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TEXTOS PARA ESTUDO DE REALISMO

POR GUILHERME SANT’ANNA


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TEXTO 1

QUITÉRIA
Que anda acontecendo com você?

JOSÉ
Nada.

QUITÉRIA
Costuma falar sozinho, é?

JOSÉ
É a personagem.

QUITÉRIA
Sabia! Você matina mais nela do que em mim.

JOSÉ
Isso é o que pensa. Com esses peitos aí na minha frente?

QUITÉRIA
Por isso mesmo. Estão aqui, são seus... e você aí, matinando sei lá com o quê.

JOSÉ
Vou sair pelo interior com a companhia, Quitéria, e tenho que levar aquela
cena.

QUITÉRIA
É só levar. Palavra não custa carregar.

JOSÉ
Há umas que pesam! E outras que podem nos levar até a morte.

QUITÉRIA
Não vem com conversa esquisita, não. E não gosto de ver você com aquela
saia.

JOSÉ
Os centuriões romanos se vestiam assim.

QUITÉRIA
E aquele velho soberbo de camisola preta...

JOSÉ
Catão, Quitéria! E não é camisola, é toga.

QUITÉRIA
Sei lá. Soberbo como o demônio. Joga o corpo contra a espada e ainda faz
você prometer que mata o pai! Isso é coisa que se faça? Até que César é bom:
queria conversar com você. É porque gosta do filho. Bruto mesmo, esse Marco!
Aquele velho agourento é que azarou tudo. Que é que está murmurando aí?

JOSÉ
Já disse, uma das cenas da viagem.

QUITÉRIA
Mostra pra mim.

JOSÉ
Quer mesmo?

QUITÉRIA
Assim, arranca isso da cabeça. E se for coisa triste, não precisa nem começar.

JOSÉ
Não é.

QUITÉRIA
Ainda bem. Não suporto aquele homem de saia. Bastardo filho da puta!
JOSÉ
Não fale assim!

QUITÉRIA
Por que não? É assim que falo.

(José rememora parte do monólogo de “O Casamento de Fígaro” de


Beaumarshais. De repente, senta-se na cama.)

JOSÉ
“Há nada mais esquisito do que o meu destino? Atiro-me de corpo e alma no
teatro. Antes tivesse amarrado uma corda no pescoço! Alinhavo uma comédia
dos costumes do serralho. Autor espanhol, pensei que podia troçar de Maomé a
vontade. Na mesma hora um enviado... Depois, destruiu-se à ilusão e, por
demais desenganado... desenganado!... Suzaninha, Suzaninha! Que tormentos
me dás!... Ouço andar... Vem gente.” Acha bom?

QUITÉRIA
Engraçado está!

JOSÉ
Será que a gente da província vai compreender?

QUITÉRIA
Só se for tudo topeira. Que é que tem pra compreender?

JOSÉ
Nada.

QUITÉRIA
Quem é Suzaninha?

JOSÉ
Criada de quarto.

QUITÉRIA
Por que é tão importante essa viagem? Mais até do que eu?
JOSÉ
É tão importante quanto você.

QUITÉRIA
E me deixa aqui? Não digo que anda esquisito?

JOSÉ
Ainda vai compreender.

QUITÉRIA
Compreendo é que mudou muito depois que tua mãe chegou. Não sei mais
se é o José... que era só meu.

JOSÉ
Também não tenho mais certeza se sou eu. Quem sou eu? Quem é que se
esconde dentro de mim? O que sou para mim e o que sou para os outros?

QUITÉRIA
Para mim... é o único que me ensinou a não ter vergonha do meu corpo.

JOSÉ
Não posso levá-la. Você me faz esquecer dos que precisam de mim.

QUITÉRIA
O que é meu, é só meu. Você mesmo vive dizendo que é o corpo que tem!
Deixe que ele seja como é.

JOSÉ
Foi o seu que me ensinou.

QUITÉRIA
Para que fazer tantas perguntas? “De onde venho? Pra onde vou?” Venha para
dentro de mim.

JOSÉ
Promete não gemer?
QUITÉRIA
Não prometo nada.

(Trecho de “As Confrarias”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 2

MARIANA
Gabriel!

GABRIEL
Mariana!

MARIANA
Gabriel! Pensei que não viesses nunca.

GABRIEL
Senti muito a tua falta.

MARIANA
Morria de medo só de pensar que...

GABRIEL
Nada aconteceu. Estou aqui.

MARIANA
Tenho vivido sem notícias. Cada dia, cada hora que passava... sem saber o que
acontecia...!

GABRIEL
Não vamos mais nos separar.

MARIANA
Por que não vieste logo?
GABRIEL
As estradas foram cercadas. Não podia passar.

MARIANA
A cada instante parecia ver-te subindo pelo caminho da pedreira.

GABRIEL
Uma revolução não termina de um dia para o outro, Mariana.

MARIANA
O sol me encontrou sentada nas rochas. Meus olhos cansaram de vigiar o
vale.

GABRIEL
Esperavas-me? Hoje?

MARIANA
Desde que amanheceu. Não encontrastes Supriano?

GABRIEL
Supriano?

MARIANA
Teu pai pediu que te chamasse. Não foi por isso que vieste? Que foi, Gabriel?

GABRIEL
Pensei que soubesses.

MARIANA
Soubesse o quê?

GABRIEL
Fomos derrotados.

MARIANA
Derrotados?
GABRIEL
Baependi caiu!

MARIANA
Caiu? Então... todo o vale...?

GABRIEL
Está sendo ocupado.

MARIANA
E Martiniano?

GABRIEL
Foi preso.

MARIANA
Não!... Não!!!

GABRIEL
Martiniano não corre perigo. Ninguém o conhece. Logo será dispensado,
junto com os outros.

MARIANA
Mamãe não nos perdoaria nunca... se Martiniano...!

GABRIEL
Não vamos pensar em morte, Mariana.

MARIANA
Estamos sempre dependendo dos mortos. Cercados de mortos.

GABRIEL
Logo não estaremos mais.

MARIANA
Como não pensar, se a morte está aí, dominando o pensamento de todos. Se
dela sempre dependeu... perdoa-me, Gabriel. Não sei mais o que digo.
GABRIEL
Meu pai está muito mal, não é verdade, Mariana?

MARIANA
Para ele será um descanso, Gabriel. Desde aquela ocasião na Bela Cruz, só tem
sofrido.

GABRIEL
Mariana! Não posso esperar mais. Há uma ordem de prisão contra mim. Foi
por isso que não esperei Martiniano.

MARIANA
Ordem de prisão?

GABRIEL
Vou ser um dos processados.

MARIANA
Mas tomaste parte apenas como soldado. Todos sabem disso.

GABRIEL
É fácil prever os acontecimentos. Há vinte anos armaram os escravos...
Agora...!

MARIANA
Aqueles tempos passaram, Gabriel. O que aconteceu na Bela Cruz não pode
se repetir.

GABRIEL
Pois estão fazendo o mesmo em todo o vale. Destroem e confiscam fazendas.

MARIANA
Precisamos partir!

GABRIEL
Eles não me prenderão, Mariana.
MARIANA
Casaremos e partiremos o mais depressa possível.

GABRIEL
Verás como é belo o lugar que escolhi para nós.

MARIANA
Perto de uma grande figueira, às margens do Rosário, construiremos a casa.

GABRIEL
As matas, o rio, as terras... As terras, Mariana, são o que há de melhor no
mundo.

(Trecho de “Pedreira das Almas”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 3

URBANA
Gabriel! Vosso pai é uma das pessoas mais admiráveis que conheci.

GABRIEL
Ninguém como ele respeitou tanto o direito dos outros.

URBANA
Os exemplos, a recordações dos que viveram em Pedreira nem a todos
conseguem causar respeito.

GABRIEL
Foram mais recordações amargas que o prenderam aqui.

URBANA
Não há quem não as tenha.
GABRIEL
É por isso que vamos à uma região que não há túmulos, adros, lajes de pedra.
Tudo vai partir de nós.

URBANA
Não se pode cortar o passado. Ele nos acompanha para onde vamos. Vosso
pai não ficará só, nem será esquecido, enquanto estivermos em Pedreira das
Almas.

GABRIEL
Vou levar seu corpo para o vale.

URBANA
Essa não é a vontade de vosso pai.

GABRIEL
No adro, só resta uma laje vazia, e já tem o seu nome.

URBANA
Ele tem o mesmo direito que eu. Partir é a vossa vontade, não de vosso pai.
Respeitais a vontade dos mortos, já que não respeitais o lugar onde viveram.

