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Friedrich Dürrenmatt

A VISITA DA VELHA SENHORA


Uma comédia trágica
(Nova versão de 1980)

Tradução de

JOÃO BARRENTO

Nota geral à versão final (de 1980) das minhas comédias

Contrariamente às várias versões publicadas antes na editora Arche, as versões para a edição das
minhas Obras não contemplam as versões de teatro, com cortes, mas sim as que considero
litrerariamente válidas. A literatura e o teatro são dois mundos distintos. Para além das comédias que
escrevi apenas para o teatro (Play Strindberg e Retrato de um Planeta), que são exercícios para
actores e que escrevi na condição de encenador, apresento no que se segue, sem nada alterar nas
minhas primeiras peças, novamente a versão literária, uma fusão de várias versões.
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PERSONAGENS Ouve-se a sineta de uma estação de caminho-de-ferro antes de


subir o pano. A seguir uma tabuleta: Güllen. É evidentemente o
Os Visitantes nome da pequena cidade que aparece ao fundo, arruinada,
Claire Zachanassian (em solteira: Wäscher), multimilionária decrépita. Também o edifício da estação mostra sinais de muito
(Armenian-Oil) abandono, com ou sem barreira de entrada, consoante o país
Os seus maridos nos. VII-IX onde a peça for representada; um horário de comboios, meio
O mordomo rasgado, pendurado na parede; alavancas de controlo
Toby e Roby, mastigam pastilha elástica enferrujadas, uma porta com a inscrição: «Entrada proibida».
Koby e Loby, cegos Ao meio, a miserável Rua da Estação. Também esta apenas
sugerida pelo cenário. À esquerda, um casinhoto de paredes
Os Visitados cegas, cobertura de telha, cartazes esfarrapados na patrede sem
Alfred Ill janelas. Tabuleta da esquerda: «Senhoras», da direita:
A sua mulher «Homens». Tudo mergulhado num sol quente de Outono. Diante
A sua filha da casinha, um banco, quatro homens sentados. Um quinto,
O seu filho indescritivelmente andrajoso, tal como os outros, pinta letras
O Presidente da Câmara vermelhas sobre uma faixa visivelmente destinada a um desfile:
O padre «Bem-vinda, Clarinha!». Ouve-se o ruído ribombante e ritmado
O professor do rápido que passa. Diante do edifício, o Chefe da estação
O médico levanta a bandeirinha. Os homens sentados no banco mostram,
O polícia pelo movimento das cabeças da esquerda para a direita, que
Cidadãos de Güllen seguem o expresso que acaba de passar.
O primeiro
O segundo
O terceiro O PRIMEIRO: É o «Gudrun», Hamburgo-Nápoles.
O quarto O SEGUNDO: Às onze e vinte e sete passa o «Orlando
O pintor Furioso», Veneza-Estocolmo.
Primeira mulher O TERCEIRO: O único passatempo que ainda temos: ver passar
Segunda mulher os comboios.
A Luisinha O QUARTO: Há cinco anos, ainda o «Gudrun» e o «Orlando
Furioso» paravam em Güllen. E o «Diplomata» e o «Lorelei»
Os Outros também, tudo comboios rápidos importantes.
O chefe da estação O PRIMEIRO: Mundialmente importantes.
O maquinista Som de sineta.
O revisor O SEGUNDO: Agora, nem os regionais param. Só dois que
O oficial de diligências vêm de Kaffigen, e o da uma e treze, de Kalberstadt.
Os importunos O TERCEIRO: Estamos arruinados.
Primeiro jornalista O QUARTO: As fábricas Wagner foram por água abaixo.
Segundo jornalista O PRIMEIRO: A firma Bockmann na bancarrota.
Repórter da rádio O SEGUNDO: A siderurgia Um Lugar ao Sol chegou ao fim.
Operador de câmara O TERCEIRO: Vivemos do subsídio de desemprego.
O QUARTO: Da sopa dos pobres.
Lugar : a pequena cidade de Güllen O PRIMEIRO: Vivemos?
Tempo: o presente O SEGUNDO: Vegetamos.
O TERCEIRO: Estamos de tanga.
Intervalo a seguir ao segundo acto O QUARTO: A cidade inteira.

Escrita em 1955 Ruído de comboio. O Chefe da estação levanta a bandeirinha.


Estreada no Schauspielhaus de Zurique em 29 de Janeiro de Os homens seguem o comboio com um movimento de cabeça da
1956 esquerda para a direita.

O QUARTO: O «Diplomata».
O TERCEIRO: E nós, que já fomos uma cidade com
pergaminhos culturais!
O SEGUNDO: Uma das primeiras do país.
O PRIMEIRO: Da Europa.
QUARTO: Goethe pernoitou aqui, na Estalagem do Apóstolo
Dourado.
O TERCEIRO: E Brahms compôs aqui um quarteto.

Som de sineta.

O SEGUNDO: Berthold Schwarz inventou aqui a pólvora.


O PINTOR: E eu, que frequentei com distinção a École des
Primeiro Acto Beaux-Arts, agora pinto faixas para o desfile!
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O SEGUNDO: Estava na hora de essa milionária chegar. Parece O QUARTO: E o comunismo internacional estende os seus
que doou uma fortuna para um hospital em Kalberstadt. tentáculos.
O TERCEIRO: E para uma creche em Kaffigen, e para uma
igreja na capital. Som de sineta.
O PINTOR: E encomendou o retrato ao Zimt, esse borrabotas
naturalista. O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS: Eu acabo sempre por
O PRIMEIRO: Dinheiro é o que não lhe falta. É dona da encontrar alguma coisa. Olhos de gavião. Vou ver o que se passa
Armenian-Oil, da Western Railways, da Northern Broadcasting com a receita municipal. Sai.
Company e da zona de prostituição em Banguecoque. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Pois que vá. É melhor fazer a
pilhagem agora do que depois da visita da milionária.
Ruído de comboio. Um revisor surge do lado esquerdo, como se
tivesse acabado de saltar do comboio. O pintor acabou de pintar a sua faixa.

O REVISOR, apregoando longamente: Güllen! ALFRED: Isto assim não está bem, Senhor Presidente, a
O PRIMEIRO: O regional de Kaffigen. inscrição é demasiado íntima. Acho melhor escreverem: «Bem-
vinda, Claire Zachanassian».
Desceu um passageiro, que, vindo da esquerda, passa pelos O PRIMEIRO: Mas ela é a nossa Clarinha.
homens sentados no banco, e desaparece na porta com a O SEGUNDO: A Clarinha Wäscher.
tabuleta «Homens». O TERCEIRO: Vimo-la crescer.
O QUARTO: O pai era mestre-de-obras.
O SEGUNDO: O oficial de diligências. O PINTOR: Bom... então escrevo do outro lado «Bem-vinda,
O TERCEIRO: Vem para penhorar a Câmara Municipal. Claire Zachanassian», e pronto. E se a milionária ficar
QUARTO: Nem a política escapa à insolvência. comovida, podemos sempre virar a faixa para o lado da frente.
O CHEFE DA ESTAÇÃO, dando o sinal de partida: O SEGUNDO: O «Expresso da Bolsa», Zurique-Hamburgo.
Partida!
Novo comboio expresso, da direita para a esquerda.
Vindos do lado da cidade, o Presidente da Câmara, o Professor,
o Padre e Alfred Ill, um homem de quase sessenta e cinco anos, O TERCEIRO: Sempre pontual, podíamos acertar os relógios
todos eles miseravelmente vestidos. por ele.
O QUARTO: E alguém aqui ainda tem relógio?!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: A nossa ilustre visitante vem O PRESIDENTE DA CÂMARA: Meus senhores, a milionária
no comboio de Kalberstadt à uma e treze. é a nossa única esperança.
O PROFESSOR: Vamos ouvir o coro misto, o grupo juvenil. O PADRE: Tirando Deus.
O Padre: O PRESIDENTE DA CÂMARA: Tirando Deus.
E a sineta dos bombeiros. Por enquanto, escapou à penhora. O PROFESSOR: Mas esse não nos paga as contas.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Na Praça do Mercado vai O PINTOR: Esqueceu-nos, é o que é.
tocar a Banda Municipal, e o Clube de Ginástica fará uma
pirâmide humana em honra da milionária. Depois oferecemos O Quarto cospe para o chão.
um banquete no «Apóstolo Dourado», Infelizmente já não há
dinheiro para a iluminação da Igreja Matriz e da câmara O PRESIDENTE DA CÂMARA: Você foi namorado dela, Ill,
Municipal à noite. tudo depende de si.
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS, saindo da casinha: O PADRE: Mas acabaram por se separar. Ouvi contar
Bom dia, Senhor Presidente. Os meus cumprimentos. vagamente umas histórias... Tem alguma coisa a confessar ao
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então o que é que o traz por seu pastor?
cá, senhor oficial de diligências? ALFRED: Fomos de facto amigos muito especiais – jovens,
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS: O Senhor Presidente sabe fogosos. Afinal, eu estava na flor da idade, meus senhores, já lá
muito bem o que me traz por cá.Tenho uma missão de peso à vão quarenta e cinco anos... E ela, a Claire, ainda a vejo, uma
minha frente. Imagina o que é penhorar uma cidade inteira? luz a vir ao meu encontro no palheiro do Peter, meio escuro, ou
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Já lhe digo que na Câmara a correr na mata, descalça, por cima do musgo e das folhas, de
não vai encontrar nada, a não ser uma velha máquina de cabelos ruivos ao vento, corpinho ágil, esbelta, doce, uma
escrever... feiticeira linda, diabólica! A vida separou-nos, a vida, mais nada,
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS: O Senhor Presidente esquece- como tantas vezes acontece.
se do Museu Histórico de Güllen. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Preciso de alguns pormenores
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Foi vendido para a América sobre a senhora Zachanassian, para o meu discurso do jantar no
já há três anos. As nossa caixa está vazia. Ninguém paga «Apóstolo Dourado». (Tira do bolso um bloco de notas.)
impostos. O PROFESSOR: Fui ver os antigos registos da escola, e devo
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS: Tenho de investigar isso. O dizer que as notas da Claire Wäscher, infelizmente, foram muito
país vai de vento em popa, e só Güllen abriu falência, mesmo más. E o comportamento também. Um suficiente em Ciências
tendo cá a siderurgia Um Lugar ao Sol. Naturais, e é tudo.
PRESIDENTE DA CÂMARA: Estamos todos diante de um O PRESIDENTE DA CÂMARA, anotando: Muito bem.
autêntico enigma económico. Suficiente em Ciências Naturais. Nada mau.
O PRIMEIRO: A Maçonaria, foi a Maçonaria que levou tudo. ALFRED: Talvez eu possa ajudar o nosso Presidente. A Claire
O SEGUNDO: Isto é uma maquinação dos judeus. tinha uma verdadeira paixão pela justiça. Uma vez prenderam
O TERCEIRO: E a alta finança à espreita... um vagabundo, e ela atacou o polícia à pedrada.
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O PRESIDENTE DA CÂMARA: Amor da justiça. Nada mau.


Faz sempre o seu efeito. Mas é melhor não falar da história com O ruído do comboio que se aproxima torna impossível
o polícia. compreender o que ele está a dizer. Travagem a fundo. Em todos
ALFRED: E um pendor para a caridade. Partilhava sempre o que os rostos a expressão da maior perplexidade e espanto. Os cinco
tinha, uma vez chegou a roubar batatas para uma viúva pobre. que estão sentados no banco dão um salto.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Pendor para a beneficência.
Isto, meus senhores, não pode faltar no meu discurso. É O PINTOR: O rápido...
essencial. Alguém se lembra de algumn edifício construído pelo O PRIMEIRO: ... pára...
pai da Claire? O SEGUNDO: ....em Güllen!
Não ficava mal no discurso. O TERCEIRO: Na mais miserável...
O PINTOR: Acho que ninguém. O QUARTO: ... piolhosa...
O PRIMEIRO: Diz-se que se embebedava. O PRIMEIRO: ... desgraçada terreola da linha Veneza-
O SEGUNDO: A mulher deixou-o. Estocolmo!
O TERCEIRO: E acabou por morrer no manicómio. O CHEFE DA ESTAÇÃO: Isto vai contra todas as leis da
natureza! O «Orlando Furioso» devia aparecer na curva de
O Quarto cospe para o chão. Leuthenau, passar como um relâmpago e desaparecer, já um
ponto negro, no vale de Pückenried.
O PRESIDENTE DA CÂMARA, fechando o bloco de notas:
Pela minha parte, estou pronto para actuar – quanto ao resto, é Claire Zachanassian entra pela direita. Sessenta e dois anos,
com o Alfred?. ruiva, colar de pérolas, pulseiras de ouro enormes, toda
ALFRED: Eu sei. A Zachanassian que puxe pelos cordões à aperaltada, inenarrável, mas precisamente por isso também
bolsa e nos deixe uns milhões. com ar de dama do grande mundo, com uma graciosidade
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Uns milhões, nem mais nem invulgar, apesar de todo o grotesco. Segue-a o seu séquito: o
menos. mordomo Boby, de uns oitenta anos, de óculos escuros; o
O PROFESSOR: Nem se pense que nos damos por satisfeitos marido número VII (Moby, alto, magro, bigode preto) com um
com uma crechezita. equipamento completo de pesca à linha. O grupo é seguido por
O PRESIDENTE DA CÂMARA, para Ill: Meu caro amigo, há um maquinista muito excitado, boné vermelho, sacola vermelha.
muito tempo que você é a pessoa mais popular em Güllen. Na
próxima Primavera retiro-me, e já sondei a oposição. E CLAIRE ZACHANASSIAN: Estou em Güllen?
acordámos em propô-lo para meu sucessor. O MAQUINISTA: A senhora puxou o sinal de alarme!
ALFRED: Mas, senhor Presidente... CLAIRE ZACHANASSIAN: Eu puxo sempre o sinal de alarme.
O PROFESSOR: Tem o meu total apoio. O MAQUINISTA: E eu protesto. Energicamente. Neste país
ALFRED: Meus senhores, vamos por partes e vejamos os factos. ninguém aciona o sinal de alarme, mesmo em caso de alarme. A
Primeiro vou falar com a Claire sobre a nossa desgraçada pontualidade dos horários é um princípio sagrado. Posso pedir-
situação. lhe uma explicação?
O PADRE: Mas com cuidado, com tacto... CLAIRE ZACHANASSIAN: Estamos em Güllen, Moby, não
ALFRED: Temos de agir com inteligência e sentido psicológico. há dúvida. Reconheço este buraco triste. Além é a Mata de S.
Uma recepção menos feliz aqui na estação pode deitar tudo a Conrado, com o ribeiro onde podes ir pescar trutas e lúcios, e à
perder. Não basta a Banda Municipal e o Coro misto. direita o telhado do palheiro do Peter.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: O Alfred tem razão. Afinal, ALFRED, como que acordando de um sonho:
este é um momento decisivo. A senhora Zachanassian pisa o Claire!
chão da terra natal, regressa a casa, emocionada, lágrimas nos O PROFESSOR: A Zachanassian!
olhos ao olhar para tanta coisa conhecida. É claro que eu não TODOS: A Zachanassian!
vou estar aqui em mangas de camisa, como agora, vou estar de O PROFESSOR: E o coro misto não está pronto, o grupo
fato preto e chapéu alto, a meu lado a minha esposa, à nossa juvenil!
frente as duas netinhas, todas de branco, com um ramo de rosas. O PRESIDENTE DA CÂMARA: E os ginastas, os bombeiros!
Deus queira que tudo corra bem no momento certo. O PADRE: E o sacristão!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E eu sem casaco, valha-me
Som de sineta. Deus, e o chapéu, e as netas!
O PRIMEIRO: A Clarinha Wäscher! A Clarinha Wäscher!
O PRIMEIRO: O «Orlando Furioso». Dá um salto e desata a correr para a cidade.
O SEGUNDO: Veneza-Estocolmo, onze e vinte e sete. O PRESIDENTE DA CÂMARA, grita-lhe: Não te esqueças de
O PADRE: Onze e vinte e sete! Temos quase duas horas para avisar a minha mulher!
vestir os fatos domingueiros. O MAQUINISTA: Exijo uma explicação. Oficial. Em nome da
O PRESIDENTE DA CÂMARA: O Kühn e... (apontando para Administração dos Caminhos de Ferro.
o Quarto) o Hauser encarregam-se de levantar bem alta a faixa CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas que idiota! Venho aqui fazer
com a inscrição «Bem-vinda, Claire Zachanassian». Os outros, uma visita à terra! Queria que saltasse do comboio em
o melhor é acenarem com os chapéus. Mas, por favor: nada de andamento?
gritaria, como no ano passado, quando cá esteve a comissão O MAQUINISTA: Madame: se a senhora quer fazer uma visita
governamental. O efeito foi nulo, até hoje não recebemos um a Güllen, tem o regional das doze e quarenta em Kalberstadt.
cêntimo de subvenção. O que se pede não é euforia, mas alegria Como toda a gente. Chegada a Güllen à uma e treze.
interior, quase um soluço, ternura pela filha da terra CLAIRE ZACHANASSIAN: O quê? O regional que pára em
reencontrada. Sejam espontâneos, afectuosos, mas a Loken, Brunnhübel, Beisenbach e Leuthenau? E o senhor
organização não pode falhar, a sineta dos bombeiros deve ouvir- atreve-se a sugerir que eu me arraste meia hora por uma região
se logo a seguir ao coro misto. Acima de tudo dar atenção a... como esta?
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O MAQUINISTA: Madame, isto vai sair-lhe muito caro! CLAIRE ZACHANASSIAN: Obrigado, senhor Presidente, pelo
CLAIRE ZACHANASSIAN: Boby, dá-lhe mil. seu belo discurso.
TODOS, em surdina: Mil!
Vai ao encontro de Alfred Ill, que se aproximou dela, um pouco
O mordomo dá mil ao maquinista. embaraçado.

O MAQUINISTA, espantado: Madame! ALFRED: Claire.


CLAIRE ZACHANASSIAN: E três mil para a Fundação das CLAIRE ZACHANASSIAN: Alfred.
Viúvas dos Ferroviários. ALFRED: Que bom teres vindo!
TODOS, em surdina: Três mil! CLAIRE ZACHANASSIAN:
Há muito tempo que tencionava vir. Toda a vida, desde que saí
O mordomo dá três mil ao maquiista. de Güllen.
ALFRED, inseguro: Muito amável da tua parte.
O MAQUINISTA, confuso: Mas, essa Fundação não existe, CLAIRE ZACHANASSIAN: E tu, tmbém pensaste em mim?
Madame. ALFRED: Claro, sempre, como podes calcular, Claire.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Então criem uma! CLAIRE ZACHANASSIAN: Maravilhosos, esses tempos em
que estivémos juntos.
O Presidente da Junta de Freguesia diz qualquer coiisa ao ALFRED, com orgulho: Lá isso foram. (Para o Professor,
ouvido do maquinista. baixo) Está a ver, senhor professor, está no papo.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Podes chamar-me como sempre
O MAQUINISTA, embaraçado: Vossa Excelência é a senhora me chamaste.
Claire Zachanassian? Ah, perdão! Assim a coisa muda de figura. ALFRED: Minha gatinha brava.
É claro que pararíamos em Güllen, se tivéssemos a mais pequena CLAIRE ZACHANASSIAN, ronronando como uma gata
ideia... Não posso aceitar o seu dinheiro... Quatro mil, meu velha: E mais?
Deus! ALFRED: Minha feiticeirazinha.
TODOS, em surdina: Quatro mil. CLAIRE ZACHANASSIAN: E tu eras a minha pantera negra.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Pode guardar essa insignificância. ALFRED: E ainda sou.
TODOS, em surdina: Pode guardar... CLAIRE ZACHANASSIAN: Disparate! Egordaste, tens
O MAQUINISTA: E Vossa Excelência deseja que o «Orlando cabelos brancos e metes-te na aguardente!
Furioso» espere até que tenha terminado a sua visita a Güllen? ALFRED: Mas tu estás igualzinha, minha feiticeira.
A administração teria todo o prazer... Acho que o portal da CLAIRE ZACHANASSIAN: Qual quê! Também engordei e
matriz merece uma visita. Estilo gótico, com a representação do estou velha. E a perna esquerda foi ao ar. Um desastre de
Juízo automóvel. Agora só viajo de comboio rápido. Mas a prótese
Final... ficou uma beleza, não achas? (Levanta a saia e mostra a perna
CLAIRE ZACHANASSIAN: Ponha-se a andar com o seu esquerda.) Consigo mexê-la muito bem.
comboio! ALFRED, limpando o suor:
MARIDO VII, choramingas: Mas, e a imprensa, querida, a Nunca me passaria pela cabeça, gatinha brava.
imprensa ainda não desceu... Os repórteres não sabem de nada, CLAIRE ZACHANASSIAN: Posso apresentar-te o meu sétimo
estão a jantar na carruagem-restaurante, à frente. marido, Alfred? É proprietário de plantações de tabaco. E temos
CLAIRE ZACHANASSIAN: Eles que continuem a jantar, um casamento feliz.
Moby. Para já, não preciso da imprensa em Güllen. E depois eles ALFRED: Mas, com certeza.
vêem, vais ver. CLAIRE ZACHANASSIAN: Vem cá, Moby, cumprimentar
este senhor. O nome dele é Pedro, mas gosto mais de Moby. E
Entretanto, O SEGUNDO trouxe o casaco do Presidente da vai melhor com Boby, que é o mordomo. E mordomo é para toda
Câmara, que se aproxima solenemente de Claire Zachanassian. a vida, os maridos têm de se adaptar ao nome dele.
O pintor e o quarto homem do banco levantam a faixa onde se
lê «Bem-vinda. Claire Zachanassian». O pintor não chegou a O Marido VII faz uma vénia.
terminar a inscrição.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Não é um amor, com aquele
O CHEFE DA ESTAÇÃO, levantando a bandeirinha: Partida! bigodinho preto? Vá, Moby, pensa lá um bocadinho.
O MAQUINISTA: Espero que Vossa Excelência não faça
queixa junto da Administração dos Caminhos de Ferro. Creia O Marido VII pensa.
que foi um infeliz equívoco.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Com mais força!
O comboio começa a andar. O maquinista corre e apanha-o em O Marido VII pensa com mais força.
andamento.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Mais força ainda.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Minha Senhora, Excelência: MARIDO VII: Mas, querida, não consigo pensar com mais
na qualidade de Presidente da Câmara de Güllen, tenho a honra, força, não consigo mesmo.
ilustre senhora e filha da nossa terra, de... CLAIRE ZACHANASSIAN: É claro que consegues. Tenta
outra vez.
O ruído do comboio abafa o resto do discurso do Presidente,
que deixa de se ouvir. O Marido VII pensa ainda com mais força.
Som de sineta.
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CLAIRE ZACHANASSIAN: Estás a ver? Conseguiste. Não é,


