laia, que, onde quer que to-
cam, nunca mais despegam.
(67)

*Megadoro aproxima-se e re-


toma o ar de circunstância.*
:,

.he 51
Megadoro
200
Ora dá-me atençäo um boca-
dinho. Em poucas palavras,
(68) Eucliäo, há um assun-
to que gostava de tratar con-
tigo: um assunto que interessa
a ambos -- a mim e a ti.

*Eucliäo deita um olhar de


terror para a porta de casa e
leva as mäos à cabeça.*

Eucliäo

Ai, ai, que desgraça a mi-


nha!... O meu ouro... lá den-
tro... deitaram-lhe os gada-
nhos!... (69) Agora o que
o tipo quer, já sei, é chegar
a um acordo comigo...

*Numa súbita resoluçäo.*

Mas ainda vou dar uma es-


preitadela à casa.

*Corre para a sua porta.*

Megadoro *surpreso*
Aonde vais?...

Eucliäo *sem se voltar*

Já venho outra vez ter con-


tigo. Tenho motivos para ir
dar uma espreitadela lá a ca-
sa.

*Entra e fecha a porta.


Megadoro passeia, contraria-
do, a meio da cena.*

Megadoro
205
Desconfio, palavra, que,
mal eu lhe tocar no assunto da
filha, para lhe pedir que ma
prometa em casamento, o homem
vai cuidar que eu estou a fa-
zer pouco dele... Näo há ou-
tro indivíduo, neste mundo, a
quem a pobreza torne mais re-
traído do que ele. (70)
:,
.he 52
*Rumor de gonzos. Eucliäo
reaparece, descontraído, à
porta de casa.*

Eucliäo *à parte*

Os deuses estäo a proteger-


-me: a coisa está safa.

*Fecha a porta e respira


fundo.*

Sim, uma coisa está safa,


quando näo sofreu nenhum de-
trimento... (71) Mas tive
um medo terrível. Antes de
tornar lá dentro, estava sem
pinga de sangue. (72)
*Aproxima-se novamente de
Megadoro.*

Aqui me tens outra vez,


Megadoro. Se te posso servir
em alguma coisa...

*Megadoro faz uma vénia po-


lida.*

Megadoro
Bem hajas!

*Pausa. Expectativa de
Eucliäo, embaraço de Megado-
ro.*

210
Ouve cá... Gostava de te
fazer umas perguntas... Näo
tenhas receio de me responder
.he 52-53
com franqueza. (73)

Eucliäo *desconfiado*

Desde que me näo perguntes


coisas a que me näo agrade
responder com franqueza...

Megadoro
Ora diz-me cá: qual é a tua
opiniäo sobre a minha família?

Eucliäo *na defensiva*


Boa.
:,
.he 53
Megadoro
E sobre a minha reputaçäo?

Eucliäo
Boa.

Megadoro
E sobre o meu procedimento?

Eucliäo
Näo é mau nem perverso.
Megadoro
A minha idade, sabes qual
é...
Eucliäo *com um vislumbre
de ironia*

Sei que é avultada -- como


as tuas massas.

Megadoro *sem acusar o to-


que*

215
Pois eu, em boa verdade,
sempre te considerei um cida-
däo limpo de toda a pecha de
malvadez. E como tal te con-
sidero ainda. (74)

Eucliäo *à parte, abanando


a cabeça*

O ouro... que cheiro que


deita a este tipo!...

.he 53-54
*A Megadoro, em tom inci-
sivo.*

Mas, afinal, em que te pos-


so servir?...

*Aquela reacçäo semiagreste


näo favorecia o requerente.
Megadoro avança a medo, ten-
teando o terreno.*
:,
.he 54

Megadoro
Bem, já sabes quem eu sou e
eu sei quem tu és... Pois
oxalá que a coisa redunde em
benefício para mim, para ti e
para a tua filha...

*Lê uma surpresa hostil nos


olhos de Eucliäo. E acelera
a fundo.*

Sim, é a tua filha que eu


peço em casamento. (75)

*Com mais destemor -- pois


que o grande passo estava da-
do.*
Promete que esta uniäo se
há-de realizar.

*Eucliäo, que foi carran-


queando mais e mais à medida
que o vizinho se adentrava na
proposta, acaba por deitar a
Megadoro um severo olhar re-
provador.*

Eucliäo
220
Eh lá, Megadoro, näo é
digno de ti este modo de pro-
ceder: vires troçar de mim, um
pobretana, que nunca te ofen-
deu, nem a ti nem aos teus!...
Da tua parte, nem por pala-
vras nem por acçöes eu mereci
que me fizesses a afronta que
me estás a fazer. (76)

.he 54-55
Megadoro *aflito*

Nem eu, palavra, venho fa-


zer troça de ti. Nem estou a
fazer troça. Nem a mereces, a
meu ver. (77)

Eucliäo *ainda magoado*

Entäo porque me vens pedir


a mäo da minha filha?...

Megadoro *com veemência*

225
Para que tu, graças a mim,
alcances maior vantagem na vi-
da. E eu também, graças a ti
e aos teus.
:,
.he 55

*Eucliäo fica pensativo.


Adivinha-se a luta interior.
Depois responde lentamente,
em toada parenética.

Eucliäo
230
Há uma coisa, Megadoro,
que me vem à cabeça... e é que
tu és um homem rico e bem re-
lacionado... E, também, que
eu sou um homem pobre... o
mais pobre dos pobres...
(78) Se eu te desse a mi-
nha filha... sabes o que me
vem à cabeça?... Que tu és o
boi e eu o jerico... Quando
eu estivesse atrelado conti-
go... quando näo pudesse
aguentar o peso em pé de
igualdade... lá ficaria eu --
o jerico -- esbarrondado na
lama... e tu -- o boi -- näo
me ligarias mais importância
do que se eu nunca tivesse
nascido.

*Pausa reconcentrada e
amarga.*

Por um lado, sobranceria da


tua parte... por outro, caçoa-
da da gente da minha classe.
Nem de uma banda nem de outra
eu teria um estábulo está-
vel... se por acaso houvesse
uma separaçäo. Os burros me
espatifariam às dentadas... os
bois me perseguiriam às corna-
das...

*Suspiro fundo.*

235
É um perigo enorme -- pas-
sar dos burros para os bois.
(79)

*O burguês rico sorri e


passa uma esponja sobre aquela
fábula aldeä.*

Megadoro
Quanto mais uma pessoa se
chega ao convívio dos bons,
tanto maior é o seu proveito.
(80)
.he 55-56
*Com voz persuasiva.*

E tu trata de aceitar esta


proposta. Dá ouvidos ao meu
pedido. E promete-me a rapa-
riga em casamento. (81)

*Eucliäo, antes de decidir,


tenta ainda uma sondagem de
intençöes.*
:,

.he 56
Eucliäo
Mas olha que eu näo tenho
sombra de dote para lhe dar.

Megadoro
*com um gesto largo*

Pois näo dês. Desde que


ela venha provida de bom gé-
nio... já tem dote bastante.

*Eucliäo ainda näo está


convencido. Se fosse um engo-
do apenas -- para filar o pei-
xe?...*

Eucliäo
240
É uma prevençäo que estou
fazendo... Näo cuides que eu
descobri tesouros.

Megadoro *com paciência*

Bem sei... näo é preciso


que mo digas.

*Insinuante.*

Promete lá.

Eucliäo *sem calor*

Pois assim seja... (82)

*Baque de enxada na crosta


da terra. Eucliäo suspende-
-se, angustiado, de ouvido à
escuta.*

.he 56-57
Mas, em nome de Júpiter...
será que eu estou liquida-
do?!...

Megadoro *estupefacto*
Que é que te sucedeu?...

Eucliäo *transtornado*

Que baque foi aquele?...


Assim a modos de um ferro...
agora mesmo?...
:,

.he 57
Megadoro
É aqui em minha casa. O
jardim, que eu mandei cavar...

*Mas Eucliäo näo se fica a


ouvi-lo. Enquanto Megadoro
vira meio corpo para indicar,
ele corre a toda a pressa para
casa e fecha a porta nas suas
costas. O vizinho já nem lhe
encontra o rasto.*
245
Mas onde se meteu este ti-
po?... Safou-se e näo me deu
uma resposta segura. Está a
fazer-se esquisito comigo,
porque vê que eu pretendo a
sua amizade. É assim o jeito
dos homens. Se o rico vem pe-
dir um favor ao pobretana, o
pobretana encolhe-se, falta à
entrevista: e, por temor, dei-
ta o negócio a perder. (83)
Depois, quando aquela pechin-
cha se esvaiu, entäo é que se
pöe a desejá-la... a más ho-
ras.

*Abre-se de novo a porta de


Eucliäo. O velho aparece,
furibundo, a gesticular, para
dentro de casa, com Estáfi-
la.*

Eucliäo
250
Cum raio, se eu te näo man-
dar arrancar a língua...
(84) e há-de ser pela
raiz... quem te dá a ordem e a
autorizaçäo sou eu mesmo: pega
em mim e manda-me castrar a
quem tu quiseres!... (85)
*fecha a porta e, de má ca-
tadura, aproxima-se outra vez
de Megadoro. Mas, desta vez,
também o vizinho o acolhe de
má sombra.