GABRIEL
A senhora respeita os mortos, mas não respeita os vivos.

URBANA
Quem não ama seu lugar de nascimento, não merece possuir terra... E muito
menos viver! Os homens vazios de recordações, como sois vós, não tem lugar
em parte alguma.

GABRIEL
Presenciei a destruição da minha família, dona Urbana. Preso dentro de uma
canastra, assisti a tudo sem poder fazer nada. Ouvi seus gritos... vi aqueles
escravos embriagados e enfurecidos... Tenho poucas recordações... Resumem-se
toda no massacre da minha família... Em mulheres e crianças torturadas. Cresci
com aqueles gritos nos ouvidos... Vendo a pobreza e a injustiça tomarem conta
do vale.
URBANA
Por causa das desordens que os liberais sempre instigaram.

GABRIEL
Nós, não! Leis injustas e impostas.

URBANA
Que importam as leis, quando vivemos dentro da ordem. Assim temos vivido
em Pedreira das Almas. Nunca nos aconteceu nada.

GABRIEL
Porque a ordem estabelecida aqui, é a ordem da senhora, não a minha. É por
isso que eu odeio essas pedras. Estão contaminadas pelas leis que a senhora
representa. Leis desses mortos. Eles também pertencem à senhora, não a mim.
Sei o que eles significam. Pactuaram com todas as injustiças cometidas nesse
vale em nome da sua lei e da sua ordem.

URBANA
Eles tinham o mesmo sangue que correm em vossas veias.

GABRIEL
Sempre esperei que a senhora compreendesse...

URBANA
Pois não espereis que consinta na partida de minha filha... para ir viver no
meio de ambiciosos; onde os representantes de Deus nem puderam chegar.

GABRIEL
Chegarão conosco.

URBANA
Carregastes meu único filho homem para esta desordem, ameaçando sua
vida... Quereis também levar minha filha para uma região inculta? Se partires,
será sem ela... e o Governo saberá onde encontrá-la!
(Trecho de “Pedreira das Almas, de Jorge Andrade)

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TEXTO 4

GABRIEL
Precisamos falar, Mariana.

MARIANA
Falamos tanto, Gabriel!

GABRIEL
Devo partir. Prometi uma vida melhor para eles.

MARIANA
Eu compreendo.

GABRIEL
E era tudo para ti.

MARIANA
Por favor, Gabriel.

GABRIEL
Mariana!

MARIANA
Parte! Deixe-me! Agora, tens compromisso é com o povo.

GABRIEL
Tinhas também comigo.

MARIANA
Tudo mudou.

GABRIEL
Não para mim.
MARIANA
Gabriel! Queríamos partir livres. Hoje não somos mais. Não podes abandonar
o povo, nem eu Pedreira.

GABRIEL
Também não posso te abandonar.

MARIANA
Se perdesses tua determinação... não poderia mais amá-lo. Amei-te pelo que
eras, pelo mundo que sonhaste conquistar.

GABRIEL
A verdade é que vamos viver sempre sós.

MARIANA
Terás tuas terras e tudo o que elas representam.

GABRIEL
Sempre, Mariana! Tu, aqui, onde só há mortos. Eu, lá, onde há vivos que já não
representam a mesma coisa.

MARIANA
Foram eles que lutaram por ti.

GABRIEL
E assim tua mãe conseguiu destruir nosso sonho.

MARIANA
Minha mãe só tinha amor.

GABRIEL
Que amor é esse, Mariana, que nos faz sofrer?

MARIANA
Mesmo que quisesses, não poderias ficar. Também eu, se desejasse, não
conseguiria partir. Aceito tudo sem sofrimento, porque deve ser assim. Não
pedi, nem admitiria que ficasses. Por que devo partir sentindo tanta necessidade
de ficar?

GABRIEL
Mariana! Ninguém realiza sua aspiração sem sofrimento.

MARIANA
Não é sofrimento que me prende à Pedreira das Almas.

GABRIEL
Morte é sofrimento, Mariana.

MARIANA
A vida também pode ser.

GABRIEL
Então, não tinhas amor por mim.

MARIANA
Mais forte do que as promessas, é a morte que nos liga à terra. Sinto tudo
dentro do meu corpo, como se fizesse parte do meu sangue. As rochas... a
igreja... o adro!

GABRIEL
Mariana! Não podemos passar a vida venerando mortos. Foi para escapar a
isso que sonhamos partir. É preciso saber escolher, Mariana.

MARIANA
Isso não depende de escolha. Há coisas que não podemos evitar.

GABRIEL
Mudaste muito. Mal te reconheço!

MARIANA
Gabriel, duas pessoas perderam a vida. Não compreendes? Duas pessoas que
eram a minha família. Como queres que seja a mesma?

GABRIEL
Também perdi a minha.
MARIANA
Há muito tempo. Viveste sem ela.

GABRIEL
Prometeste uma para mim. Não te lembras?

MARIANA
Não a esse preço.

GABRIEL
Mas que preço? Foi o próprio mundo de Pedreira que matou Martiniano,
como matou minha família.

MARIANA
Nossos mortos não podem ser abandonados.

GABRIEL
Não sabes mais pensar a não ser em mortos?!

MARIANA
Vivo conforme meus princípios.

GABRIEL
Não eram princípios teus a poucos dias atrás.

MARIANA
São agora. Quando menos esperamos, ficamos presos a compromissos
superiores a nossos sentimentos.

GABRIEL
Que compromissos?

MARIANA
Tu, com o povo que agora tem o direito de partir. Eu... com os mortos de
Pedreira. Eles precisam de mim. Sei que Pedreira não morrerá enquanto eu
estiver aqui.
GABRIEL
Não viverá. Nunca mais!

MARIANA
Pertencemos a mundos diferentes!

GABRIEL
Não! É o ódio que vem daquele adro.

MARIANA
Não havia ódio. Minha mãe não falou. Morreu pouco a pouco. Atendeu ao
pedido de Martiniano. Lutou também com seu silêncio.

GABRIEL
Mas com seu ódio destruiu minha vida. Ela prometeu!

MARIANA
Não era ódio! Era amor, já disse. Pedreira não está em teu sangue, não podes
compreender.

GABRIEL
Compreendo, sim. O ódio pertence a ti, Urbana. Desprezo tua cidade. Ignoro
teus mortos. Odeio-te, agora, mais do que me odiavas.

MARIANA
Não insultes minha mãe!

GABRIEL
Com aquele ódio, só poderia destruir os que queriam viver.

MARIANA
Não destruiu. Revelou o sentido de tudo!

GABRIEL
É a vida que tem sentido. Só a vida tem sentido!

MARIANA
Tem tanto que... se não fossem os mortos não estarias aqui.
GABRIEL
Saí daquela canastra na Bela Cruz para crescer entre mortos, esperando a
morte de meu pai para viver. Não lhes tenho amor, porque não me deixaram
viver em paz... e agora destroem a minha esperança.

MARIANA
Sai desse adro!

GABRIEL
Pois, fica com eles!

(Trecho de “Pedreira das Almas”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 5:

ELVIRA
Para falar a verdade, não gosto muito deste tipo de vestido, mas é a moda, o
que se pode fazer!

LUCÍLIA
Fica bem na senhora.

ELVIRA
Fica? Você acha que fica?

LUCÍLIA
Se não achasse, não teria dito.

ELVIRA
Que foi?

LUCÍLIA
Nada, por que?

ELVIRA
Parece nervosa.

LUCÍLIA
Estou cansada.

ELVIRA
Não vá me espetar. Tenho horror de alfinetes!

LUCÍLIA
Já aconteceu isso alguma vez?

ELVIRA
Não. Ah! Esqueci de avisar o Quim: o café vem amanhã.

LUCÍLIA
Vou falar com o papai.

ELVIRA
O que é que você tem?

LUCÍLIA
Nada, já disse.

ELVIRA
Pensei que estivesse satisfeita.

LUCÍLIA
Por que haveria de estar?

ELVIRA
Aconteceu alguma coisa?

LUCÍLIA
Não. Não posso ficar aborrecida?
ELVIRA
Não devemos nos aborrecer. Isso envelhece a gente.

LUCÍLIA
Tenho a impressão de que a senhora não vai envelhecer nunca.

ELVIRA
Por que?

LUCÍLIA
Por não ter nada com que se aborrecer.