Alfred, ele assim até parece que tem um ar quase demoníaco. O Presidente da Câmara passa o chapéu ao padre, às
Como um brasileiro. Mas não é nada disso, ele é grego- escondidas, e este põe-o na cabeça.
ortodoxo. O pai era russo. Foi um Papa que nos casou. Muito
interessante. Mas agora quero ver como está esta terra. (Olha O PRESIDENTE DA CÂMARA: O nosso pároco, minha
para o casinhoto à esquerda com um lorgnon incrustado de senhora.
pedras preciosas) Estas retretes públicas são obra do meu pai,
Moby. Trabalho de primeira, construção perfeita. Quando era O Padre tira o chapéu e cumprimenta.
pequena, ficava sentada horas a fio em cima do telhado a cuspir
cá para baixo. Mas só quando passavam homens. CLAIRE ZACHANASSIAN: Ah, o pároco... E costuma
consolar os moribundos?
Ao fundo concentraram-se entretanto o coro misto e o grupo
juvenil. O Professor avança, de chapéu alto. O PADRE, espantado: Faço o que posso.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Também os condenados à morte?
O PROFESSOR: Ilustre senhora, na minha qualidade de Reitor O PADRE, confuso: A pena de morte foi abolida há muito tempo
do Liceu de Güllen e amante da nobre arte da Música, seja-me no nosso país, minha senhora.
permitido homenageá-la com uma singela canção popular, CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas talvez volte a ser
entoada pelo coro misto e pelo nosso grupo juvenil. introduzida.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Força, senhor professor, venha a
sua singela canção popular. O Padre devolve o chapéu ao Presidente da Câmara,
visivelmente consternado, e este volta a pô-lo na cabeça. O
O Professor saca de um diapasão, dá o tom, o coro misto e o médico Nüsslin abre caminho pelo meio da multidão.
grupo juvenil começam a cantar solenemente. Mas nesse
instante vem um novo comboio da esquerda. O Chefe da Estação O PRESIDENTE DA CÂMARA: O doutor Nüsslin, médico
faz o sinal, o coro tem de lutar contra o matraquear do comboio, local.
o professor desespera, finalmente o comboio passa. CLAIRE ZACHANASSIAN: Interessante! É o senhor que
passa as certidões de óbito?
O PRESIDENTE DA CÂMARA, desconsolado: A sineta dos O MÉDICO: Certidões de óbito?
bombeiros, agora era a altura de entrar a sineta dos bombeiros! CLAIRE ZACHANASSIAN: Quando alguém morre.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Muito bem cantado, meninos de O MÉDICO: Com certeza.
Güllen! Especialmente aquele louro com voz de baixo, o último CLAIRE ZACHANASSIAN: A partir de agora, o diagnóstico
da esquerda, com a maçã de Adão toda saída. Muito curioso! vai ser: ataque cardíaco.
ALFRED, rindo: Minha gatinha brava! Tens umas piadas
Um Polícia abre caminho através do coro misto e vem pôr-se mesmo divertidas!
em sentido diante de Claire Zachanassian. CLAIRE ZACHANASSIAN: Bom, agora vamos dar uma volta
pela cidade.
O POLÍCIA: Hahncke, Chefe da Polícia, às ordens de V. Exa.!
CLAIRE ZACHANASSIAN, olhando-o de alto a baixo: O Presidente da Câmara oferece-lhe o braço.
Obrigada. Não quero mandar prender ninguém – mas quem sabe
se Güllen não vai precisar do senhor. O senhor Chefe de vez em CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas que ideia é essa, senhor
quando não fecha um olho a certas coisas? Presidente? Eu não posso andar quilómetros a pé, com a minha
O POLÍCIA: Com certeza, minha senhora. Senão, como é que prótese!
me ia aguentar aqui em Güllen? O PRESIDENTE DA CÂMARA, assustado: Vamos já tratar
CLAIRE ZACHANASSIAN: Pois então, agora é melhor fechar disso, imediatamente! O doutor Nüsslin tem automóvel.
os dois. O MÉDICO: Um Mercedes de 1932, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Não é preciso. Desde que tive o
O Polícia ficou hirto, um tanto perplexo. acidente só ando de liteira. Roby e Toby, vamos!
Da esquerda entram dois monstros hercúleos, a mastigar
ALFRED, rindo: A Claire sem tirar nem pôr! É mesmo a minha pastilha elástica, com uma liteira. Um deles traz uma guitarra
feiticeirazinha. (Bate nas coxas, visivelmente divertido). às costas.

O Presidente da Câmara enfia na cabeça o chapéu alto do CLAIRE ZACHANASSIAN: Dois gangsters de Manhattan,
Professor, apresenta as duas netas. Gémeas, de sete anos, condenados à cadeira eléctrica em Sing-Sing. Foram libertados
tranças louras. a meu pedido, para me transportarem na liteira. Um milhão de
dólares por cabeça. A liteira veio do Louvre, oferta do
O PRESIDENTE DA CÂMARA: As minhas netas, senhora. Presidente francês. Um senhor muito simpático, é igualzinho ao
Hermínia e Adolfina. Só falta a minha esposa. (Limpa o suor da que vem nos jornais. Roby e Toby, levem-me para a cidade.
cara). OS DOIS: Yes, Mam.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas primeiro vamos ao palheiro
As duas meninas fazem uma vénia e entregam as rosas à do Peter e depois à Mata de S. Conrado. Quero revisitar com o
Zachanassian. Alfred os lugares dos nossos antigos amores. E entretanto levem
a bagagem e o caixão para o «Apóstolo Dourado».
CLAIRE ZACHANASSIAN: Os meus parabéns por estes dois O PRESIDENTE DA CÂMARA, de boca aberta: O caixão?
amores de meninas, senhor Presidente! Tome lá! (Põe as rosas CLAIRE ZACHANASSIAN: Trouxe um comigo. Nunca se
nas mãos do Chefe da Estação). sabe se não vai fazer falta. Vamos, Roby e Toby.
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O PROFESSOR: Coisa estranha.


Os dois monstros, a mastigar pastilha elástica, levam Claire O PADRE: As celebridades mundiais têm sempre alguma
Zachanassian para a cidade. O Presidente da Câmara faz um pancada.
sinal, todos gritam «vivas», mas logo baixam de tom, perplexos, O PRESIDENTE DA CÂMARA: As criadas são bem bonitas.
quando dois criados entram com um caixão preto, ricamente O PROFESSOR: Tudo indica que vai ficar muito tempo por cá.
ornamentado, e o levam para Güllen. E ainda se ouve a sineta O PRESIDENTE DA CÂMARA: Tanto melhor. O Alfred já a
dos bombeiros a tocar, finalmente. tem no papo. Gatinha brava, feiticeirazinha, foi assim que ele a
tratou, e vai sacar dela uns milhões. À sua, caro professor. Ao
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Até que enfim! A sineta dos renascer da firma Bockmann pela mão de Claire Zachanassian.
bombeiros! O PROFESSOR: E das fábricas Wagner.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E da siderurgia Um Lugar ao
A população acompanha o caixão. As criadas de Claire Sol. Se esta arrebitar, arrebita tudo, a paróquia, o Liceu, o bem-
Zachanassian vão atrás, com bagagens e malas sem fim, estar público.
transportadas por homens de Güllen. O polícia orienta o
trânsito, quer seguir o cortejo, mas da direita entram ainda dois Brindam.
homenzinhos baixos, gordos e velhos, falando em voz baixa, de
mão dada e ambos impecavelmente vestidos. O PROFESSOR: Há mais de duas décadas que corrijo os
exercícios de Latim e Grego dos alunos de Güllen, mas só desde
OS DOIS: Estamos em Güllen. Este cheiro não engana, este há uma hora, meu caro Presidente, sei o que é o terror.
cheiro do ar de Güllen. Assustadora, a imagem dela a sair do comboio, a velha senhora
O POLÍCIA: Quem são os senhores? toda vestida de preto. A mim, parece-me uma velha Parca, uma
OS DOIS: A nossa dona é a velha senhora, a nossa dona é a deusa grega do destino. Devia era chamar-se Cloto, e não Claire!
velha senhora. Chama-nos Koby e Loby. Dir-se-ia que tem a capacidade de tecer os fios da vida.
O POLÍCIA: A senhora Zachanassian está hospedada no
«Apóstolo Dourado». Entra o Polícia e pendura o boné num cabide.
OS DOIS, alegres: Nós somos cegos, nós somos cegos.
O POLÍCIA: Cegos? Então eu mesmo vos levo lá. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Sente-se aqui connosco,
OS DOIS: Obrigado, senhor polícia, muito obrigado. senhor Chefe.
O POLÍCIA, estranhando: Mas, se vocês são cegos, como é que
sabem que eu sou polícia? O Polícia senta-se à mesa com eles.
OS DOIS: Pelo tom de voz, pelo tom de voz, todos os polícias
têm o mesmo tom de voz. O POLÍCIA: Não dá gosto nenhum trabalhar neste buraco
O POLÍCIA, desconfiado: Vocês parece que já tiveram sarilhos perdido. Mas agora a ruína vai voltar a florescer. Estive agora
com a polícia, seus homenzinhos gordos. mesmo no palheiro do Peter com a milionária e o merceeiro
OS DOIS, admirados: Homenzinhos! Ele acha que nós somos Alfred. Uma cena comovente. Os dois numa contemplação,
homens! parecia que estavam numa igreja. Até me senti pouco à vontade.
O Polícia: Que raio! Mas então que espécie de gente são vocês? Por isso os deixei ir sozinhos para a Mata de S. Conrado. Aquilo
OS DOIS: Já vai ver, já vai ver. era mesmo uma procissão. À frente dois homenzinhos gordos e
O POLÍCIA, perplexo: Bom, pelo menos estão sempre bem cegos, com o mordomo, depois a liteira, atrás dela o Alfred e o
dispostos. sétimo marido dela, com as canas de pesca.
OS DOIS: Comemos costoletas e presunto, todos os dias, todos O PRESIDENTE DA CÂMARA: Devoradora de homens.
os dias. O PROFESSOR: Uma segunda Lais de Corinto.
O POLÍCIA: Assim, até eu dançava de contente. Venham cá, O PADRE: Somos todos pecadores.
dêem-me a mão. Estes estrangeiros têm cá um humor! (Vai com O PRESIDENTE DA CÂMARA: Gostava de saber o que
os dois em direcção à cidade.) aqueles dois vão fazer à Mata de S. Conrado.
OS DOIS: Vamos ter com o Boby e o Moby, o Roby e o Toby! O POLÍCIA: O mesmo que no palheiro do Peter. Andam a correr
os lugares onde em tempos a sua paixão... como é que se diz...?
Mudança de cenário, sem cair o pano. A fachada da estação e O PADRE: Se inflamou!
do casinhoto ficam a pairar no ar. Interior do «Apóstolo O PROFESSOR: E que labaredas! Pensamos logo em
Dourado»; pode também descer da teia uma tabuleta típica das Shakespeare, Romeu e Julieta. Meus senhores, que sensação! É
estalagens antigas, com uma figura de apóstolo, dourada e a primeira vez que sinto em Güllen o verdadeiro sopro da
veneranda, um emblema que pode ficar a pairar no meio do grandeza antiga.
espaço. Ambiente de luxo decadente. Tudo rasgado, cheio de pó, O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vamos brindar então ao nosso
partido, a cheirar mal, a mofo, o estuque a desfazer-se. O amigo Alfred, que está a fazer tudo o que pode para nos salvar
Presidente da Câmara, o Padre e o Professor estão sentados à do nosso destino. Meus senhores, bebo ao mais amado cidadão
direita, em primeiro plano, a beber aguardente e observam o de Güllen, ao meu sucessor!
infindável transporte das malas, que o público deverá imaginar. Levantam os copos e brindam.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E continuam a chegar malas.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Malas e mais malas. O POLÍCIA: Como é que se pode ter tanta bagagem!
O PADRE: Aquilo não tem fim. E há pouco levaram para cima
uma pantera numa jaula. O Apóstolo símbolo da estalagem volta a subir. Entram pela
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Uma fera toda negra. esquerda os quatro cidadãos com um banco simples de madeira,
O PADRE: O caixão. sem costas, que colocam do lado esquerdo. O PRIMEIRO sobe
O PRESIDENTE DA CÂMARA: para o banco, tem um grande coração de papelão pendurado ao
Vai ser colocado num outro aposento. pescoço, com as letras A. C. [= Alfred / Claire], os outros
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colocam-se em semicírculo à sua volta, abrem os braços ALFRED: Se tivesses ficado aqui, estavas tão arruinada como
segurando ramos, assinalando o lugar de árvores. eu.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Estás arruinado?
O PRIMEIRO: Somos pinheiros mansos e bravos, somos faias. ALFRED: Um merceeiro falido numa cidade falida.
O SEGUNDO: Somos abetos verde-escuros. CLAIRE ZACHANASSIAN: E agora, eu tenho dinheiro.
O TERCEIRO: Musgo e líquenes, maciços de hera. ALFRED: Eu vivo num inferno desde que me deixaste.
O QUARTO: Mato rasteiro e sebe para as raposas. CLAIRE ZACHANASSIAN: E eu agora sou o próprio inferno.
O PRIMEIRO: Nuvens que passam, gritos de aves. ALFRED: Eu vivo num inferno com a minha família, que me
O SEGUNDO: Chão de raízes de cepa germânica. acusa todos os dias de ser o responsável por esta miséria.
O TERCEIRO: Cogumelo venenoso, corça tímida. CLAIRE ZACHANASSIAN: E a tua Matilde não te fez feliz?
O QUARTO: Sussurro de ramos, sonhos antigos. ALFRED: O que importa é que tu sejas feliz.
CLAIRE ZACHANASSIAN: E os teus filhos?
Aproximam-se, vindos do fundo, os dois monstros mastigadores ALFRED: Não sabem o que é ter ambições.
de pastilha elástica, carregando a liteira com Claire CLAIRE ZACHANASSIAN: Espera, que um dia elas vêm.
Zachanassian; ao lado dela, Alfred Ill. Atrás, o marido número
sete, e ainda mais atrás o mordomo, dando a mão aos dois Ele fica calado. Os dois olham para a floresta da sua juventude.
cegos.
ALFRED: A minha vida tem sido uma coisa triste. Nem desta
CLAIRE ZACHANASSIAN: A Mata de S. Conrado! Roby e cidadezinha saí. Uma viagem a Berlim e outra ao Ticino, e é
Toby, parem aqui. tudo.
OS DOIS CEGOS: Parem, Roby e Toby, parem, Boby e Moby. CLAIRE ZACHANASSIAN: E para quê? Eu conheço o mundo
inteiro...
Claire Zachanassian sai da liteira e olha para a mata. ALFRED: Porque sempre pudeste viajar.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Porque ele me pertence.
CLAIRE ZACHANASSIAN: O coração, com o teu nome e o
meu, Alfred. Quase não se vê, e está deformado. A árvore Ele fica calado, e ela fuma.
cresceu, o tronco e os ramos engrossaram, como nós. (Dirige-se
para as outras árvores.) Um grupo de árvores alemãs. Há tanto ALFRED: Mas agora tudo vai mudar.
tempo que não entrava na floresta da minha juventude, que não CLAIRE ZACHANASSIAN: Não tenhas dúvida.
pisava a folhagem caída, a hera roxa. E vocês, mastigadores de ALFRED, fixando-a: Tu vais ajudar-nos?
pastilha elástica, desapareçam para trás dessas moitas com a CLAIRE ZACHANASSIAN: É claro que não vou deixar ao
liteira, já não posso ver as vossas caras. E tu, Moby, vai aqui abandono a cidade da minha juventude.
pela direita até à ribeira e apanha os teus peixes. ALFRED: A situação é tal que vamos precisar de milhões.
Saem pela esquerda os dois monstros com a liteira. O marido CLAIRE ZACHANASSIAN: Coisa de pouca monta.
VII sai pela direita. Claire Zachanassian senta-se no banco. ALFRED, entusiasmado: Minha gatinha brava! (Emocionado,
dá-lhe uma palmada na coxa esquerda, mas retira logo a mão,
CLAIRE ZACHANASSIAN: Olha só, uma corça! dorida.)
CLAIRE ZACHANASSIAN: Isso dói. Bateste numa dobradiça
O Terceiro dá um saltinho e foge. da minha prótese.