Megadoro
Caramba, vejo que tu me
consideras, Eucliäo, um tipo
bom para dar espectáculo, mes-
mo em idade avançada. Mas eu
näo te mereço esse tratamento.

Eucliäo *com secura*


Näo, Megadoro, palavra que
te näo quero pôr a dar espec-
táculo. Nem, mesmo que
quisesse, teria recursos para
isso. (86)
.he 58
*Megadoro deixa correr e
torna à sua.*

Megadoro
255
Entäo em que ficamos?...
Sempre me prometes a tua fi-
lha?...

Eucliäo *cautamente*
Naquelas condiçöes... com o
dote que te disse.

*O vizinho insiste, para


lhe arrancar a palavra justa.*

Megadoro
Prometes, entäo?...

Eucliäo *a custo*
Prometo.

*Megadoro respira fundo:


tinha sido um passo trabalho-
so!*

.he 58-59
Megadoro
Os deuses abençoem esta
uniäo!...

Eucliäo *maquinalmente*
Assim seja!
*Mas volta logo à carga.*

Vê lá se te näo esqueces do
que se combinou: que a minha
filha te näo levará dote al-
gum. (87)

Megadoro *sorrindo*
Näo me esqueço.
:,
.he 59

Eucliäo *com a rabugem dos


velhos*

260
É que eu bem sei dos expe-
dientes que voces usam para
roerem a corda... O que está
combinado näo está combinado;
o que näo está combinado, está
combinado... Como lhes dá na
real gana. (88)

Megadoro *paciente*
Nenhuma questäo se levanta-
rá entre mim e ti.

*Pausa. Depois, a tentaçäo


de fazer em um dia o que se
näo fez em uma vida.*

Mas este casamento... vês


alguma razäo para se näo cele-
brar hoje mesmo?...

Eucliäo *com naturalidade*


Pelo contrário; as razöes
säo até excelentes.

Megadoro *em movimento*


Pois entäo eu vou tomar
providências. Näo mandas mais
nada, pois näo?...

Eucliäo *meio absorto nas


.he 59-60
suas apreensöes*

É só isso...

Megadoro *sorridente*
Pois vai-se tratar do as-
sunto. E saúde! (89)

*Empurra a porta de casa,


que ficou apenas encostada, e
chama seu escravo de confian-
ça.*

Eh tu, Pitódico! Vem de-


pressa comigo ao mercado.
Avia-te! (90)
:,
.he 60
*Pitódico sai imediatamente
com um cabaz de compras. Amo
e escravo deixam a cena pela
direita. Eucliäo fica a
observá-los, com ar desconten-
te, até desaparecerem.*

Eucliäo
265
Lá se foi, o fabiano...
Deuses imortais, vejam só o
poder do ouro!... Está danado
por ele!... Foi por isso que
se encarniçou tanto em obter
esta aliança.

*Dirige-se para casa e abre


a porta.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena III

Eucliäo Estáfila

*Eucliäo, da porta, chama a


escrava, que se näo apressa a
responder.*

Eucliäo *em voz ralhada*


Onde estás tu, que já an-
daste a badalar pela vizinhan-
ça toda que eu ia dar um dote
à minha filha?...
.he 60-61
*Mais de rijo.*

Eh tu, Estáfila, é contigo


que estou a falar! Ouves ou
näo ouves?...
*Passos arrastados e geme-
bundos da escrava. Estáfila
aparece à porta.*

270
Essa loicinha, aí dentro,
trata de a lavar bem lavada, e
depressa. (91)

*Muda para um registo de


pura informaçäo.*

Prometi a minha filha...


:,
.he 61
*Olhar atónito da escrava.*

Eu, sim, senhor. E hoje


mesmo a vou dar em casamento,
aqui ao nosso vizinho, a Me-
gadoro.
*A velha, aturdida, reage
maquinalmente com a fórmula da
praxe.*

Estáfila
Os deuses abençoem esta
uniäo...

*Depois avizinha-se de Eu-


cliäo e tenta, com desespero,
ganhar algum tempo.*

Mas palavra que näo pode


ser... É muito de repente.

Eucliäo *engrossando a voz*

Deixa-te de lérias e vai à


tua vida. Trata de ter tudo a
postos, quando eu regressar do
foro a casa.

*Vai a partir: mas detém-se


a poucos passos da porta.*

E a casa -- fecha-a bem.


Eu cá estarei daqui a pouco.

*Sai lentamente pela direi-


ta. Estáfila fica sozinha e
angustiada.*

Estáfila *arrepelando os
cabelos*

275
E agora, que vou fazer?...
Agora é que temos a desgraça
à vista, eu e a filha do meu
paträo. Agora é que o panta-
nal e o parto estäo mesmo à
porta da praça pública. Agora
é que o segredo, tapado e em-
biocado até aqui, já se näo
pode calar.

*Recua para a porta de ca-


sa.*

Vou lá para dentro... para


que as ordens que o paträo deu
estejam cumpridas, quando ele
.he 61-62
vier.

*Suspiro longo.*
:,
.he 62
Mas palavra que o meu medo
é mamar uma mistela de males e
amargores. (22)

*Entra em casa e fecha a


porta.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena IV

Pitódico ântrax Congriäo


Frígia Elêusio
Moços dos Cozinheiros

*Pouco depois, reentra em


cena Pitódico, à frente de
uma trupe constituída por dois
cozinheiros, ântrax e Con-
griäo, com os seus moços aju-
dantes, e duas flautistas,
Frígia e Elêusio. Os cozi-
nheiros trazem, bem à vista,
os instrumentos da profissäo:
uma colher e uma faca de gran-
de tamanho. O escravo segura,
em uma das mäos, dois cabazes
atulhados de provisöes e, na
outra, as cordas a que vêm
presos dois cordeiros. Pitó-
dico pára a meio do tablado e
olha com complacência o peque-
no esquadräo que o acompanha.*

Pitódico
280
O meu amo andou a fazer
compras no mercado, e contra-
tou os cozinheiros e estas
flautistas lá no foro.

*Gesto demonstrativo e pau-


sa.*

Depois mandou-me repartir


aqui a mercadoria em duas me-
tades... (22)

ântrax *de voz alambicada*


.he 62-63
Pois a mim, coa breca --
essa te garanto bem claro --,
é que tu näo vais rachar ao
meio. (22) Mas, se queres
que eu vá inteiro para algum
lado... estou pronto a traba-
lhar.
:,

.he 63
Congriäo *sarcástico*
285
Mas que lindinho e envergo-
nhado me saiu, de verdade, es-
te picadeiro do povinho!...
E, afinal, se alguém quises-
se, näo eras tu que näo a que-
rias... a rachadela... (95)

*ântrax vai a reagir, de-


pois limita-se a trejeitar o
seu desdém.*

Pitódico *em toada circuns-


pecta*

Mas eu tinha dito a coisa,


ântrax, em outro sentido: näo
nesse de que me acusas... É
que o meu paträo vai hoje ce-
lebrar o seu casamento.

ântrax *curioso*
Ah, casa... E com a filha
de quem?...

Pitódico
290
Com a de um vizinho, Eu-
cliäo, que mora aqui ao pé.

*Aponta a casa do velho


atormentado.*

E foi exactamente ao nosso


homem que ele mandou dar, da-
qui, metade das provisöes, um
dos cozinheiros e também uma
das flautistas.

*Faz as indicaçöes adequa-


das. Mas ântrax, que é gra-
cioso ou involuto, prefere re-
.he 63-64
capitular por sua conta.*

ântrax
Pelos vistos... queres di-
zer, lá na tua: metade para
aqui

*Designa a casa de Eucliäo.*

e metade para a vossa casa?...


(96)

*Aponta a de Megadoro.*
:,
.he 64

Pitódico *arremedando-lhe o
intróito*

Pelos vistos... é como tu


dizes.

ântrax *surpreso*
295
Como?!... Entäo este ve-
lhote näo podia fazer, do seu
bolso, as despesas para as bo-
das da filha?... (97)

*Pitódico faz um gesto có-


mico de repulsa.*

Pitódico
Livra!...
ântrax
Qual é a dificuldade?...

Pitódico *com uma risada


breve*

Qual é a dificuldade, ainda


perguntas?!... Näo há pedra-
-pomes täo seca como este ve-
lho!... (98)

ântrax *incrédulo*
Mas estás a falar a sé-
rio?... Será mesmo assim como
dizes?...

Pitódico *animando-se*

.he 64-65
300
Julga por ti mesmo. (99)
(Este é um tipo que, se tem
de fazer uma despesa de caca-
racá, diz logo) que perdeu
toda a fazenda e ficou virado
de catrâmbias. (100) Mais
ainda: clama logo pela ajuda
dos deuses e dos homens, se
uma pitada de fumo se escapa
das traves do seu tecto.
(101)

*Pausa. Uma piscadela de


olhos -- maliciosa.*

Mais ainda: quando vai dor-


mir, amarra uma sacola diante
dos gorgomilos.
:,
.he 65

ântrax *pasmado*
E para quê?...

Pitódico *rindo*
Para näo perder -- sabe-se
lá!... -- alguma lasquinha do
bafo enquanto dorme!...

