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A COMÉDIA DA MARMITA
PLAUTO
Textos Clássicos -- 22
A Comédia
Da
Marmita
Plauto
Introduçäo, versäo do
latim e notas de
Walter de Medeiros
Instituto Nacional de
Investigaçäo Científica
Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da
Universidade de Coimbra
Coimbra
1985
1. A História
2. O Protagonista
3. Uma Espécie De
Moralidade
1. Depois do achamento do
*Dyskolos* -- que ofereceu,
em Cnémon, o desenho esclare-
cedor de uma figura "parale-
la", embora muito diversa da
de Eucliäo --, parece difícil
recusar a Menandro a paterni-
dade do modelo da *Aulula-
ria*; mas alguns autores, como
Sandbach e Della Corte,
ainda se mostram reticentes ou
negativos a este respeito. A
comédia utilizada seria o
*Apistos*, no entender de
Webster e Gaister; uma das
duas (?) peças intituladas
*Thesauros* ou mesmo um hipo-
tético *Philargyros*, segundo
Ludwig: a *Hydria*, para
Kraus e Aloni. Nenhum dos
argumentos invocados pode, em
boa verdade, considerar-se de-
cisivo.
2. Os últimos estudiosos
que se têm ocupado da cronolo-
gia da *Aulularia* säo con-
cordes em situar esta comédia
no período da maturidade de
Plauto (entre 195, data da
ab-rogaçäo da *lex Oppia*
contra o luxo feminino, e 186
a.C., ano do senato-consulto
de *Bacchanalibus*: mais
exactamente entre 194 e 191
a.C., se *commutare coloniam*
do v. 576 aludir à institui-
çäo de numerosas colónias em
194 a.C., e as prováveis re-
ferências aos Gauleses nos
vv. 395 e 465-472 se expli-
carem com as campanhas dos
Romanos contra este povo, de
196 a 191 a.C.). A re-
quintada estrutura dos *canti-
ca* -- pouco numerosos, aliás
-- confirmaria essa dataçäo.
4. Perderam-se as últimas
cenas da *Aulularia*, mas --
graças ao prólogo proferido
pelo Lar da Família, aos
fragmentos citados por Gélio
e Nónio, e às informaçöes
contidas nos dois argumentos
de abertura -- é possível co-
nhecer o desfecho da peça.
Nos fins do século Xv,
quando aumentava o interesse
pelas comédias latinas, o hu-
manista Codro Urceo, profes-
sor em Bolonha, redigiu, para
possibilitar a representaçäo
da *Aulularia*, um texto des-
tinado a suprir a parte desa-
parecida.
.he 29
A Comédia Da Marmita
.he 30
Argumento I
Argumento II
.he 31
Prólogo
O Deus Lar Da
Família (3)
*em toada amena*
Escusam de se admirar e
perguntar: "Quem é?..." Em
poucas palavras eu lhes vou
dizer.
Eu sou o Lar da Família
-- desta família de onde me
viram sair. (4)
5
Esta casa, há muitos anos
já que é meu senhorio e mora-
da: (5) para bem do pai e
do avô do fabiano que actual-
mente aqui reside.
10
Realmente o avô deste tipo
é que me fez o pedido e me
confiou um tesouro... De ou-
ro, sim, senhor! Às escondi-
das de todos, no forro da la-
reira o foi enterrar; e de
joelhos me suplicou que lho
guardasse só para ele. Nem
quando estava para morrer
(tal era a esganaçäo daquela
alma!...), nem mesmo nessa
altura quis revelar o segredo
ao filho. Ao próprio filho,
vejam lá!...
15
Quando morreu este fulano
que me confiou o ouro, comecei
a observar se por acaso o fi-
lho me trataria com mais aca-
tamento do que tinha tratado o
pai. Pois a verdade é que ele
cada vez menos importância me
ligava e cada vez menos home-
nagens me prestava.
25
O nosso homem tem uma fi-
lha, uma apenas. (8) E
ela, todos os dias (näo falha
um), lá está a reverenciar-me
com incenso ou com vinho ou
com alguma coisa do género; e
ainda me oferece grinaldas.
.he 32-3
Foi em atençäo a estas home-
nagens que eu fiz com que o
nosso Eucliäo descobrisse o
tesouro. (9) Assim, será
mais fácil dar a rapariga em
casamento, se o velho estiver
pelos ajustes.
30
É que a moça foi violada
por um jovem da alta-roda. O
jovem sabe quem é a moça que
ele violou, mas ela näo sabe.
E o pai, esse nem sequer sabe
que a moça foi violada.
:,
.he 33
*Com um ar lampeiro, apro-
xima-se mais da assistência.*
35
lhe peça a moça em casamento.
A minha intençäo é fazer que
o jovem possa, mais facilmen-
te, casar com aquela que vio-
lou. Porque o velho que a vai
pedir em casamento é tio, por
banda da irmä, do jovem que a
desonrou, na noite das festas
em honra de Ceres. (10)
Cena I
Eucliäo Estáfila
Eucliäo *furibundo*
40
Sai, já disse!... Vamos,
sai!...
Estáfila
*a arquejar sob a tormenta*
Eucliäo
*encarniçado na tunda*
.he 35
Eucliäo
*de olhos fuzilantes*
45
E a ti é que eu hei-de dar
satisfaçöes, minha seara de
aguilhadas?... (13)
50
Antes os deuses me atirem
para a forca do que eu ande a
.he 35-6
servir em tua casa nestas con-
diçöes!...
Eucliäo *preocupado*
55
Arreda-te mais -- coa bre-
ca!... Mais -- coa breca!...
Mais... Alto! Aí é que de-
ves parar!... (17)
65
Agora vou ver se o ouro es-
tá como o escondi. Esse ouro
que, de tantas maneiras, ator-
menta um desgraçado como
eu!...