ALFRED: Estamos na época do defeso. (Senta-se ao lado dela.) O Primeiro tira do bolso das calças um velho cachimbo e uma
CLAIRE ZACHANASSIAN: Beijámo-nos aqui, sentados nesta chave enferrujada, e bate com a chave no cachimbo.
pedra. Há mais de quarenta e cinco anos. E amámo-nos à sombra
destes arbustos, debaixo desta faia, entre os cogumelos no CLAIRE ZACHANASSIAN: Um pica-pau!
musgo. Eu tinha dezassete anos, e tu nem vinte. Depois, casaste ALFRED: É como antigamente, quando éramos novos e sem
com a Matilde Blumhard, que tinha a loja de retroseiro, e eu com medo, e nos metíamos pela Mata de S. Conrado nos dias do
o velho Zachanassian e os seus milhões vindos da Arménia. Ele nosso amor. O Sol por cima dos abetos, um disco de luz.
encontrou-me num bordel de Hamburgo. Os meus cabelos Nuvens distantes e o canto do cuco, algures no emaranhado das
ruivos atrairam-no, ao velho escaravelho dourado. raízes.
ALFRED: Claire! O QUARTO: Cucu, cucu!
CLAIRE ZACHANASSIAN: Um «Henry Clay», Boby. Alfred, apalpando O PRIMEIRO: O cheiro a madeira fresca e o
OS DOIS CEGOS: Um «Henry Clay», um «Henry Clay». vento nos ramos, um marulhar como as ondas do mar. Como
antes, exactamente como era antes.
O mordomo aproxima-se, vindo do fundo, dá-lhe um charuto, e
acende-o. Os três que fazem de árvores sopram e mexem os braços para
cima e para baixo.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Adoro charutos. Devia fumar os
da fábrica do meu marido, mas não confio neles. ALFRED: Se ao menos o tempo parasse, minha feiticeirazinha.
ALFRED: Foi por te amar que eu me casei com a Matilde Se a vida não nos tivesse separado...
Blumhard. CLAIRE ZACHANASSIAN: Era isso o que querias?
CLAIRE ZACHANASSIAN: Ela tinha dinheiro. ALFRED: Era isso, isso e mais nada. Continuo a amar-te!
ALFRED: E tu eras jovem e bela. Tinhas o futuro à tua frente, e (Beija-lhe a mão direita.) A mesma mão, fresca e branca.
eu queria a tua felicidade. Por isso prescindi da minha. CLAIRE ZACHANASSIAN: Enganas-te. É outra prótese, de
CLAIRE ZACHANASSIAN: E agora esse futuro chegou. marfim.
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ALFRED, larga-lhe a mão, horrorizado: Claire, mas afinal o teu O PRESIDENTE DA CÂMARA: Só estamos à espera do seu
corpo são só próteses? marido, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Quase. Esta é da queda de um CLAIRE ZACHANASSIAN: Não precisa de esperar. Ele foi à
avião no Afeganistão. Fui a única que conseguiu sair dos pesca, e eu estou a divorciar-me.
destroços. Ninguém acaba comigo. O PRESIDENTE DA CÂMARA: A divorciar-se?
OS DOIS CEGOS: Ninguém, ninguém. CLAIRE ZACHANASSIAN: O Moby também vai ficar
espantado. Vou casar com um actor de cinema alemão.
Ouve-se a música de uma banda. O Apóstolo, símbolo da O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas, ainda há pouco nos disse
estalagem, volta a descer. Os habitantes de Güllen trazem que tinha um casamento feliz.
mesas, com toalhas miseravelmente esfarrapadas. Põem as CLAIRE ZACHANASSIAN: Todos os meus casamentos são
mesas, trazem comida, uma mesa ao centro, uma à esquerda e felizes. Mas era um sonho de juventude: dar o nó um dia na
outra à direita, paralelas ao público. O Padre entra, vindo do Matriz de Güllen. E os sonhos da mocidade são para se cumprir.
fundo. Vão entrando muitos outros habitantes da terra, um deles Vai ser uma grande festa.
em fato de ginástica justo. Voltam o Presidente da Câmara, o
Médico, o Professor, o Polícia. Os presentes batem palmas. O Todos se sentam. Claire Zachanassian senta-se entre o
Presidente da Câmara chega-se ao banco onde estão sentados Presidente da Câmara e Alfred. Ao lado de Alfred, a sua mulher,
Claire e Alfred, as árvores transformaram-se novamente em e ao lado do Presidente a mulher deste. À direita, atrás de outra
simples cidadãos e retiraram-se para o fundo da cena. mesa, o Professor, o Padre e o Polícia, à esquerda os Quatro
cidadãos. Ao fundo, outros hóspedes de honra e respectivas
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Esta calorosa salva de palmas esposas, por cima deles a faixa. «Bem-vinda, Clarinha!» O
foi para si, ilustre senhora. Presidente da Câmara levanta-se, radiante, já de guardanapo
CLAIRE ZACHANASSIAN: Foi para os músicos, senhor ao pescoço, e toca com o garfo no copo.
Presidente, que são maravilhosos a tocar. E antes, a pirâmide
humana dos ginastas foi uma beleza. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Ilustre senhora, caros
conterrâneos. Faz agora quarenta e cinco anos que deixou a
A um sinal do Presidente, o ginasta apresenta-se a todos. nossa cidade, fundada pelo Príncipe Eleitor Hasso, o Nobre,
nesta amena localização, entre a Mata de S. Conrado e o Vale de
CLAIRE ZACHANASSIAN: Adoro homens em fato de Pückenried. Quarenta e cinco anos, mais de quatro décadas, é
ginástica e calções. Têm um ar tão natural. Faça mais uns muito tempo. Muita coisa aconteceu entretanto, muita coisa
exercícios para eu ver. Balance os braços para trás, senhor terrível. Coisas tristes para o mundo inteiro, e para nós. Mas
ginasta, e depois deixese cair em posição facial. nunca esquecemos a senhora, a nossa Clarinha (aplausos.).
Nem a si nem à sua família. A vossa mãe, grande mulher,
O ginasta segue estas instruções. exuberante de vitalidade e saúde, toda entregue ao seu
matrimónio (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido),
CLAIRE ZACHANASSIAN: Maravilhoso, estes músculos! Já mas infelizmente muito cedo desaparecida. O vosso pai, homem
alguma vez estrangulou alguém, com a sua força? da melhor cepa, que, com o edifício da estação, nos deixou uma
obra de grande mérito, muito visitada por especialistas e leigos
O ginasta, na posição de fazer flexões, cai sobre os joelhos, (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido) – ambos vivem
estupefacto. ainda nos nossos pensamentos como os melhores, os mais
virtuosos de entre nós. E a senhora, a menina traquinas de
O GINASTA: Estrangular alguém? tranças loiras (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido),
ALFRED, rindo: É impagável, o humor da Clarinha! É de de cabelos ruivos, correndo pelas nossas ruas agora tão
morrer a rir com as suas piadinhas! maltratadas. Quem a não conhecia? Já então todos sentiam o
O MÉDICO: Olhe que não sei... Estas piadas até arrepiam. encanto da sua personalidade, adivinhavam a ascensão
vertiginosa até aos píncaros da humanidade. (Consulta o bloco
O ginasta retira-se lá para trás. de notas.) Ninguém se esqueceu, é um facto. As suas notas na
escola ainda hoje são vistas como um exemplo pelo corpo
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Posso acompanhá-la até à docente, especialmente nessa disciplina tão importante que eram
mesa? (Leva Claire Zachanassian para a mesa ao centro, e as Ciências da Natureza, já então expressão da sua compaixão
apresenta-a à mulher.) A minha esposa. para com todas as criaturas e os mais desprotegidos. O seu amor
CLAIRE ZACHANASSIAN, assestando o lorgnon para ver da justiça e a sua propensão caritativa despertavam já nessa
bem a esposa: A Aninhas Dummermuth, a melhor da nossa altura a admiração de largas camadas da população. (Aplausos
turma! estrondosos.) É verdade, a nossa Clarinha conseguiu arranjar
comida para uma pobre e velha viúva, comprando batatas com
Alfred vai buscar a mulher; muito magra, com um ar amargo. o pouco dinheiro que ganhara a trabalhar para o vizinho, e
salvando assim a pobre mulher da morte. Isto, para lembrar
CLAIRE ZACHANASSIAN: A Matilde Blumhard! Lembro- apenas uma das suas misericordiosas acções. (Aplausos
me bem de ti, a espiar o Alfred atrás da porta da loja. estrondosos.) Ilustre senhora, queridos conterrâneos, as tenras
Emagreceste muito, estás pálida, minha querida. sementes de tão promissoras plantas cresceram entretanto,
ALFRED, em segredo: Milhões, foi o que ela prometeu! fortes, e o diabinho de cabelos ruivos deu lugar a uma senhora
O PRESIDENTE DA CÂMARA, engolindo em seco: Milhões? que espalha a sua caridade pelo mundo – lembremse apenas a
ALFRED: Milhões! sua acção social, sanatório para mães e grandes hospitais, apoio
O MÉDICO: Caramba! a artistas, creches e infantários. Por estas e outras razões, peço
CLAIRE ZACHANASSIAN: Bom, agora estou com fome, uma grande ovação para a filha pródiga que regressou a casa:
senhor Presidente. Viva a nossa Claire, viva, viva!
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Alfred levanta-se, lívido, ao mesmo tempo assustado e


Aplausos. Claire Zachanassian levanta-se. admirado.

CLAIRE ZACHANASSIAN: Senhor Presidente, queridos ALFRED: O que quer o senhor de mim?
conterrâneos. Estou comovida com a vossa alegria O MORDOMO: Faça favor de se aproximar.
desinteressada pela minha visita. Na verdade, em criança eu era ALFRED: Muito bem. (Avança até ficar à frente da mesa da
um pouco diferente do que pode transparecer do discurso do direita. Sorriso embaraçado. Encolhe os ombros.)
nosso Presidente, apanhava pancada na escola, e as batatas para O MORDOMO: Foi no ano e 1910 [1968, se quisermos
a viúva Boll roubei-as, com o Alfred, não para salvar da morte actualizar!?]. Eu era Juiz-Presidente aqui em Güllen e tive de
essa alcoviteira, mas para poder finalmente deitar-me com o julgar um caso de denúncia de paternidade. Claire Zachanassian,
Alfred numa cama decente, em vez do chão duro e incómodo da na altura Claire Wäscher, acusava-o, senhor Alfred Ill, de ser o
Mata ou do palheiro do Peter. No entanto, para me associar pai do seu filho.
desde já à vossa alegria, declaro que estou disposta a doar a
Güllen mil milhões. Quinhentos milhões para o município e Alfred fica calado.
outros quinhentos para distribuir por todas as famílias.
O MORDOMO: O senhor negou a paternidade, senhor Ill. E
Silêncio sepulcral. apresentou duas testemunhas.
ALFRED: Isso são histórias antigas. Nesses anos eu era um
O PRESIDENTE DA CÂMARA, gaguejando: Mil milhões! rapazola irresponsável.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Toby e Roby, tragam cá o Koby e
Todos estão ainda como que petrificados. o Loby.

CLAIRE ZACHANASSIAN: Com uma condição. Os dois monstros mastigadores de pastilha elástica levam os
dois eunucos cegos, alegres e de mãos dadas, até ao centro do
A sala explode num júbilo indescritível. Todos dançam, sobem palco.
para as cadeiras, o ginasta faz exercícios, etc. Alfred bate com
as mãos no peito, não cabe em si de orgulho. OS DOIS: Perguntem e nós respondemos, nós respondemos.
O MORDOMO: Conhece estes dois, senhor Alfred Ill?
ALFRED: A Claire! Um amor! Maravilhoso! É de rebentar! A
minha feiticeirazinha, sem tirar nem pôr! (Beija-a.) Alfred fica calado.

O PRESIDENTE DA CÂMARA: Com uma condição, dizeis, OS DOIS: Somos o Koby e o Loby, somos o Koby e o Loby.
ilustre senhora. E pode saber-se qual é essa condição? ALFRED: Não os conheço.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Vou dizer-vos qual é. Dou-vos OS DOIS: Mudámos muito, mudámos muito.
mil milhões, e com isso compro a Justiça. O MORDOMO: Digam os vossos nomes.
O PRIMEIRO: Jakob Hühlein, Jakob Hühlein.
Silêncio sepulcral. O SEGUNDO: Ludwig Sparr, Ludwig Sparr.
O MORDOMO: E então, senhor Ill.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E como é que devemos ALFRED: Não me dizem nada.
entender tal condição, minha senhora? O MORDOMO: Jakob Hühlein e Ludwig Sparr, conhecem o
CLAIRE ZACHANASSIAN: Tal qual eu disse. senhor Alfred Ill?
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas, a Justiça não se compra! OS DOIS: Nós somos cegos, nós somos cegos.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Pode-se comprar tudo. O MORDOMO: Reconhecem-no pela voz?
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Continuo sem perceber. OS DOIS: Pela voz, pela voz...
CLAIRE ZACHANASSIAN: Chega cá, Boby. O MORDOMO: Em 1910 [1968?] eu era o juiz e vocês as
testemunhas. O que testemunharam vocês, Jakob Hühnlein e
O mordomo vem da direita até ao centro, entre as três mesas, e Ludwig Sparr, perante o tribunal de Güllen?
tira os óculos escuros. OS DOIS: Que tínhamos dormido com a Claire, que tínhamos
dormido com a Claire.
O MORDOMO: Não sei se algum de vós ainda me reconhece. O MORDOMO: Foi isso mesmo o que de declararam perante
O PROFESSOR: O Juiz-Presidente Hofer. mim. Perante o tribunal, perante Deus. Era essa a verdade?
O MORDOMO: Exactamente, o Juiz-Presidente Hofer. Há OS DOIS: Foi falso testemunho, foi falso testemunho.
quarenta e cinco anos eu era Presidente do Tribunal em Güllen, O MORDOMO: E porquê, Ludwig Sparr e Jakob Hühnlein?
fui depois transferido para o Tribunal da Relação de Kaffigen, OS DOIS: O Alfred subornou-nos, O Alfred subornou-nos.
até que, há vinte e cinco anos, a senhora Zachanassian me fez a O MORDOMO: Com quê?
proposta de entrar ao seu serviço como mordomo. Uma carreira OS DOIS: Com um litro de aguardente, com um litro de
talvez um pouco estranha para um académico, mas o ordenado aguardente.
era de tal modo fantástico... CLAIRE ZACHANASSIAN: E agora contem lá o que eu fiz
CLAIRE ZACHANASSIAN: Vamos aos factos, Boby. com vocês, Koby e Loby.
O MORDOMO: Como acabam de ouvir, a senhora O MORDOMO: Contem lá.
Zachanassian oferece-vos mil milhões e pede em troca Justiça. OS DOIS: A senhora mandou procurar-nos, a senhora mandou
Por outras palavras: a senhora Zachanassian oferece-vos mil procurar-nos.
milhões se vocês se dispuserem a reparar a injustiça que foi feita O MORDOMO: É verdade. Claire Zachanassian mandou
à senhora Zachanassian em Güllen. Senhor Alfred Ill, por favor. procurar-vos. No mundo inteiro. Jakob Hühnlein tinha emigrado
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para o Canadá e Ludwig Sparr para a Austrália. Mas ela loja, ouve-se o som leve de uma campainha. Outra incrição à
encontrou-vos. E o que é que ela fez depois com vocês? esquerda: «Polícia». Por baixo, uma mesa de madeira com
OS DOIS: Deu-nos o Toby e o Roby. Deu-nos o Toby e o Roby. telefone. Duas cadeiras. É de manhã. Roby e Toby carregam
O MORDOMO: E o que é que o Toby e o Roby fizeram com coroas e ramos de flores, como para um enterro, vindos da
vocês? esquerda e entrando no hotel ao fundo. Alfred Ill observa-os
OS DOIS: Castraram-nos e cegaram-nos, castraram-nos e através da janela. A filha varre o chão, de joelhos. O filho mete
cegaram-nos. um cigarro na boca.
O MORDOMO: A história é esta. Um juiz, um acusado, duas
falsas testemunhas, um erro judiciário no ano de 1910 [1968?]. ALFRED: Coroas de flores.
É assim, senhora queixosa? O FILHO: Vão todas as manhãs buscá-las à estação.
ALFRED: Para o caixão vazio que está no «Apóstolo Dourado».
Claire Zachanassian levanta-se. O FILHO: Mas não assustam ninguém.
ALFRED: A cidade está comigo.
ALFRED, batendo com o pé no chão:
Prescreveu, prescreveu tudo! É uma história antiga e louca. O filho acende o cigarro.
O MORDOMO: Que aconteceu com a criança, senhora
queixosa? ALFRED: A mãe vai descer para o pequeno-almoço?
CLAIRE ZACHANASSIAN, baixinho: Viveu só um ano. A FILHA: Diz que fica em cima, que está cansada.
O MORDOMO: E que aconteceu com a senhora? ALFRED: Vocês têm uma boa mãe, meus filhos. Tenho de
CLAIRE ZACHANASSIAN: Prostitui-me. reconhecer que é mesmo uma boa mãe. Ela que fique lá em cima,
O MORDOMO: E porquê? a ver se descansa. Então tomamos nós o pequenoalmoço juntos,
CLAIRE ZACHANASSIAN: A sentença do tribunal levou-me há que tempos que isso não acontece. Dispenso ovos e uma lata
a isso. de fiambre americano. Hoje é à grande e à francesa. Como nos
O MORDOMO: E agora quer que seja feita justiça, Claire bons velhos tempos, quando a siderurgia Um Lugar ao Sol ia de
Zachanassian? vento em popa.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Estou em condições de me O FILHO: Vais ter de me desculpar. (Apaga o cigarro.)
permitir isso. Mil milhões para Güllen, se alguém matar ALFRED: Não vais comer connosco, Karl?
Alfred Ill. O FILHO: Vou até à estação. Há um operário doente. Talvez
precisem de alguém para o substituir.
Silêncio sepulcral. ALFRED: Trabalho nas obras da linha, à torreira do sol, não é
trabalho para o meu filho.
A MULHER DE ALFRED precipita-se sobre ele, abraça-o: O FILHO: É melhor que nada. (Sai.)
Fredi! A FILHA (levantando-se): Eu também tenho de ir, pai.
ALFRED: Mas, feiticeirazinha! Tu não podes exigir uma coisa ALFRED: Tu também? Bom, e pode-se saber aonde é que vai a
dessas. A vida há muito que seguiu o seu caminho! menina minha filha?
CLAIRE ZACHANASSIAN: A vida seguiu o seu caminho, mas A FILHA: Ao Centro de Emprego. Pode ser que haja algum
eu não esqueci nada, Alfred. Nem a Mata de S. Conrado, nem o trabalho para mim. (Sai.)
palheiro do Peter, nem o quartinho da viúva Boll, nem a tua ALFRED (emocionado, espirra para o lenço de assoar): Filhos
traição. Agora estamos velhos, os dois, tu, acabado, e eu como já há poucos, estes meus meninos!
estraçalhada pelas facas dos cirurgiões, e agora quero que as
contas sejam feitas entre nós dois: tu escolheste a tua vida, e
obrigaste-me a seguir a minha. Tu querias que o tempo parasse, Da varanda ouvem-se alguns acordes de guitarra.
era isso, lá na floresta da nossa juventude, cheia de tempos
passados. Agora, eu vim para parar o tempo, e exijo justiça, A VOZ DE CLAIRE ZACHANASSIAN: Boby, chega-me a
justiça por mil milhões. minha perna esquerda.
A VOZ DO MORDOMO: Não a encontro.
O Presidente da Câmara levanta-se, pálido, digno. A VOZ DE CLAIRE ZACHANASSIAN: Atrás das flores de
noivado, em cima da cómoda.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Senhora Zachanassian: por
enquanto ainda estamos na Europa, por enquanto ainda não
somos nenhuns selvagens. Em nome da cidade de Güllen, recuso Entra o primeiro cliente na loja de Alfred Ill (O PRIMEIRO).
a sua oferta. Em nome da humanidade. Preferimos continuar
pobres a manchar de sangue as nossas mãos. ALFRED: Bom dia, Hofbauer.
O PRIMEIRO: Cigarros.
Enorme aplauso. ALFRED: Como todas as manhãs.
O PRIMEIRO: Não quero desses, quero dos verdes.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Eu espero. ALFRED: São mais caros.
O PRIMEIRO: Ponha na conta.
Segundo Acto ALFRED: Só por ser para si, Hofbauer, e porque temos de ficar
todos unidos.
A pequena cidade, apenas sugerida. Ao fundo, o «Hotel do O PRIMEIRO: Há ali alguém a tocar guitarra.
Apóstolo Dourado», visto de fora. Fachada arte-nova decrépita. ALFRED: É um dos gangsters de Sing-Sing.
Varanda. À direita, uma inscrição: «Alfred Hill - Mercearia».
Por baixo, um balcão sujo, por trás uma estante com Os dois cegos saem do hotel, carregando canas e outros
mercadoria velha. Quando alguém entra pela porta fingida da utensílios de pesca.
12

PRIMEIRA MULHER: Sim, na conta.


OS DOIS: Bela manhã, Alfred, bela manhã. SEGUNDA MULHER: É para comer aqui, senhor Alfred.
ALFRED: Vão para o diabo! PRIMEIRA MULHER: A sua loja é o melhor sítio cá da terra,
OS DOIS: Vamos á pesca, vamos à pesca. (Saem de cena pela senhor Alfred.
esquerda.)
O PRIMEIRO: Estes vão para a ribeira de Güllen. Sentam-se ao fundo da loja a comer chocolate.
ALFRED: Com as canas de pesca do sétimo marido.
O PRIMEIRO: Parece que perdeu todas as plantações de tabaco. CLAIRE ZACHANASSIAN: Um «Winston». Vou
ALFRED: Agora pertencem também à milionária. experimentar os charutos do meu sétimo marido, agora que já
O PRIMEIRO: E vem aí um casamento de arromba com o nos divorciámos. Pobre Moby, com a sua paixão pela pesca.
oitavo. Ontem já foi a festa de noivado. Deve estar muito tristinho a esta hora, sentado no expresso para
Portugal. Um dos meus petroleiros apanha-o em Lisboa e leva-
Na varanda, ao fundo, aparece Claire Zachanassian, de o para o Brasil.
roupão. Mexe a mão direita, a perna esquerda. A acompanhá-
la, talvez alguns sons arrancados à guitarra, que podem O mordomo estende-lhe um charuto e dá-lhe lume.
acompanhar toda esta cena da varanda, um pouco como os
recitativos de uma ópera. Consoante o sentido dos textos, valsa O PRIMEIRO: Lá está aquela na varanda a tirar fumaças do
ou fragmentos de vários hinos nacionais, etc. charuto.
ALFRED: E sempre marcas caríssimas.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Estou outra vez completa, as O PRIMEIRO: Um desperdício. E uma vergonha, com o mundo
peças todas aparafusadas. Roby, toca aquela canção popular da cheio de miséria como está.
Arménia. CLAIRE ZACHANASSIAN, fumando: Curioso. Até nem sabe
nada mal.
Melodia de guitarra.
ALFRED: Saiu-lhe o tiro pela culatra. Confesso o meu pecado,
CLAIRE ZACHANASSIAN: Era a canção preferida do velho Hofbauer, mas quem é que nunca pecou? Foi uma partida
Zachanassian. Estava sempre a querer ouvi-la, todas as manhãs. indecente a que lhe preguei, naqueles verdes anos... Mas ontem,
Era um homem de tipo clássico, o velho gigante da finança, com no «Apóstolo Dourado», quando todos os da terra rejeitaram a
a sua infindável frota de petroleiros e os seus cavalos de corrida, oferta dela, unanimemente e apesar da miséria que passamos,
ainda tinha uns bons milhões nos bancos. Tempos em que um digo-lhe que foi a hora mais feliz da minha vida!
casamento valia a pena. Grande mestre e grande dançarino, sabia CLAIRE ZACHANASSIAN: Whisky, Boby. Puro.
todos os truques e manigâncias, e eu não deixei escapar nenhum.
Chega um segundo cliente, com ar pobre e esfarrapado, como
Entram duas mulheres, que dão a Alfred as leiteiras. todos (é O SEGUNDO).