ELVIRA
Você é que não sabe. Se soubesse o trabalho, as dores de cabeça que me dá
esse asilo! Se não tomar a iniciativa de fazer o que é preciso, ninguém toma.
Não me incomodo de ajudar, mas acho que é preciso cooperação. Todos devem
dar! Só eu, sempre eu! Já tenho muitas despesas. E depois, minha filha, o
Augusto...

LUCÍLIA
Não me chame de sua filha.

ELVIRA
Por que?

LUCÍLIA
Porque não sou sua filha.

ELVIRA
O Augusto está ficando tão ranzinza.

LUCÍLIA
Ranzinza, como?

ELVIRA
Acha que sou mão aberta demais, que sustento sozinha o asilo e... coisas
assim! Sempre soube fazer economia!
LUCÍLIA
Aconselho a senhora a não nos trazer mais nada.

ELVIRA
Por que não? Também tenho direito. Dou o que quiser, a quem quiser.

LUCÍLIA
A senhora não pode ficar um instante parada? Assim não posso consertar essa
barra.

ELVIRA
O Olímpio não trouxe mesmo novidade nenhuma?

LUCÍLIA
Trouxe. Papai perdeu o processo.

ELVIRA
Perdeu?

LUCÍLIA
Exatamente.

ELVIRA
Coitado do Quim.

LUCÍLIA
Acho melhor assim. Não se tem mais esperança e pronto.

ELVIRA
E você me conta isso, assim?!

LUCÍLIA
Para a senhora, que diferença faz?

ELVIRA
Muita! Por que é que me diz isso?

LUCÍLIA
Porque penso assim.

ELVIRA
Acho que no fundo, bem no fundo, o Quim não esperava mais.

LUCÍLIA
Por que?

ELVIRA
O Quim, como eu, sabe sentir suas culpas.

LUCÍLIA
Como assim?

ELVIRA
A gente sente quando uma culpa nos pesa na alma, tanto como um pecado
qualquer.

LUCÍLIA
E então?

ELVIRA
Afinal, seu pai cometeu muitos erros. A gente só paga aquilo que deve.

LUCÍLIA
Ainda não compreendi.

ELVIRA
Primeiro, seu pai ficou com a melhor parte da fazenda, quando eu também
tinha direito. Depois, não soube aproveitar isso e endividou-se, por culpa
exclusivamente dele, e acabou perdendo tudo. Reconheço que o Quim sempre
foi um homem bom, de muito boa fé, mas sem visão nenhuma, desastrado para
os negócios.

LUCÍLIA
E para terminar, agrediu tio Augusto aquele dia, não é?

ELVIRA
Foi um gesto infeliz mas perdoável.

LUCÍLIA
Mas que vocês não perdoaram.

ELVIRA
Quem disse...?

LUCÍLIA
Queriam, com certeza, que ele se arrastasse para o chão?

ELVIRA
Precisamos aprender a aceitar nossas próprias culpas, pecamos, erramos, e
continuamos a pecar e a errar porque estamos sempre pedindo prazo a Deus
para nos corrigirmos.

LUCÍLIA
É muito fácil julgar os outros.

ELVIRA
Chega um dia que esse prazo é tirado definitivamente.

LUCÍLIA
Ainda bem que a senhora pensa assim.

ELVIRA
Não é mesmo?

LUCÍLIA
Tenho certeza de que a senhora também pede prazo para os seus erros, para
os seus pecados.

ELVIRA
Eu?!

LUCÍLIA
É. Essa ajuda que nos dá é porque também se sente culpada.
ELVIRA
Que culpa tenho eu?

LUCÍLIA
Que culpa? Acha pouco o desespero que papai tem vivido?!

ELVIRA
Não fui eu quem arruinou seu pai.

LUCÍLIA
Sei disso. Mas podia ter evitado.

ELVIRA
Eu?!

LUCÍLIA
É. A senhora mesma.

ELVIRA
Quem agrediu primeiro foi o Quim e não o Augusto!

LUCÍLIA
Depois daquela resposta grosseira, papai não podia fazer outra coisa.

ELVIRA
Quem precisa dos outros não pode ter orgulho.

LUCÍLIA
Isso mostra bem o que a senhora é. A verdade é que deixou nossa fazenda ir à
praça e ser arrematada por gente que não tinha o menor amor às nossas terras.

ELVIRA
Nós, como todos, também estávamos em má situação.

LUCÍLIA
Mentira.

ELVIRA
Lucília!

LUCÍLIA
É isso mesmo! Vocês não perderam nada.

ELVIRA
Você esta louca.

LUCÍLIA
Não estou louca, não. Sei bem o que estou dizendo. Esta culpa a senhora vai
levar para o túmulo.

ELVIRA
Lucília!

LUCÍLIA
Não vai poder resgatar nunca. O preço dela é o nosso sofrimento, são nossas
humilhações. Vocês podiam ter ficado com a fazenda, papai teria onde morrer.
Depois era só vender, não a queria para mim.

ELVIRA
Não tive culpa nenhuma. Deus sabe disso.

LUCÍLIA
Preferiram ver a fazenda nas mãos de gente estranha a dar oportunidade ao
papai de morrer em sossego. Vocês souberam vingar!

ELVIRA
Você não sabe o que está dizendo!

LUCÍLIA
Sei muito bem. Quem sabe a senhora pensa que com o latãozinho de leite,
café e outras coisas, pode resgatar tudo isso?

ELVIRA
Não quero resgatar nada. Tenho a consciência limpa. Tínhamos compromissos
também.
LUCÍLIA
Que compromissos? Compromissos com seu dinheiro? Nem filho tem!

ELVIRA
Nunca mais porei os pés aqui.

LUCÍLIA
Pouca diferença faz. Sei e posso sustentar a minha casa.

ELVIRA
Você é uma mal agradecida.

LUCÍLIA
A ajuda que nos deu já foi paga. Não se esqueça de que nunca lhe cobre um
tostão pelo meu trabalho.

ELVIRA
Você não tem respeito?!

LUCÍLIA
Se a senhora merecesse respeito, teria tido um pouco de amor pelo seu irmão,
piedade ao menos.

(Trecho de “A Moratória”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 6

OLÍMPIO
Lucília!

LUCÍLIA
Desculpe-me. Não tive intenção de ofendê-lo.
OLÍMPIO
Por que não voltou à cidade?

LUCÍLIA
Com esta situação, não pude voltar.

OLÍMPIO
Você prometeu voltar com a resposta!

LUCÍLIA
Resposta?!

OLÍMPIO
Combinamos ficar noivos, não foi?

LUCÍLIA
É muito amável de sua parte fingir que ignora a situação.

OLÍMPIO
Lucília! Eu compreendo que o momento é difícil, mas acho que nossos
sentimentos devem estar acima de tudo.

LUCÍLIA
É que não estou bem certa disto.

OLÍMPIO
Acha que eu não devia ter vindo?

LUCÍLIA
Acho.

OLÍMPIO
Neste caso...

LUCÍLIA
Espero que compreenda.
OLÍMPIO
Compreender o que?

LUCÍLIA
Tudo.

OLÍMPIO
Para mim, nada mudou.

LUCÍLIA
Mudou tanto que eu mesma custo a crer.

OLÍMPIO
Você esta apenas desorientada pelos acontecimentos. É natural.

LUCÍLIA
Gostaria de acreditar nisso.

OLÍMPIO
Garanto a você.

LUCÍLIA
É muito mais grave do que parece. Você está pensando na situação financeira
que vamos ficar e eu não. Sinto que todos nós vamos ser envolvidos e, depois,
não poderemos mais ser os mesmos. Não é só a fazenda que estamos
ameaçados de perder.

OLÍMPIO
Seu pai é um homem forte.

LUCÍLIA
Forte! Diante de certas coisas, que adianta ser forte?

OLÍMPIO
Só assim podemos enfrentar o que nos ameaça.

LUCÍLIA
Tenho observado o papai. Aquela calma não me engana. Há qualquer coisa
atrás de seu silêncio que me assusta. Tenho visto papai andando pela fazenda
como um animal acuado. Olha tudo demoradamente. Parece dizer adeus até às
pedras, às arvores. Subitamente, parece que tudo adquiriu vida, sentido. O
menor objeto, o movimento de um galho, os animais, as plantas, os gestos,
tudo! Tudo passou a ter um significado diferente. Ontem...

OLÍMPIO
Fale, Lucília. Desabafe.