Cena II
Estáfila
.he 37
Estáfila
70
Näo, palavra de honra...
Gostava de saber o que é que
deu ao meu paträo... que coisa
ruim... ou que maluqueira...
Mas näo consigo imaginar.
Pois é... deste jeito... a
uma desgraçada como eu... säo
vezes e vezes -- dez em um dia
-- que ele me escorraça de ca-
sa. (23)
*Mais calma.*
75
Já näo consigo, näo... Co-
mo é que hei-de encobrir a de-
sonra da filha do meu paträo,
que tem o parto à porta?...
(24) Näo, já näo consigo
imaginar.
Cena III
Eucliäo Estáfila
80
Ufa!... De alma desembor-
rada (26) -- era tempo --
eu posso sair de casa. Já ve-
rifiquei que lá dentro está
tudo a salvo... tudo.
Estáfila
*com um ar mofento de
desforço*
Eucliäo *carranqueando*
85
Só me admira que, pelos
teus lindos olhos, Júpiter me
näo transforme no rei Filipe
ou em Dario! (28)
90
Livra-te de meteres algum
estranho cá em casa. (31)
Pode vir alguém pedir lume:
por isso eu quero-o apagado --
para näo haver razäo de alguém
to andar pedindo. Se o lume
estiver aceso, és tu que serás
apagada: em um abrir e fechar
de olhos.
E diz que a água se esca-
pou, se alguém a pedir.
(32)
:,
.he 39
95
Faca, machado, piläo, almo-
fariz... esses utensílios que
os vizinhos andam sempre a pe-
dir emprestados... vieram os
ladröes e levaram-nos -- é o
que tu hás-de dizer. (33)
Em suma -- na minha casa,
na minha ausência --, ninguém!
Näo quero que deixes entrar
seja quem for.
Estáfila *sardónica*
Estáfila
.he 40
105
Säo as penas do inferno que
eu sinto na alma, só por ter
de sair de casa. E -- cum
raio! -- é bem contra vontade
que eu saio.
110
Mas sei o que devo fazer.
O nosso presidente -- o pre-
sidente da nossa cúria --
(37) anunciou que ia dis-
tribuir uma moeda de prata por
cabeça. (38) Se deixo a
moeda e näo a vou reclamar,
logo toda a gente -- tenho es-
sa impressäo -- vai desconfiar
que eu tenho ouro em casa.
Sim, näo é razoável que um
pobretana se desinteresse de
uma moeda, por poucachinha que
seja, ao ponto de näo a ir
buscar. (39)
*Com uma careta de mártir.*
115
Pois é... Quanto mais eu
escondo esta coisa de toda a
gente, com muito cuidado, para
näo saberem -- mais me parece
que toda a gente sabe. E toda
a gente me saúda com mais de-
ferência do que saudava dan-
tes. Vêm ter comigo... armam
tenda... däo-me apertos de
mäo... E fazem-me pergun-
tas... como é que vai a minha
saúde... que é que eu tenho
feito... de que negócios me
ocupo... (40)
Cena I (41)
Eunómia Megadoro
120
Desejaria que tu, meu ir-
mäo, considerasses estas pala-
vras ditadas pela minha since-
ridade e pelo teu interesse:
como é justo da parte de uma
irmä que o seja de verdade.
(42)
125
Bem entendido que eu näo me
iludo: nós temos fama de maça-
doras. Tagarelas de marca é o
conceito que granjeámos to-
das... e com razäo. E dizem
que mulher muda -- mas muda de-
veras --, foi coisa que nunca
se encontrou, nem agora nem em
tempo algum. (43)
.he 41-42
130
Mas há uma coisa, meu ir-
mäo, que deves ter presente...
E é a seguinte: que tu näo
tens parente mais chegado do
que eu, nem eu do que tu. Por
isso é justo que ponderemos o
que convém a um e a outro...
que tu a mim e eu a ti nos dê-
mos conselhos e advertên-
cias... e näo andemos com ar-
cas-encoiradas nem a bichanar
entre dentes, por temor... an-
tes devemos partilhar confi-
dências com igual franqueza:
eu contigo e tu comigo.
:,
.he 42
*Pausa. Como a bonomia de
Megadoro perdura inabalada,
aquele prefácio podia termi-
nar.*
Megadoro *efusivo*
135
Ora deixa cá ver essa mäo-
zada, mulher às direitas!...
(45)
Eunómia
Onde está ela?... Quem é,
afinal, essa mulher às direi-
tas?...
Megadoro *caloroso*
Tu!...
Eunómia
*simulando incredulidade*
"Tu"?!... Foi o que dis-
.he 42-43
seste?...
Megadoro
Bem... se dizes que näo...
eu digo que näo!...
Eunómia
*no mesmo tom de desenfado*
140
A um homem como tu, só fica
bem dizer a verdade... Mas
olha que mulher às direitas...
nenhuma se pode eleger. Caro
irmäo, säo todas umas piores
do que as outras. (46)
:,
.he 43
Megadoro *rindo*
Eunómia
Ora dá-me a tua atençäo,
por favor.
Megadoro *pressuroso*
Está às tuas ordens: dispöe
e manda, como te aprouver.
.he 43-44
Eunómia *acudindo à deixa*
Megadoro *protegendo a
cabeça com ambas as mäos*
Eunómia *surpresa*
Entäo porquê?...
Eunómia *insinuante*
Megadoro *zombeteiro*
155
Bem, se alguma mulher me
queres arranjar, eu casarei...
nestas condiçöes: a que amanhä
vier... depois de amanhä a le-
vem a enterrar!... (51)
Nestas condiçöes, se alguma
me queres arranjar... pronto!
Prepara as bodas.