PRIMEIRA MULHER: Leite, senhor Alfred. O SEGUNDO: Bom dia. Isto hoje vai estar quente.
SEGUNDA MULHER: Leve também a minha leiteira, senhor O PRIMEIRO: O bom tempo veio para ficar.
Alfred. ALFRED: Isto é que é um corrupio de freguesia esta manhã!
ALFRED: Ora muito bons dias. Um litro de leite para cada uma Durante muito tempo não aparecia ninguém, e agora é isto, há
das senhoras. vários dias.
O PRIMEIRO: Nós estamos consigo, com o nosso Alfred.
Abre uma das leiteiras e vai a enchê-la de leite. Firmes como uma rocha.
AS MULHERES, a comer chocolate:
PRIMEIRA MULHER: Leite integral, senhor Alfred. Como uma rocha, senhor Alfred, como uma rocha.
SEGUNDA MULHER: Dois litros de leite integral, senhor O SEGUNDO: Afinal, tu és a personalidade mais popular da
Alfred. terra.
ALFRED: Leite integral. (Abre a outra leiteira e enche-a de O PRIMEIRO: E a mais importante.
leite.) O SEGUNDO: Na Primavera vais ser eleito Presidente da
Câmara.
Claire Zachanassian observa a manhã pelo lorgnon. O PRIMEIRO: Ninguém tem dúvidas.
AS MULHERES, a comer chocolate:
CLAIRE ZACHANASSIAN: Bela manhã de Outono. Uma Sem dúvida, senhor Alfred, sem dúvida.
neblinazinha nas ruas, um fumozinho prateado, e por cima um O SEGUNDO: Uma garrafa de aguardente.
céu azul-violeta, como o pintava o conde Holk, o meu terceiro,
Ministro dos Estrangeiros. Gostava de pintar nas férias. Pinturas Alfred tira uma da prateleira.
horríveis. Aliás, todo ele era horrível.
PRIMEIRA MULHER: E manteiga. Duzentos gramas. O mordomo serve whisky.
SEGUNDA MULHER: E pão de trigo. Dois quilos.
ALFRED: Devem ter recebido uma herança, as senhoras, não é? CLAIRE ZACHANASSIAN: Vai acordar o novo. Não gosto
AS DUAS MULHERES: Ponha na conta. que os meus homens fiquem a dormir até tão tarde.
ALFRED: Um por todos, todos por um. ALFRED: «Três Dez».
PRIMEIRA MULHER: E uma tablete de chocolate, de dois e O SEGUNDO: Não é dessa.
vinte. ALFRED: Era a que costumavas beber sempre.
SEGUNDA MULHER: De quatro e quarenta. O SEGUNDO: Quero um conhaque.
ALFRED: Para pôr na conta?
13

ALFRED: Custa vinte e trinta e cinco. Ninguém pode pagar esse O PRIMERO: Não sei o que vês nisto de extraordinário.
preço. O SEGUNDO: Não podemos andar eternamente com os
O SEGUNDO: Precisamos de fazer o gosto ao dedo de vez em mesmos sapatos velhos.
quando. ALFRED: Sapatos novos. Como é que vocês puderam comprar
sapatos novos?
Uma rapariga seminua atravessa o palco a correr, Toby atrás AS MULHERES: Mandámos pôr na conta, senhor Alfred,
dela. mandámos pôr na conta.
ALFRED: Mandaram pôr na conta. E aqui também mandaram
PRIMEIRA MULHER, ainda a comer chocolate: pôr na conta. Tabaco do melhor, leite de qualidade, conhaque.
É um escândalo, a maneira como a Luisinha se porta. Mas, como é que de repente vocês têm crédito nas lojas?
SEGUNDA MULHER, ainda a comer chocolate: O SEGUNDO: Na tua loja também nos vendes fiado.
E está noiva do músico louro, o da Rua Berthold-Schwarz. ALFRED: E como é que vocês me vão pagar?

Alfred tira a garrafa de conhaque da prateleira. Silêncio. Alfred começa a atirar mercadoria aos fregueses.
Fogem todos.
ALFRED: Aqui tens.
O SEGUNDO: E tabaco. Para o cachimbo. ALFRED: Como é que vocês vão pagar? Como é que vão pagar?
ALFRED: Muito bem. Como? Como? (Precipita-se lá para trás.)
O SEGUNDO: Estrangeiro, se faz favor. MARIDO VIII: Há barulho na cidadezinha.
CLAIRE ZACHANASSIAN: É a vida de uma pequena cidade.
Alfred faz a conta de tudo. MARIDO VIII: Parece que há problemas na lojinha ali em
baixo.
Na varanda aparece o marido VIII, actor de cinema, alto, CLAIRE ZACHANASSIAN: Devem estar a discutir o preço da
magro, bigode ruivo, de roupão. Pode ser o mesmo actor que carne.
representou o marido VII.
Acorde forte de guitarra. O Marido VIII dá um salto, assustado.
MARIDO VIII: Ah, Clarita! Não é maravilhoso? O nosso
primeiro pequeno-almoço, já noivos. Uma varandinha, uma tília MARIDO VIII: Meu Deus, que é isto, Clarita, ouviste?
sussurrante, o marulhar da fonte do Largo da Câmara, galinhas CLAIRE ZACHANASSIAN: A pantera negra. Assanhou-se.
a atravessar a rua, as donas de casa com os seus pequenos MARIDO VIII, espantado: Uma pantera negra?
problemas, e por cima dos telhados a torre da matriz! CLAIRE ZACHANASSIAN: Do Paxá de Marraquexe. Uma
CLAIRE ZACHANASSIAN: Senta-te, Hoby, e deixa-te de prenda. Anda para cá e para lá no salão aqui ao lado. Um gatinho
conversas. Eu não sou cega, também vejo a paisagem, e pensar grande e bravo, com olhos dardejantes.
não é propriamente o teu forte.
O SEGUNDO: O marido também já está lá em cima. O Polícia senta-se à mesa que está do lado esquerdo. Bebe
PRIMEIRA MULHER, a comer chocolate: O oitavo. cerveja. Fala devagar e em tom meditativo. Alfred aproxima-se,
SEGUNDA MULHER, a comer chocolate: vindo de trás.
Belo homem, é actor de cinema. A minha filha viu-o num papel
de caçador furtivo, num filme de aventuras. CLAIRE ZACHANASSIAN: Podes servir, Boby.
PRIMEIRA MULHER: E eu vi-o numa história de Graham O POLÍCIA: O que é que bebe, Alfred? Sente-se.
Greene em que ele fazia de padre.
Alfred fica em pé.
O marido VII beija Claire Zachanassian. Acordes de guitarra.
O POLÍCIA: Está a tremer, homem!
O SEGUNDO: Não há dúvida, o dinheiro compra tudo. ALFRED: Exijo a detenção imediata de Claire Zachanassian.
(Cospe.) O POLÍCIA, atacando o cachimbo e acendendo-o calmamente:
O PRIMEIRO: Mas aqui não. (Bate com o punho no balcão.) Coisa estranha, muito estranha mesmo.
ALFRED: São vinte e três e oitenta.
O SEGUNDO: Põe na conta. O mordomo serve a refeição da manhã, traz os jornais.
ALFRED: Esta semana ainda abro uma excepção, mas no dia
um tens de me pagar, quando vier o subsídio de desemprego. ALFRED: Exijo essa detenção na qualidade de futuro
Presidente da Câmara.
O Segundo vai até à porta. O POLÍCIA, soltando baforadas de fumo: Ainda não houve
eleições.
ALFRED: Helmsberger! ALFRED: Exijo a prisão da senhora, e já.
O POLÍCIA: O senhor quer dizer que pretende fazer queixa dela.
O outro pára. Alfred aproxima-se. Se ela é presa ou não, isso é a Polícia a decidir. De que crime a
acusa?
ALFRED: Tens sapatos novos! Novos e amarelos! ALFRED: Ela exige dos habitantes da nossa cidade que me
O SEGUNDO: Sim, e depois? matem.
ALFRED, olhando para os pés do Primeiro: O POLÍCIA: E isso é motivo para eu prender a dita senhora...?
E tu também, Hofbauer. Tu também tens sapatos novos. (Olha (Deita mais cerveja no copo.)
para as mulheres, aproxima-se delas devagar, aterrado.) E CLAIRE ZACHANASSIAN:
vocês também. Sapatos novos, amarelos. O correio. Carta do Eisenhower. E do Nehru. Mandam parabéns.
Sapatos novos, amarelos. ALFRED:
14

É o seu dever.
O POLÍCIA: ALFRED: Está a ouvir?
Coisa estranha, muito estranha mesmo. (Bebe mais cerveja.) O POLÍCIA: A ouvir o quê?
ALFRED: ALFRED: A música.
É a coisa mais natural deste mundo. O POLÍCIA: É «A Viúva Alegre».
O POLÍCIA: ALFRED: Um aparelho de rádio.
Meu caro Alfred Ill, a coisa não é tão natural como você pensa. O POLÍCIA: É do Hagholtzer, aqui ao lado. Devia fechar a
Analisemos friamente o caso. A senhora fez essa proposta à janela (Anota qualquer coisa num caderninho.)
cidade de Güllen, a de, a troco de mil milhões... bom, já sabe do ALFRED: Como é que o Hagholtzer, assim de repente, tem um
que estou a falar. Tudo bem, eu estava lá e ouvi. Mas para a rádio?
Polícia isso não basta para intervir contra a senhora O POLÍCIA: Problema dele.
Zachanassian. Afinal, há leis que temos de seguir. ALFRED: E o senhor Chefe, como é que vai pagar a cerveja
ALFRED: checa e os sapatos novos?
Foi incitamento a homicídio. O POLÍCIA: Problema meu.
O POLÍCIA:
Veja bem, Alfred. Só existiria incitamento a homicídio se a O telefone em cima da mesa toca. O Polícia atende.
proposta de o matarem fosse feita a sério. Está claro, ou não?
ALFRED: O POLÍCIA: Esquadra da Polícia de Güllen.
É isso mesmo. CLAIRE ZACHANASSIAN: Telefona aos Russos, Boby, e diz
O POLÍCIA: que aceito a proposta deles.
Ora aí está. Mas esta proposta não pode ser levada a sério, O POLÍCIA: Muito bem, vou já. (Volta a pousar o telefone no
porque o preço de mil milhões é claramente exagerado, tem de descanso.)
reconhecer isso. Para uma coisa dessas, o prémio é, digamos, de ALFRED: E os meus fregueses, como é que me vão pagar?
mil, no máximo dois mil, mas mais não, pode crer. O que, por O POLÍCIA: A Polícia não tem nada a ver com isso. (Levanta-
sua vez, prova ainda mais que a proposta não foi feita a sério. E se e pega na espingarda, que estava pendurada nas costas da
mesmo que fosse feita a sério, a Polícia não pode levar a sério cadeira.)
essa senhora, porque então seria um claríssimo caso de ALFRED: Mas eu tenho. Porque é com a minha pessoa que eles
demência. Está a perceber? vão pagar.
ALFRED: O POLÍCIA: Ninguém o ameaça. (Começa a carregar a arma.)
Essa proposta é uma ameaça à minha pessoa, senhor Chefe, quer ALFRED: A cidade está cheia de dívidas. Com as dívidas sobe
a dama seja louca quer não. É lógico, acho eu. o nível de vida. E com o nível de vida a necessidade de me matar.
O POLÍCIA: E a grande dama só precisa de ficar sentada na varanda a tomar
Ilógico. O senhor não pode ser ameaçado por uma proposta feita café, a fumar charutos, à espera. Só precisa de esperar.
por alguém, mas apenas pela execução concreta dessa proposta. O POLÍCIA: O senhor está a inventar histórias.
Aponte-me uma única tentativa de levar à prática essa proposta, ALFRED: Vocês todos só estão à espera. (Bate com o punho na
um homem que lhe tenha apontado uma arma, e eu não perderei mesa.)
tempo a actuar. Mas acontece que ninguém quer pôr em prática O POLÍCIA: O senhor bebeu aguardente a mais. (Continua a
essa proposta, muito pelo contrário. A manifestação de tratar da espingarda.) Pronto, está carregada. Pode ficar
solidariedade no «Apóstolo Dourado» foi extremamente sossegado. A Polícia está cá para fazer respeitar as leis, zelar
impressionante. Só posso dar-lhe os parabéns por isso. (Bebe pela ordem, proteger os cidadãos. E sabe muito bem qual é o seu
cerveja.) dever. Se por acaso surgir, seja lá de onde for, a mais leve
ALFRED: Eu não teria assim tantas certezas, senhor Chefe. suspeita de uma ameaça, ela intervirá, senhor Alfred Ill, disso
O POLÍCIA: Como assim? pode estar certo.
ALFRED: Os meus clientes compram leite de qualidade, pão ALFRED, em voz baixa: E porque é que o senhor tem um dente
mais caro, melhores cigarros. de ouro na boca?
O POLÍCIA: Mas isso é uma óptima notícia! Quer dizer que o O POLÍCIA: Hã?
negócio está a melhorar! (Bebe cerveja.) ALFRED: Um dente de ouro novinho, a brilhar.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Boby, manda comprar as acções O POLÍCIA: Está doido, ou quê?
da Dupont.
ALFRED: O Helmsberger comprou conhaque na minha loja, e Alfred repara agora que o cano da arma está voltado para ele,
toda a gente sabe que ele há anos que não ganha nada e vive da e levanta lentamente os braços.
sopa dos pobres.
O POLÍCIA: Esse conhaque vou prová-lo logo à noite. O O POLÍCIA: Não tenho tempo de ficar aqui a discutir os seus
Helmsberger convidou-me para ir lá a casa. (Bebe cerveja.) fantasmas, homem. Tenho de ir. O lulu daquela milionária
ALFRED: Toda a gente anda de sapatos novos. Amarelos. extravagante fugiu. A pantera negra. Tenho de lhe dar caça. A
O POLÍCIA: E o que é que o senhor tem contra os sapatos novos. cidade toda tem de entrar nesta batida. (Sai pelas traseiras.)
Eu também tenho sapatos novos. (Mostra os pés.) ALFRED: A mim é que vocês dão caça, a mim.
ALFRED: O senhor também! CLAIRE ZACHANASSIAN, lendo uma carta: Ele vem, o
O POLÍCIA: Está a ver? criador de moda. O meu quinto marido, o mais belo de todos.
ALFRED: E amarelos! E está a beber cerveja de Pilsen / checa! Desenhou todos os meus vestidos de casamento. Roby, toca um
O POLÍCIA: Sabe melhor! minuete.
ALFRED: Mas antes bebia da nossa.
O POLÍCIA: Era um horror! Ouve-se um minuete tocado na guitarra.

Música de rádio. MARIDO VIII: Mas, o teu quinto era cirurgião.


15

CLAIRE ZACHANASSIAN: O sexto. (Abre mais uma carta.) ALFRED: O bem-estar geral aumenta...
Do dono da Western-Railway. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Isso para mim é novidade. Era
MARIDO VIII, admirado: Desse não sei nada. bom, era!
CLAIRE ZACHANASSIAN: Foi o meu quarto. Ficou na ALFRED: Exijo a protecção das autoridades.
miséria. As acções que eram dele agora são minhas. Seduzi-o no PRESIDENTE DA CÂMARA: Ora essa! E para quê, pode
Palácio de Buckingham numa noite de lua cheia. saber-se?
MARIDO VIII: Mas esse foi o Lord Ismael. ALFRED: O senhor sabe-o tão bem como eu.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Tens razão, Hoby. Tinha-me O PRESIDENTE DA CÂMARA: Desconfia de alguma coisa?
esquecido completamente dele, mais o seu castelo em ALFRED: Ofereceram mil milhões pela minha cabeça.
Yorkshire. Então este que escreve é o meu segundo. Conheci-o O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então dirija-se à Polícia.
no Cairo. Beijámo-nos à sombra da Esfinge. Foi uma noite ALFRED: Já estive na Polícia.
memorável. Também de lua cheia. Curioso: foi sempre na lua O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então já deve estar mais
cheia. tranquilo.
ALFRED: Na boca do chefe da Polícia há um dente de ouro
Muda o cenário à direita. Desce uma tabuleta com a inscrição novo a brilhar.
«Câmara Municipal». Entra O TERCEIRO, que retira a caixa O PRESIDENTE DA CÂMARA: O senhor esquece que está em
registadora da loja, desloca o balcão, que passa a ser utilizado Güllen. Uma cidade com tradição humanista. Goethe pernoitou
como secretária. Entra o Presidente da Câmara, põe um aqui. Brahms compôs aqui um quarteto. Estes valores são uma
revólver em cima da secretária e senta-se. Alfred Ill entra pela responsabilidade para nós.
esquerda. Na parede está pendurado um projecto de
construção. Pela esquerda entra um homem com uma máquina de escrever
(O TERCEIRO).
ALFRED: Tenho de falar consigo, senhor Presidente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Faça favor de se sentar. O HOMEM: A máquina de escrever nova, senhor Presidente.
ALFRED: De homem para homem. E na qualidade de seu Uma Remington.
sucessor. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Leve-a para o meu gabinete.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então diga.
O homem sai pela direita.
Alfred fica parado, a olhar para o revólver.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Nós não merecemos a sua
O PRESIDENTE DA CÂMARA: A pantera da senhora ingratidão. Só posso lamentar que tenha perdido a confiança na
Zachanassian fugiu. Anda na igreja, a trepar por todo o lado. nossa comunidade. Não esperava de si essas tendências niilistas.
Temos de andar armados. Afinal, nós vivemos num Estado de Direito.
ALFRED: Com certeza.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mobilizei todos os homens Da esquerda chegam os dois cegos com as suas canas de pesca,
que têm armas. E as crianças não saem da escola. de mão dada.
ALFRED, desconfiado: Parece-me um pouco exagerado.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: É caça a um animal selvagem. S DOIS: A pantera anda à solta, a pantera anda à solta!
(Saltitam.) Ouvimo-la rugir, ouvimo-la rugir! (Entram no
Entra o mordomo. «Apóstolo Dourado» aos saltinhos.) Vamos ter com o Hoby e
Boby, com o Toby e o Roby. (Saem atrás, ao centro.)
O MORDOMO: O presidente do Banco Mundial, minha
senhora. ALFRED: Então mande prender essa senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Não posso recebê-lo agora. Ele O PRESIDENTE DA CÂMARA:
que se meta novamente no avião. Coisa estranha, muito estranha mesmo!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então, o que é que o ALFRED: Foi o que disse também o chefe da Polícia.
preocupa? Fale francamente! O PRESIDENTE DA CÂMARA:
ALFRED, desconfiado: Está a fumar um Havano. Vendo bem, o comportamento da senhora até nem é assim tão
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Um «Pégaso dourado». incompreensível. Afinal, o senhor incitou dois rapazes a prestar
ALFRED: Carote! falsos testemunhos e atirou uma rapariga para uma vida
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas de qualidade. miserável.
ALFRED: O senhor Presidente antes fumava outra marca. ALFRED: Uma vida miserável que significa hoje muitos
O PRESIDENTE DA CÂMARA: «Rössli cinco» milhões, senhor Presidente.
ALFRED: Mais barato.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Tabaco demasiado forte. Silêncio.
ALFRED: E gravata nova?
O PRESIDENTE DA CÂMARA: É de seda. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vamos falar francamente.
ALFRED: E pelos vistos também comprou sapatos novos. ALFRED: Faça favor.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mandei-os vir de Kalberstadt. O PRESIDENTE DA CÂMARA: De homem para homem,
Curioso, como é que sabia? como o senhor pediu quando entrou. O senhor não tem o direito
ALFRED: Foi por isso que vim. moral de pedir a prisão dessa senhora. E também não serve para
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas afinal o que é que se Presidente da Câmara. Lamento muito ter de lhe dizer isto.
passa consigo? Está pálido. Anda doente? ALFRED: É oficial?
ALFRED: Tenho medo. O PRESIDENTE DA CÂMARA: É o ponto de vista de todos os
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Medo? partidos.
16

ALFRED: Compreendo. CLAIRE ZACHANASSIAN: Preciso de ter tudo sob controlo.


MARIDO VIII, lamentando-se: Eu também tenho os meus
Vai lentamente até à janela da esquerda, volta costas ao problemas. (Levanta-se e olha para a cidadezinha lá em baixo.)
Presidente da Câmara e olha fixamente para fora. CLAIRE ZACHANASSIAN: Tens o Porsche avariado?
MARIDO VIII: Um lugarzinho como este deixa-me deprimido.
PRESIDENTE DA CÂMARA: O facto de condenarmos a Está bem, ouve-se a aragem na tília, os passarinhos cantam, a
proposta da senhora não significa que aceitemos os crimes que fonte murmura... Mas há meia hora era a mesma coisa. Não
a levaram a fazer tal proposta. E para o lugar de Presidente da acontece nada aqui, nem com a natureza, nem com as pessoas...
Câmara colocam-se determinadas exigências de ordem moral Tudo na mais perfeita paz, sem problemas, tudo satisfeito,
que o senhor já não preenche. Espero que compreenda. Mas é confortável. Não há grandeza, nada é trágico. O que falta aqui é
claro que isto em nada altera o respeito e a amizade que temos o espírito de uma grande época!
por si.
O PADRE entra pela esquerda, de espingarda a tiracolo.
Da esquerda entram novamente Roby e Toby com coroas e Estende uma toalha branca sobre a mesa onde antes estivera o
ramos de flores, atravessam o palco e desaparecem no Polícia, e põe em cima uma cruz preta. Encosta a espingarda à
«Apóstolo Dourado». parede do hotel. O sacristão ajuda-o a vestir a casula. Escurece.