ântrax *mordaz*
305
E näo tapa também os gorgo-
milos de baixo... para näo
perder -- sabe-se lá!... --
alguma lasquinha... de vento,
(102) enquanto dorme?...

Pitódico *meio sisudo, meio


a rir*

Se eu te digo que é assim,


deves crer em mim como eu
creio em ti... creio eu.

ântrax *mais comedido*


E é que creio mesmo, sim,
senhor! (103)

Pitódico
Mas sabes outra do seu jei-
to?... Cum raio, até a água
ele chora, quando toma banho,
.he 65-66
só porque se está vertendo!...

ântrax *irónico*
310
Achas entäo que este velho
se pode enternecer ao ponto de
nos dar um talento, dos gran-
des, (104) para a gente
comprar a liberdade?...

Pitódico *com decisäo*

Até a Fome, cum raio, se


lha pedires emprestada, nunca
ta dará!... (105)
:,
.he 66
*No mesmo tom facecioso.*

Mais ainda: aqui há tempos,


um barbeiro tinha-lhe cortado
as unhas... Pois ele ajuntou
e levou as aparas todas.

ântrax *declamatório*

Caramba, mas que mortal mí-


sero e mesquinho é esse que
memoras!... (106)

Pitódico *triunfante*
315
Ora estás a ver como a sua
vida é mesmo mesquinha e mise-
rável?...

*Engrena, para corroborar,


a última pilhéria.*

Olha: aqui há tempos, veio


um gaviäo e pilhou-lhe uma al-
môndega. Pois o nosso homem,
lavado em lágrimas, vem ter
com o pretor -- e pöe-se para
ali a reclamar (e chorava! e
uivava!) que lhe deixasse ci-
tar o gaviäo em tribunal.
(107)

*Gargalhada de ântrax.
Pitódico, no seu papel didas-
cálico, sorri apenas.*

.he 66-67
320
E há milhentas histórias
como esta que eu poderia con-
tar, se houvesse lazer.

*Assume de novo um ar de
circunstância.*

Mas, de vocês dois, qual é


o mais despachado?... Conta-
-me lá!... (108)

ântrax *de pronto*


Eu!... Despachado -- e
muito melhor.

Pitódico *com acerada bono-


mia*

Cozinheiro, e näo gatuno


(109) -- é o que eu estou a
perguntar...
:,
.he 67

ântrax *enxofrado*
Pois cozinheiro é que eu
digo!

*Pitódico vira-se para


Congriäo, que tem falado pou-
co.

Pitódico
E tu, que dizes?...

Congriäo *de má sombra*

Eu sou assim -- como tu me


vês.

ântrax *desdenhoso*
325
Um cozinheiro da feira dos
nove -- é o que ele é: só de
nove em nove dias é que arran-
ja para ir cozinhar. (110)

Congriäo *vermelho de fú-


ria*

E és tu, gatuno escarrado,


que me vens insultar?!...
*Silabando de rijo.*

Ga-tu-no!!!...

ântrax *histérico*
Gatuno és tu!... Gatuno
três vezes digno da forca!...
(111)

*Pitódico interpöe-se para


evitar que os dois cozinheiros
se engalfinhem.

Pitódico *a ântrax*

Ora cala-te lá -- e (le-


va) daqui o cordeiro mais
gordo.

*Entrega a ântrax a corda


que prende o cordeiro indica-
do. Depois mostra-lhe a porta
de Megadoro.*

(Vais para casa do meu pa-


träo.) (112)
.he 68
ântrax *satisfeito com a
escolha*

Assim está bem.

Pitódico *a Congriäo*

Tu, Congriäo, pega no cor-


deiro que ficou e leva-o lá
para dentro.

*Aponta-lhe a casa de Eu-


cliäo. Depois volta-se para
os moços do cozinheiro.*

E vocês acompanhem-no.

*Reúne, por último, os aju-


dantes de ântrax.*

320
Vocês, os restantes, väo
para aqui, para a nossa casa.

*O grupo de ântrax aproxi-


ma-se da porta de Megadoro,
enquanto Congriäo abana a ca-
beça, inconformado.*

Congriäo
Cum raio, injusta é a re-
partiçäo que tu fizeste: o
cordeiro mais gordo, säo eles
que o têm.

Pitódico *conciliador*

Mas tu agora vais ter a


flautista mais gorda.

*A Frígia.*

Ora vai lá com ele, Frí-


gia. (113)

*A flautista incorpora-se no
grupo de Congriäo. Pitódico
volta-se para Elêusio.*

E tu, Elêusio, vem cá para


dentro, para a nossa casa.

.he 68-69
*Elêusio junta-se ao grupo
de ântrax e entra com ele em
casa de Megadoro. Congriäo
fica-se irritado, de mäos na
cinta.*
:,
.he 69
Congriäo *azedamente*
335
Ó Pitódico assolapado, tu
entäo impontaste comigo para
aqui, para casa deste velho
unhas-de-fome?... (114)
Aqui, onde, se eu pedir algu-
ma coisa, a pedirei até enrou-
quecer, primeiro que ma
dêem?... (115)

*Pitódico afivela a máscara


dolente dos incompreendidos.*

Pitódico *abanando a cabe-


ça*

És mesmo um toleiräo. Näo


vale a pena fazer-te algum
bem, porque aquilo que se faz
é para deitar no lixo.

Congriäo *surpreso, mau


grado seu*

Como assim?...

Pitódico *paciente*

Ainda perguntas?... Olha,


para começar, nessa casa,

*Designa a de Eucliäo.*

barafunda é coisa que näo vais


ter. Se de algum utensílio te
quiseres servir, de casa -- da
tua casa -- o tens de trazer,
para näo perderes tempo a re-
clamá-lo.

*Pausa calculada.*

Aqui, pelo contrário, na


nossa casa,
.he 69-70
*Aponta a de Megadoro.*

345
há grande barafunda de criada-
gem, alfaias, ouro, roupas,
vasos de prata... (116)
Entäo, se desaparecer alguma
coisa -- eu sei que és capaz
de näo tocar em nada... se na-
da estiver à mäo --, väo di-
zer: "Foram os cozinheiros
que a levaram!... Agarrem-
-nos!... Amarrem-nos!... Dê-
em-lhes uma surra!... Ferrem
com eles na cisterna!..."
(117)
:,
.he 70
*Um quadro tétrico que pa-
rece deixá-lo sucumbido.*

Ora ali nada disto te pode


acontecer,

*Aponta a casa de Eucliäo.*

porque, se quiseres roubar,


näo encontras quê!...

*Congriäo continua de nariz


torcido. Mas Pitódico desem-
pata.

Vem lá daí comigo.

Congriäo *resignado*

Pois entäo vou.

*Pitódico, Congriäo e os
seus moços dirigem-se para a
casa de Eucliäo.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena V

Pitódico Estáfila Congriäo


Moços do Cozinheiro

*O grupo estaca diante da


porta implacavelmente fechada.
Pitódico bate sem contempla-
çöes, ao mesmo tempo que chama
.he 70-71
com voz forte pela escrava.*

Pitódico
350
Eh, Estáfila, pöe esse na-
riz cá fora e abre a porta!

Estáfila *de dentro*


Quem é?...
Pitódico
Pitódico.
:,
.he 71
Estáfila
Que é que queres?...

Pitódico
Que recebas estes cozinhei-
ros, a flautista e as provi-
söes para a boda.

*Abre-se lenta e parcial-


mente a porta. Estáfila asso-
ma e, de olhos míopes, procura
reconhecer a identidade do re-
cém-chegado. O escravo pousa
no limiar a cesta das provi-
söes.*

Megadoro mandou-me entregar


esta coisada a Eucliäo.

*A velha remexe, com as


pontas dos dedos, nas provi-
söes da cesta.*

Estáfila *desapontada*

Mas säo à moda de Ceres,


Pitódico, estas bodas que se
väo fazer? (118)

Pitódico *com estranheza*


Porquê?...

Estáfila *com um suspiro*

Porque näo trouxeram nem um


pingo de briol, estou a ver.

Pitódico *sorrindo*
Mas já väo trazer, quando o
.he 71-72
paträo voltar do foro.

*Estáfila anima-se. Depois


faz uma careta de preocupa-
çäo.

Estáfila
Lenha, aqui em casa, é coi-
sa que näo há.
:,
.he 72
Congriäo *sardónico*

Mas há barrotes no tec-


to?...

*Estáfila sem perceber*


Bem, lá isso há, caramba!

Congriäo *duramente*

Entäo há lenha: é escusado


ir buscá-la fora.

Estáfila *indignada*
360
Como?!... Impuro de uma
figa (apesar de seres devoto
de Vulcano), (119) já te
ensaiavas -- por mor da ceia
ou da soldada -- a pedir que
queimássemos a nossa própria
casa?!...

Congriäo *encolhendo os om-


bros*

Já näo me ensaio näo.

Pitódico *a Estáfila*

Leva esses tipos lá para


dentro.

*A velha abre mais a porta


e afasta-se do caminho para
deixar passar os recém-chega-
dos.*

Estáfila
Venham comigo.