LUCÍLIA
Ontem, encontrei papai no meio das jabuticabeiras, olhando-as, quase
acariciando-as. Passava de uma para outra, examinando com ansiedade, como
se todas estivessem doentes. Por um momento, me deu a impressão de estar
perdido, sem poder sair do meio delas. Fui ao seu encontro. Quando me viu,
apressou o passo, fugiu de mim, como se eu fosse demais. Foi ele quem plantou
todas!

OLÍMPIO
Compreendo o que ele sente.

LUCÍLIA
É o que gostaria de saber: até que ponto ele é forte. Se eu pudesse encontrar
um meio de ajudá-lo. Essa calma, esse silêncio do papai me apavoram. Eu
sofreria tudo por ele.

OLÍMPIO
Certos fatos são irremediáveis!

LUCÍLIA
Papai finge uma segurança... O que você quis dizer com isso?

OLÍMPIO
Nada. Nada. Não quer minha ajuda?

LUCÍLIA
O que você pode fazer?

OLÍMPIO
Lucília! Há solução para tudo.

LUCÍLIA
Aponte-me uma.

OLÍMPIO
Nosso casamento!

LUCÍLIA
E minha família?

OLÍMPIO
Constituiremos a nossa.

LUCÍLIA
E deixo a minha no momento mais difícil?!

OLÍMPIO
Sua família pode ir morar conosco!

LUCÍLIA
Ir morar conosco? Por que?

OLÍMPIO
O Arlindo... Não conseguiu se alvar também. A fazenda de seu pai vai à praça
hoje.

LUCÍLIA
Não!

OLÍMPIO
Lucília!

LUCÍLIA
Papai!

OLÍMPIO
Não queria que soubesse por intermédio de outra pessoa.
LUCÍLIA
Não me encoste a mão.

OLÍMPIO
Lucília, tenha calma!

LUCÍLIA
Calma? Quando tudo se volta contra nós, quando perdemos o que é nosso, é
só o que você tem pra me dizer?

OLÍMPIO
O momento é difícil para todos.

LUCÍLIA
O que interessa é meu pai.

OLÍMPIO
Interessa também o que tínhamos combinado! A inimizade de nossos pais
nada representava para nós. Não se lembra?

LUCÍLIA
A situação agora é outra.

(Trecho de “A Moratória”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 7

JOAQUIM
Pegue um pano e limpe isto já. Não quero que sua mãe veja essa sujeira.

MARCELO
Não vamos discutir agora, papai.

JOAQUIM
É agora! Agora!

MARCELO
Minha cabeça...

JOAQUIM
Está cheia de álcool. Nunca teve dentro outra coisa.

MARCELO
Não quero discutir, já disse.

JOAQUIM
Sente-se! Estou falando com você. Quero saber por que saiu do frigorífico?

MARCELO
Aquilo não é emprego de gente. O senhor sabe disto.

JOAQUIM
Não sei de nada.

MARCELO
Eu tentei ficar lá, papai, eu tentei, mas não consegui.

JOAQUIM
Você não honra o nome que tem.

MARCELO
E o que é que vale este nome?

JOAQUIM
Muita coisa. Ainda somos o que fomos.

MARCELO
Não somos nada, esta é que é a verdade.
JOAQUIM
Não me confunda com você.

MARCELO
Até quando o senhor vai mentir a si mesmo? Não percebe, não vê que não
contamos mais para nada? Ninguém mais tem consideração por nós.

JOAQUIM
Por você não podiam ter mesmo.

MARCELO
Nem pelo senhor, papai.

JOAQUIM
Ninguém nunca me faltou o respeito.

MARCELO
Papai! Há dias fui à Casa Confiança comprar um par de sapatos. Pedi para
pagar no fim do mês, e o dono me perguntou: "Quem é o senhor?" "Sou filho
de 'Seu" Quim", respondi. Sabe o que ele me perguntou ainda? "E quem é o
'Seu' Quim?"

JOAQUIM
Ele se atreveu?

MARCELO
Vivemos num mundo diferente, onde o nome não conta mais..., e nós só
temos nome.

JOAQUIM
Se você trabalhasse, não precisaria ouvir isto!

MARCELO
Não podia continuar no frigorífico. Não podia. Às vezes, sentia que ia
enlouquecer. Por que havia de continuar? Por quê? Não se vive para isto.

JOAQUIM
Para quê, então? Para ser um inútil?
MARCELO
O senhor finge não compreender o que digo. Não me adapto a esta ordem de
coisas.

JOAQUIM
Servia para ajudar sua irmã até voltarmos para a fazenda. Mas, é melhor ficar
na cama do que enfrentar a vida.

MARCELO
O senhor me ensinou?

JOAQUIM
Mostrei o caminho. Fiz minha obrigação.

MARCELO
O caminho! É exatamente o que estou querendo provar: que o senhor
mostrou o caminho errado. O caminho que para nós, principalmente para nós,
não tem mais sentido. O senhor não me educou para ser operário.

JOAQUIM
Então, por que não estudou? Não foi por falta de falar.

MARCELO
A situação seria a mesma. Não se trata disto. O que importa é aceitar ou não
o presente; esquecer, saber esquecer. Papai! O senhor não compreende que
depois de se ter vivido solto, no meio do campo; depois de se ter conhecido
uma outra segurança, não é possível ficar preso o dia inteiro dentro de um salão
com o chão sujo de sangue e receber ordens de gente que..., que... Não
aguentava aquilo. Estava farto. Era lá que a saudade, a consciência do que
fomos, mais me oprimia.

JOAQUIM
Eu afirmo a você: ainda somos o que fomos!

MARCELO
Papai! Por que é que ninguém vem à nossa casa? Lembra-se como vivia cheia
de gente? Como era alegre? Por quê? Porque não passamos de uns quebrados
sem importância.

JOAQUIM
Não sou um quebrado! A moratória vai devolver tudo que era meu. Tudo!

MARCELO
O senhor ainda acredita nisto?

JOAQUIM
Acredito! Sempre acreditei. O Olímpio chegou ontem. A fazenda vai ser
devolvida. O processo de praceamento está nulo por lei. O seu mal é que não
soube ter esperança!

MARCELO
O senhor teve por todos.

JOAQUIM
Teve não: tenho. Não sou um desfibrado como você. Sei defender os meus
direitos. A lei manda que os editais de praça sejam publicados pela imprensa
local, e não foram. O processo está, portanto, nulo. Estou cansado de afirmar
isto.

MARCELO
Desejo apenas que o senhor continue com esta esperança, aconteça o que
acontecer.

JOAQUIM
Não tenha dúvida. E pode estar certo de uma coisa: na minha fazenda você
não põe os pés.

MARCELO
Sei disto!

JOAQUIM
Posso me gabar de nunca ter descido um degrau, um degrau sequer, da
minha posição. Nunca perdi a dignidade. Não sujei o meu nome com atitude
nenhuma. Eu sei esperar.
MARCELO
De minha parte o senhor não precisa ter mais receios. Vou embora daqui.

JOAQUIM
Você não soube arcar com a responsabilidade. Em vez de ajudar, só nos tem
dado desgostos e mais desgostos.

MARCELO
Não pretendo mais acusar o senhor.

JOAQUIM
Acusar? Uma pessoa como você não pode acusar ninguém, de nada. E a mim
muito menos.

MARCELO
Não? E a nossa situação?

JOAQUIM
Não tive culpa.

MARCELO
Teve. Teve muita culpa. Os maus negócios foram feitos pelo senhor e por
ninguém mais.

JOAQUIM
Você se atreve?

MARCELO
Atrevo porque é verdade. Foi o senhor quem vendeu o café a prazo e
contraiu dívidas e mais dívidas.

JOAQUIM
Marcelo!

MARCELO
Reconheço: sou um fraco. Não assumi a responsabilidade. E o senhor? O
senhor que só pensa na sua fazenda, no seu processo, nos seus direitos, no seu
nome. Enquanto pensa em si mesmo, na sua honra, não pode sentir o que sinto.
O senhor não sai à rua para saber o que os outros pensam de nós. O senhor
finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que o nosso mundo
está irremediavelmente destruído. Se voltássemos para a fazenda...

JOAQUIM
Vamos voltar!

MARCELO
... tornaríamos a perdê-la. As regras para viver são outras, regras que não
compreendemos nem aceitamos. O mundo, as pessoas, tudo! Tudo agora é
diferente! Tudo mudou. Só nós é que não. Estamos apenas morrendo
lentamente. Mais um pouco e ficaremos como aquele galho de jabuticabeira:
secos! Secos!

(Trecho de “A Moratória”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 8

RITA
Ada! Hoje a mesa fica por sua conta. Ada! Venha estender a mesa.