O PRESIDENTE DA CÂMARA: O melhor é não falar mais do O PADRE: Entre, Alfred, aqui para a sacristia.
assunto. Também pedi ao nosso jornal para não puiblicarem
nada sobre esta matéria. Alfred entra, vindo da esquerda.
ALFRED, voltando-se: Já estão a enfeitar o meu caixão, senhor
Presidente! Ficar calado agora é muito perigoso para mim. O PADRE: Está escuro aqui, mas pelo menos está mais fresco.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Como assim, caro Alfred? O ALFRED: Não quero incomodar, senhor Padre.
senhor devia era agradecer-nos por passarmos uma esponja por O PADRE: A casa de Deus está aberta a todos. (Repara no olhar
cima deste triste episódio. de Alfred Ill, dirigido para a espingarda.) Não se espante com a
ALFRED: Se falar, talvez ainda tenha uma possibilidade de arma. A pantera negra da senhora Zachanassian ainda anda por
escapar. aí. Ainda há pouco estava lá em cima no telhado, depois foi para
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas onde é que já se viu uma a Mata de S. Conrado e agora parece que está no palheiro do
coisa destas? E quem é que o ia ameaçar? Peter.
ALFRED: Um de vós. ALFRED: Preciso de ajuda.
O PRESIDENTE DA CÂMARA, levantando-se: De quem é que O PADRE: E porquê?
desconfia? Dê-me um nome e eu mando investigar o caso. Sem ALFRED: Tenho medo.
reservas. O PADRE: Medo? E de quem?
ALFRED: Qualquer um de vós. ALFRED: Das pessoas.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Tenho de protestar O PADRE: De que as pessoas o matem, Alfred?
solenemente, em nome da cidade, contra uma tal calúnia. ALFRED: Perseguem-me como a um animal selvagem.
ALFRED: Ninguém me quer matar, cada um espera que seja o O PADRE: Não são as pessoas que devemos temer, mas Deus.
outro, e por isso um de vós acabará por fazê-lo. Não a morte do corpo, mas a da alma. Sacristão, abotoa-me a
O PRESIDENTE DA CÂMARA: O senhor anda a ver casula atrás.
fantasmas.
ALFRED: Estiou é a ver uma nova planta naquela parede. É o Em todos os lados do palco começam a aparecer os habitantes
novo edifício da Câmara? (Aponta para a planta.) de Güllen, espreitando, de arma em riste: primeiro o Polícia,
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Meu Deus, ainda podemos depois o Presidente da Câmara, os Quatro, o Pintor, o
fazer planos, ou não? Professor.
ALFRED: Vocês já andam todos a especular sobre a minha
morte! ALFRED: A minha vida está em risco.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Meu caro amigo, se eu, como O PADRE:A sua vida eterna.
político, não tivesse o direito de acreditar num futuro melhor ALFRED: Vê-se a riqueza a crescer.
sem ter de pensar logo num crime, demitia-me imediatamente, O PADRE: É o fantasma da sua consciência.
pode crer. ALFRED: As pessoas andam todas felizes. As raparigas cheias
ALFRED: Vocês já me condenaram à morte. de jóias. Os rapazes de camisas às cores. A cidade prepara-se
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas, meu caro Alfred! para a festa da minha morte, e eu ando aterrorizado, não resisto.
ALFRED, baixinho: E aquela planta é a prova disso! É a prova O PADRE: Positivo, muito positivo tudo o que está a sentir.
disso! ALFRED: É um inferno!
CLAIRE ZACHANASSIAN: O Onassis também vem. O duque O PADRE: O inferno está dentro de si. O senhor é mais velho
e a duquesa. E o Aga. do que eu, e acha que conhece os homens, mas de facto só nos
MARIDO VIII: E o Ali? conhecemos a nós próprios. Lá porque o senhor traiu uma
CLAIRE ZACHANASSIAN: A tropa toda da Riviera. rapariga por dinheiro há muitos anos, acha que agora as pessoas
MARIDO VIII: E jornalistas? também o vão trair a si por dinheiro. Tira conclusões sobre os
CLAIRE ZACHANASSIAN: Do mundo inteiro. Quando eu outros a partir de si mesmo. É natural. A razão dos nossos medos
caso, toda a imprensa está presente. Eles precisam de mim, e eu está no nosso coração, está nos nossos pecados. Se perceber isto
preciso deles. (Abre mais uma carta.) Do conde Holk. vai conseguir vencer o que o atormenta, vai ter na mão as armas
MARIDO VIII: Clarita, é a primeira vez que tomamos o para o fazer.
pequeno-almoço juntos! E tens de me ler as cartas dos teus ALFRED: Os Siemethofer compraram uma máquina de lavar.
outros maridos? O PADRE: Não se preocupe com essas coisas.
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ALFRED: A crédito. instalam, o mundo animal fica mais pobre. Não ignoramos de
O PADRE: Preocupe-se antes com a imortalidade da sua alma. modo nenhum este dilema trágico.
Alfred: E os Stockers têm uma televisão nova. Por isso gostaríamos de cantar uma obra coral. Uma ode
O Padre: Reze, reze. Sacristão, a estola. fúnebre, ilustre senhora. Composta por Heinrich Schütz.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Muito bem, vamos então ouvir
O sacristão põe a estola à volta do pescoço do padre. essa ode fúnebre.

O PADRE: Interrogue a sua consciência. Siga o caminho do O Professor começa a dirigir o coro. Da direita entra Alfred Ill
arrependimento, senão o mundo ainda ateia mais os seus receios. de arma na mão.
É o único caminho, não podemos fazer outra coisa.
ALFRED: Calados!
Silêncio. Os homens com as suas espingardas voltam a
desaparecer. Sombras à volta do palco. A sineta dos bombeiros Todos se calam, aterrados.
começa a tocar.
ALFRED: Um cântico fúnebre! Por que é que estão a cantar uma
O PADRE: Agora tenho de me dedicar à minha missão, Alfred, música destas?
tenho um baptizado. A Bíblia, sacristão, a Liturgia, o Livro dos O PROFESSOR: Mas, senhor Alfred, é pela morte da pantera
Salmos. A criancinha já está a chorar, temos de a levar a porto negra...
seguro, a única luz que ilumina este nosso mundo. ALFRED: Estão a ensaiar é para a minha morte, para a minha
morte!
Ouve-se uma segunda sineta a tocar. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Senhor Alfred Ill, por favor,
tenha maneiras!
ALFRED: A sineta, outra vez? ALFRED: Fora daqui! Tudo para casa!
O PADRE: O som é excelente, não é? Cheio e forte. Pense
positivo, positivo! As pessoas retiram-se.
ALFRED, gritando: Até o senhor, Padre! Até o senhor!
O PADRE, atirando-se a Alfred e abraçando-o: Foge! Nós CLAIRE ZACHANASSIAN: Hoby, vai dar uma volta no teu
somos fracos, cristãos e pagãos. Foge, em Güllen tocam os sinos Porsche.
da traição. Foge, não nos deixes cair em tentação, continuando O MARIDO VIII: Mas, Clarita...
entre nós. CLAIRE ZACHANASSIAN: Desaparece!

Ouvem-se dois tiros. Alfred cai por terra, o Padre ajoelha-se a O Marido sai.
seu lado.
ALFRED: Claire!
O PADRE: Foge! Foge! CLAIRE ZACHANASSIAN: Alfred! Porque é que assustas
assim as pobres pessoas?
Alfred levanta-se, pega na espingarda do Padre e sai pela ALFRED: Tenho medo, Claire.
esquerda. CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas eu até te agradeço. Estou
farta destas constantes cantorias. Já na escola detestava música.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Boby, ouvi tiros. Lembras-te, Alfred, quando nós dois fugíamos para a Mata
O MORDOMO: É verdade, senhora. assim que o coro misto começava a ensaiar na Praça do
CLAIRE ZACHANASSIAN: Mas, a que propósito? Município, com a banda?
O MORDOMO: A pantera fugiu. ALFRED: Claire, promete que tudo isto é uma comédia tua, que
CLAIRE ZACHANASSIAN: E atiraram nela? não é verdade aquilo que pedes às pessoas. Promete!
O MORDOMO: Está estendida, morta, à porta da loja do Alfred. CLAIRE ZACHANASSIAN: Que estranho, Alfred, estas
CLAIRE ZACHANASSIAN: Que pena, pobre animal. Roby, recordações. Naquele tempo, quando nos conhecemos, eu
toca uma marcha fúnebre. também estava numa varanda, era uma tarde de Outono como
hoje, nem uma aragem, só de vez em quando se ouvia o
Marcha fúnebre, tocada pela guitarra. murmúrio das árvores no parque, tempo quente, como talvez
esteja também agora, mas nos últimos tempos eu tenho sempre
O MORDOMO: A gente de Güllen concentra-se para exprimir frio. E tu ali estavas a olhar para cima, sem tirar os olhos de mim.
o seu pesar, minha senhora. E eu atrapalhada, sem saber o que fazer. Queria ir para dentro,
CLAIRE ZACHANASSIAN: Pois que venham. para o quarto escuro, e não conseguia.
ALFRED: Estou desesperado, não respondo por mim. Aviso-te,
O Mordomo sai. Pela direita entra o Professor com o coro Claire, estou disposto a tudo se não me disseres agora que tudo
misto. isto não passa de uma brincadeira, uma brincadeira de muito
mau gosto. (Aponta a arma para ela.)
O PROFESSOR: Minha senhora... CLAIRE ZACHANASSIAN: E tu sem arredar pé, ali especado
CLAIRE ZACHANASSIAN: O que é que o traz por cá, senhor na rua, de olhos postos em mim lá em cima, muito sério, quase
Professor? zangado, e no entanto os teus olhos só falavam de amor.
O PROFESSOR: Fomos salvos de um grande perigo. A pantera
negra andava pelas nossas ruas a anunciar desgraça. Mas agora Alfred baixa a arma.
que respiramos de alívio, sentimos ao mesmo tempo a perda de
uma tão preciosa raridade zoológica. Onde os homens se CLAIRE ZACHANASSIAN: E havia dois outros rapazes
contigo, o Koby e o Loby. A arreganhar os dentes, por verem
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como tu não tiravas os olhos de mim. Nem me cumprimentaste, O MÉDICO: E para si já é muito perigoso.
nem uma palavra disseste, mas pegaste na minha mão e saímos O PROFESSOR: Um dos dois pequenos eunucos, aliás, também
da cidade, fomos para o campo, e atrás de nós, como dois cães emigrou para a Austrália.
de guarda, o Koby e o Loby. E depois tu apanhaste umas pedras O POLÍCIA: O senhor aqui tem segurança absoluta.
e atiraste-as aos dois, e eles voltaram para a cidade a guinchar e TODOS: Segurança absoluta, segurança absoluta.
nós ficámos sozinhos.
Alfred olha em volta, amedrontado como um animal acossado.
Entra o Mordomo, pela direita.
ALFRED, baixinho: Escrevi ao delegado ministerial, em
CLAIRE ZACHANASSIAN: Leva-me para o meu quartyo, Kaffigen.
Boby. Tenho de te ditar uma mensagem. Não me posso esquecer O PRESIDENTE DA CÂMARA: E depois?
de que tenho de transferir mil milhões. ALFRED: Não tive resposta.
O PROFESSOR: A sua desconfiança é incompreensível.
O Mordomo ajuda-a a ir para o quarto. O MÉDICO: Ninguém o quer matar.
Koby e Loby entram aos saltinhos, vindos do fundo. TODOS: Ninguém, ninguém!
ALFRED: Os Correios daqui não mandaram a carta.
OS DOIS: A pantera negra está morta, a pantera negra está O PINTOR: É impossível!
morta. O PRESIDENTE DA CÂMARA: O funcionário dos Correios é
membro do Conselho Municipal.
Desaparece a varanda. Ouve-se a sineta da estação. O cenário O PROFESSOR: Um homem honrado.
é igual ao do começo do Primeiro Acto. A estação. Só o horário O PRIMEIRO: Um homem honrado!
na parede é novo, já não está rasgado, e noutro lugar um grande O SEGUNDO: Um homem honrado!
cartaz com um grande Sol a brilhar: «Visite as praias douradas ALFRED: Olhem ali aquele cartaz: «Visite as praias douradas
do Sul». Outro: «Veja o Mistério da Paixão em do Sul».
Oberammergau» Vêem-se também ao fundo algumas gruas O MÉDICO: E depois?
entre as casas, e alguns telhados renovados. Ouve-se o ruído ALFRED: E o outro: «Veja o Mistério da Paixão em
ensurdecedor de um comboio expresso que passa a alta Oberammergau»!
velocidade. O Chefe da Estação levanta a bandeirinha. Do O PROFESSOR: Sim, e depois?
fundo vem chegando Alfred Ill com uma malinha velha na mão, ALFRED: E tanta construção!
olha à sua volta. Lentamente, como que por acaso, vêm O PRESIDENTE DA CÂMARA: Sim, e depois?
chegando de todos os lados habitantes de Güllen. Alfred hesita, ALFRED: Vocês estão a ficar cada vez mais ricos, cada vez se
pára. vive melhor!
TODOS: Sim, e depois?
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Bom dia, Alfred.
TODOS: Bom dia! Toca a sineta.
ALFRED, hesitante: Bom dia!
O PROFESSOR: Então para onde é que vai, de mala feita? O PROFESSOR: Está a ver como todos gostam de si?
TODOS: Para onde é que vai? O PRESIDENTE DA CÂMARA: A cidade inteira acompanha-
ALFRED: Para a estação. o.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vamos consigo. O TERCEIRO: A cidade inteira!
O PRIMEIRO: Vamos consigo! O QUARTO: A cidade inteira!
O SEGUNDO: Vamos consigo! ALFRED: Eu não vos pedi que viessem.
O SEGUNDO: Era o mínimo que podíamos fazer, despedir-nos
Começam a chegar cada vez mais habitantes da cidade. de ti.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Como velhos amigos.
ALFRED: Não é preciso, não é preciso mesmo. Não vale a pena. TODOS: Como velhos amigos! Como velhos amigos!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: O senhor vai de viagem,
Alfred? Ruído de comboio. O Chefe da Estação pega na bandeirinha.
ALFRED: Sim, vou de viagem. Aparece o Revisor, vindo da esquerda, como se tivesse acabado
O POLÍCIA: E para onde? de saltar do comboio.
ALFRED: Não sei. Para Kalberstadt, e depois sigo...
O PROFESSOR: Ah, e depois segue... O REVISOR, em tom muito alto e arrastado: Güllen!
ALFRED: De preferência para a Austrália. De alguma maneira O PRESIDENTE DA CÂMARA: Chegou o seu comboio.
hei-de arranjar o dinheiro. (Continua em direcção à estação.) TODOS: O seu comboio! O seu comboio!
O TERCEIRO: Para a Austrália! O PRESIDENTE DA CÂMARA: Bom, Alfred, desejo-lhe boa
O QUARTO: Para a Austrália! viagem.
O PINTOR: E porquê? TODOS: Boa viagem! Boa viagem!
ALFRED, embaraçado: Porque... não se pode viver sempre no O MÉDICO: E um bom resto de vida!
mesmo lugar, uma vida inteira. TODOS: Um bom resto de vida!

Começa a correr, chega à estação. Os outros aproximam-se Os habitantes de Güllen concentram-se em volta de Alfred Ill.
calmamente e cercamno.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Chegou a hora. Por amor de
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Emigrar para a Austrália? É Deus, entre no comboio para Kalberstadt.
ridículo. O POLÍCIA: E boa sorte na Austrália!
19

TODOS: Boa sorte, boa sorte!


O MORDOMO: O Médico e o Professor.
Alfred continua imóvel, fixando os seus conterrâneos. CLAIRE ZACHANASSIAN: Que entrem.

ALFRED: Por que é que estão todos aqui? O Médico e o Professor aparecem, às apalpadelas no escuro,
O POLÍCIA: Mas afinal o que é que o senhor quer? acabam por encontrar a milionária e fazem uma vénia. Os dois
O CHEFE DA ESTAÇÃO: Partida! agora com fatos de boa qualidade, solidamente burgueses, e
ALFRED: Por que é que se concentram todos à minha volta? mesmo elegantes.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas nós não estamos nada à
sua volta. OS DOIS: Ilustre senhora.
ALFRED: Deixem-me passar! CLAIRE ZACHANASSIAN, observando os dois pelo lorgnon:
O PROFESSOR: Mas nós deixámo-lo passar. Os senhores estão um pouco empoeirados.
TODOS: Nós deixámo-lo passar, nós deixámo-lo passar!
ALFRED: Um de vós vai-me agarrar. Ambos sacodem o pó dos fatos.
O POLÍCIA: Disparate! Só tem que entrar no comboio para ver
que isso é um disparate. O PROFESSOR: A senhora desculpe, mas tivémos de passar
ALFRED: Afastem-se! por cima de uma velha charrete.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Resolvi retirar-me para o palheiro
Ninguém se mexe. Alguns deles ficam onde estão, de mãos nos do Peter. Preciso de tranquilidade. A cerimónia do casamento na
bolsos das calças. Matriz de Güllen deixou-me cansada. Afinal, já não sou
propriamente muito nova. Sentem-se no barril.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Não percebo o que o senhor O PROFESSOR: Muito obrigado.
quer. Só depende de si. Entre no comboio.
ALFRED: Afastem-se! Senta-se. O Médico fica em pé.
O PROFESSOR: Esse seu medo é mesmo ridículo.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Está abafado aqui. Sufocamos.
Alfred Ill cai de joelhos. Mas eu gosto deste palheiro, do cheiro do feno, da palha, da
massa de lubrificação dos carros. Recordações. Já cá estava tudo
ALFRED: Por que é que estão tão perto de mim? na minha juventude, as alfaias, a forquilha, a charrete, o carro do
O MÉDICO: O homem está doido. feno partido...
ALFRED: Querem agarrar-me para eu ficar. O PROFESSOR: Um lugar para a meditação. (Limpa o suor.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Homem, entre no comboio! CLAIRE ZACHANASSIAN: O Padre fez um belo sermão.
TODOS: Entre no comboio! Entre no comboio! O PROFESSOR: Coríntios, Primeiro, número treze.
CLAIRE ZACHANASSIAN: E o senhor também se saiu muito
Silêncio. bem com o coro misto, senhor professor. Solene, como a ocasião
pedia.
ALFRED, baixinho: Um deles vai-me agarrar quando eu subir O PROFESSOR: Bach. Da Paixão segundo S. Mateus. Ainda
para o comboio. estou emocionado. Todo o grande mundo estava lá, o mundo da
TODOS, peremptórios: Ninguém! Ninguém! finança, do cinema...
ALFRED: Eu sei. CLAIRE ZACHANASSIAN: Os mundos foram todos de
O POLÍCIA: Está mais que na hora. abalada para a cidade nos seus Cadillacs. Para o copo de água.
O PROFESSOR: Ó homem, suba finalmente para o comboio! O PROFESOR: Minha senhora, não queremos tomar o seu
ALFRED: Eu sei, eu sei que alguém me vai agarrar! Um deles precioso tempo. O seu esposo deve estar ansioso à sua espera.
vai-me agarrar! CLAIRE ZACHANASSIAN: O Hoby? Já o mandei de volta
O CHEFE DA ESTAÇÃO: Partida! para Geiselgasteig mais o seu Porsche.
O MÉDICO, confuso: Para Geiselgasteig?
Levanta a bandeirinha, o revisor salta para o estribo e Alfred, CLAIRE ZACHANASSIAN: Os meus advogados já estão a
abatido e rodeado pelos habitantes da cidade, cobre o rosto com tratar do processo de divórcio.
as mãos. O PROFESSOR: Mas, e os convidados da boda, minha senhora?
CLAIRE ZACHANASSIAN: Já estão acostumados. Foi o
O POLÍCIA: Está a ver no que deu? Já perdeu este! casamento mais curto que tive até hoje, com excepção da ligação
com Lord Ismael, que ainda foi mais rápida. O que vos traz por
Todos abandonam a figura amarfanhada de Alfred, vão cá?
recuando lentamente até desaparecerem. O PROFESSOR: Vimos por causa do assunto do senhor Alfred
Ill.
ALFRED: Estou perdido! CLAIRE ZACHANASSAN: O quê, não me digam que morreu!
O PROFESSOR: Mas, minha senhora! Não se esqueça de que
temos os nossos princípios, os da civilização ocidental!
Terceiro Acto CLAIRE ZACHANASSIAN: Então, o que pretendem?
O palheiro do Peter. À esquerda, Claire Zachanassian, sentada O PROFESSOR: Os nossos conterrâneos, infelizmente,
na sua liteira, imóvel, de vestido de noiva branco, véu, etc. Na desataram a comprar coisas sem pensar.
ponta da esquerda, uma escada, e carros de feno, uma velha O MÉDICO: Mesmo muitas coisas.
charrete, palha, e ao meio um barril pequeno. Por cima há
trapos pendurados, sacos meio desfeitos, teias de aranha Os dois limpam o suor.
enormes. O Mordomo entra, vindo do fundo.
20