*O cozinheiro, os ajudantes
.he 72-73
e a flautista entram em casa
de Eucliäo.*
:,
::::::::::::::::::::::::::::::

.he 73
Cena VI

Pitódico
*Antes de a porta se fe-
char, o escravo lança ainda
uma última advertência.*

Pitódico
E trabalhem!...

*Ruído de gonzos da porta


que se tranca. Em andamento
vagaroso, Pitódico desloca-se
para a casa do paträo.*

Eu, entretanto, vou dar uma


espreitadela... Que andaräo a
fazer os cozinheiros?... Só
para os guardar -- caramba!
--, eu vou ter hoje uma can-
seira de alto lá.
*Pára e bate na testa, como
se lhe acudisse uma inspira-
çäo.*

365
A näo ser que eu fizesse
uma coisa... era a única saí-
da... pô-los a cozinharem o
jantar na cisterna! E, depois
de cozinhado, puxávamos cá pa-
ra cima em uns cestinhos!...

*Abana a cabeça com desa-


lento.*

Mas se eles, lá em baixo,


se pöem a comer o que tiverem
cozinhado... ficam os do alto
sem jantar e os de baixo bem
jantados!... (120)

*Acelera o passo.*

370
Mas eu estou para aqui a
dar à taramela, como se näo
.he 73-74
houvesse que fazer, (121)
quando a casa está invadida
por uma corja de rapinado-
res!... (122)

*Entra em casa de Megadoro.*


::::::::::::::::::::::::::::::
:,
.he 74
Cena VII

Eucliäo Congriäo

*Instantes depois, reapare-


ce Eucliäo. Vem do lado do
foro e traz duas grinaldas pe-
quenas. A meio da cena, pára
e fala de costas para as ca-
sas.*

Eucliäo *em tom moderado e


convicto*

Bem quis, no dia de hoje --


alguma vez teria de ser --,
dar força e ânimo ao meu cora-
çäo: estava disposto a fazer
boa figura nas bodas da minha
filha. (123)

*Mas a convicçäo vai pouco


a pouco esmorecendo.*

375
Chego ao mercado, pergunto
o preço do peixe: apontam-
-mo... um dinheiräo. Pelo
borrego, um dinheiräo... Pela
vaca, um dinheiräo... Pela
vitela, pelo atum, pelo por-
co... um dinheiräo por tudo.
Um dinheiräo ainda maior para
mim -- que näo tinha chavo.
(124)

*Abre os braços, com amar-


gor.*

E saí dali muito zangado,


porque näo havia nada que eu
pudesse comprar.

*Reanima-se e faz um tre-


jeito de desforra.*

Também àqueles safardanas


todos, deixei-os com nariz de
palmo e meio. (125)

*Pausa. Eucliäo reflecte,


com o indicador fincado na
testa.*
380
Depois, pelo caminho, come-
cei a magicar de mim para mim:
"Se em dia de festa te pöes a
desbaratar, em dia que näo se-
ja de festa vais passar neces-
sidade, se näo tiveres apren-
dido a poupar." (126)
E, depois de ter exposto à
barriga e ao coraçäo estas ra-
zöes, acabei por aderir à mi-
nha ideia (127) -- que é a
de fazer o casamento da minha
filha com o mínimo de despe-
sas.
.he 75
385
Para já, comprei estes
gräozinhos de incenso.

*Mostra a palma da mäo em


concha.*

e estas grinaldas de flores.


(128)

*Adianta o braço que segura


as duas capelas.*

Väo-se pendurar na lareira,


em honra do nosso deus,

*Abre um sorriso de espe-


rança.*

para ele dar sorte ao casamen-


to da minha filha querida...
(129

*Abre-se a porta de Eu-


cliäo. O velho estremece e
volta-se imediatamente, de
corpo inteiro, como accionado
por uma mola. Rumor de vozes
no interior da casa.*

Mas que vejo eu?!... Aber-


ta a minha casa?!... E uma
barulheira lá dentro!... Näo
é que me estäo a depenar?!...
(130) Desgraçado de
mim!...
*O terror deixa-o semipara-
lisado. Aparece à porta um
moço de cozinheiro, depois
Congriäo com uma marmita em
punho.*

Congriäo *para o moço*

390
Uma marmita maior, se hou-
ver!... Vai buscá-la aí à vi-
zinhança. Esta é pequena: näo
leva o bastante. (131)

*O ajudante sai a correr.


.he 75-76
Eucliäo, desvairado, alarga
os braços, como se quisesse
detê-lo.

Eucliäo
Pobre de mim!... Estou li-
quidado, cum raio!... O meu
ouro, estäo a roubá-lo!...
Até uma marmita procuram!...
(132)

*Vai a correr para casa,


mas pára diante do altar de
Apolo e cai de joelhos, es-
tendendo os braços desespera-
dos.*
:,
.he 76
395
Apolo, eu te suplico!...
Acode-me aqui!... Dá-me a
tua ajuda!... Trespassa de
flechas estes ladröes de te-
souros... se a alguém, em tais
apuros, tu já acudiste no pas-
sado!... (133)

*Levanta-se logo com sur-


preendente agilidade.*

Mas porque paro eu de cor-


rer?... Estou à espera de fi-
car de todo liquidado?!...
(134)

*Entra de escantilhäo pela


porta entreaberta, que fecha
com estrondo.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena VIII

ântrax

*Assoma à porta de Megado-


ro o cozinheiro ântrax. Do
limiar, dá algumas ordens, pa-
ra dentro, aos seus ajudan-
tes.*

400
Dromäo, descama os peixes.
Tu, Maqueriäo, (135) vê
lá o congro, a moreia... des-
pinha-os o mais depressa que
puderes. Eu vou aqui ao vizi-
nho

*Aponta a casa de Eu-


cliäo.*

pedir uma torteira (136)


emprestada a Congriäo. E tu
olha por esse galo: se näo és
papa-açorda, trata de mo pôr
mais lisinho que um bailarino
depilado. (137)

*Gritaria e eco de pauladas


em casa de Eucliäo. O cozi-
nheiro, assustado, suspende as
recomendaçöes.*

Mas que alarido é este que


se levanta aqui, de casa do
vizinho?... Cum raio, os co-
zinheiros, salvo erro, tratam
de cumprir o seu ofício...
(138)
*Recua prudentemente alguns
passos.*

405
Vou mas é safar-me cá para
dentro, antes que nos aconte-
ça, por aqui, algum banzé do
mesmo género.

*Desaparece no interior da
casa de Megadoro.*
::::::::::::::::::::::::::::::
.. ::::: linha 12
.he 77

Acto III

Cena I

Congriäo Ajudantes Frígia

*Abre-se de arranco a porta


da casa de Eucliäo. O cozi-
nheiro Congriäo precipita-se
para a rua, com o terror es-
tampado no rosto. Traz as
vestes despedaçadas e o sangue
a jorrar de uma brecha na ca-
beça. Logo a seguir saem tam-
bém, em fuga espavorida, os
moços ajudantes e a flautista
Frígia. Correrias desarticu-
ladas do grupo, ora para a es-
querda, ora para a direita.*

Congriäo *em alta grita*


(139)

Socorro, socorro!... Cida-


däos!... Arraia-miúda!...
Gentes da terra!... Gentes
dos arredores!... Forastei-
ros!... Todos!... (140)
Abram caminho por onde se
possa fugir!... Largueza,
largueza, por todas as aveni-
das!... (141)

*Pára para tomar fôlego e


apalpar o corpo dorido.*
410
Nunca, em dias da minha vi-
da -- senäo hoje --, eu vim a
uma casa de malucos cozinhar
numa maluqueira como esta!...
(142) Ai de mim, infeliz,
que arraial de bordoada que
apanhámos, eu e os meus aju-
dantes!... Todo eu sou do-
res!... Estou morto e remor-
to!... Esse velho tratou o
meu corpo nem que fosse um gi-
násio!... (143) Nunca, em
parte alguma do mundo, eu vi
dar lenha com mais limpeza!...
Viemos todos parar ao olho da
.he 77-78
rua, eu e eles, e bem carrega-
dos de... varadas!... (144)

*Reaparece Eucliäo. De-


pois de fechar a porta, avan-
ça, de cajado em punho, sobre
o cozinheiro. Congriäo recua,
aterrorizado.*

Socorro!... Estou perdido,


caramba!... Desgraçado de
mim!... Lá recomeça a malu-
queira!... Aí está ele!... E
vem sobre mim!...
:,
.he 78
*Numa súbita inspiraçäo.*

Já sei o que hei-de fazer.


A liçäo, foi ele mesmo que ma
ensinou. (145)

*Empunha a faca de cozinha


que trazia à cinta e pöe-se a
esgrimir com ela. Eucliäo, à
vista da arma e dos gestos,
suspende a arremetida.*
Cena II

Eucliäo Congriäo
Ajudantes Frígia

Eucliäo *a uma prudente


distância*

415
Torna cá!... Para onde
vais a fugir, hem?...

*Como se falasse a guardas


invisíveis.*

Agarrem-no!... Agarrem-
-no!...

Congriäo *mais seguro*

Porque berras, meu alar-


ve?...

Eucliäo *rabioso*

Porque te vou denunciar


.he 78-79
agora mesmo aos oficiais da
polícia. (146) Sim, com
nome e tudo!