Eunómia
160
Até te posso arranjar uma,
meu irmäo, com um dote de alto
preço. (52) Mas já é en-
tradota... o que se chama uma
mulher de meia idade. Se me
autorizas, meu irmäo, a que eu
a peça para ti... eu vou pe-
dir.
Megadoro
Näo me dás licença de eu te
fazer uma pergunta?...
Eunómia *intrigada*
Por quem és!... Pergunta o
que te apetecer. (53)
.he 45-46
Megadoro *risonho*
Vamos supor que um homem
passante da meia idade casa
com uma mulher de meia ida-
de... Se o velho -- por bam-
búrrio -- engravidar a ve-
lha... näo te parece que ao
menino está reservado o nome
de... Póstumo?!... (54)
Eunómia
170
Mas entäo diz-me lá, por
favor, quem é a mulher com
quem queres casar?...
Eunómia *apreensiva*
Megadoro
Eunómia *suspirando*
175
Os deuses abençoem esta
uniäo!
Megadoro *sorridente*
Megadoro
Saúde é o que te desejo.
Eunómia
E eu a ti, meu irmäo.
Eucliäo Megadoro
Eucliäo
180
Bem me agoirava (60) o
coraçäo, ao sair de casa, que
as minhas passadas eram väs.
Por isso eu me ausentava con-
tra vontade. Nem um só dos
membros da cúria se dignou
aparecer; nem o presidente,
que devia distribuir o dinhei-
ro.
*Megadoro adianta-se um
pouco -- quanto basta para
cortar a passagem a Eucliäo.*
Eucliäo *friamente*
.he 49
Megadoro
Eucliäo *à parte*
185
Näo é por obra do acaso que
um rico saúda com deferência
um pobretana. Aquele tipo já
sabe que eu tenho ouro: é por
isso que me cumprimenta com
tanta afabilidade.
Megadoro *insistente*
Megadoro
Caramba, se o teu coraçäo
se souber contentar, tens o
bastante para levares uma vida
asseada.
Megadoro
190
Mas que estás tu a falar
sozinho?...
Eucliäo *à parte*
195
Promessas näo faltam, na
hora dos assaltos. E abre ca-
da goela a ver se me papa o
ouro!... Em uma mäo traz a
pedra, na outra mostra o päo.
Näo me fio do ricaço que ba-
rateia finezas a um pobretana.
Quando lhe deita a mäo com
gentileza, é para lhe pespegar
ali algum quebranto. Bem os
.he 50-51
conheço eu, os polvos desta
laia, que, onde quer que to-
cam, nunca mais despegam.
(67)
.he 51
Megadoro
200
Ora dá-me atençäo um boca-
dinho. Em poucas palavras,
(68) Eucliäo, há um assun-
to que gostava de tratar con-
tigo: um assunto que interessa
a ambos -- a mim e a ti.
Eucliäo
Megadoro *surpreso*
Aonde vais?...
Megadoro
205
Desconfio, palavra, que,
mal eu lhe tocar no assunto da
filha, para lhe pedir que ma
prometa em casamento, o homem
vai cuidar que eu estou a fa-
zer pouco dele... Näo há ou-
tro indivíduo, neste mundo, a
quem a pobreza torne mais re-
traído do que ele. (70)
:,
.he 52
*Rumor de gonzos. Eucliäo
reaparece, descontraído, à
porta de casa.*
Eucliäo *à parte*
Megadoro
Bem hajas!
*Pausa. Expectativa de
Eucliäo, embaraço de Megado-
ro.*
210
Ouve cá... Gostava de te
fazer umas perguntas... Näo
tenhas receio de me responder
.he 52-53
com franqueza. (73)
Eucliäo *desconfiado*
Megadoro
Ora diz-me cá: qual é a tua
opiniäo sobre a minha família?
Eucliäo
Boa.
Megadoro
E sobre o meu procedimento?
Eucliäo
Näo é mau nem perverso.
Megadoro
A minha idade, sabes qual
é...
Eucliäo *com um vislumbre
de ironia*
215
Pois eu, em boa verdade,
sempre te considerei um cida-
däo limpo de toda a pecha de
malvadez. E como tal te con-
sidero ainda. (74)
.he 53-54
*A Megadoro, em tom inci-
sivo.*
Megadoro
Bem, já sabes quem eu sou e
eu sei quem tu és... Pois
oxalá que a coisa redunde em
benefício para mim, para ti e
para a tua filha...
Eucliäo
220
Eh lá, Megadoro, näo é
digno de ti este modo de pro-
ceder: vires troçar de mim, um
pobretana, que nunca te ofen-
deu, nem a ti nem aos teus!...
Da tua parte, nem por pala-
vras nem por acçöes eu mereci
que me fizesses a afronta que
me estás a fazer. (76)
.he 54-55
Megadoro *aflito*
225
Para que tu, graças a mim,
alcances maior vantagem na vi-
da. E eu também, graças a ti
e aos teus.
:,
.he 55
Eucliäo
230
Há uma coisa, Megadoro,
que me vem à cabeça... e é que
tu és um homem rico e bem re-
lacionado... E, também, que
eu sou um homem pobre... o
mais pobre dos pobres...
(78) Se eu te desse a mi-
nha filha... sabes o que me
vem à cabeça?... Que tu és o
boi e eu o jerico... Quando
eu estivesse atrelado conti-
go... quando näo pudesse
aguentar o peso em pé de
igualdade... lá ficaria eu --
o jerico -- esbarrondado na
lama... e tu -- o boi -- näo
me ligarias mais importância
do que se eu nunca tivesse
nascido.
*Pausa reconcentrada e
amarga.*
*Suspiro fundo.*
235
É um perigo enorme -- pas-
sar dos burros para os bois.