CLAIRE ZACHANASSIAN: E estão endividados? «Apóstolo Dourado». O meu marido número nove já deve ter
O PROFESSOR: Completamente! chegado, com os seus livros e manuscritos.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Apesar dos vossos princípios?
O PROFESSOR: Somos apenas humanos. Os dois monstros vêm do fundo e levantam a liteira.
O MÉDICO: E agora temos de pagar as nossas dívidas.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Já sabem o que têm a fazer. O PROFESSOR: Senhora Zachanassian! A senhora é uma
O PROFESSOR, ganhando coragem: Senhora Zachanassian, mulher ferida, que um dia amou. Pede justiça absoluta. Vejo-a
vamos falar francamente. Imagine-se na nossa triste situação. Há como uma heroína antiga, como uma Medeia. Mas, dado que
duas décadas que eu tento plantar nesta comunidade nós compreendemos profundamente a sua situação, dê-nos a
empobrecida as frágeis sementes do humanismo, que o médico coragem de lhe pedir mais: esqueça esse terrível plano de
da cidade vai tentando, com o seu velho Mercedes, dar vingança, não nos obrigue a chegar a extremos, ajude pessoas
assistência aos doentes tuberculosos e raquíticos. E para quê pobres, fracas, mas honestas a ter uma vida um pouco mais
estes pesados sacrifícios? Por dinheiro? Nem pensar. A nossa digna, e ganhe com isso um estatuto da mais pura humanidade.
remuneração é mínima, eu recusei sem hesitar um lugar no Liceu CLAIRE ZACHANASSIAN: A humanidade, meus senhores,
de Kalberstadt, o médico um contrato para a Universidade de foi criada para a Bolsa dos multimilionários. Com o poder
Erlangen. Por puro amor à humanidade? Também seria financeiro de que eu disponho sou capaz de criar uma nova
exagerado dizer que é isso. Não, ficámos todos estes anos, e ordem no mundo. O mundo fez de mim uma puta, agora eu faço
connosco toda a cidade, porque temos esperança, a esperança de dele um bordel! Quem não pode pagar, tem de aguentar, se
que renasça a antiga grandeza de Güllen, de que alguém quiser entrar na dança. Vocês querem entrar na dança. Decente
descubra de novo as imensas potencialidades que se escondem é apenas aquele que paga, e eu pago. Güllen por um crime, o
neste nosso torrão natal. Há petróleo no vale de Pückenried, progresso por um cadáver. E agora vamos! (Os dois levam-na e
minério por baixo da Mata de S. Conrado. Não somos pobres, saem pelo fundo.)
madame, apenas fomos esquecidos. Precisamos de crédito, O MÉDICO: Meu Deus, e agora, o que fazemos?
confiança, encomendas, e a nossa economia e a nossa cultura O PROFESSOR: O que a consciência nos ditar, doutor Nüsslin.
vão florescer de novo. Güllen tem qualquer coisa a oferecer: a
siderurgia Um Lugar ao Sol. Em primeiro plano, à direita, vê-se a loja de Alfred Ill. Nova
O MÉDICO: A empresa Bockmann. tabuleta. Balcão novo, a brilhar, caixa registadora nova,
O PROFESSOR: As fábricas Wagner. Compre-as, faça-se um mercadoria cara. Quando alguém entra pela porta fingida,
saneamento financeiro, e Güllen florescerá de novo. Cem ouve-se um toque pomposo de campainha. Atrás do balcão, a
milhões é quanto basta para um planeamento razoável, com os mulher de Alfred Ill. Entra, pela esquerda, O Primeiro,
devidos juros. Não precisamos de esbanjar mil milhões! transformado em talhante, com alguns salpicos de sangue no
CLAIRE ZACHANASSIAN: Ainda me restam mais dois mil avental novo.
milhões.
O PROFESSOR: Não permita que tenha sido em vão esta nossa O PRIMEIRO: Aquilo é que foi uma festa. A cidade inteira
espera de uma vida. Não pedimos esmolas, oferecemos-lhe estava na Praça da Matriz para ver o casamento.
apenas um negócio. A MULHER DE ALFRED: A Clarinha bem merece esta
CLAIRE ZACHANASSIAN: De facto, não seria mau negócio. felicidade, depois da miséria que passou.
O PROFESSOR: Caríssima senhora, eu sabia que não nos ia O PRIMEIRO: Actrizes de cinema a servir de damas de
abandonar! companhia. Cada decote, que nem vos digo!
CLAIRE ZACHANASSIAN: Acontece apenas que é A MULHER DE ALFRED: É moda hoje.
irrealizável. Não posso comprar a Lugar ao Sol, pela simples O PRIMEIRO: Cigarros.
razão de que já me pertence. A MULHER DE ALFRED: Dos verdes?
O PROFESSOR: A si? O PRIMEIRO: «Camel». E um cutelo.
O MÉDICO: E a Bockmann? A MULHER DE ALFRED: De talhante?
O PROFESSOR: E as fábricas Wagner? O PRIMEIRO: Exactamente.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Também me pertencem. As A MULHER DE ALFRED: Aqui tem, senhor Hofbauer.
fábricas, o vale de Pückenried, o palheiro do Peter, a O PRIMEIRO: Mercadoria de primeira.
cidadezinha, rua por rua, casa a casa. Dei ordem aos meus A MULHER DE ALFRED: E como vai o seu negócio?
agentes para comprarem todo este lixo, e encerrei as fábricas. A O PRIMEIRO: Contratei pessoal.
vossa esperança foi uma loucura, a vossa persistência não tem A MULHER DE ALFRED: No dia um também vou admitir um
sentido, o vosso sacrifício foi uma estupidez, toda a vossa vida novo.
foi por água abaixo.
O Primeiro pega no cutelo. Entra O Segundo, homem de
Silêncio. negócios de óptimo aspecto.

O MÉDICO: Mas isso é monstruoso. A MULHER DE ALFRED: Bom dia, senhor Helmsberger.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Quando eu deixei esta cidade, há
muito tempo, era Inverno. Saí daqui com um fato à maruja, A menina Luísa passa na rua, toda elegante.
tranças ruivas, grávida, e as pessoas olhavam e riam-se de mim.
Passei muito frio no rápido para Hamburgo, mas no momento O PRIMEIRO: Esta deve andar cheia de ilusões, para se vestir
em que os contornos do palheiro do Peter desapareciam por assim.
detrás dos cristais de gelo decidi que ia voltar um dia. E agora A MULHER DE ALFRED: Uma vergonha.
aqui estiou. Agora sou eu quem dita as condições, quem decide O PRIMEIRO: Preciso de um «Saridon». Estive toda a noite
o negócio. (Em voz alta.) Roby e Toby, voltamos para o numa festa em casa dos Stocker.
21

A Mulher de Alfred dá-lhe um copo de água e o comprimido. Está lá em cima. A andar para lá e para cá.
O PROFESSOR: Mais um copinho. O último. (Ele próprio se
O PRIMEIRO: Isto está cheio de jornalistas. serve.)
O SEGUNDO: Andam a cheirar alguma coisa por toda a cidade.
O PRIMEIRO: E também vão passar por aqui. Vindo da esquerda, entra o Pintor. Fato novo de fazenda
A MULHER DE ALFRED: Isto aqui é gente simples, senhor inglesa, lenço berrante ao pescoço, boina basca preta.
Hofbauer. Aqui não há nada que lhes interesse.
O SEGUNDO: Andam a falar com toda a gente. O PINTOR: Cuidado! Dois jornalistas já me perguntaram onde
O PRIMEIRO: Acabaram de fazer uma entrevista com o Padre. fica esta loja.
O SEGUNDO: Não vai contar nada, sempre teve pena de nós, O PRIMEIRO: É de desconfiar.
gente pobre. Um «Chesterfield». O PINTOR: Fiz que não sabia de nada.
A MULHER DE ALFRED: Para pôr na conta? O SEGUNDO: Bem feito, inteligente.
O PRIMEIRO: Para pôr na conta. E o seu marido? Há muito O PINTOR: Eles deviam era ir ao meu atelier. Acabei de pintar
tempo que não o vejo. um Cristo.
A MULHER DE ALFRED: Está lá em cima, a andar de um lado
para o outro no quarto. Há dias que anda naquilo. O PROFESSOR serve-se mais uma vez. Lá fora, passam as duas
O PRIMEIRO: É o peso na consciência. Nada bonito, o que ele mulheres do segundo acto, elegantemente vestidas, e olham
fez com a pobre da senhora Zachanassian. para a mercadoria exposta na montra fingida.
A MULHER DE ALFRED: E eu também sofro com isso.
O SEGUNDO: Atirou com a rapariga para a desgraça. Coisa O PRIMEIRO: Este mulherio!
feia! (Decidido.) Só espero que o seu marido não dê com a O SEGUNDO: Vão ao cinema novo em pleno dia.
língua nos dentes quando os jornalistas vierem.
A MULHER DE ALFRED: Com certeza que não. Da esquerda entra o Terceiro.
O PRIMEIRO: Com o feitio dele...
A MULHER DE ALFRED: As coisas para mim não estão O TERCEIRO: A imprensa!
fáceis, senhor Hofbauer. O SEGUNDO: Bico calado.
O PRIMEIRO: Se ele quiser denunciar a Claire, contar mentiras, O PINTOR: Vejam lá se ele não desce.
se disser que ela ofereceu isto e aquilo pela morte dele, coisa que O PRIMEIRO: Disso trato eu.
foi apenas uma maneira de mostrar a grande dor que sente, nós
vamos ter de intervir. Os de Güllen passam-se todos para a direita. O Professor já
O SEGUNDO: Não é pelos mil milhões, claro. bebeu metade da garrafa e continua encostado ao balcão. ntram
O PRIMEIRO: É a indignação do povo. Coitada da senhora dois repórteres com máquinas fotográficas. Atrás deles vem o
Zachanassian, passou as passas do Algarve por causa dele. (Olha Quarto homem de Güllen.
em volta.) A entrada para a vossa casa é por aqui?
A MULHER DE ALFRED: É a única entrada. Pouco prático, PRIMEIRO JORNALISTA: Boa tarde, amigos.
mas na Primavera vamos fazer obras. OS DE GÜLLEN: Boa tarde.
O PRIMEIRO: Vou ficar aqui de sentinela. PRIMEIRO JORNALISTA: Primeira pergunta: como é que
vocês se sentem, assim em geral?
O PRIMEIRO vai colocar-se bem à direita, braços cruzados, O PRIMEIRO, atrapalhado: Estamos naturalmente muito
com o cutelo, sereno, como um guarda. Entra O PROFESSOR. felizes com a visita da senhora Zachanassian.
O TERCEIRO: Felizes.
A MULHER DE ALFRED: Bom dia, senhor professor. Que O PINTOR: Emocionados.
bom, vê-lo também por cá. O SEGUNDO: Orgulhosos.
O PROFESSOR: Estou a precisar de uma bebida alcoólica forte. O PRIMEIRO JORNALISTA: Orgulhosos.
A MULHER DE ALFRED: Aguardente «Steinhäger»? O QUARTO: Afinal, a Clarinha é uma das nossas.
O PROFESSOR: Um copinho. O PRIMEIRO JORNALISTA: Segunda pergunta, para a
A MULHER DE ALFRED: Para si também, senhor Hofbauer? senhora ali atrás do balcão: diz-se que o seu marido a preferiu à
O PRIMEIRO: Não, obrigado. Ainda tenho de ir a Kaffigen com senhora Zachanassian.
o meu Volkswagen, comprar leitões.
A MULHER DE ALFRED: E para si, senhor Helmesberger? Silêncio.
O SEGUNDO: Enquanto estes malditos jornalistas não sairem
da cidade não bebo uma gota de álcool. O PRIMEIRO: Quem é que disse isso?
O PRIMEIRO JORNALISTA: Os dois homenzinhos gordos e
A Mulher de Alfred serve um copo ao Professor. cegos da senhora Zachanassian.

O PROFESSOR: Obrigado. (Bebe a aguardente de um trago.) Silêncio.


A MULHER DE ALFRED: Está a tremer, senhor professor.
O PROFESSOR: Estou a beber muito ultimamente. Agora O QUARTO, hesitante: E o que é que os homenzinhos têm para
mesmo, no «Apóstolo Dourado», se visse o que eu emborquei! contar?
Foi uma autêntica orgia de álcool. Só espero que o meu bafo não O PRIMEIRO JORNALISTA: Tudo.
a incomode. O PINTOR: Raios os partam!
A MULHER DE ALFRED: Mais um não há-de fazer mal.
(Volta a encher-lhe o copo.) Silêncio.
O PROFESSOR: E o seu marido?
A MULHER DE ALFRED:
22

O SEGUNDO JORNALISTA: A Claire Zachanassian e o dono O SEGUNDO: Já chega.


desta loja estiveram para se casar há mais de quarenta anos. É O TERCEIRO: Desça desse barril.
verdade? O PROFESSOR: Gente de Güllen! Vou dizer toda a verdade,
mesmo que isso signifique a nossa eterna miséria!
Silêncio. A MULHER DE ALFRED: O senhor está bêbado, professor!
Devia ter vergonha!
A MULHER DE ALFRED: É verdade. O PROFESSOR: Vergonha? Tu é que devias ter vergonha na
O SEGUNDO JORNALISTA: E o senhor Alfred Ill, onde está? cara, mulher, porque estás pronta para trair o teu marido!
A MULHER DE ALFRED: Em Kalberstadt. O FILHO: Cala a boca!
TODOS: Em Kalberstadt. O QUARTO: Fora daqui!
O PRIMEIRO JORNALISTA: Estamos já a imaginar o O PROFESSOR: O nosso destino fatal cresceu a olhos vistos!
romance: Alfred Ill e Claire Zachanassian crescem juntos, eram Como o de Édipo: inchou como um sapo!
talvez vizinhos, vão juntos à escola, passeios na floresta, os A FILHA, suplicando: Senhor professor!
primeiros beijos e por aí fora, até que o senhor Alfred a conhece O PROFESSOR: Tu desiludes-me, minha filha! Tu é que devias
a si, minha senhora, como algo de novo, invulgar, a paixão... falar, e agora é o teu velho professor que tem de o fazer com voz
A MULHER DE ALFRED: Foi assim mesmo como o senhor de trovão!
está a contar. O PINTOR, puxa-o e obriga-o a descer do barril: Queres acabar
O PRIMEIRO JORNALISTA: Claire Zachanassian com esta oportunidade única para a minha arte! Eu pintei um
compreende, desiste, naquele seu jeito sereno e nobre, e vocês Cristo, um Cristo!
casam-se... O PROFESSOR: Protesto! Protesto diante da opinião pública
A MULHER DE ALFRED: Por amor. mundial! Coisas terríveis se preparam em Güllen!
OS OUTROS DE GÜLLEN, aliviados: Por amor.
O PRIMEIRO JORNALISTA: Por amor. Os de Güllen atiram-se a ele, mas neste momento entra pela
direita Alfred Ill, com a roupa esfarrapada.
Os dois jornalistas escrevem com ar indiferente nos seus blocos
de notas. Da direita chegam os dois eunucos, trazidos por Roby, ALFRED: O que é que se passa na minha loja?
que os segura pelas orelhas.
Os de Güllen largam o Professor e olham para Alfred,
OS DOIS, a gemer: Nós não contamos mais nada, nós não estarrecidos. Silêncio sepulcral.
contamos mais nada.
O PROFESSOR: A verdade, Alfred. Vou contar a verdade a
São levados para o fundo, onde Toby os espera com um chicote. estes senhores da imprensa. Como um arcanjo, com voz
OS DOIS: Não batas, Toby, não batas, Toby! tonitroante. (Vacila.) Porque sou um humanista, um amigo dos
O SEGUNDO JORNALISTA: O seu marido, minha senhora, de antigos Gregos, um admirador de Platão.
vez em quando não..., quero dizer, seria humano que ele de vez ALFRED: Cale-se.
em quando se arrependesse. O PROFESSOR: Mas, e o humanismo...
A MULHER DE ALFRED: O dinheiro só por si não traz a ALFRED: Sente-se.
felicidade.
O SEGUNDO JORNALISTA: Não traz a felicidade. Silêncio.

O filho entra, vindo da esquerda. Veste um casaco de cabedal. O PROFESSOR, mais sóbrio: Sento-me. O humanismo tem de
se sentar. Está bem – se for o senhor a dizer a verdade. (Senta-
A MULHER DE ALFRED: O nosso filho Karl. se no barril, a cambalear.)
O PRIMEIRO JORNALISTA: Um belo rapaz. ALFRED: Desculpem. O homem está bêbado.
O SEGUNDO JORNALISTA: E ele sabe dessas relações...? O PRIMEIRO JORNALISTA: É o senhor Alfred Ill?
A MULHER DE ALFRED: Na nossa família não há segredos. ALFRED: O que pretendem de mim?
O meu marido costuma dizer: o que Deus sabe, também os O PRIMEIRO JORNALISTA: Ainda bem que acabámos por
nossos filhos devem saber. encontrá-lo. Precisamos de algumas fotografias. Pode ser?
O PRIMEIRO JORNALISTA: Deus sabe... (Olha em volta.) Alimentação, utensílios domésticos, ferragens
O SEGUNDO JORNALISTA: Filhos devem saber. — O melhor é uma foto a vender o cutelo.
ALFRED, hesitante: O cutelo?
A filha entra na loja com equipamento de ténis e uma raquete O PRIMEIRO JORNALISTA: Sim, ao homem do talho. Ele já
na mão. o tem na mão. Dê cá esse instrumento de morte, amigo! (Tira o
cutelo das mãos do Primeiro e faz uma demonstração.) O senhor
A MULHER DE ALFRED: A nossa filha Otília. pega no cutelo, pesa-o na mão, faz uma cara de quem está a
O SEGUNDO JORNALISTA: Encantadora. pensar, está a ver?
Assim... E o senhor inclina-se sobre o balcão e tenta convencer
O Professor acorda finalmente. o homem do talho. Por favor. (Prepara a cena.) Um ar mais
natural, meus senhores, sem forçar.
O PROFESSOR: Caros conterrâneos. Eu sou o vosso velho
professor. Estive ali sossegado a beber o meu bagaço, e não disse Os repórteres fotografam.
nada até agora. Mas quero fazer um discurso sobre a visita da
velha senhora a Güllen. (Sobe para o barril, que ficou da cena O PRIMEIRO JORNALISTA: Muito bem, óptimo.
no palheiro do Peter.) O SEGUNDO JORNALISTA: Posso pedir-lhe para passar o
O PRIMEIRO: Ele ficou doido? braço pelos ombros da sua esposa? O seu filho à esquerda, a filha
23

à direita. E agora, por favor, sorriam, felizes, sorriam, sorriam, O PROFESSOR: Culpado?
contentes, com um sentimento de íntima e profunda alegria... ALFRED: Eu fiz da Claire o que ela é, e de mim próprio o que
O PRIMEIRO JORNALISTA: Sorriso perfeito. sou, um merceeiro sujo e leviano. O que hei-de eu fazer, senhor
O SEGUNDO JORNALISTA: Pronto, é tudo! professor de Güllen? Fingir que sou inocente? É tudo obra
minha, os eunucos, o mordomo, o caixão, os mil milhões. Não
Alguns fotógrafos atravessam a cena da esquerda baixa para a posso fazer nada por mim, nem por vocês.
esquerda alta. Um deles grita para o interior da loja.
O Professor levanta-se com dificuldade, a cambalear.
O FOTÓGRAFO: A Zachanassian tem um marido novo! Vão
passear para a Mata de S. Conrado. O PROFESSOR: Fiquei sóbrio. De um momento para o outro.
O SEGUNDO JORNALISTA: Um novo? Tem razão, completamente. A culpa é toda sua. E agora vou
O PRIMEIRO JORNALISTA: Isso dá uma capa da Life! dizer-lhe uma coisa. Alfred Ill, uma coisa fundamental. (Põese
muito direito em frente de Alfred, oscilando muito levemente.)
Os dois jornalistas saem da loja a correr. Silêncio. O Primeiro Vão matá-lo. Sei isto desde o início, e você também já sabe há
continua com o cutelo na mão. muito tempo, ainda que em Güllen ninguém mais tenha
consciência disso. A tentação é muito grande, e a nossa miséria
O PRIMEIRO, aliviado: Tivemos sorte. amarga de mais. Mas eu sei mais. Também eu vou entrar nisso.
O PINTOR: Tens de nos desculpar, mestre-escola. Se quisermos Sinto que me transformo a pouco e pouco num assassino. A
resolver o assunto da melhor maneira, a imprensa não pode saber minha fé no humanismo é impotente. E como sei isto, comecei
de nada. Percebes? a beber. Também eu tenho medo, Alfred, como você. E sei ainda
que um dia uma velha senhora virá, um dia, e que então vai
Sai. O SEGUNDO segue-o, mas fica ainda um pouco diante de acontecer connosco o que agora acontece consigo. Mas em
Alfred antes de sair. breve, talvez dentro de poucas horas, já o não saberei. (Silêncio.)
Dê-me mais uma garrafa de aguardente.
O SEGUNDO: Sensato, muito sensato não começar para aí a
dizer disparates. Alfred dá-lhe mais uma garrafa, o Professor hesita, mas depois
O TERCEIRO: De um doido varrido como tu também ninguém decide-se e fica com ela.
ia acreditar numa palavra. (Sai.)
O PROFESSOR: Ponha na minha conta. (Sai lentamente.)
O QUARTO cospe e sai também.
Regressa a família. Alfred olha à sua volta para a loja, como se
O PRIMEIRO: Agora até vamos sair nas revistas, Alfred. estivesse a sonhar.
ALFRED: É verdade.
O PRIMEIRO: Vamos ficar famosos. ALFRED: Tudo novo. Tudo tão moderno nesta loja! Limpo, até
ALFRED: Mais ou menos. apetece estar aqui. Uma loja assim foi sempre o meu sonho.
O PRIMEIRO: Dê-me um havano, «Partagas». (Pega na raquete de ténis da filha.) E tu agora jogas ténis?
ALFRED: Aqui tem. A FILHA: Já tive umas lições.
O PRIMEIRO: Ponha na conta. ALFRED:
ALFRED: Mas é claro! E logo de manhã, não é, em vez de ires ao Centro de Emprego!
O PRIMEIRO: Aqui entre nós, e muito francamente: o que você A FILHA: As minhas amigas todas jogam ténis.
fez à Clarinha foi uma grande sacanagem. (Vai a sair.)
ALFRED: O cutelo, Hofbauer. Silêncio.