ADA
Estou ocupada.

RITA
Esperar alguma coisa de vocês é perder tempo.

ADA
A senhora só pede pra mim.

RITA
Vocês podiam ajudar um pouco.
ADA
Onde estão Leila e Geni? A casa não é só minha. Aliás, é minha somente na
hora do batente.

RITA
A casa é de todos, e todos devem ajudar.

ADA
Sei! A baronesa chegou da capital com as mãos finas demais para o serviço,
não é?

RITA
Leila e Luís estão de férias.

ADA
Férias!... É sempre assim, tocou na Leila a senhora se ofende. Eu trabalhar
nessa casa para eles aproveitarem? Nunca! Desaforo!

RITA
Você não quer ter obrigação, só fica mofando dentro do quarto, lendo livros
sem utilidade nenhuma. Depois, quando seu pai se zanga, querem achar ruim.

ADA
E o “belo adormecido”? Já levantou? Ou vai dormir cem anos?

RITA
Geni! Geni! Venha me ajudar. Chega de conversa.

ADA
A Geni é boba! Acredita em tudo o que a Leila conta. Pura mentira! Querem
bancar os grã-finos! São tão casca-grossa como nós. “Que ar saudável! Tão
repousante! É tudo tão vasto, tão verde! Verduras, verduras!” Essa é boa. Quem
gosta de capim é boi.

RITA
Ada! Já é tempo de pensar em coisas sérias. Parar com essas brigas, minha
filha!
ADA
Fique a senhora sabendo que estou com os olhos bem abertos. Não sou
boba, não. Sei muito bem o que vieram fazer. Estão certos que irão ficar com a
melhor parte da fazenda. Pois vamos ver!

RITA
É você que só pensa nisso.

ADA
Estou aqui para defender o que é meu, pensando em coisas sérias. São
capazes de carregar até os paus das cercas. Não sou trouxa, não.

RITA
Não diga isso!

ADA
Digo porque é verdade. Conheço bem a Leila. Aquela máscara não me
engana. Ela que não venha com frescura para cima de mim.

RITA
Ada! Que linguagem! Onde está a educação que lhe dei, minha filha?

ADA
Vocês sempre tiveram preferências, tenho que me defender.

RITA
Para mim são todos iguais!

(Trecho de “O Telescópio”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 9
ADA
Luís! Assustando-se atoa?

LUÍS
Estava distraído.

ADA
Você também vive com o pensamento no mundo das estrelas?

LUÍS
Quem mais vive?

ADA
Meu pai.

LUÍS
Estava pensando em nosso mundo mesmo.

ADA
Gosta de ficar só? Vou-me embora.

LUÍS
Não, fique.

ADA
Às vezes parece não pertence à família.

LUÍS
Por que?

ADA
Quase não fica onde estamos, conversa pouco, sempre triste.

LUÍS
Temperamento.

ADA
Só?
LUÍS
Só. Vocês é que estão sempre alegres.

ADA
Acha nossa casa divertida?

LUÍS
Acho. Sabem o que querem.

ADA
Você não?

LUÍS
Acho que não.

ADA
Seu mal é solidão. Também acho triste casa sem crianças.

LUÍS
Já me acostumei. Onde estão os outros?

ADA
Na sala. Mamãe resolveu desenterrar as fotografias antigas para mostrar à tia
Alzira. Demos boas risadas. Se fossem minhas, iriam todas para o fogo.

LUÍS
Por que?

ADA
Para que recordar o que já passou?

LUÍS
Todo mundo gosta de reviver momentos felizes.

ADA
Eu não gosto. O que passou, passou. Vocês são diferentes, não são?
LUÍS
Vocês, quem?

ADA
Sua família. Vivem pensando em bandeirantes, barões e não sei quem mais.

LUÍS
Sua família também. Que pensa que seu pai vê no telescópio todas as noites?

ADA
Estrelas!

LUÍS
É provável.

ADA
Ficou aborrecido com o que aconteceu à mesa? A Leila não devia ter falado
naquilo.

LUÍS
Não tem importância.

ADA
Fica bem de botas. Devia usar sempre.

LUÍS
Uso quando vou à hípica.

ADA
Isso é outra coisa. Está parecendo um fazendeiro.

LUÍS
Que isto? É elogio?

ADA
Para mim é. O maior. Acha que sou sem vaidade?

LUÍS
Não.

ADA
Feia? Assim, despenteada, sem pintura?

LUÍS
Pelo contrário.

ADA
Pensei que gostasse de mulher muito pintada.

LUÍS
Interessa a você o que penso das mulheres, pintadas ou não?

ADA
Se não interessasse, não perguntaria.

LUÍS
Há mulheres pintadas que são bonitas; e outras que o são porque não se
pintam. Está satisfeita?

ADA
Mais ou menos. Acho que... Sai daí! As abelhas picam você.

LUÍS
Desde que não seja a abelha rainha.

ADA
Você só vive preocupado com nobreza, não é? De rainha ou não, picada de
abelha dói.

LUÍS
Não são as rainhas que matam os machos? Devem ser as mais venenosas. Seu
pai é mesmo uma pessoa diferente. Tem ciúmes de tudo. Não gosta que matem
os passarinhos, que peguem os peixes; gosta de olhar estrelas e proteger
abelhas e marimbondos.

ADA
Fazem parte da fazenda.

LUÍS
Somente nesse alpendre, contei seis caixas de marimbondos!

ADA
Abelha, marimbondo... dentro de casa, traz sorte, dinheiro!

LUÍS
É? Então vou levar algumas caixas comigo.

ADA
Por que? Está precisando?

LUÍS
Dinheiro nunca é demais.

(Trecho de “O Telescópio”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 10

JOAQUIM
Artuliana!

ARTULIANA
O que é?

JOAQUIM
Que está acontecendo com você?
ARTULIANA
Nada. Por que?

JOAQUIM
Você anda muito mal ouvida, muito fugida.

ARTULIANA
Estou fugida coisa nenhuma.

JOAQUIM
Gostava de ver você trabalhar no eito. Varava primeiro que qualquer homem.
Você na enxada é de valia prum homem.

ARTULIANA
Os dia anda quente. É só isso.

JOAQUIM
De primeiro, fazia tudo o que a igreja mandava, depois garrou não ouvir mais
nada.

ARTULIANA
Sou a mesma.

JOAQUIM
Passa o dia quentando o sol, andando pelo mato. Vive na casa dos vizinho...
sem fazer nada.

ARTULIANA
Não é pecado trabalhar na semana das penitência? Então!

JOAQUIM
Não trabalho pra Deus.

ARTULIANA
Você que vive assuntando a gente.

JOAQUIM
Tenho que cuidar das alma.
ARTULIANA
Cada um cuida da sua.

JOAQUIM
Artuliana! Perdão em Deus! Perdão em Deus, Artuliana!

ARTULIANA
Lá vem você com isso outra vez, Joaquim?

JOAQUIM
A gente não sabe se tem alguma maldade escondida.

ARTULIANA
Se você tem, não é da minha conta.

JOAQUIM
Pecado é da conta de todo mundo. Suja tudo... todos!

ARTULIANA
Eu não tenho. Não tenho maldade nenhuma escondida. Está ouvindo?
Nenhuma.

JOAQUIM
Gente como eu, não pode estar com cobiça de mulher, Artuliana.

ARTULIANA
Por que não? Tu não é homem?

JOAQUIM
Não posso casar, nem ter andança em debocheira.

ARTULIANA
Quem disse?

JOAQUIM
Está no livro.
ARTULIANA
Deus nunca falou isso. Não pode é ter mais de uma mulher de uma vez.

JOAQUIM
Sou pastor das almas. É o que minha mãe não entende.

ARTULIANA
Tem pastor que casa.

JOAQUIM
Então não é pastor de Deus.

ARTULIANA
Padre é que não casa.

JOAQUIM
Cristo não casou.

ARTULIANA
Isso é o Cristo. Não é homem do mundo. Pra que pedir perdão, você não me
fez mal.

JOAQUIM
Querer o que não pode também é pecado.

ARTULIANA
Você não quer é sustentar família, né Joaquim? Sem família, homem não é
nada.

JOAQUIM
Amanhã Jesus vai indicar uma mulher pra mim. Quero que seja você,
Artuliana.

ARTULIANA
Ainda não tem mulher nem filho, não toca roça grande e quer mandar?

JOAQUIM
O Cristo não tinha e mandava.
ARTULIANA
Isso é o Cristo do livro.