(79)
Megadoro
Quanto mais uma pessoa se
chega ao convívio dos bons,
tanto maior é o seu proveito.
(80)
.he 55-56
*Com voz persuasiva.*
.he 56
Eucliäo
Mas olha que eu näo tenho
sombra de dote para lhe dar.
Megadoro
*com um gesto largo*
Eucliäo
240
É uma prevençäo que estou
fazendo... Näo cuides que eu
descobri tesouros.
*Insinuante.*
Promete lá.
.he 56-57
Mas, em nome de Júpiter...
será que eu estou liquida-
do?!...
Megadoro *estupefacto*
Que é que te sucedeu?...
Eucliäo *transtornado*
.he 57
Megadoro
É aqui em minha casa. O
jardim, que eu mandei cavar...
Eucliäo
250
Cum raio, se eu te näo man-
dar arrancar a língua...
(84) e há-de ser pela
raiz... quem te dá a ordem e a
autorizaçäo sou eu mesmo: pega
em mim e manda-me castrar a
quem tu quiseres!... (85)
*fecha a porta e, de má ca-
tadura, aproxima-se outra vez
de Megadoro. Mas, desta vez,
também o vizinho o acolhe de
má sombra.
Megadoro
Caramba, vejo que tu me
consideras, Eucliäo, um tipo
bom para dar espectáculo, mes-
mo em idade avançada. Mas eu
näo te mereço esse tratamento.
Megadoro
255
Entäo em que ficamos?...
Sempre me prometes a tua fi-
lha?...
Eucliäo *cautamente*
Naquelas condiçöes... com o
dote que te disse.
Megadoro
Prometes, entäo?...
Eucliäo *a custo*
Prometo.
.he 58-59
Megadoro
Os deuses abençoem esta
uniäo!...
Eucliäo *maquinalmente*
Assim seja!
*Mas volta logo à carga.*
Vê lá se te näo esqueces do
que se combinou: que a minha
filha te näo levará dote al-
gum. (87)
Megadoro *sorrindo*
Näo me esqueço.
:,
.he 59
260
É que eu bem sei dos expe-
dientes que voces usam para
roerem a corda... O que está
combinado näo está combinado;
o que näo está combinado, está
combinado... Como lhes dá na
real gana. (88)
Megadoro *paciente*
Nenhuma questäo se levanta-
rá entre mim e ti.
É só isso...
Megadoro *sorridente*
Pois vai-se tratar do as-
sunto. E saúde! (89)
Eucliäo
265
Lá se foi, o fabiano...
Deuses imortais, vejam só o
poder do ouro!... Está danado
por ele!... Foi por isso que
se encarniçou tanto em obter
esta aliança.
Cena III
Eucliäo Estáfila
270
Essa loicinha, aí dentro,
trata de a lavar bem lavada, e
depressa. (91)
Estáfila
Os deuses abençoem esta
uniäo...
Estáfila *arrepelando os
cabelos*
275
E agora, que vou fazer?...
Agora é que temos a desgraça
à vista, eu e a filha do meu
paträo. Agora é que o panta-
nal e o parto estäo mesmo à
porta da praça pública. Agora
é que o segredo, tapado e em-
biocado até aqui, já se näo
pode calar.
*Suspiro longo.*
:,
.he 62
Mas palavra que o meu medo
é mamar uma mistela de males e
amargores. (22)
Cena IV
Pitódico
280
O meu amo andou a fazer
compras no mercado, e contra-
tou os cozinheiros e estas
flautistas lá no foro.
.he 63
Congriäo *sarcástico*
285
Mas que lindinho e envergo-
nhado me saiu, de verdade, es-
te picadeiro do povinho!...
E, afinal, se alguém quises-
se, näo eras tu que näo a que-
rias... a rachadela... (95)
ântrax *curioso*
Ah, casa... E com a filha
de quem?...
Pitódico
290
Com a de um vizinho, Eu-
cliäo, que mora aqui ao pé.
ântrax
Pelos vistos... queres di-
zer, lá na tua: metade para
aqui
*Aponta a de Megadoro.*
:,
.he 64
Pitódico *arremedando-lhe o
intróito*
ântrax *surpreso*
295
Como?!... Entäo este ve-
lhote näo podia fazer, do seu
bolso, as despesas para as bo-
das da filha?... (97)
Pitódico
Livra!...
ântrax
Qual é a dificuldade?...
ântrax *incrédulo*
Mas estás a falar a sé-
rio?... Será mesmo assim como
dizes?...
Pitódico *animando-se*
.he 64-65
300
Julga por ti mesmo. (99)
(Este é um tipo que, se tem
de fazer uma despesa de caca-
racá, diz logo) que perdeu
toda a fazenda e ficou virado
de catrâmbias. (100) Mais
ainda: clama logo pela ajuda
dos deuses e dos homens, se
uma pitada de fumo se escapa
das traves do seu tecto.
(101)
ântrax *pasmado*
E para quê?...
Pitódico *rindo*
Para näo perder -- sabe-se
lá!... -- alguma lasquinha do
bafo enquanto dorme!...
ântrax *mordaz*
305
E näo tapa também os gorgo-
milos de baixo... para näo
perder -- sabe-se lá!... --
alguma lasquinha... de vento,
(102) enquanto dorme?...
Pitódico
Mas sabes outra do seu jei-
to?... Cum raio, até a água
ele chora, quando toma banho,
.he 65-66
só porque se está vertendo!...
ântrax *irónico*
310
Achas entäo que este velho
se pode enternecer ao ponto de
nos dar um talento, dos gran-
des, (104) para a gente
comprar a liberdade?...
ântrax *declamatório*
Pitódico *triunfante*
315
Ora estás a ver como a sua
vida é mesmo mesquinha e mise-
rável?...
*Gargalhada de ântrax.