O Primeiro hesita, devolve-lhe o cutelo e sai. Silêncio na loja. ALFRED: Vi-te num automóvel, Karl, lá de cima, do meu
O Professor continua sentado no seu barril. quarto.
O FILHO: É só um Opel Olympia, não são assim tão caros.
O PROFESSOR: Tem de me desculpar. Emborquei umas ALFRED: E quando é que tiraste a carta?
aguardentes, umas duas ou três.
ALFRED: Não há problema. Silêncio.

A família sai pela direita. ALFRED: Em vez de procurares trabalho na estação, debaixo de
sol.
O PROFESSOR: Eu só quis ajudá-lo. Mas estavam todos contra O FILHO: Às vezes vou. (Embaraçado, o filho leva para fora
mim, e também o senhor não quis. Ah, Alfred! Que gente somos de cena, pela direita, o pequeno barril em que o Professor esteve
nós? Estes vergonhosos mil milhões incendeiam-nos a alma. sentado.)
Ganhe coragem, lute pela sua vida, fale à imprensa. Já não tem ALFRED: Andei à procura do meu fato de domingo, e encontrei
tempo a perder. este casaco de peles.
ALFRED: Não tenho vontade de lutar. A MULHER DE ALFRED: Veio à experiência.
O PROFESSOR, admirado: Olhe lá, o medo fê-lo perder o
juízo? Silêncio.
ALFRED: Percebi que não tenho o direito...
O PROFESSOR: Não tem o direito? Contra esta maldita velha, A MULHER DE ALFRED: Todos estão a fazer dívidas, Alfred,
esta grande puta que muda de homem sem vergonha diante dos só tu é que estás histérico. O teu medo é ridículo. É claro que as
nossos olhos, que toma conta das nossas almas? coisas se vão compor de forma pacífica, sem que ninguém te
ALFRED: Afinal, eu sou culpado.
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toque num cabelo. A Clarinha não leva as coisas até ao fim, eu


conheço-a, tem um coração grande de mais. Silêncio.
A FILHA: É verdade, pai.
O FILHO: Está à vista de qualquer um. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vou tentar dar a entender à
imprensa que a senhora Zachanassian – provavelmente – irá
Silêncio. criar uma Fundação, e que o senhor, enquanto amigo de infância,
foi o mediador dessa Fundação. E até é verdade e sabido que foi
ALFRED, lentamente: É sábado. Gostava de andar no teu carro, o senhor que interviu.
Karl, uma única vez. No nosso carro! Assim, pelo menos para os de fora, o senhor está limpo, aconteça
O FILHO, inseguro: Queres mesmo? o que acontecer.
ALFRED: Vistam-se como deve ser, vamos todos dar uma volta ALFRED: Muito amável da sua parte.
de carro. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas olhe que, para ser franco,
A MULHER DE ALFRED, insegura: Eu também? Não é lá não é por si que o faço, é pela família honrada e decente que tem.
muito próprio... ALFRED: Percebo.
ALFRED: E por que é que não havia de ser? Veste o casaco de O PRESIDENTE DA CÂMARA: Tem de reconhecer que
peles, é uma boa ocasião para o estreares. Entretanto eu faço a estamos a fazer jogo limpo. Até agora, o senhor ficou calado.
caixa. Tudo bem. Mas, vai continuar calado? Se estiver disposto a
falar, então não precisamos de Assembleia Municipal.
A Mulher e a Filha saem pela direita, o Filho pela esquerda. ALFRED: Percebo.
Alfred ocupa-se da caixa. Da esquerda entra o Presidente da O PRESIDENTE DA CÂMARA: Então, em que ficamos?
Câmara com a espingarda. ALFRED: Ainda bem que finalmente alguém me faz uma
ameaça clara.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Boa tarde, Alfred. Continue O PRESIDENTE DA CÂMARA: Não sou eu que o ameaço,
com o seu trabalho, eu só quero dar uma olhadela aqui na loja. Alfred, o senhor é que nos ameaça. Se decidir falar, então nós
ALFRED: Faça favor. teremos de agir. Antes.
ALFRED: Não vou abrir a boca.
Silêncio. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Seja qual for a decisão final
da Assembleia?
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Trago-lhe uma espingarda. ALFRED: Aceito-a, seja qual for.
ALFRED: Obrigado. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Muito bem.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Está carregada.
ALFRED: Não preciso. Silêncio.

O Presidente da Câmara encosta a espingarda ao balcão. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Fico muito satisfeito por ver
que se submete à decisão do tribunal da comunidade, Alfred. É
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Hoje à noite reune a sinal de que ainda há em si um resto de honestidade. Mas não
Assembleia Municipal. No «Apóstolo Dourado, na sala do seria melhor se não tivéssemos de recorrer a esse tribunal?
teatro. ALFRED: E o que quer dizer com isso?
ALFRED: Lá estarei. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Disse-me há pouco que não
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vão estar todos. Vamos precisava desta arma. Mas, vendo bem, talvez venha a precisar
discutir o seu caso. Estamos numa situação difícil. dela.
ALFRED: Também acho.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vamos com certeza recusar a Silêncio.
proposta.
ALFRED: É possível. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Nesse caso, podíamos dizer à
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas também posso estar senhora que o condenámos, e recebíamos o dinheiro na mesma.
enganado. Foram noites sem dormir até chegar a esta conclusão, pode crer.
ALFRED: Claro. Mas de facto o seu dever seria o de pôr termo à vida, assumir as
consequências do seu acto, como homem honrado que é, não
Silêncio. acha?
Que mais não seja, por sentimento de comunidade, por amor à
O PRESIDENTE DA CÂMARA, cuidadoso: Nesse caso, terra natal. Sabe bem que estamos na maior miséria, sem saída,
Alfred, aceitaria a sentença? A imprensa vai lá estar. crianças com fome...
ALFRED: A imprensa? ALFRED: Mas agora todos vivem bem.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E a rádio, a televisão, as O PRESIDENTE DA CÂMARA: Alfred!
actualidades cinematográficas. Uma situação penosa, não só ALFRED: Senhor Presidente! Eu passei por um inferno. Vi-os
para si, também para nós, pode crer. Por ser a cidade natal da todos a endividarem-se, a cada sinal de abundância via a minha
grande dama, e agora com o novo casamento na Matriz, ficámos morte mais perto. Se vocês me tivessem poupado a estes receios,
tão conhecidos que vão fazer uma reportagem sobre as nossas a este medo terrível, tudo teria sido diferente, e nós podíamos
velhas instituições democráticas. falar de outra maneira, até podia aceitar esta arma. Por amor de
ALFRED, ocupado com a caixa: E o senhor vai tornar púiblica vocês todos. Mas agora fechei-me em mi, e venci o medo.
a proposta da senhora? Sozinho. Foi difícil, mas está feito. Não há retrocesso. Vocês
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Não directamente – só os vão ter de me condenar. E eu aceito a vossa sentença, qualquer
iniciados vão perceber o sentido da discussão. que ela seja. Para mim, isto é justiça, para vocês não sei o que
ALFRED: Que se trata da minha vida. seja. Queira Deus que não se arrependam da sentença que
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ditarem. Podem matar-me, não me vou queixar, não vou ALFRED: Faz o caminho pelo vale de Pückenried. Pela margem
protestar, não me vou defender – mas o que fizerem vai ficar do pântano e a alameda dos plátanos, em volta do pavilhão de
convosco. caça do Príncipe Hasso. Que castelos de nuvens no céu, altas
O PRESIDENTE DA CÂMARA, voltando a pegar na arma: É como no Verão. Bela terra esta, banhada pela luz da tarde. Hoje
pena. Perde uma oportuniodade de sair limpo desta história, de parece que estou a vê-la pela primeira vez.
ser visto como um homem mais decente. Mas de si não se pode A FILHA: Uma atmosfera de Adalbert Stifter.
esperar uma coisa dessas. ALFRED: De quem?
ALFRED: Quer lume, senhor Presidente? (Acende-lhe o A MULHER DE ALFRED: A Otília também estuda literatura.
cigarro.) ALFRED: Coisa fina!
O Filho: Lá vem o Hofbauer com o seu Volkswagen. Vem de
O Presidente da Câmara sai. Kaffigen.
A FILHA: Com os leitões.
Entra a Mulher de Alfred, de casaco de peles, a Filha de vestido A MULHER DE ALFRED: O Karl conduz bem. Muito elegante
vermelho. a fazer as curvas. Não precisamos de ter medo.
O FILHO: Primeira, que agora é a subir.
ALFRED: Que chique, Matilde! ALFRED: Eu ficava sempre de língua de fora quando a subia a
A MULHER DE ALFRED: Astracã. pé.
ALFRED: Como uma grande dama. A MULHER DE ALFRED: Ainda bem que trouxe o casaco de
A MULHER DE ALFRED: É um bocadinho caro. peles. Está a ficar fresco.
ALFRED: Que lindo vestido, Otília! Um pouco ousado, não ALFRED: Enganaste-te no caminho. Esta é a estrada para
achas? Beisenbach. Tens de voltar para trás e depois à esquerda, pela
A FILHA: Ora, pai! Então se visses o meu vestido de noite! Mata de S. Conrado.

A loja desaparece. O Filho coloca quatro cadeiras no palco Os Quatro entram com o banco de madeira, agora de fraque, e
vazio. fazem de árvores.

ALFRED: Belo carro! Eu andei uma vida inteira a tentar O PRIMEIRO: Voltamos a ser abetos e faias.
amealhar algum dinheiro que se visse, para ter algum conforto, O SEGUNDO: Pica-pau, cuco e tímida corça.
um carro como este, por exemplo. E agora que o temos aqui O TERCEIRO: Catedrais de hera, escuros bolores.
quero ver como é essa sensação de ter carro. Nós vamos atrás, O QUARTO: Como em poemas do princípio do mundo.
Matilde, e a Otília vai ao lado do Karl.
O Filho apita.
Sentam-se nas cadeiras, imitam a viagem de carro.
O FILHO: Outra corça. E nem sai da estrada, a bicha.
O FILHO: Isto dá cento e vinte.
ALFRED: Mais devagar! Quero ver a paisagem, a cidade onde O Terceiro desvia-se de um salto.
vivi quase setenta anos. Tudo limpinho nestas vielas antigas,
muita casa renovada. Um fumo cinzento sobre a chaminé, A FILHA: Nem se assustam. Já ninguém caça.
gerânios nas janelas, girassóis, rosas nos jardins junto da Porta ALFRED: Pára ali debaixo daquelas árvores.
de Goethe, risos de crianças, pares de namorados por toda a O FILHO: Está bem.
parte. E quye moderna, esta construção na Praça Brahms. A MULHER DE ALFRED: O que é que vais fazer?
A MULHER DE ALFRED: O Café Hodel está em obras. ALFRED: Quero andar um pouco na floresta. (Levanta-se.) Que
A FILHA: E o médico agora tem um Mercedes 300. bonito, os sinos a tocar lá longe em Güllen. Hora de largar o
ALFRED: A planície, e as colinas ao longe, hoje parecem trabalho.
douradas. Sombras enormes, e depois outra vez luz. As gruas O FILHO: Quatro sinos. Agora sim, é que soa bem.
das fábricas Wagner no horizonte, e as chaminés da Bockmann, ALFRED: Está tudo a amarelecer, agora é que chegou mesmo o
parecem gigantes. Outono. As folhas no chão parecem montinhos de ouro. (Bate
O FILHO: A Câmara vai comprá-las. com os pés andando na mata.)
ALFRED: O quê? O FILHO: Esoperamos por ti lá em baixo, junto da ponte.
O FILHO, mais alto: ALFRED: Não é preciso. Atalho caminho pela mata até à
A Câmara vai comprá-las. (Toca a buzina.) cidade. Vou à Assembleia Municipal.
A MULHER DE ALFRED: Que carros mais esquisitos. A MULHER DE ALFRED: Então nós seguimos até Kalberstadt,
O FILHO: São Messerschmidts. Qualquer aprendiz hoje quer ter Alfred, vamos ao cinema.
um. A FILHA: So long, Daddy.
A FILHA: C'est terrible. A MULHER DE ALFRED: Até logo, até logo!
A MULHER DE ALFRED: A Otília está a fazer um curso de
especialização em Francês e Inglês. A família desaparece com as cadeiras. Alfred fica a olhar para
ALFRED: Muito prático. Olha, a tasca do Kübler. Há muito eles. Senta-se no banco de madeira, do lado esquerdo.
tempo que não saía para estes lados.
O FILHO: Vai ser um restaurante de arromba. Rumorejar de vento. Da direita entram Roby e Toby com a
ALFRED: A esta velocidade tens de falar mais alto. liteira e Claire Zachanassian com o vestido do costume. Roby
O FILHO, mais alto: Vai ser um restaurante de arromba. Claro, traz uma guitarra às costas. Ao lado da liteira, o Marido IX,
tinha de ser o Stocker, a ultrapassar todos com o Buick! Prémio Nobel, alto, elegante, cabelo grisalho e bigode. (Pode
A FILHA: Novo rico. ser representado sempre pelo mesmo actor.) Mais atrás, o
Mordomo.
26

CLAIRE ZACHANASSIAN: Queres que o Roby toque uma


CLAIRE ZACHANASSIAN: A Mata de S. Conrado. Roby e musiquinha na guitarra?
Toby, parem. ALFRED: Pode ser.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Ele toca bem, o facínora
Claire Zachanassian desce da liteira, observa a floresta pelo amnistiado. Preciso dele para os meus minutos de meditação.
lorgnon, passa a mão pelas costas do Primeiro. Odeio grafonolas e rádios.
ALFRED: «No desfiladeiro africano marcha um batalhão».
CLAIRE ZACHANASSIAN: O escaravelho da casca. Esta CLAIRE ZACHANASSIAN: Era a tua canção preferida.
árvore vai morrer. (Repara em Alfred.) Alfred! Ainda bem que Ensinei-lha.
te encontro. Vim fazer uma visita à minha floresta.
ALFRED: Então a Mata de S. Conrado também já te pertence? Silêncio. Ambos fumam. Ouve-se o cuco, etc. Rumorejar da
CLAIRE ZACHANASSIAN: É verdade. Posso sentar-me? floresta. Roby toca a balada.
ALFRED: Claro que sim. Acabei de me despedir da minha
família. Foram ao cinema. O Karl comprou um carro. ALFRED: Tu tiveste – quero dizer, tivemos um filho.
CLAIRE ZACHANASSIAN: É o progresso. (Senta-se à direita CLAIRE ZACHANASSIAN: É verdade.
de Alfred.) ALFRED: E era menino ou menina?
ALFRED: A Otília começou a estudar literatura, e Inglês e CLAIRE ZACHANASSIAN: Uma menina.
Francês. ALFRED: E que nome lhe deste?
CLAIRE ZACHANASSIAN: Estás a ver? Afinal sempre têm os CLAIRE ZACHANASSIAN: Geneviève.
seus ideais. Zoby, chega cá, cumprimenta este senhor. O meu ALFRED: Bonito nome.
nono marido. Prémio Nobel. CLAIRE ZACHANASSIAN: Só vi a coitadinha uma vez.
ALFRED: Muito prazer. Quando nasceu. Depois levaram-na. A assistência social cristã.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Este fica muito estranho quando ALFRED: E os olhos?
não pensa. Zoby, tenta não pensar. CLAIRE ZACHANASSIAN: Ainda não os tinha aberto.
MARIDO IX: Deixa-te disso, querida... ALFRED: E os cabelos?
CLAIRE ZACHANASSIAN: Vá lá, não te faças rogado. CLAIRE ZACHANASSIAN: Pretos, acho, mas muitos recém-
MARIDO IX: Pronto, está bem. (Não pensa.) nascidos têm cabelo preto.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Estás a ver? Agora parece um ALFRED: Pois é.
diplomata. Faz-me lembrar o conde Holk, com a diferença de
que esse não escrevia livros. Este quer retirar-se, escrever as Silêncio. Fumam. Guitarra.
suas memórias e administrar a minha fortuna.
ALFRED: Os meus parabéns. ALFRED: E morreu em casa de quem?
CLAIRE ZACHANASSIAN: Tenho um pressentimento CLAIRE ZACHANASSIAN: De umas pessoas, já me esqueci
desagradável. Um marido serve para mostrar ao mundo, e não do nome.
como um objecto útil. Vai às tuas investigações, Zoby, a ruína ALFRED: E morreu de quê?
histórica fica ali à direita. CLAIRE ZACHANASSIAN: Meningite. Talvez também
tivesse qualquer outra coisa. Recebi um postal das autoridades.
O Marido IX vai investigar. Alfred olha em volta. ALFRED: Em casos de morte eles nunca falham.

ALFRED: E os dois eunucos? Silêncio.