Congriäo
E porquê?

Eucliäo
Porque tens uma faca na
mäo.
:,
.he 79
Congriäo *encolhendo os om-
bros*

É ferramenta de cozinheiro.

Eucliäo
E porque me ameaçaste com
ela?... Hem, a mim?...

Congriäo *azedamente*

O mal que eu fiz -- quer-me


parecer -- foi näo te ter fu-
rado as tripas.

*Meneia a faca na direcçäo


do ventre de Eucliäo. O ve-
lho recua, mas näo se dispensa
de extravasar a sua cólera.*

Eucliäo
420
Nunca se viu patife maior
nos dias desta vida!...
(147) Nem tipo a quem eu
quisesse ferrar uma tunda com
mais convicçäo e mais pra-
zer!...
Congriäo *ironicamente*

Coa breca, nem precisas de


abrir a boca: é claro como a
água. Os factos falam por si.
(148) À força de varadas,
fiquei mais maleado que um ma-
ricas. (149)

*De voz ressentida.*

Mas com que direito nos


.he 79-80
aplicas um cheganço destes,
meu farroupilha?...

Eucliäo *indignado*

Com que direito?!... Ainda


perguntas?!... Se calhar,
porque te dei menos do que de-
via?!... Ora deixa ver...

*Esquecendo a prudência,
tenta agredir de novo o cozi-
nheiro, atinge-o ainda na ca-
beça, mas Congriäo levanta a
faca em atitude de franca
ameaça.*
:,
.he 80
Congriäo *resolutamente*

425
Alto -- cum raio! -- ou co-
mes pela medida grande... se
esta cabeça é das que sentem.

*O velho refreia os seus


ímpetos e tenta confortar-se
com uma vitória -- limitada.

Eucliäo
Bem, pelo futuro näo res-
pondo...

*De mäo em gume, para re-


lembrar as cacetadas.*

... mas, para já, a tua cabeça


ainda sente. (150)

*De voz menos áspera.*


Ora vejamos: em minha casa,
que tinhas tu que fazer, na
minha ausência, sem eu te man-
dar?... Gostava de saber.

Congriäo
Entäo está calado.

*Pausa de mau humor.*

Pois viemos cozer o jantar


das bodas.
.he 80-81
Eucliäo *com a rabugem da
velhice*

430
E que tens tu -- raios! --
que te preocupar se eu como
cru ou cozido?... Näo és meu
tutor, pois näo?... (151)

*O cozinheiro bufa a sua


saciedade perante tanta insen-
satez.*

Congriäo
Quero saber se deixas ou
näo deixas que cozinhemos aqui
o jantar.
:,

.he 81
Eucliäo
E eu quero saber também se
as minhas coisas -- em minha
casa -- häo-de ficar a salvo.

Congriäo
Desde que as minhas -- que
eu trouxe para tua casa --, as
possa também tirar a salvo. É
quanto me basta: o que é teu
-- nem sequer o cobiço.

Eucliäo *irónico*
Já sei: escusas de me ex-
plicar. Bem te conheço.
(152)

*O cozinheiro deixa correr


os subentendidos e torna à
sua.*
Congriäo
435
Mas por que razäo, caramba,
por que motivo nos queres im-
pedir de cozinhar aqui o jan-
tar?... Que é que fizemos?...
Que é que dissemos que te pu-
desse desagradar?...

Eucliäo *arremetendo de no-


vo*

440
Ainda perguntas, grande sa-
fado, quando tu e os teus --
por todos os cantos da minha
casa e até pelos escaninhos --
andavam a meter o nariz?!...
(153) Ali, à beira do lu-
me, é que era o teu lugar de
trabalho. Se te deixasses es-
tar ali, näo sairias de cabeça
rachada. Assim o quiseste,
assim o tiveste.

*Pausa ameaçadora.*

E mais: para näo poderes


dizer que näo sabias agora
qual era a minha decisäo: se
te aproximares daqui desta
porta

*Indica a de casa.*
sem eu te mandar, um bocadinho
que seja... eu farei de ti o
mais desgraçado dos mortais.
(154)
.he 82
*Espeta o dedo com soleni-
dade.*

Bem, já sabes agora qual é


a minha decisäo.

*Entra e fecha a porta. O


cozinheiro fica por instantes
boquiaberto, depois protesta
-- mas em väo.

Congriäo *desesperado*

445
Aonde vais tu?... Torna
cá!... Assim Laverna
(155) me proteja como a ti
agora! Se me näo mandas en-
tregar os utensílios, vou-te
esquartejar com uma algazarra
(156) aqui diante da tua
casa!...

*Apenas o silêncio lhe res-


ponde. O cozinheiro passeia
nervosamente, sem desfitar a
porta.*

E agora, que é que eu posso


fazer?... Sim, senhor! Em má
hora, caramba, eu vim parar
aqui! Por um dinheiro
(157) me contrataram...
Mais do que isso preciso ago-
ra para pagar ao médico.
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena III

Eucliäo Congriäo Ajudantes


Frígia

*Reabre-se lentamente a
porta da casa de Eucliäo. O
velho sai, aconchegando sob as
vestes, o melhor que pode, a
marmita do tesouro.*

Eucliäo *de si para si*

450
Esta -- coa breca! --, para
.he 82-83
onde eu for, comigo há-de ir,
comigo a hei-de levar: näo
mais deixarei que fique ali

*Designa a sua própria casa.*

no meio de tantos perigos.


(158)
:,
.he 83

*A Congriäo e aos demais,


com desdém.*

Väo, väo agora lá para den-


tro, todos, cozinheiros e
flautistas. Enfia lá para
dentro, se te apetece, uma
corja inteira de serviçais.
(159) Cozinhem, remexam,
passarinhem (160) agora
quanto lhes der na real gana.

Congriäo *ressentido*

A boas horas!... Depois


de, com um varapau, me teres
enchido a cabeça de rachade-
las... (161)

*O velho, indiferente, em-


purra o queixoso para a por-
ta.*

Eucliäo
455
Anda mas é lá para dentro.
Aqui, para trabalhar é que
vos contrataram, näo foi para
discursar.

*Congriäo dá alguns passos


para a porta, resmungando.
Antes de entrar, desabafa.*

Congriäo
Ouve lá, velhote: pela sova
que me deste... deixa estar,
caramba, que eu te hei-de
apresentar a conta. Foi para
cozinhar, näo foi para ser so-
vado que há pedaço me contra-
taram. (162)
.he 83-84
Eucliäo *com desdém.*

Pois levanta-me um processo


(163) e näo me chateies.
Anda, cozinha lá o jantar ou
vai-te desta casa para o raio
que te parta.

Congriäo *indignado*

Ora vai mas é tu!


:,
.he 84
*Reentra, com os ajudantes
e a flautista, em casa de Eu-
cliäo. O velho fica a vigiá-
-los, de olhos atentos, até
que desaparecem.
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena IV

Eucliäo

Eucliäo (164) *com um


suspiro de alívio*

460
Ora lá se foi daqui o fa-
biano...

*Volta-se para o altar de


Apolo.*

Deuses imortais, que empre-


sa temerária näo é um pobreta-
na meter-se em tratos e con-
tratos com um ricalhaço!...
Por exemplo Megadoro: vejam
como ele me arma toda a casta
de esparrelas. Desgraçado de
mim!... A pretexto de me
obsequiar, mandou para aqui
estes cozinheiros. E porque é
que os mandou?... Para me la-
rapiarem a cuja.
*Toca na marmita por cima
das vestes.*

Desgraçado de mim!...

*Aproxima-se novamente da
porta.*

465
E alinhou com eles, ainda
por cima, lá dentro,

*Gesto para a casa.*

o meu galaroz. O bicho -- que


era pecúlio da velha --,
(165) esteve vai näo vai
para me arruinar. Foi por uma
unha negra!... (166) No
sítio onde esta estava enter-
rada,

*Designa novamente a marmi-


ta oculta sob as vestes.*

.he 84-85
470
pôs-se ali mesmo a esgaravatar
(167) com as unhas, à roda,
mesmo à roda... Mais rodeios,
para quê?... Deu-me uma vene-
ta das antigas: (168) rapo
do varapau e esborracho o galo
-- ladräo apanhado com a boca
na botija. (169) Cum raio,
acredito que os cozinheiros
tinham prometido uma gorjeta
ao galo, se ele lhes revelasse
o paradeiro da coisa... Mas
eu safei-lhes a gadanha dos
gadanhos. (170) Mais ro-
deios, para quê?... Assim se
travou batalha com o galo...
galináceo!... (171)
:,
.he 85

*Surge pela direita Mega-


doro, em marcha lenta e compe-
netrada. Eucliäo recua um
pouco, até ficar encostado à
esquina da própria casa.*

Mas cá temos Megadoro, o


meu parente: ei-lo que regres-
sa do foro. De ora avante,
näo ousaria passar por ele sem
parar nem conversar.
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena V

Megadoro Eucliäo

*Megadoro, sem ver Eu-


cliäo, pára a meio da cena.*

Megadoro (172) *com uma


ponta de ufania*
475
Contei a muitos amigos o
partido que tomei quanto a es-
te projecto de casamento. A
filha de Eucliäo merece o
aplauso de todos. Acham que
foi uma sensata resoluçäo e um
partido acertado. (173)