Pitódico, no seu papel didas-
cálico, sorri apenas.*
.he 66-67
320
E há milhentas histórias
como esta que eu poderia con-
tar, se houvesse lazer.
*Assume de novo um ar de
circunstância.*
ântrax *enxofrado*
Pois cozinheiro é que eu
digo!
Pitódico
E tu, que dizes?...
ântrax *desdenhoso*
325
Um cozinheiro da feira dos
nove -- é o que ele é: só de
nove em nove dias é que arran-
ja para ir cozinhar. (110)
Ga-tu-no!!!...
ântrax *histérico*
Gatuno és tu!... Gatuno
três vezes digno da forca!...
(111)
Pitódico *a ântrax*
Pitódico *a Congriäo*
E vocês acompanhem-no.
320
Vocês, os restantes, väo
para aqui, para a nossa casa.
Congriäo
Cum raio, injusta é a re-
partiçäo que tu fizeste: o
cordeiro mais gordo, säo eles
que o têm.
Pitódico *conciliador*
*A Frígia.*
*A flautista incorpora-se no
grupo de Congriäo. Pitódico
volta-se para Elêusio.*
.he 68-69
*Elêusio junta-se ao grupo
de ântrax e entra com ele em
casa de Megadoro. Congriäo
fica-se irritado, de mäos na
cinta.*
:,
.he 69
Congriäo *azedamente*
335
Ó Pitódico assolapado, tu
entäo impontaste comigo para
aqui, para casa deste velho
unhas-de-fome?... (114)
Aqui, onde, se eu pedir algu-
ma coisa, a pedirei até enrou-
quecer, primeiro que ma
dêem?... (115)
Como assim?...
Pitódico *paciente*
*Designa a de Eucliäo.*
*Pausa calculada.*
345
há grande barafunda de criada-
gem, alfaias, ouro, roupas,
vasos de prata... (116)
Entäo, se desaparecer alguma
coisa -- eu sei que és capaz
de näo tocar em nada... se na-
da estiver à mäo --, väo di-
zer: "Foram os cozinheiros
que a levaram!... Agarrem-
-nos!... Amarrem-nos!... Dê-
em-lhes uma surra!... Ferrem
com eles na cisterna!..."
(117)
:,
.he 70
*Um quadro tétrico que pa-
rece deixá-lo sucumbido.*
Congriäo *resignado*
*Pitódico, Congriäo e os
seus moços dirigem-se para a
casa de Eucliäo.*
::::::::::::::::::::::::::::::
Cena V
Pitódico
350
Eh, Estáfila, pöe esse na-
riz cá fora e abre a porta!
Pitódico
Que recebas estes cozinhei-
ros, a flautista e as provi-
söes para a boda.
Estáfila *desapontada*
Pitódico *sorrindo*
Mas já väo trazer, quando o
.he 71-72
paträo voltar do foro.
Estáfila
Lenha, aqui em casa, é coi-
sa que näo há.
:,
.he 72
Congriäo *sardónico*
Congriäo *duramente*
Estáfila *indignada*
360
Como?!... Impuro de uma
figa (apesar de seres devoto
de Vulcano), (119) já te
ensaiavas -- por mor da ceia
ou da soldada -- a pedir que
queimássemos a nossa própria
casa?!...
Pitódico *a Estáfila*
Estáfila
Venham comigo.
*O cozinheiro, os ajudantes
.he 72-73
e a flautista entram em casa
de Eucliäo.*
:,
::::::::::::::::::::::::::::::
.he 73
Cena VI
Pitódico
*Antes de a porta se fe-
char, o escravo lança ainda
uma última advertência.*
Pitódico
E trabalhem!...
365
A näo ser que eu fizesse
uma coisa... era a única saí-
da... pô-los a cozinharem o
jantar na cisterna! E, depois
de cozinhado, puxávamos cá pa-
ra cima em uns cestinhos!...
*Acelera o passo.*
370
Mas eu estou para aqui a
dar à taramela, como se näo
.he 73-74
houvesse que fazer, (121)
quando a casa está invadida
por uma corja de rapinado-
res!... (122)
Eucliäo Congriäo
375
Chego ao mercado, pergunto
o preço do peixe: apontam-
-mo... um dinheiräo. Pelo
borrego, um dinheiräo... Pela
vaca, um dinheiräo... Pela
vitela, pelo atum, pelo por-
co... um dinheiräo por tudo.
Um dinheiräo ainda maior para
mim -- que näo tinha chavo.
(124)
390
Uma marmita maior, se hou-
ver!... Vai buscá-la aí à vi-
zinhança. Esta é pequena: näo
leva o bastante. (131)
Eucliäo
Pobre de mim!... Estou li-
quidado, cum raio!... O meu
ouro, estäo a roubá-lo!...
Até uma marmita procuram!...
(132)
Cena VIII
ântrax
400
Dromäo, descama os peixes.
Tu, Maqueriäo, (135) vê
lá o congro, a moreia... des-
pinha-os o mais depressa que
puderes. Eu vou aqui ao vizi-
nho
405
Vou mas é safar-me cá para
dentro, antes que nos aconte-
ça, por aqui, algum banzé do
mesmo género.
*Desaparece no interior da
casa de Megadoro.*
::::::::::::::::::::::::::::::
.. ::::: linha 12
.he 77
Acto III
Cena I
Eucliäo Congriäo
Ajudantes Frígia
415
Torna cá!... Para onde
vais a fugir, hem?...
Agarrem-no!... Agarrem-
-no!...
Eucliäo *rabioso*
Congriäo
E porquê?
Eucliäo
Porque tens uma faca na
mäo.
:,
.he 79
Congriäo *encolhendo os om-
bros*
É ferramenta de cozinheiro.
Eucliäo
E porque me ameaçaste com
ela?... Hem, a mim?...