JOAQUIM
Sou o chefe Dele no mundo dele.

ARTULIANA
Quem é o chefe aqui é o Manoel.

JOAQUIM
Não fala isso.

ARTULIANA
Casou três vez, tem filho morando em tudo o que é fazenda.

JOAQUIM
Não tem leitura como eu. Um chefe precisa saber o que vem nos papel.

ARTULIANA
Saber pra que? A gente não come papel. Não é papel que garra no cabo da
enxada! Manoel sempre foi o nosso chefe e nunca fez maldade.

JOAQUIM
Só sabe emprenhar.

ARTULIANA
Pra isso é homem! Mulher que deita com ele é mulher mãe de filho! Tem
cinquenta anos e... aposto que casa ainda.

JOAQUIM
É um velho de parte com o demônio.

ARTULIANA
Quem dá a vida pra filho é que é pastor de Deus, sabe do sofrimento do
mundo.

JOAQUIM
Mulher e homem pode casar sem carecer de filho.

ARTULIANA
Então pra que casar?

JOAQUIM
Filho pode ser trazido pelo Espírito Santo!

ARTULIANA
Deixa de ser besta, Joaquim! Isso é coisa de santa!

(Trecho de “Vereda da Salvação”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 11

PENTEADO
Conheço todas a delegacias, mas não me lembro do senhor.

HÉLIO
Vim do interior.

PENTEADO
Posso saber de onde?

HÉLIO
Jaborandi.

PENTEADO
Há quanto tempo está no contrabando?

HÉLIO
Quatro meses, quinze dias e algumas horas. Se acabou o interrogatório,
vamos ao que interessa.

PENTEADO
O senhor me parece arbitrário.

HÉLIO
O que sou não interessa. Que deseja?

PENTEADO
De certo é por isso que comete erros tão elementares. Ainda está em tempo
de se corrigir, se deseja fazer carreira.

HÉLIO
Se veio aqui para isso, pode se retirar. O conselho está dado.

PENTEADO
Ele é um pouco mais longo.

HÉLIO
Para mim, basta.

PENTEADO
Vai ser processado por três coisas: exercício arbitrário do poder, violação de
domicílio e descuido no cumprimento do dever: não lavrou o auto de
resistência.

HÉLIO
E quem vai me processar?

PENTEADO
Eu.

HÉLIO
Representando os contrabandistas?

PENTEADO
Dona Noêmia, apenas.
HÉLIO
Se pensa que com ameaças vai tirá-la daqui, está muito enganado.

PENTEADO
Estou interessado em processar o senhor e tirá-lo do seu cargo.

HÉLIO
É o que interessa?

PENTEADO
É. E para isso basta que a mantenha presa. Se começar a prender pessoas
inocentes só porque recebe telefonemas, onde vamos parar?

HÉLIO
Como sabe que foi um telefonema que a denunciou?

PENTEADO
Sei de outras coisas também... que ameaçam seriamente sua carreira.

HÉLIO
E pode-se saber quais são?

PENTEADO
Não creio que seja necessário revelar, desde que concorde com minha
proposta.

HÉLIO
E qual é?

PENTEADO
Peça remoção por motivo de saúde, assim será mais discreto, e receberá um
cheque de vinte mil cruzeiros. Pode dizer também que não se adaptou à cidade
grande.

HÉLIO
Se não estivesse seguro de que essa mulher pertence à organização, agora
você teria me dado a certeza. E você também pertence... por isso que está
preso.

PENTEADO
Minha filha? Também vai para a cadeia? Sabendo que a mãe faz contrabando,
trabalhar no Palácio da Justiça e ainda por cima namorar o delegado
encarregado de repressão ao contrabando...

HÉLIO
Que está dizendo?

PENTEADO
Lá está ela! Camila, filha de dona Noêmia e sua namorada. Você pensou que?
A capital era cidadezinha de onde veio? Que isso daqui é uma selva onde se
pode assassinar colonos em defesa?

HÉLIO
Que mataram crianças.

PENTEADO
Crianças endemoniadas, não é? Superstição, messianismo. A sociologia explica
muito bem, não sabia? Mantenho a proposta dos vinte mil cruzeiros, nem
precisa sair de seu carro. Basta soltar dona Noêmia e aceitar certas sugestões de
vem em quando. A vida não é tão simples quanto pensa, meu rapaz. Nem você
está à altura para modificá-la.

HÉLIO
Ela sabe de tudo isso?

PENTEADO
Camila? Não sei. Nem importa.

HÉLIO
Estou perguntando se ela esta envolvida também?

PENTEADO
É a mãe dela, não é? Depois, que importância tem? Você não tem saída. Dona
Noêmia não pertence a nenhuma organização, embora faça contrabando,
inofensivo, mas faz. Aconselho a soltá-la, mediante certas condições, é claro,
porque se não será acusado de prevaricador. Ou prefere prender a mãe da
namorada, por deslize tão inocente? Antes que me esqueça: temos fotografias
suas com Camila. São fotografias inocentes, mas bastante significativas. Aqui
está meu telefone. Aguardo sua chamada.

HÉLIO
Já disse que está preso: tentativa de suborno.

PENTEADO
Como que provas?

HÉLIO
Quando for preciso, apresento as provas. Guarda! Prenda esse homem!
Vamos. O que está esperando?

GUARDA
É que...

HÉLIO
Prenda, estou mandando!

PENTEADO
Você vai pagar caro por isso.

HÉLIO
Veremos.

(Trecho de “Senhora na Boca do Lixo”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 12

MARIA CLARA
Helena, Helena!

HELENA
Bom dia, Maria Clara.

MARIA CLARA
Bom dia. Onde está papai?

HELENA
Ainda no quarto.

MARIA CLARA
Ele saiu de casa muitas vezes?

HELENA
Deve ter saído. Papai foge!

MARIA CLARA
Tome.

HELENA
Que isso?

MARIA CLARA
Despesas de papai na banca de frutas. A responsável é você.

HELENA
Por que?

MARIA CLARA
Porque são despesas desse mês. E por favor... vá pagar hoje, sem falta. O
dono da banca veio me cobrar. Disse que papai passava por lá todos os dias
queixando-se de passar fome. O que quer dizer: não parou em casa.

HELENA
Que quer que eu faça?

MARIA CLARA
Devia ter impedido.

HELENA
Impedi o quanto pude. Não posso ficar um mês trancada dentro desse
apartamento, só porque papai não pode sair à rua.

MARIA CLARA
Não foi o que combinamos?

HELENA
E que importância tem ir conversar na banca de frutas? Também não vamos
fazer de papai um prisioneiro.

MARIA CLARA
Pois bem! O que quero saber, mesmo, é se estão dispostos ou não a tomar
conta de papai.

HELENA
Cada um tem feito o que pode.

MARIA CLARA
Pois você tem feito muito pouco.

HELENA
Não sei por quê!

MARIA CLARA
Porque vive melhor do que os outros, está em melhor situação, não tem filhos
para se preocupar, vive nos cinemas e ainda acha que faz muito pelo papai?

HELENA
Não tenho filhos, mas tenho um marido...

MARIA CLARA
Que não lhe dá nenhum trabalho, já que não para em casa.

HELENA
Maria Clara!

MARIA CLARA
É isso mesmo! Um marido que só vive pensando em internar papai, que
reclama até do jornal que papai lê. Isso é fazer o que pode?

HELENA
Todos pensam em internar papai.

MARIA CLARA
Olhe papai, em vez de ficar abraçada a esse cachorro. Você tem mais
obrigação do que os outros, já que tem uma vida quase inútil.

HELENA
Inútil, mas é minha. Cada um sabe de si. Não tenho filhos, mas sei o que isso
me custou. Só possuo esse marido que me deixa só o dia inteiro, que reclama
de tudo! Mas, o que é que você quer? Que eu o abandone para viver com o
papai? E depois? O que será da minha vida? Pensa que é muito bom viver
sozinha neste apartamento? Preferia que eles vivessem aqui. Mas Sérgio não
suporta as conversas de papai... e papai é tão imprudente. Não dá uma folga.
Cada vez que vem pra cá... minha vida se torna um inferno!

MARIA CLARA
Desculpe, Helena! Eu...

HELENA
Só vivo cuidando de camisas, correndo atrás de um marido que... arrastando-
me de cinema para cinema, de bar para bar... como se fosse uma qualquer.
Pensa que desejo isso? Eu prefiro ir ao cinema do que ouvir discussões
intermináveis. Sérgio diz “a”, papai diz “b”. Discutem por qualquer coisa. Papai
está cansado de saber que Sérgio é pernambucano... Pois não faz outra coisa
que falar mal de nortista. Guararapes!