.he 85-86
*Pausa. O ar desenfadado
preludia a uma reflexäo de
largo fôlego.*

480
De facto -- em minha opi-
niäo, pelo menos --, se os ou-
tros fizessem o mesmo, isto é,
se os ricaços casassem com as
filhas dos pobretanas,
(174) que näo têm dote, ha-
veria muito mais concórdia na
cidade; nós enfrentaríamos uma
hostilidade menor do que aque-
la que enfrentamos, elas te-
riam mais receio dos nossos
castigos do que têm; e nós fa-
ríamos menos despesas do que
fazemos.
485
Para a maior parte dos ci-
dadäos seria a melhor soluçäo.
:,
.he 86
Só uns quantos esganados pro-
testariam porque a seus sôfre-
gos apetites e desejos insa-
ciáveis (175) näo há lei
nem... sapateiro que lhes
abranja as medidas. (176)

*Um sorrisinho discreto de


autocomplacência.*

490
Claro que vai haver quem
diga o seguinte: "E com quem
häo-de casar as ricas, que têm
dote, se tal direito se reser-
va às pobres?..." Pois casem
com quem quiserem, desde que o
dote näo as acompanhe.
(177)
*Assume, sem querer, um ar
severo.*

Se vigorasse um princípio
assim, elas procurariam adqui-
rir e levar como dote predica-
dos melhores do que os que le-
vam agora.

*Mas logo regressa à bono-


mia habitual.*

495
E eu conseguiria que as mu-
las, que custam mais que os
cavalos, se vendessem mais ba-
rato que as pilecas gaulesas.
(178)

Eucliäo *deleitado*

Assim os deuses me abençoem


como é um regalo para mim ou-
vir este tipo!... Falou que é
um encanto sobre a economia.

Megadoro *imitando o repe-


nicado feminino*

500
Nenhuma, deste modo, teria
coragem de dizer: "Sim, por-
que eu trouxe-te um dote muito
maior que os patacos que ti-
nhas. Por isso é justo que me
.he 86-87
dês púrpura e ouro, escravas,
mulas, azeméis, moços de sé-
quito, pajenzinhos para os
cumprimentos, cabriolés para
eu cabriolar." (179)

Eucliäo *entusiasmado*

Como este tipo conhece os


caprichos das donas!... Na
ponta da unha!... Prefeito
dos costumes femininos; para
um cargo assim é que eu gosta-
va que o nomeassem. (180)
:,
.he 87
Megadoro *anuviado*
505
Agora, por onde quer que se
ande, vêem-se mais carros nas
moradias do que no campo,
quando se visita a quintarola.
(181)

*Pausa desconsolada*

Mas isto ainda é päo com


mel... comparado com o que su-
cede na hora em que vêm cobrar
as despesas. (182)

*Pára a imaginar a cena.


Depois, pöe-se a contar pelos
dedos.*

510
Ali os temos especados: o
lavandeiro, o recamador, o ou-
rives, o fabricante de läs...
E toda a casta de mercadores:
os franjeiros, os chambreiros,
os vermelheiros, os violetei-
ros, os nogueireiros... Ou
entäo os balandrauzeiros ou os
perfumeiros, os revendedores
de roupa branca, os botinei-
ros... Ali os temos de
514
plantäo: os sedentários sapa-
tei-ros, os chapineiros, os
sanda-leiros... E ainda os
malveiros... e ainda os sutia-
nei-ros... e ainda, ao mesmo
tem-po, os cinteiros...

*Suspiro longo, de cansaço.*

520
Já estäo pagos -- cuidava a
gente... Mas väo-se estes, e
aparecem a cobrar outros tre-
zentos, enquanto ficam de ata-
laia, nos átrios, como pedin-
tes de sacola, os passamanei-
ros, os cofreiros... Säo re-
cebidos, dá-se-lhes o dinhei-
ro.
Já estäo pagos -- cuidava a
gente... quando avançam os
tintureiros de açafräo...
(183) Há sempre algum es-
tafermo (184) a reclamar
alguma coisa.

Eucliäo *no sétimo céu*

Eu interpelava-o, mas tenho


medo de que ele pare de contar
.he 87-88
as pechas das mulheres...
(185) O melhor é deixá-lo
ir assim, embalado.

Megadoro *indigesto*
525
E quando se acabou de pagar
a estes traficantes de bugia-
rias... (186) a todos... lá
avança por fim o soldado...
:,
.he 88
reclama o seu dinheiro.
(187) Vai a gente fazer a
estimati-va da conta com o ban-
queiro. O soldado, com a bar-
riga a dar horas, lá fica de
plantäo, convencido de que vai
receber o dinheiro. Quando se
acaba a discussäo da conta com
o ban-queiro... vê-se que é o
530
dono da casa que deve agora ao
banqueiro!... E as esperanças
do soldado ficam dilatadas pa-
ra outro dia.

*Pronto a regressar a casa.*

535
Säo estes e muitos outros
os quebra-cabeças e os gastos
insuportáveis que os grandes
dotes acarretam. (188) Mu-
lher sem dote está na mäo do
marido. As que têm dote säo a
desgraça e a ruína dos mari-
dos. (189)

*Eucliäo descobre-se e
avança alguns passos. Megado-
ro, ao sentir rumor, volta-se
e dá de cara com o vizinho.*

Mas aqui está o meu parente


diante da casa. Como vai is-
so, Eucliäo?...
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena VI

Eucliäo Megadoro

Eucliäo *em toada amena*

Com muito prazer estive a


devorar o teu discurso.
(190)

Megadoro *um pouco envergo-


nhado*

Ah, sim?... Ouviste?...

Eucliäo *aproximando-se mais*

Desde o princípio... tudo.

*Megadoro repara com des-


gosto no trajo coçado do vizi-
nho.*

.he 89
Megadoro
540
Mas olha que -- a meu ver,
pelo menos -- andarias um pou-
co melhor, se te apresentasses
com mais elegância para as bo-
das da tua filha.

*Eucliäo carranqueia, subi-


tamente formalizado -- e sus-
peitoso.*

Eucliäo *com severidade*

Acomodar a elegância aos


haveres e a prosápia aos re-
cursos é timbre do homem que
se lembra da cepa de onde nas-
ceu. (191) Podes crer,
Megadoro: nem eu, nem outro
pobretana como eu, temos em
casa mais abastança do que se
cuida.

*Megadoro acode logo, sor-


ridente, a rebater aquela onda
de pessimismo.*

Megadoro
545
Lá isso tens [<...>] E os
deuses acrescentem e protejam
os bens que agora possuis.
(192)

*Eucliäo recua instintiva-


mente e dissimula melhor sob
as vestes, a marmita do tesou-
ro.*

Eucliäo *regougando à parte*

Ora aí está uma frase que


me näo quadra: "os bens que
agora possuis." Este tipo sa-
be täo bem dos meus haveres
como eu próprio: a velha deu
com a língua nos dentes.
(193)

*Megadoro näo capta os re-


gougos mas estranha aquele re-
.he 89-90
cuar inopinado. Deveras, de-
veras, Eucliäo era um indiví-
duo esquisito, meio zaruca:
iria escapar pela terceira
vez?... Mais valia prevenir
com um gracejo, mesmo descolo-
rido.*
:,
.he 90

Megadoro *como quem recita*

Porque é que tu, todo a


sós, desta sessäo do senado te
separas?... (194)

*O vizinho, para cobrir a


sua atitude, resolve afinar
pelo mesmo diapasäo de zomba-
ria.*
Eucliäo
550
É que eu, podes crer, esta-
va a preparar um libelo de
acusaçäo contra ti. (195)

Megadoro *surpreso*

Entäo que há?...

Eucliäo *com veemência*

555
"Entäo que há?..." Ainda
me perguntas?... Tu que me
encheste de ladröes todos os
cantos da casa!... A mim, um
desgraçado!... Tu que me en-
fiaste em casa quinhentos co-
zinheiros, com seis mäos cada
um, da raça dos Geriöes?...
(196) Daqueles que, se
fosse a guardá-los Argos --
que era todo olhos e que Juno
pôs de sentinela a Io --, nem
mesmo esse os guardaria!...
(197) Para näo falar da
flautista, que seria capaz de
escorripichar -- se repuxasse
vinho -- a fonte de Pirene,
560
em Corinto. (198) E entäo
.he 90-91
as provisöes...

*Megadoro, que tinha subli-


nhado com risadinhas compla-
centes os primeiros queixumes
de Eucliäo, interrompe agora
em defesa das suas cores.*

Megadoro *picado*

Caramba! Chegavam mesmo


para uma legiäo inteira.
(199) Se até mandei um
cordeiro...
:,
.he 91
Eucliäo *com acinte*

Quanto ao cordeiro, eu te
garanto que nunca se viu bicho
mais... curado.

Megadoro
Gostava que me dissesses
porque é que o cordeiro é "cu-
rado".