Congriäo *azedamente*
Eucliäo
420
Nunca se viu patife maior
nos dias desta vida!...
(147) Nem tipo a quem eu
quisesse ferrar uma tunda com
mais convicçäo e mais pra-
zer!...
Congriäo *ironicamente*
Eucliäo *indignado*
*Esquecendo a prudência,
tenta agredir de novo o cozi-
nheiro, atinge-o ainda na ca-
beça, mas Congriäo levanta a
faca em atitude de franca
ameaça.*
:,
.he 80
Congriäo *resolutamente*
425
Alto -- cum raio! -- ou co-
mes pela medida grande... se
esta cabeça é das que sentem.
Eucliäo
Bem, pelo futuro näo res-
pondo...
Congriäo
Entäo está calado.
430
E que tens tu -- raios! --
que te preocupar se eu como
cru ou cozido?... Näo és meu
tutor, pois näo?... (151)
Congriäo
Quero saber se deixas ou
näo deixas que cozinhemos aqui
o jantar.
:,
.he 81
Eucliäo
E eu quero saber também se
as minhas coisas -- em minha
casa -- häo-de ficar a salvo.
Congriäo
Desde que as minhas -- que
eu trouxe para tua casa --, as
possa também tirar a salvo. É
quanto me basta: o que é teu
-- nem sequer o cobiço.
Eucliäo *irónico*
Já sei: escusas de me ex-
plicar. Bem te conheço.
(152)
440
Ainda perguntas, grande sa-
fado, quando tu e os teus --
por todos os cantos da minha
casa e até pelos escaninhos --
andavam a meter o nariz?!...
(153) Ali, à beira do lu-
me, é que era o teu lugar de
trabalho. Se te deixasses es-
tar ali, näo sairias de cabeça
rachada. Assim o quiseste,
assim o tiveste.
*Pausa ameaçadora.*
*Indica a de casa.*
sem eu te mandar, um bocadinho
que seja... eu farei de ti o
mais desgraçado dos mortais.
(154)
.he 82
*Espeta o dedo com soleni-
dade.*
Congriäo *desesperado*
445
Aonde vais tu?... Torna
cá!... Assim Laverna
(155) me proteja como a ti
agora! Se me näo mandas en-
tregar os utensílios, vou-te
esquartejar com uma algazarra
(156) aqui diante da tua
casa!...
Cena III
*Reabre-se lentamente a
porta da casa de Eucliäo. O
velho sai, aconchegando sob as
vestes, o melhor que pode, a
marmita do tesouro.*
450
Esta -- coa breca! --, para
.he 82-83
onde eu for, comigo há-de ir,
comigo a hei-de levar: näo
mais deixarei que fique ali
Congriäo *ressentido*
Eucliäo
455
Anda mas é lá para dentro.
Aqui, para trabalhar é que
vos contrataram, näo foi para
discursar.
Congriäo
Ouve lá, velhote: pela sova
que me deste... deixa estar,
caramba, que eu te hei-de
apresentar a conta. Foi para
cozinhar, näo foi para ser so-
vado que há pedaço me contra-
taram. (162)
.he 83-84
Eucliäo *com desdém.*
Congriäo *indignado*
Cena IV
Eucliäo
460
Ora lá se foi daqui o fa-
biano...
Desgraçado de mim!...
*Aproxima-se novamente da
porta.*
465
E alinhou com eles, ainda
por cima, lá dentro,
.he 84-85
470
pôs-se ali mesmo a esgaravatar
(167) com as unhas, à roda,
mesmo à roda... Mais rodeios,
para quê?... Deu-me uma vene-
ta das antigas: (168) rapo
do varapau e esborracho o galo
-- ladräo apanhado com a boca
na botija. (169) Cum raio,
acredito que os cozinheiros
tinham prometido uma gorjeta
ao galo, se ele lhes revelasse
o paradeiro da coisa... Mas
eu safei-lhes a gadanha dos
gadanhos. (170) Mais ro-
deios, para quê?... Assim se
travou batalha com o galo...
galináceo!... (171)
:,
.he 85
Cena V
Megadoro Eucliäo
.he 85-86
*Pausa. O ar desenfadado
preludia a uma reflexäo de
largo fôlego.*
480
De facto -- em minha opi-
niäo, pelo menos --, se os ou-
tros fizessem o mesmo, isto é,
se os ricaços casassem com as
filhas dos pobretanas,
(174) que näo têm dote, ha-
veria muito mais concórdia na
cidade; nós enfrentaríamos uma
hostilidade menor do que aque-
la que enfrentamos, elas te-
riam mais receio dos nossos
castigos do que têm; e nós fa-
ríamos menos despesas do que
fazemos.
485
Para a maior parte dos ci-
dadäos seria a melhor soluçäo.
:,
.he 86
Só uns quantos esganados pro-
testariam porque a seus sôfre-
gos apetites e desejos insa-
ciáveis (175) näo há lei
nem... sapateiro que lhes
abranja as medidas. (176)
490
Claro que vai haver quem
diga o seguinte: "E com quem
häo-de casar as ricas, que têm
dote, se tal direito se reser-
va às pobres?..." Pois casem
com quem quiserem, desde que o
dote näo as acompanhe.
(177)
*Assume, sem querer, um ar
severo.*
Se vigorasse um princípio
assim, elas procurariam adqui-
rir e levar como dote predica-
dos melhores do que os que le-
vam agora.
495
E eu conseguiria que as mu-
las, que custam mais que os
cavalos, se vendessem mais ba-
rato que as pilecas gaulesas.