MARIA CLARA
Também, Sérgio devia compreender.

HELENA
Compreende, mas cansa. Nos desculpamos, os outros, não. Você quer que eu
deixe papai fazer da minha vida, o que permitiu que papai fizesse da vida de
Lourdes?

MARIA CLARA
Helena!

HELENA
E não é verdade?

MARIA CLARA
Eu não permiti...

HELENA
Maria Clara!

(Trecho de “A Escada”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 13

LOURDES
Zilda! Ou você lê, ou não lê. Ou senta, ou sai daqui. Assim, me atrapalha.

ZILDA
Os incomodados que se retirem.

LOURDES
Estou trabalhando.

ZILDA
Domingo não é dia de trabalho.

LOURDES
Pra mim, é.

ZILDA
Sai um pouco, vai ver gente.

LOURDES
Ver gente pra que? Basta você, que vejo todos os dias.

ZILDA
Por isso mesmo. Ficaria louca se tivesse que ver só você.

LOURDES
Quem disse que não fico também?

ZILDA
Sabe, você está precisando mesmo, é de homem.

LOURDES
Vou mandar a família escolher um pra mim.

ZILDA
Escolha você mesmo. Faça tricô pra filho seu, não importa de quem: italiano,
japonês ou mulato!

LOURDES
Zilda!

ZILDA
Não vá me enganar que não gosta de homem.

LOURDES
O que é que você acha?

ZILDA
Se gosta, não dá a menor demonstração.

LOURDES
E você?
ZILDA
Gosto de Deus, sobretudo, e em primeiro lugar, porque o Omar existe!
Quando ele me beija ou acaricia... é que compreendo porquê existe tanta gente
no mundo... e me dá vontade de pôr mais gente ainda.

LOURDES
Você me cansa.

ZILDA
Você não tem é coragem.

LOURDES
É preciso?

ZILDA
Tenho pena de você. Lá fora a vida continua, tudo evolui, o homem chega à
lua e você aqui, sentada, com certeza pensando em alguém que seja digno de
você. Qualquer casamento é bom, nem que seja pra desmanchar depois.

LOURDES
Você não sabe de nada.

ZILDA
Sei, sim. Só porque permitiu que tio Francisco desmanchasse seu casamento,
fica escondida aqui na sala como um cacto, jogando espinho pra todo lado.

LOURDES
E você? Adiantou não permitir?

ZILDA
Quem disse que permiti?

LOURDES
Há muitos dias que Omar desapareceu.

ZILDA
Ele vai voltar, não tenha dúvida. Não aceito como você.
LOURDES
Não se trata de aceitar.

ZILDA
Quer saber de uma coisa? Se Omar não voltar, saio à rua e me entrego ao
primeiro que passar.

LOURDES
É exatamente o que não quis fazer, entregar-me ao primeiro.

ZILDA
Só vivem pensando em pureza de sangue, tradição! São as verdadeiras
personagens da história de tio Vicente.

LOURDES
Que história?

ZILDA
Que pretende escrever sobre as confrarias.

LOURDES
Que confrarias?

ZILDA
Onde é que você vive? No mundo da lua? Tio Vicente não falou de outra coisa
durante meses.

LOURDES
Ele quer escrever sobre tanta coisa! Até sobre Marta, essa vizinha fuxiqueira
que não dá uma folga. Mas até agora...

ZILDA
É a história daquela mulher que carregou o filho morto de igreja à igreja e
nenhuma quis aceitar no cemitério.

LOURDES
Só mesmo tio Vicente pensa numa história dessas.
ZILDA
Pensa não... vive. O que restou da confraria mais intolerante, mora nesse
prédio... ainda expulsando gente por infâmia de mulato, ou de italiano.
“Italianinho de brinco na orelha”, lembra-se? Se Omar não voltar, deito com o
primeiro que encontrar, e quero jogar na cara da família toda. É preferível fazer
isto, do que ficar aqui... como uma virgem intocável. Joana d’Arc, defensora da
tradição.

LOURDES
Não sou Joana d’Arc, mas também não sou prostituta.

ZILDA
Este é seu mal. Não tem coragem de ser nada.

LOURDES
Onde aprendeu tudo isto?

ZILDA
Por aí.

(Trecho de “A Escada”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 14

IZABEL
Pode ir. Não faça cerimônia.

MARTINO
Teria muito prazer em ficar, mas... tenho obrigações.

IZABEL
Claro.

MARTINO
Em outra ocasião... se a senhorita quiser...

IZABEL
Não quero. Obrigada.

MARTINO
Sinto realmente não poder...

IZABEL
Não se preocupe comigo. Eu também estou aqui obrigada.

MARTINO
Obrigada, por que?

IZABEL
Acha que me interessa comprar túmulo?

MARTINO
Claro que não.

IZABEL
Ou coisas velhas?

MARTINO
Não são móveis que pertenceram à sua família?

IZABEL
Não pertencem mais e deviam ficar onde estão.

MARTINO
Peço que perdoe meu pai.

IZABEL
Perdoar o quê?
MARTINO
Esse anúncio ridículo.

IZABEL
No lugar dele eu teria feito o mesmo.

MARTINO
Ele não teve má intenção.

IZABEL
Não importa.

MARTINO
É que... meu pai meteu na cabeça que devia devolver tudo isso ao verdadeiro
dono e pensou que...

IZABEL
E pensou o quê?

MARTINO
Pôs outros anúncios... mas vocês não apareceram. Resolveu anunciar à capela.

IZABEL
Isso prova que ele conhece muito bem as pessoas como meu pai.

MARTINO
Não gostaria de possuir as coisas do barão?

IZABEL
Não.

MARTINO
Por que?

IZABEL
Porque já sei o que aconteceria: as velharias da família não seriam de minha
casa e durante meses esses objetos estariam em todas as conversas. Teria que
ouvir novamente explicações históricas que ouço há mais de vinte anos.
MARTINO
É assim, é?

IZABEL
Sabe quem sou eu?

MARTINO
Izabel.

IZABEL
Errou. Eu sou a neta!

MARTINO
Bem! Todos nós...

IZABEL
Você ia dizendo que todo mundo descende de alguém. Claro! Mas, eu sou
somente neta, bisneta, tataraneta. Cada vez que me apresentam é como se
lessem a nobiliarquia paulistana. Você está numa festa e... de repente, se vê
cercado por uma infinidade de gente morta. Pra isto, basta uma simples
apresentação.

MARTINO
Reaja!

IZABEL
Você não sabe o que é carregar uma caravela inteirinha nas costas!

MARTINO
A de Martim Afonso de Sousa?

IZABEL
Como é que sabe?

MARTINO
Meu pai também gosta muito de história.
IZABEL
Pra ele deve ser interessante. Mas, pra mim que ouço as mesmas coisas o ano
inteiro! E haverá coisa mais ridícula do que sair de casa para... para comprar
mortos?

MARTINO
Há gente que os compra sem sair de casa.

IZABEL
Como assim?

MARTINO
Sabe que tipo de negócio meu pai está tentando fazer?

IZABEL
Vender o jazigo.

MARTINO
Engana-se.

IZABEL
Não foi ele quem pôs à venda?

MARTINO
Mas, não quero vender.

IZABEL
Nem os móveis?

MARTINO
Nem os móveis.

IZABEL
Então, o que é que ele quer?

MARTINO
Trazer vocês aqui!
IZABEL
Nós?

MARTINO
É. Ou melhor... especialmente você.

IZABEL
Eu?

MARTINO
Papai não quer vender nada. Sei que o maior sonho dele é morrer e ser
enterrado junto com o barão. “Trabalhamos na mesma terra”, explica ele. Para
isso, precisa comprar os mortos daquela capela. Comprar de uma maneira um
pouco diferente.

IZABEL
Comprar... como?

MARTINO
Jogando nas minhas costas a sua caravela!

IZABEL
A minha caravela?

MARTINO
O que ele quer, mesmo, é arrumar o nosso casamento.

IZABEL
Mas... isso é ótimo!

MARTINO
Por que acha tanta graça?

IZABEL
Porque é engraçado! Seu pai não deixa de ter imaginação.

MARTINO
Igual nunca vi.
IZABEL
Há muitas quatrocentonas por aí. Por que especialmente eu?

MARTINO
Porque já tem tudo do barão. Só falta a sede da fazenda, a nora e os netos.
Como vê... o que papai quer mesmo é se colocar naquela capela.