Eucliäo

Porque é todo pele e osso


-- tantas säo as "curas" que o
trazem consumido. (200)
Mais do que isso: mesmo vivo,
até as tripas se lhe podem
examinar, virando-o contra o
sol... Todo ele é transparen-
te, como uma lanterna púnica.
(201)

Megadoro *sem se ofender*

Para se matar é que eu o


encomendei.

Eucliäo
Pois era muito melhor que o
tivesses encomendado (202)
para lhe fazeres o funeral:
que morto já vem ele, quer-me
parecer.

*Megadoro, apesar de inco-


modado, deixa correr aquela
.he 91-92
grosseria de labroste. E faz
uma proposta jovial, que lhe
parece entoada à crassidäo dos
comentários.*

Megadoro
Emborrachar-me hoje conti-
go, Eucliäo, é o meu desejo.

*Mas o vizinho recua de no-


vo, horrorizado.*

Eucliäo
570
Emborrachar-me?!... Isso é
que näo, caramba!...

*Sem dar muita importância


à reacçäo, Megadoro insiste.*
:,
.he 92

Megadoro
Pois olha que eu vou mandar
vir de minha casa um pipo de
vinho velho.

*Eucliäo, peremptório,
avança ambas as mäos num gesto
de repulsa.*

Eucliäo
Näo quero, caramba!... Be-
ber -- já decidi --, só bebo
água.

*Megadoro solta uma garga-


lhada estridente.*

Megadoro
Pois eu vou-te afinfar uma
carraspana, e das boas. Täo
certo como estar vivo!...

*Eucliäo, furioso, faz fi-


gas sobre figas.*

A ti, sim, que decidiste


beber só água.

Eucliäo *regougando à parte*

575
Bem sei as linhas com que
se cose. Quer-me deitar a
terra (203) com o vinho:
por isso tenta esta rota. E
depois da proeza... os meus
haveres mudavam de morada.
(204) Pois dessa ratoeira
me hei-de guardar. Vou es-
conder o dinheiro alhures --
fora de casa. Deixa estar que
eu te farei perder, do mesmo
passo, a canseira -- e o vi-
nho.

*O ricaço, indiferente aos


regougos, decide tornar a ca-
sa.*

Megadoro
Por mim, se näo mandas mais
nada, vou fazer as abluçöes da
praxe -- para estar preparado
para os sacrifícios. (205)

*Como o vizinho näo dá tro-


.he 92-93
co, dirige-se lentamente para
a porta e desaparece no inte-
rior da casa.*
::::::::::::::::::::::::::::::
:,

.he 93
Cena VII

Eucliäo

*Eucliäo, isolado em cena,


afaga com ternura a sua marmi-
ta.*

Eucliäo *como se falasse a


uma pessoa*

580
Coa breca! Sim, senhor,
muitos inimigos tens tu, mar-
mita, e mais esse ouro que te
está confiado!...

*Pausa meditativa. Depois


uma resoluçäo.*

Agora o melhor que posso


fazer, marmita, é safar-te pa-
ra o templo da Boa Fé:
(206) ali é que te vou es-
conder a preceito.

*Eleva os olhos para o tem-


plo.*

585
Boa Fé, tu já me conheces
e eu a ti. Vê lá, por favor,
näo mudes de nome, (207)
quando eu te confiar este de-
pósito.

*Dirige-se resolutamente
para o templo.*

Cá vou eu para a tua casa,


Boa Fé, na tua fiança fiado.
(208)

*Desaparece no bosquete que


envolve o templo.*
.. ::: linha 26
::::::::::::::::::::::::::::::
.he 94
Acto IV

Cena I

Estrobilo

*Entra pela direita o es-


cravo Estrobilo. Os seus mo-
vimentos discretos, parecem
desmentidos pela vivacidade do
olhar. Depois de inspeccionar
o terreno à sua volta, diri-
ge-se lentamente para o altar
de Apolo. À beira dos de-
graus, pára e monologa em tom
martelado e moroso.*

Estrobilo (209)
590
Funçäo do fâmulo eficiente
é fazer o que eu procuro exe-
cutar: näo vá o paträo sofrer
demora nem desmancho no cum-
primento das ordens que lhe
der. Servo que ao seu senhor
pretende servir segundo os
seus desejos, por timbre agirá
veloz para o paträo, madraço
para si.

*Um sorrisinho de malícia,


a aliviar.*

Se por acaso dorme uma so-


neca... tal näo seja a soneca
que se esqueça da condiçäo de
servo, que é a sua.

*Mas logo torna à inflexäo


do orador.*

Quem a paträo enamorado


serve em servidäo, como eu es-
tou servindo, se vê que o pa-
träo está a ser vencido pelo
amor, entenda, como eu enten-
do, que é dever do servo re-
freá-lo, para garantir a sua
salvaçäo, e näo empurrá-lo pa-
ra onde esteja a pique do
abismo.

.he 94-95
*Memórias da infância väo
florir, depois emurchecer.*

595
Como às crianças, que
aprendem a nadar, se aplicam
bóias de junco -- para se can-
sarem menos, para nadarem com
mais facilidade e irem mexendo
as mäos --, da mesma forma eu
acho
:,
.he 95
justo que o escravo seja uma
bóia para o paträo enamorado
-- a fim de o trazer à super-
fície, näo vá ele afundar-se
de cabeça, como (uma sonda de
chumbo). (210)

*Outra vez parenético e ma-


çudo.*

600
As ordens do paträo, apren-
da a conhecê-las de tal sorte
que, mal o rosto as exprimir,
os olhos as entendam. Os seus
mandados, deve apressar-se a
executá-los mais veloz que as
velozes quadrigas.

*Sombra de más recordaçöes


que o leva a espetar um dedo
cauteloso.*

Quem tomar em conta estes


preceitos ficará isento da
sançäo do vergalho de boi;
(211) e näo será por culpa
sua que häo-de reluzir as
peias dos calcetas.

*Esgotada a moniçäo, des-


camba no tom coloquial.*

Pois é verdade: o meu pa-


träo anda de amores com a fi-
lha deste nosso Eucliäo, o
pobretana.

*Gesto do polegar para


trás, na direcçäo da casa do
visado.*

Mas a cachopa -- agora o


disseram ao meu paträo -- foi
dada em casamento ao nosso
Megadoro.

*O polegar acena para a ca-


sa do ricaço.*

605
E vai o paträo mandou-me
para aqui, em missäo de reco-
nhecimento: para, se alguma
coisa se der, eu lhe dar par-
ticipaçäo.

*Olhar rápido à sua volta.*

Pois bem, para näo haver


sombra de suspeita, eu vou as-
sentar-me aqui, nesta ara sa-
grada.

*Indica os degraus do altar


de Apolo.*
.he 95-96
E daqui -- tanto para um
lado como para outro -- eu po-
derei dar fé do que fizerem.

*Vai alapar-se nos degraus


mais baixos do altar, onde se
sente a coberto dos olhos de
quem entra e de quem sai.*
::::::::::::::::::::::::::::::
:,

.he 96
Cena II

Eucliäo Estrobilo

*Eucliäo emerge, a três


quartos, do templo da Boa
Fé. Colado ainda com a por-
ta, profere estas palavras de
invocaçäo.*
Eucliäo (212)

Tu, ao menos, livra-te de


revelar a quem quer que seja
que o meu ouro está aí, ó Boa
Fé!...

*Estrobilo, que seguia os


movimentos do velho, estremece
ao captar a palavra "ouro" e
projecta imediatamente o cor-
po, para ouvir melhor.*

610
Lá medo de que alguém o en-
contre, näo tenho eu: está
guardado, e bem guardado, no
seu esconderijo. Caramba, é
que faria uma presa principes-
ca o tipo que a descobrisse...
Uma marmita abarrotada de ou-
ro!... Mas é isso que te peço
que näo consintas, ó Boa
Fé!...

*Desloca-se, apreensivo,
para o lado de casa.*

Agora vou tratar das minhas


abluçöes, para estar em condi-
çöes de fazer o sacrifício
.he 96-97
(213) e näo demorar o meu
parente. Que assim que ele me
chamar, logo possa conduzir a
minha filha para sua casa.

*Ia a acelerar, mas pára e


volta-se de novo para o tem-
plo.*

615
Vê lá, Boa Fé!... Agora
-- mais do que nunca -- faz
que eu possa retirar, sä e
salva, do teu santuário, a mi-
nha marmita. À tua lealdade
confiei o meu ouro: é no teu
bosque e no teu templo que ele
está depositado.

*Mal Eucliäo se afasta,


Estrobilo salta, alvoroçado,
dos degraus do altar.*
:,
.he 97
Estrobilo *de olhos luzentes*

Deuses do céu, mas que no-


tícia estupenda, a que eu ouvi
na conversata deste homem!...
Que ele escondeu uma marmita
abarrotada de ouro, aqui den-
tro, no templo da Boa Fé!...

*Eleva as mäos em prece.*

Näo sejas mais leal -- eu


te suplico -- para ele do que
para mim!... (214)

*Breve olhar para Eucliäo,


que se aproxima de casa.*

Ora este tipo, segundo


creio, é o pai da moça com
quem o meu paträo anda de amo-
res...

*Mas a reflexäo, longe de


servir de freio, actua como
acicate.*

620
Vou daqui lá para dentro; e
hei-de vasculhar o templo, a
ver se encontro, em algum sí-
tio, o tal ouro -- enquanto o
fabiano está ocupado.