(178)
Eucliäo *deleitado*
500
Nenhuma, deste modo, teria
coragem de dizer: "Sim, por-
que eu trouxe-te um dote muito
maior que os patacos que ti-
nhas. Por isso é justo que me
.he 86-87
dês púrpura e ouro, escravas,
mulas, azeméis, moços de sé-
quito, pajenzinhos para os
cumprimentos, cabriolés para
eu cabriolar." (179)
Eucliäo *entusiasmado*
*Pausa desconsolada*
510
Ali os temos especados: o
lavandeiro, o recamador, o ou-
rives, o fabricante de läs...
E toda a casta de mercadores:
os franjeiros, os chambreiros,
os vermelheiros, os violetei-
ros, os nogueireiros... Ou
entäo os balandrauzeiros ou os
perfumeiros, os revendedores
de roupa branca, os botinei-
ros... Ali os temos de
514
plantäo: os sedentários sapa-
tei-ros, os chapineiros, os
sanda-leiros... E ainda os
malveiros... e ainda os sutia-
nei-ros... e ainda, ao mesmo
tem-po, os cinteiros...
520
Já estäo pagos -- cuidava a
gente... Mas väo-se estes, e
aparecem a cobrar outros tre-
zentos, enquanto ficam de ata-
laia, nos átrios, como pedin-
tes de sacola, os passamanei-
ros, os cofreiros... Säo re-
cebidos, dá-se-lhes o dinhei-
ro.
Já estäo pagos -- cuidava a
gente... quando avançam os
tintureiros de açafräo...
(183) Há sempre algum es-
tafermo (184) a reclamar
alguma coisa.
Megadoro *indigesto*
525
E quando se acabou de pagar
a estes traficantes de bugia-
rias... (186) a todos... lá
avança por fim o soldado...
:,
.he 88
reclama o seu dinheiro.
(187) Vai a gente fazer a
estimati-va da conta com o ban-
queiro. O soldado, com a bar-
riga a dar horas, lá fica de
plantäo, convencido de que vai
receber o dinheiro. Quando se
acaba a discussäo da conta com
o ban-queiro... vê-se que é o
530
dono da casa que deve agora ao
banqueiro!... E as esperanças
do soldado ficam dilatadas pa-
ra outro dia.
535
Säo estes e muitos outros
os quebra-cabeças e os gastos
insuportáveis que os grandes
dotes acarretam. (188) Mu-
lher sem dote está na mäo do
marido. As que têm dote säo a
desgraça e a ruína dos mari-
dos. (189)
*Eucliäo descobre-se e
avança alguns passos. Megado-
ro, ao sentir rumor, volta-se
e dá de cara com o vizinho.*
Cena VI
Eucliäo Megadoro
.he 89
Megadoro
540
Mas olha que -- a meu ver,
pelo menos -- andarias um pou-
co melhor, se te apresentasses
com mais elegância para as bo-
das da tua filha.
Megadoro
545
Lá isso tens [<...>] E os
deuses acrescentem e protejam
os bens que agora possuis.
(192)
Megadoro *surpreso*
555
"Entäo que há?..." Ainda
me perguntas?... Tu que me
encheste de ladröes todos os
cantos da casa!... A mim, um
desgraçado!... Tu que me en-
fiaste em casa quinhentos co-
zinheiros, com seis mäos cada
um, da raça dos Geriöes?...
(196) Daqueles que, se
fosse a guardá-los Argos --
que era todo olhos e que Juno
pôs de sentinela a Io --, nem
mesmo esse os guardaria!...
(197) Para näo falar da
flautista, que seria capaz de
escorripichar -- se repuxasse
vinho -- a fonte de Pirene,
560
em Corinto. (198) E entäo
.he 90-91
as provisöes...
Megadoro *picado*
Quanto ao cordeiro, eu te
garanto que nunca se viu bicho
mais... curado.
Megadoro
Gostava que me dissesses
porque é que o cordeiro é "cu-
rado".
Eucliäo
Eucliäo
Pois era muito melhor que o
tivesses encomendado (202)
para lhe fazeres o funeral:
que morto já vem ele, quer-me
parecer.
Megadoro
Emborrachar-me hoje conti-
go, Eucliäo, é o meu desejo.
Eucliäo
570
Emborrachar-me?!... Isso é
que näo, caramba!...
Megadoro
Pois olha que eu vou mandar
vir de minha casa um pipo de
vinho velho.
*Eucliäo, peremptório,
avança ambas as mäos num gesto
de repulsa.*
Eucliäo
Näo quero, caramba!... Be-
ber -- já decidi --, só bebo
água.
Megadoro
Pois eu vou-te afinfar uma
carraspana, e das boas. Täo
certo como estar vivo!...
575
Bem sei as linhas com que
se cose. Quer-me deitar a
terra (203) com o vinho:
por isso tenta esta rota. E
depois da proeza... os meus
haveres mudavam de morada.
(204) Pois dessa ratoeira
me hei-de guardar. Vou es-
conder o dinheiro alhures --
fora de casa. Deixa estar que
eu te farei perder, do mesmo
passo, a canseira -- e o vi-
nho.
Megadoro
Por mim, se näo mandas mais
nada, vou fazer as abluçöes da
praxe -- para estar preparado
para os sacrifícios. (205)
.he 93
Cena VII
Eucliäo
580
Coa breca! Sim, senhor,
muitos inimigos tens tu, mar-
mita, e mais esse ouro que te
está confiado!...
585
Boa Fé, tu já me conheces
e eu a ti. Vê lá, por favor,
näo mudes de nome, (207)
quando eu te confiar este de-
pósito.
*Dirige-se resolutamente
para o templo.*
Cena I
Estrobilo
Estrobilo (209)
590
Funçäo do fâmulo eficiente
é fazer o que eu procuro exe-
cutar: näo vá o paträo sofrer
demora nem desmancho no cum-
primento das ordens que lhe
der. Servo que ao seu senhor
pretende servir segundo os
seus desejos, por timbre agirá
veloz para o paträo, madraço
para si.