CLAIRE ZACHANASSIAN: Começaram a dar com a língua
nos dentes. Mandei-os para Banguecoque, para um dos meus CLAIRE ZACHANASSIAN: Falei-te da nossa menina. Agora
antros de ópio. Aí podem fumar e sonhar. E em breve o fala-me tu de mim.
Mordomo também vai. Já não preciso dele. Boby, dá-me um ALFRED: De ti?
«Romeu e Julieta». CLAIRE ZACHANASSIAN: Sim, como eu era com dezassete
anos, quando me amavas.
O Mordomo aproxima-se, vindo do fundo, e estende-lhe uma ALFRED: Uma vez andei muito tempo à tua procura no palheiro
cigarreira. do Peter, e encontrei-te na charrete, só em camisa e com uma
palhinha comprida entre os lábios.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Também queres um, Alfred? CLAIRE ZACHANASSIAN: Tu eras forte e atrevido. Uma vez
ALFRED: Aceito. andaste à pancada com o ferroviário que andava atrás de mim. E
CLAIRE ZACHANASSIAN: Então tira um. Boby, lume! eu limpei-te o sangue da cara com a minha combinação
vermelha.
Fumam os dois.
A guitarra deixou de tocar.
ALFRED: Cheira muito bem.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Nesta mata fumámos muitas CLAIRE ZACHANASSIAN: Acabou a balada.
vezes os dois, lembras-te? Cigarros que tu compravas na loja da ALFRED: Gostava de ouvir também «Não há terra como a
Matilde. Ou roubavas. nossa».
CLAIRE ZACHANASSIAN: O Roby também sabe essa.
O Primeiro bate com a chave no cachimbo.
Volta a ouvir-se a guitarra.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Lá está outra vez o pica-pau.
O QUARTO: Cucu, cucu!
ALFRED: E o cuco.
27

ALFRED: Agora acabou-se tudo. Estamos aqui sentados pela tradição, como acaba de nos dizer o Presidente da Câmara. As
última vez na nossa mata assombrada, cheia de cucos e rumor mulheres sentam-se na plateia - também isto de acordo com a
do vento. tradição. O ambiente é de festa, a tensão grande, temos aqui as
actualidades cinematográficas, os meus colegas da televisão,
As árvores abanam os ramos. repórteres do mundo inteiro, e agora o Presidente da Câmara
toma a palavra.
ALFRED: Esta noite reune-se a Assembleia Municipal. Vão
condenar-me à morte, e um deles há-de matar-me. Não sei quem O repórter aproxima-se com o microfone do Presidente da
será nem onde acontecerá, só sei que termina aqui a minha vida Câmara, que está no meio do palco, os homens de Güllen em
sem sentido. semicírculo à sua volta.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Eu amei-te em tempos. Tu traíste-
me. Mas não esqueci o sonho de viver, de amar, de confiar, esse O PRESIDENTE DA CÂMARA: Dou as boas-vindas aos
sonho real de um tempo perdido. Quero voltar a realizá-lo com munícipes de Güllen, e declaro aberta a Assembleia. Ordem de
os meus milhões, mudar o passado acabando contigo. Trabalhos: um único ponto. Tenho a honra de anunciar que a
ALFRED: Agradeço as coroas de flores, os crisântemos e as senhora Claire Zachanassian, filha do nosso ilustre conterrâneo,
rosas. o arquitecto Gottfried Wäscher, decidiu doar a esta cidade mil
milhões [de Euros?].
Regressa o rumor do vento.
Um sussurro de espanto percorre toda a imprensa.
ALFRED: Ficam bem no caixão, no «Apóstolo Dourado».
Muito elegante. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Quinhentos milhões para o
CLAIRE ZACHANASSIAN: Vou levar-te para Capri no teu município e quinhentos milhões a distribuir por todos os
caixão. Já mandei construir um mausoléu no parque do meu cidadãos.
palácio. Rodeado de ciprestes. E com vista para o Mediterrâneo.
ALFRED: Só conheço de fotografias. Silêncio.
CLAIRE ZACHANASSIAN: É de um azul profundo. Um
panorama grandioso. Vais ficar ali, ao pé de mim. O LOCUTOR DA RÁDIO, em tom abafado: Caros ouvintes.
ALFRED: Pronto, acabou também a balada «Não há terra como Uma enorme sensação: uma doação que de um dia para o outro
a nossa». fará dos habitantes da cidade pessoas abastadas. Trata-se de uma
das mais impressionantes experiências sociais do nosso tempo.
O Marido IX regressa. Por isso a assembleia parece ter ficado atordoada. Fez-se um
silêncio sepulcral. A emoção estampada em todos os rostos.
CLAIRE ZACHANASSIAN: O Prémio Nobel. Vem de estudar O PRESIDENTE DA CÂMARA: Passo a palavra ao senhor
a sua ruína. E então, Zoby? professor.
MARIDO IX: Paleocristão. Destruído pelos Hunos.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Pena. Dá-me o braço. Roby e O repórter da rádio aproxima-se do Professor com o microfone.
Toby, tragam a liteira.
O PROFESSOR: Caros concidadãos, temos de ter consciência
Sobe para a liteira. de que a senhora Zachanassian tem uma intenção muito clara
com esta doação. E que intenção é essa? Será que quer tornar-
CLAIRE ZACHANASSIAN: Adeus, Alfred. nos felizes dando-nos dinheiro? Sanear as fábricas Wagner, a
ALFRED: Adeus, Claire. siderurgia Um Lugar ao Sol, a firma Bockmann? Sabeis todos
que não se trata disso. Os planos da senhora Zachanassian visam
A liteira é levada para o fundo, Alfred continua sentado no algo de mais importante. Pelos seus milhões, ela pede em troca
banco. As árvores baixam os ramos. De cima desce o proscénio justiça, a justiça. Pretende que a nossa comunidade se
de um teatro, com os habituais panos e cortinados, e a inscrição transforme numa comunidade justa. Esta exigência deixa-nos
«A vida é séria, a arte é alegre». Do fundo entra o Polícia com perplexos. Então nós não fomos uma comunidade justa até
uma farda nova, sumptuosa, e senta-se ao lado de Alfred. Entra agora?
um repórter da rádio, começa a testar o microfone, enquanto os O PRIMEIRO: Nunca o fomos!
habitantes de Güllen afluem. Toda a gente de fato novo, festivo, O SEGUNDO: Tolerámos entre nós um crime!
de fraque. Muitos fotógrafos de imprensa, jornalistas, câmaras O TERCEIRO: Uma sentença viciada!
de filmar. O QUARTO: Falso testemunho!
VOZ DE MULHER: Um patife!
O LOCUTOR DA RÁDIO: Minhas senhoras e meus senhores! OUTRA VOZ: Isso mesmo!
Depois da reportagem na casa da senhora Zachanassian e da O PROFESSOR: Gente de Güllen! É esta a amarga realidade
conversa com o Padre local, estamos agora a assistir a uma dos factos: nós tolerámos a injustiça! Reconheço agora
reunião da comunidade. Chegamos ao ponto alto da visita que perfeitamente as possibilidades materiais que nos são oferecidas
Claire Zachanassian fez à sua terra natal, de gente simpática e por estes milhões. De modo nenhum me esqueço de que a
ambiente acolhedor. É certo que esta celebridade não está pobreza é a causa de tanta desgraça e tanta amargura. E no
presente, mas o Presidente da Câmara fará em seu nome uma entanto digo-vos: não se trata de dinheiro (estrondosos
importante declaração. Encontramo-nos na sala do teatro do aplausos), não se trata de riqueza e bem-estar, não se trata de
«Apóstolo Dourado», o hotel onde Goethe pernoitou em tempos. luxo – trata-se de saber se queremos fazer justiça. E não apenas
No palco, que normalmente serve para eventos das associações disso: trata-se também de manter vivos os ideais pelos quais os
e recebe as companhias visitantes do Teatro Municipal de nossos avós viveram, que defenderam e pelos quais morreram.
Kalberstadt, estão reunidos os homens. Segue-se uma velha Os valores que são a base deste nosso mundo ocidental!
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(Estrondosos aplausos.) Está em jogo a liberdade quando se


atinge o amor do próximo, se despreza a obrigação de proteger O PRESIDENTE DA CÂMARA: O senhor doutor?
os mais fracos, se ofende a instituição do matrimónio, se engana
um tribunal e se atira para a desgraça uma jovem mãe. (Gritos Silêncio.
de «Uma vergonha!») Agora, em nome de Deus, temos de levar
a sério estes nossos ideais, muito a sério. (Estrondosos O PRESIDENTE DA CÂMARA: A Polícia?
aplausos.) A riqueza só faz sentido quando dela nasce a riqueza
do perdão: mas só pode ser perdoado quem aspira ao perdão. Silêncio.
Tendes vós, cidadãos de Güllen, esta fome do espírito, e não
apenas a outra, a profana, a do corpo? É esta a questão que eu, O PRESIDENTE DA CÂMARA: A oposição política?
enquanto reitor do Liceu de Güllen, vos quero colocar. Só se não
puderdes suportar o mal, só se não puderdes de modo algum Silêncio.
viver num mundo de injustiça, só nestas condições podereis
aceitar os milhões da senhora Zachanassian e concretizar a O PRESIDENTE DA CÂMARA: Assim sendo, vamos proceder
condição associada a esta doação. Peço-vos, cidadãos de à votação.
Güllen, que penseis bem nisto.
Silêncio. Apenas o ruído das câmaras de filmar, as luzes dos
Aplauso ensudercedor. flashes.

O REPÓRTER DA RÁDIO: Estão a ouvir os aplausos, minhas O PRESIDENTE DA CÂMARA: Aqueles que, em boa
senhoras e meus senhores. Estou siderado. O discurso do Reitor consciência, desejam que se faça justiça, levantem o braço.
foi exemplo de uma grandeza moral que hoje – infelizmente – já
raras vezes podemos testemunhar. O discurso apontou Todos menos Alfred levantam o braço.
corajosamente situações negativas gerais, injustiças, como as
que acontecem em qualquer comunidade, em qualquer parte O REPÓRTER DA RÁDIO: Silêncio e recolhimento em toda a
onde haja seres humanos. sala. Um mar de mãos levantadas, como uma poderosa
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Alfred Ill... conspiração por um mundo melhor e mais justo. Apenas o velho
O REPÓRTER DA RÁDIO: O Presidente da Câmara volta a homem se deixou ficar como estava, dominado pela sua alegria.
tomar a palavra. Alcançou o seu objectivo, vai nascer a Fundação graças à sua
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Alfred Ill, tenho uma generosa amiga de juventude.
pergunta a fazer-lhe. O PRESIDENTE DA CÂMARA: A doação de Claire
Zachanassian foi aceite. Por unanimidade. Não pelo dinheiro...
O Polícia dá uma cotovelada a Alfred. Este levanta-se. O TODA A COMUNIDADE: Não pelo dinheiro...
repórter da rádio aproximase dele com o microfone. O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... mas pela justiça...
TODA A COMUNIDADE: ... mas pela justiça...
O REPÓRTER DA RÁDIO: E agora a voz do homem que O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... e pela força da consciência.
sugeriu a criação da Fundação Zachanassian, a voz de Alfred Ill, TODA A COMUNIDADE: ... e pela força da consciência.
o amigo de juventude da benfeitora. Alfred Ill é um homem bem O PRESIDENTE DA CÂMARA: Pois não podemos viver
conservado, com cerca de setenta anos, um homem da cepa tolerando entre nós um crime...
antiga de Güllen, naturalmente emocionado, cheio de gratidão, TODA A COMUNIDADE: Pois não podemos viver tolerando
cheio de uma serena felicidade. entre nós um crime...
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Por sua causa foi-nos O PRESIDENTE DA CÂMARA: .. que temos de extirpar...
proposta esta doação, Alfred Ill. Tem consciência disso? TODA A COMUNIDADE: ... que temos de extirpar...
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... para que as nossas almas
Alfred diz qualquer coisa em voz baixa. não sofram...
TODA A COMUNIDADE: ... para que as nossas almas não
O REPÓRTER DA RÁDIO: O senhor tem de falar mais alto, sofram...
bom homem, para os nossos ouvintes entenderem o que diz. O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... nem os nossos mais
ALFRED: Sim. sagrados bens.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Vai respeitar a nossa decisão TODA A COMUNIDADE: ... nem os nossos mais sagrados
sobre a aceitação ou rejeição da doação de Claire Zachanassian? bens.
ALFRED: Respeitarei a vossa decisão. ALFRED, num grito: Meu Deus!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: alguém quer fazer alguma
pergunta a Alfred Ill? Todos ficam de mãos levantadas, solenemente, mas a câmara
das actualidades cinematográficas teve uma panne.
Silêncio.
O OPERADOR DE CÂMARA: Que pena, senhor Presidente. A
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Alguém tem alguma iluminação falhou. Peço-lhe que repita a votação final.
observação a fazer sobre a doação da senhora Zachanassian? O PRESIDENTE DA CÂMARA: Outra vez?
O OPERADOR DE CÂMARA: É para as actualidades da
Silêncio. semana.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Mas, naturalmente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Talvez o senhor Padre? O OPERADOR DE CÂMARA: Os projectores estão em ordem?
UMA VOZ: Tudo em ordem.
Silêncio. O OPERADOR DE CÂMARA: Então vamos lá!
29

O palco escurece. À luz fraca da Lua os homens têm contornos


O Presidente da Câmara põe-se novamente em pose. indefinidos.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Formem duas alas.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Aqueles que, em boa Os homens de Güllen formam uma rua em duas alas. Na ponta
consciência, desejam que se faça justiça, levantem o braço. final está o ginasta, agora de calças brancas elegantes, com um
lenço vermelho sobre o fato de ginástica.
Todos levantam o braço. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Senhor Padre, faça favor.
O Padre aproxima-se lentamente de Alfred e senta-se ao lado
O PRESIDENTE DA CÂMARA: A doação de Claire dele.
Zachanassian foi aceite. Por unanimidade. Não pelo dinheiro... O PADRE: Bom, Alfred, chegou a sua hora.
TODA A COMUNIDADE: Não pelo dinheiro... ALFRED: Um cigarro.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... mas pela justiça... O PADRE: Um cigarro, senhor Presidente.
TODA A COMUNIDADE: ... mas pela justiça... O PRESIDENTE DA CÂMARA, afectuoso: Mas com certeza.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... e pela força da consciência. Dos melhores.
TODA A COMUNIDADE: ... e pela força da consciência. Dá o maço ao Padre, que o estende a Alfred. Este tira um
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Pois não podemos viver cigarro, o Polícia dá-lhe lume, o Padre volta a dar o maço ao
tolerando entre nós um crime... Presidente.
TODA A COMUNIDADE: Pois não podemos viver tolerando O PADRE: Como já disse o profeta Amós...
entre nós um crime... ALFRED: Por favor, não. (Fuma.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... que temos de extirpar... O PADRE:Não tem medo?
TODA A COMUNIDADE: ... que temos de extirpar... ALFRED: Nem por isso. (Fuma.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... para que as nossas almas O PADRE, sem saber o que fazer: Vou rezar por si.
não sofram... ALFRED: Reze por Güllen.
TODA A COMUNIDADE: ... para que as nossas almas não
sofram... Alfred fuma. O Padre levanta-se lentamente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: ... nem os nossos mais
sagrados bens. O PADRE:Que Deus tenha piedade de nós.
TODA A COMUNIDADE: ... nem os nossos mais sagrados
bens. O Padre junta-se lentamente às filas dos outros.

Silêncio. O PRESIDENTE DA CÂMARA: Levante-se, Alfred Ill.

O OPERADOR DE CÂMARA, baixinho: Alfred Ill! Então? Alfred hesita.

Silêncio. O POLÍCIA: Levanta-te, filho da puta! (Puxa-o e levanta-o no


O OPERADOR DE CÂMARA, desiludido: Paciência! É pena ar.)
não se ouvir esse grito de alegria «Meu Deus!», que foi tão O PRESIDENTE DA CÂMARA: Senhor Chefe, tenha
impressionante. maneiras!
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Os senhores representantes da O Polícia: Desculpe. Passei-me!
imprensa, da rádio e do cinema estão convidados para um buffet O PRESIDENTE DA CÂMARA: Venha, Alfred Ill.
no restaurante. É melhor deixarem a sala pela saída do palco.
Para as senhoras será servido um chá no jardim do «Apóstolo Alfred deixa cair o cigarro, apaga a beata com o pé. Depois vai
Dourado». lentamente até ao meio do palco, de costas voltadas para o
público.
O pessoal da imprensa, da rádio e do cinema sai pelo fundo à
direita. Os homens permanecem imóveis no palco. Alfred O PRESIDENTE DA CÂMARA: Entre nas filas dos homens.
levanta-se e prepara-se para sair.
Alfred hesita.
O POLÍCIA: Tu ficas! (Obriga Alfred a sentar-se de novo.)
ALFRED: Querem acabar com isto ainda hoje? O POLÍCIA: Vai, estás à espera de quê?
O POLÍCIA: Naturalmente.
ALFRED: Pensei que o melhor era ser em minha casa. Alfred entra lentamente na rua formada pelos homens
O POLÍCIA: Vai ser aqui mesmo. silenciosos. Ao fundo, o ginasta está de pé à espera dele. Alfred
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Já não há ninguém na sala? pára, volta-se, vê como a rua se fecha impiedosamente atrás de
O Terceiro e o Quarto deitam um olhar à plateia. si, cai de joelhos. A rua transforma-se num novelo de homens,
O TERCEIRO: Ninguém. silencioso, que se aperta e lentamente se ajoelha. Silêncio. Pela
O PRESIDENTE DA CÂMARA: E nas galerias? esquerda, á frente, entram jornalistas. O palco volta a ficar
O QUARTO: Estão vazias. claro.
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Fechem as portas. Ninguém JORNALISTA I: O que é que se passa aqui?
mais pode entrar na sala. O novelo de homens abre-se. Os homens recuam e ficam juntos
Os dois descem para a sala. ao fundo, calados. À frente fica apenas o médico, ajoelhado
O TERCEIRO: Está fechada. diante de um cadáver coberto por uma toalha aos quadrados
O QUARTO: Está fechada. como as dos restaurantes. O médico levanta-se e guarda o
O PRESIDENTE DA CÂMARA: Apaguem as luzes. A lua estetoscópio.
cheia entra pelas janelas da galeria. É quanto basta. O MÉDICO: Ataque cardíaco.
30

Silêncio. TODOS: Mas graças a Deus


O PRESIDENTE DA CÂMARA: Não aguentou, de alegria. A MULHER DE ALFRED: Que um destino favorável
JORNALISTA I: Não aguentou, de alegria. TODOS: Tudo veio mudar.
JORNALISTA II: A vida escreve as mais belas histórias. AS MULHERES: Agora, já vestidos decentes Nos envolvem os
JORNALISTA I: Vamos ao trabalho. corpos delicados
Os jornalistas saem a correr pela direita alta. Da esquerda O FILHO: E o rapaz conduz o carro desportivo
entra Claire Zachanassian, seguida pelo Mordomo. Vê o OS HOMENS: E o comerciante a sua limusine
cadáver, pára, vai depois lentamente para o centro do palco, A FILHA: A rapariga corre atrás da bola na terra vermelha
volta-se para o público. O MÉDICO: Na nova sala de operações, o médico, feliz, opera
CLAIRE ZACHANASSIAN: Tragam-no aqui. TODOS: O jantar Fumega na casa. Satisfeitos
Roby e Toby trazem uma maca, colocam Alfred na maca e Bem calçados
pôem-no aos pés de Claire Zachanassian. Todos saboreiam a erva fina de bons charutos.
CLAIRE ZACHANASSIAN, imóvel: Destapa-o, Boby. O PROFESSOR: Sedentos de saber aprendem os sedentos de
O Mordomo destapa o rosto de Alfred. Ela olha-o longamente, saber.
impassível. O SEGUNDO: O eficiente industrial acumula tesouro sobre
CLAIRE ZACHANASSIAN: Está tal como era, há muito tesouro
tempo, o pantera negra. Tapa-o. TODOS: Rembrandt segue-se a Rubens
O Mordomo volta a tapar o rosto. O PINTOR:A arte sustenta plenamente o artista.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Ponham-no no caixão. O PADRE: No Natal, na Páscoa e no Pentecostes
Roby e Toby levam o cadáver e saem pela esquerda. A igreja enche-se de fiéis
CLAIRE ZACHANASSIAN: Boby, leva-me para o meu TODOS: E os comboios, refulgentes,
quarto. Manda fazer as malas. Vamos para Capri. Deslizam céleres por carris de ferro De cidade em cidade,
O Mordomo dá-lhe o braço, ela sai lentamente pela esquerda, unindo os povos, Com paragem certa aqui.
pára.
CLAIRE ZACHANASSIAN: Senhor Presidente. Da esquerda entra o Revisor.
De trás, das filas dos homens silenciosos, o Presidente da O REVISOR: Güllen!
Câmara chega-se lentamente à frente. O CHEFE DA ESTAÇÃO: Comboio rápido Güllen-Roma,
CLAIRE ZACHANASSIAN: O cheque. (Dá-lhe um papel e sai embarque imediato! Carruagem de luxo à frente!
com o Mordomo.) Do fundo chega Claire Zachanassian na sua liteira, imóvel,
como um ídolo de pedra antigo. Passa entre os dois coros,
Se os fatos cada vez mais vistosos mostravam a riqueza acompanhada do seu séquito.
crescente, de forma discreta, sem dar muito nas vistas, mas O PRESIDENTE DA CÂMARA: A benfeitora
dificilmente passando despercebidos; se o cenário se foi TODOS: que nos arrancou à miséria
tornando cada vez mais apetitoso, modificando-se, A FILHA: vai partir
evidenciando a subida dos seus actores na escala social, como TODOS: com os seus nobres acompanhantes!
se tivesse ocorrido uma mudança imperceptível de um bairro de
miséria para uma cidade moderna e bem situada; se esse Claire Zachanassian desaparece pela direita. No fim do cortejo,
espectáculo foi revelando uma riqueza cada vez mais evidente – os criados levam o caixão, passando lentamente.
essa ascensão vai encontrar agora, na cena final, a sua
apoteose. O mundo que antes era cinzento transformou-se numa O PRESIDENTE DA CÂMARA: Bem haja, a nossa protectora.
realidade limpa e brilhante de tecnologia, em riqueza, TODOS: Leva consigo um bem precioso que lhe foi confiado.
desaguando num happy end global. Grinaldas, cartazes, luzes O CHEFE DA ESTAÇÃO: Partida!
de néon envolvem a estação renovada, a isso juntam-se os TODOS: Que nos seja dado conservar
habitantes de Güllen, mulheres e homens de vestido de noite e O PADRE: – Que Deus o queira –
fraque, formando dois coros semelhantes aos da tragédia grega, TODOS: Nestes tempos vertiginosos e difíceis
não por acaso, mas para assinalar uma posição, como se um O PRESIDENTE DA CÂMARA: A prosperidade
navio avariado, à deriva, lançasse os últimos sinais. TODOS: Que Ele proteja os nossos sagrados bens, mantenha a
paz, garanta a liberdade. Longe fiquem as trevas – Que nunca
CORO I: Coisas portentosas acontecem mais desçam sobre a nossa cidade, Renascida das cinzas,
Violentos terramotos esplendorosa, Para, felizes, podermos desfrutar desta felicidade.
Montes que cospem fogo, vagas vindas dos mares Guerras
também, tanques arrasando campos de trigo O cogumelo solar
da bomba atómica. FIM
CORO II: Mas nada é mais terrível que a pobreza
Que não quer saber de aventuras Mas cerca o desolado género
humano Alinhando um a um os dias, num deserto.
AS MULHERES: Impotentes, as mães vêem os seus mais
queridos Ir morrendo aos poucos.
OS HOMENS: O homem, esse Rumina a revolta Pensa em
traições.
O PRIMEIRO: Arrasta-se com os seus sapatos velhos
O TERCEIRO: Charuto mal cheiroso entre dentes
CORO I: Pois os lugares de trabalho, que antes davam o pão
Estão vazios
Coro II: E os comboios rápidos já não param aqui

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