*Corre para o templo, er-


guendo de novo os braços em
súplica à deusa.*

E se o encontrar, ó Boa
Fé, eu te oferecerei... uma
fezada litreira (215) de
vinho com mel. Esta é a ofe-
renda, sim, senhor, que eu te
hei-de oferecer...

*Com uma risada de alegria.*

Mas quem a há-de beber sou


eu -- quando ta oferecer!...
(216)

*Entra de golpe no santuá-


rio.*
::::::::::::::::::::::::::::::

.he 97-98
Cena III

Eucliäo

*Sente-se, no bosquete, o
crocitar insistente de um cor-
vo. A poucos metros da porta
de casa, Eucliäo estaca, de
ar transtornado, e volta para
trás.*
:,
.he 98
Eucliäo
625
Näo é ao deus-dará que um
corvo me canta agora à mäo es-
querda. (217) E, ao mesmo
tempo, ia raspando a terra com
os pés e crocitando à sua mo-
da... Logo o meu coraçäo se
pôs a imitar a arte dos baila-
rinos e a dar saltos no peito.
(218)

*Estuga o passo o mais que


pode.*

Mas para que estou eu com


hesitaçöes?... Toca mas é de
correr!...

*Entra arrebatadamente no
templo e sai momentos depois
arrastando Estrobilo, amarfa-
nhado sob um dilúvio de murros
e repelöes.*
::::::::::::::::::::::::::::::

Cena IV

Eucliäo Estrobilo

*Retendo a sua vítima com


um braço, o velho martela-a
com o outro, sem piedade nem
parança.*

Eucliäo *no auge do furor*

630
Salta cá para fora, minho-
ca, que de debaixo da terra
marinhaste agora mesmo!...
.he 98-99
Sim, que agora mesmo ainda
näo aparecias em parte alguma.
Mas, agora que apareces --
morres. (219) Cum raio,
deixa estar, meu impostor, que
eu te vou amanhar aqui já uma
cama de fel e vinagre!...

*O escravo debate-se, afli-


to, sem conseguir desprender-
-se nem fugir.*

Estrobilo

Mas que maluqueira é que te


deu?... Que é que eu tenho
que ver contigo, meu velho-
te?... Porque me arrepe-
las?... Porque me arras-
tas?... Porque me surras?...
(220)
:,
.he 99
Eucliäo *indignado*

Surrável-mor, (221) ain-


da perguntas?... Gatuno!...
Que digo eu?... Rei dos ga-
tunos!!! (222)

*Mais pancadas.*

Estrobilo *tentando cobrir-


-se*

Mas que foi que eu te pal-


mei?...

Eucliäo *nervosamente, de
mäo estendida*

Passa-o para cá, anda


lá!...

Estrobilo *pasmado*

Mas que queres que eu te


passe?...

Eucliäo
Ainda perguntas?...

Estrobilo
635
Se eu nada te tirei -- a
ti!...

Eucliäo

Mas aquilo que tinhas tira-


do -- para ti --, (223) dá-
-o cá.

*Estorcega-o de novo, dura-


mente.*

Despachas-te ou näo?...

Estrobilo

Mas que é que hei-de despa-


char?...

Eucliäo *impaciente*

Levá-lo daqui é que näo po-


des.

.he 100
Estrobilo

Mas que é que pretendes?...

*O velho estende de novo a


mäo.*

Eucliäo
Pöe-mo cá!...

Estrobilo *com malícia*

Cum raio, desconfio que tu,


meu velhote, tens o costume de
o ir dando por aí, a torto e a
direito... (224)

*O velho, irritado, sacode


o escravo com violência.*

Eucliäo

Pöe-mo cá, anda lá!... E


deixa-te de larachas, que eu
näo estou agora para brinca-
deiras.
Estrobilo

Mas que queres que eu po-


nha?... Porque näo chamas os
bois pelo nome... seja ele
qual for?...

*Eucliäo näo responde; e o


escravo protesta de novo a sua
inocência.*

640
Palavra que näo peguei em
nada, näo toquei em nada!...

Eucliäo *abanando a cabeça*

Mostra-me cá as mäos.

*O escravo espalma imedia-


tamente as mäos vazias e apro-
xima-as dos olhos de Eu-
cliäo.*

.he 101
Estrobilo

Aqui as tens. Já mostrei.


Cá estäo!...

*O velho examina-as com


atençäo e suspicácia.*

Eucliäo

Estou a ver... Anda, mos-


tra ainda a terceira. (225)

Estrobilo *à parte*

Aventesmas... destempe-
ros... maluqueiras... pöem a
cabeça deste velho à razäo de
juros. (226)

*A Eucliäo.*

Mas näo vês que é uma in-


justiça que me estás a fa-
zer?...
Eucliäo *ferozmente*

Uma injustiça, confesso, a


maior de todas, por näo esta-
res a pernear na forca. Mas é
isso mesmo que te vai aconte-
cer, se näo confessas.

Estrobilo
E que te hei-de confes-
sar?...

Eucliäo
645
Que foi que tiraste daqui?

Estrobilo *com solenidade*

Os deuses me arrebentem, se
eu tirei alguma coisa que fos-
se tua...

*À parte.*

... ou se näo queria mesmo ti-


rá-la!...
.he 102

Eucliäo *no comando*

Anda, sacode lá a capa.


(227)

*Estrobilo perfila-se e
obedece imediatamente.*

Estrobilo

Às tuas ordens!

Eucliäo

És capaz de o ter enfiado


entre as camisas... (228)

Estrobilo

Apalpa lá por onde te ape-


tecer.

*O velho tenteia meticulo-


samente a roupa interior do
escravo. Como a sua pesquisa
é infrutífera, simula o desdém
do homem habituado a denunciar
os logros dos outros.*

Eucliäo
Bah!... O estafermo!...
Todo melúria, para eu näo
perceber que mo palmou... Al-
drabices dessas, (229) co-
nheço-as à légua.

*Pausa para requerer a con-


traprova.*

Vamos, outra vez: mostra cá


a mäo direita. (230)

*O escravo, resignado,
apresenta-lha logo.*

Estrobilo
650
Pronto!

Eucliäo
Agora mostra a esquerda.
.he 103
Estrobilo *espalmando ambas*

Até te mostro as duas.

*O velho respira fundo, de-


pois torna à carga.*

Eucliäo

Vou deixar de te revistar.


Devolve-o cá. (231)

Estrobilo *atónito*

Mas que queres que te de-


volva?!...

Eucliäo

Ah, lá vens com as tretas


do costume!... De certeza que
o tens.

Estrobilo
Eu tenho?... Que é que eu
tenho?...
Eucliäo *casmurro*
Näo digo: mortinho estás tu
por ouvires. Isso que é
meu... seja lá o que for...
que tu tens... devolve-mo cá.

Estrobilo

Estás doido!... Já me re-


vistaste à tua vontade -- e
näo encontraste em meu poder
nada que fosse teu.

*Tenta desvencilhar-se, mas


o velho, insatisfeito (se
houvesse um cúmplice?...),
retém-no ainda.*

Eucliäo *outra vez suspei-


toso*

655
Deixa-te estar, deixa-te
estar!...

.he 104
*Ao rodar sobre si, compe-
lido pelo estrebuchäo do es-
cravo, parece-lhe entrever uma
sombra que desliza para a por-
ta do templo.*

Quem é aquele ali?...

*Sacode rijamente o escra-


vo, mas este näo se digna res-
ponder.*

Quem era o outro tipo que


estava aqui dentro contigo?...

*À parte.*

Estou arrumado, caramba!...


O tipo está agora lá dentro a
vasculhar. Este, se o largo,
safa-se daqui. Mas, afinal,
eu já o revistei... e näo tem
nada.

*Solta Estrobilo.*

Vai para onde te apetecer.


*O escravo faz-lhe uma ca-
reta e um gesto obsceno.*

Estrobilo

Júpiter e os outros deuses


te arrebentem!

Eucliäo *irritado*

Linda maneira a de este ti-


po me agradecer!...

*Em tom de ameaça.*

Pois eu vou lá para den-


tro... e àquele teu parceiro
(232) -- boa esganadela que
o espera agora!

*Estrobilo ri-se e o velho


arremete com fúria.*

.he 104-5
660
Somes-te daqui da minha
vista?... Safas-te ou näo te
safas?...

*O escravo recua, sem pres-


sa.*

Estrobilo
Safo.
:,
.he 105
Eucliäo *com veemência*

E livra-te -- por quem és


-- de eu te tornar a pôr a
vista em cima.

*Entra de novo no templo.*

::::::::::::::::::::::::::::::

Cena V
Estrobilo

*O escravo, que retrocedeu


até ao enfiamento do altar de
Apolo, estende um punho furi-
bundo na direcçäo da porta por
onde Eucliäo desapareceu.*

Estrobilo *rilhando os den-


tes*

Morto e remorto me quisera


de má morte, se näo armar hoje
uma emboscada àquele velho!...
(233)

*Pausa. Depois da fúria, a


reflexäo.*

Pois é... Aqui, já ele se


näo atreverá a esconder o ou-

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