.he 94-95
*Memórias da infância väo
florir, depois emurchecer.*
595
Como às crianças, que
aprendem a nadar, se aplicam
bóias de junco -- para se can-
sarem menos, para nadarem com
mais facilidade e irem mexendo
as mäos --, da mesma forma eu
acho
:,
.he 95
justo que o escravo seja uma
bóia para o paträo enamorado
-- a fim de o trazer à super-
fície, näo vá ele afundar-se
de cabeça, como (uma sonda de
chumbo). (210)
600
As ordens do paträo, apren-
da a conhecê-las de tal sorte
que, mal o rosto as exprimir,
os olhos as entendam. Os seus
mandados, deve apressar-se a
executá-los mais veloz que as
velozes quadrigas.
605
E vai o paträo mandou-me
para aqui, em missäo de reco-
nhecimento: para, se alguma
coisa se der, eu lhe dar par-
ticipaçäo.
.he 96
Cena II
Eucliäo Estrobilo
610
Lá medo de que alguém o en-
contre, näo tenho eu: está
guardado, e bem guardado, no
seu esconderijo. Caramba, é
que faria uma presa principes-
ca o tipo que a descobrisse...
Uma marmita abarrotada de ou-
ro!... Mas é isso que te peço
que näo consintas, ó Boa
Fé!...
*Desloca-se, apreensivo,
para o lado de casa.*
615
Vê lá, Boa Fé!... Agora
-- mais do que nunca -- faz
que eu possa retirar, sä e
salva, do teu santuário, a mi-
nha marmita. À tua lealdade
confiei o meu ouro: é no teu
bosque e no teu templo que ele
está depositado.
620
Vou daqui lá para dentro; e
hei-de vasculhar o templo, a
ver se encontro, em algum sí-
tio, o tal ouro -- enquanto o
fabiano está ocupado.
E se o encontrar, ó Boa
Fé, eu te oferecerei... uma
fezada litreira (215) de
vinho com mel. Esta é a ofe-
renda, sim, senhor, que eu te
hei-de oferecer...
.he 97-98
Cena III
Eucliäo
*Sente-se, no bosquete, o
crocitar insistente de um cor-
vo. A poucos metros da porta
de casa, Eucliäo estaca, de
ar transtornado, e volta para
trás.*
:,
.he 98
Eucliäo
625
Näo é ao deus-dará que um
corvo me canta agora à mäo es-
querda. (217) E, ao mesmo
tempo, ia raspando a terra com
os pés e crocitando à sua mo-
da... Logo o meu coraçäo se
pôs a imitar a arte dos baila-
rinos e a dar saltos no peito.
(218)
*Entra arrebatadamente no
templo e sai momentos depois
arrastando Estrobilo, amarfa-
nhado sob um dilúvio de murros
e repelöes.*
::::::::::::::::::::::::::::::
Cena IV
Eucliäo Estrobilo
630
Salta cá para fora, minho-
ca, que de debaixo da terra
marinhaste agora mesmo!...
.he 98-99
Sim, que agora mesmo ainda
näo aparecias em parte alguma.
Mas, agora que apareces --
morres. (219) Cum raio,
deixa estar, meu impostor, que
eu te vou amanhar aqui já uma
cama de fel e vinagre!...
Estrobilo
*Mais pancadas.*
Eucliäo *nervosamente, de
mäo estendida*
Estrobilo *pasmado*
Eucliäo
Ainda perguntas?...
Estrobilo
635
Se eu nada te tirei -- a
ti!...
Eucliäo
Despachas-te ou näo?...
Estrobilo
Eucliäo *impaciente*
.he 100
Estrobilo
Eucliäo
Pöe-mo cá!...
Eucliäo
640
Palavra que näo peguei em
nada, näo toquei em nada!...
Mostra-me cá as mäos.
.he 101
Estrobilo
Eucliäo
Estrobilo *à parte*
Aventesmas... destempe-
ros... maluqueiras... pöem a
cabeça deste velho à razäo de
juros. (226)
*A Eucliäo.*
Estrobilo
E que te hei-de confes-
sar?...
Eucliäo
645
Que foi que tiraste daqui?
Os deuses me arrebentem, se
eu tirei alguma coisa que fos-
se tua...
*À parte.*
*Estrobilo perfila-se e
obedece imediatamente.*
Estrobilo
Às tuas ordens!
Eucliäo
Estrobilo
Eucliäo
Bah!... O estafermo!...
Todo melúria, para eu näo
perceber que mo palmou... Al-
drabices dessas, (229) co-
nheço-as à légua.
*O escravo, resignado,
apresenta-lha logo.*
Estrobilo
650
Pronto!
Eucliäo
Agora mostra a esquerda.
.he 103
Estrobilo *espalmando ambas*
Eucliäo
Estrobilo *atónito*
Eucliäo
Estrobilo
Eu tenho?... Que é que eu
tenho?...
Eucliäo *casmurro*
Näo digo: mortinho estás tu
por ouvires. Isso que é
meu... seja lá o que for...
que tu tens... devolve-mo cá.
Estrobilo
655
Deixa-te estar, deixa-te
estar!...
.he 104
*Ao rodar sobre si, compe-
lido pelo estrebuchäo do es-
cravo, parece-lhe entrever uma
sombra que desliza para a por-
ta do templo.*
*À parte.*
*Solta Estrobilo.*
Estrobilo
Eucliäo *irritado*
.he 104-5
660
Somes-te daqui da minha
vista?... Safas-te ou näo te
safas?...
Estrobilo
Safo.
:,
.he 105
Eucliäo *com veemência*
::::::::::::::::::::::::::::::
Cena V
Estrobilo