IZABEL
É só não vender. É dele mesmo.

MARTINO
Meu pai não dá ponto sem nó. Quer reforçar o direito de propriedade que já
tem.

IZABEL
O reforço sou eu?

MARTINO
Para isso há outro melhor?

IZABEL
Como se eu estivesse à disposição. Deixa meu pai ouvir isso!

MARTINO
Que aconteceria?

IZABEL
Está aí uma coisa que gostaria muito de ver.

MARTINO
Acha que é assim... tão impossível?

IZABEL
Não sei. Mas, meu pai...

MARTINO
Ele é desses, é?
IZABEL
Desses quem?

MARTINO
Que pensam que são melhores do que os outros só por que tem nome?

IZABEL
É. Esse é o erro que seu pai também comete.

MARTINO
Meu pai não vive de tradição.

IZABEL
Mas pensa que pode tudo só porque tem “dinheiro”.

MARTINO
Dinheiro ganho com muito trabalho.

IZABEL
O nosso nome também. Nem eu estou à venda.

MARTINO
Se me der licença...

IZABEL
Você ficou porque quis.

MARTINO
Passe bem. Prazer em conhecê-la.

IZABEL
Igualmente.

(Trecho de “Os Ossos do Barão”, de Jorge Andrade)


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TEXTO 15

BIANCA
Que cosa sucede, signorina?

IZABEL
Nada.

BIANCA
Está chorando? Má, perche? Olha pra mim! Olha!

IZABEL
Não estou chorando.

BIANCA
Sente alguma dor?

IZABEL
Não.

BIANCA
Está cansada? Tem fome?

IZABEL
Gostaria de ficar só.

BIANCA
Foi o Martino?

IZABEL
Claro que não.

BIANCA
Não foi delicado com você?

IZABEL
Por que não haveria de ser?

BIANCA
Una ragazza tão bela não pode chorar. Vem! Uma xícara de café acaba com
tudo isto.

IZABEL
Não, obrigada.

BIANCA
Quando a gente é moça, lágrima cai fácil! Lo só molto bene. Qualquer cosa
parece o fim do mundo. Também chorei muito. Sabe perche? Perniente! Se não
é dor, nem fome... é niente.

IZABEL
Desculpe-me.

BIANCA
Sabe? Eu levantava às quatro da manhã pra fazer o almoço do Egisto. Martino
era piccolo cosi! Meu marido precisava ele mesmo levar o almoço. Má, quando
o serviço apertava, eu entregava meu filho na vizinha e ia com ele. Isto dava
vontade de chorar, signorina. Trabalhava como una burra per não pensare.
Quando levantava os olhos da enxada e via o Egisto molhado de suor...
lavorava. Lavorava mais ainda! Quando não aguentava mais, me escondia no
café e chorava! Poi, quando tornava a casa... tutto ia bene. Lágrima jogada fora!

IZABEL
A senhora sempre trabalhou?

BIANCA
Eh! Grazie a Dio. Sem lavorar como é que a gente pode viver? É o que um
uomo precisa: una companheira. E fui durante mais de trint’anni! Se podia
diminuir o serviço... molto bene. Se não podia... molto bene. E você, figlia? Não
lavora?

IZABEL
Assim, não!
BIANCA
Má... questo é o problema! Trabalhar é um santo remédio pra tudo! Lavora,
figlia, que a vida fica buona. Corpo descansado demais procura serviço na
cabeça. E isto não é bom. Quer voltar aqui outro dia? No! Não diga que no!

IZABEL
Posso vir.

BIANCA
Desta vez não valeu. Quer me ajudar? Mandei a empregada embora. Aquela lá
não sabia niente, ainda queria que eu ficasse à toa! Vem me ajudar.

IZABEL
Na cozinha?

BIANCA
Si. Na cozinha.

IZABEL
Eu vou atrapalhar. Não sei nada.

BIANCA
Não importa. Enquanto isto, eles namoram a capelinha. É melhor ver um arroz
crescer na panela que perder tempo com móveis. Na hora que os homens desta
casa sentarem na mesa... eheee!... não posso servir questa poltrona!

IZABEL
A senhora não se importa que sejam vendidos?

BIANCA
Se meu marido vender, põe outros no lugar.

IZABEL
A senhora não gosta deles?

BIANCA
No dico que no! São bons, bem feitos... má nada prático. A signorina consegue
sentar naquele meia hora? Duro, no? Naquele lá não cabe meia dúzia de pratos.
A gente deixa ir por causa do baron. Só por isso. Pra uma dona de casa é un
inferno! Precisa quatro uomo pra tirar do lugar. Capisce? Vem! Que o fogo não
espera pra queimar tudo.

(Trecho de “Os Ossos do Barão”, de Jorge Andrade)

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TEXTO 16

MARIANA
Doutor França! Doutor França!

FRANÇA
Está sentindo alguma coisa, dona Mariana?

MARIANA
Claro que não. Não é necessário um exame rigoroso, doutor. Ainda se fosse
em Isolina. Etelvina é forte como um boi de carro.

FRANÇA
O que tem Isolina?

MARIANA
Anda com tanta suspiração. Isolina não sabe se queixar de nada. Nunca sei o
que sente. O senhor é médico, quem sabe pode descobrir. Depois, é uma filha
exemplar. De prendas raras. Já disse a ela que deverá prestar contas a Deus.

FRANÇA
Por que, dona Mariana?

MARIANA
Quem nasce com as qualidades dela, precisa fazer muito na vida. Não é atoa
que Deus dá tantos dotes. Isolina ainda não chegou?
FRANÇA
Não.

MARIANA
Ande depressa, doutor. Quem está doente sou eu.

FRANÇA
Estará mesmo, dona Mariana? A senhora tem razão, Etelvina é forte como
uma colona.

MARIANA
É a única que me puxou.

FRANÇA
Agora nós, dona Mariana. Não há mais pretextos.

MARIANA
Basta um purgante, doutor.

FRANÇA
Por que?

MARIANA
Isto é fígado. A família toda sofre do fígado.

FRANÇA
Como sabe, dona Mariana?

MARIANA
Não posso comer ovo, só chupo lima. Gesuína não toma leite, Isolina não
suporta laranja e João José não pode nem ver abacate. Fica tudo desarranjado.
Então, não é fígado?

FRANÇA
Parece.

MARIANA
Que idade tem, doutor?

FRANÇA
Quarenta e seis.

MARIANA
Está na hora de se casar.

FRANÇA
Já passou, dona Mariana.

MARIANA
Meu marido também, quando se casou, já era madurão assim como o senhor.
Já tinha farreado o bastante, queria sossegar. São os melhores casamentos.
Casa e sossega. Não está vendo a burrada que João José vai fazer hoje?

FRANÇA
É na idade dele que a gente deve se casar.

MARIANA
Meu filho precisava de uma colona, uma italiana daquelas, que o prendesse
na fazenda, que fizesse ele trabalhar ou trabalhasse por ele. Como eu fiz. O sol
nunca me pegou na cama, doutor! Moça educada em colégio de freira, que lê
livro em francês! O que pode sair daí? Pra mim, esse casamento é o começo do
fim.

FRANÇA
Pode ser que aconteça o contrário, dona Mariana.

MARIANA
Qual! É o ovo e o espeto. Comprei essa casa só por causa de minhas filhas.
Queria arranjar casamento pra elas. Garanto ao senhor que qualquer uma das
minhas filhas vai acompanhar o marido. Seja lá pra onde o desgraçado for.
Sabem as obrigações de uma mulher. Gostam pouco desse negócio de moda.
Mas, com a idade, isso passa.

FRANÇA
São moças.
MARIANA
Mas, feias. Me puxaram. E homem é bicho muito à toa. Gostam de cara
bonita... ou pernas. Casa... e põe logo outra por conta! O senhor é diferente: é
médico. Minhas filhas precisam de um bom reprodutor. Um, assim como o
senhor.

FRANÇA
Obrigado, dona Mariana.

MARIANA
Conheço o senhor. Pensa que não sei que gasta por aí as gemadas que toma
em casa?

FRANÇA
Se estou no tempo das gemadas, não estou mais em idade de me casar, dona
Mariana.

MARIANA
Repõe, quem gasta muito!

FRANÇA
Suas filhas são simpáticas, dona Mariana.

MARIANA
Por que, então, não se casa com ela?

FRANÇA
Porque não me caso com quem, dona Mariana?

MARIANA
Isolina! Ela gosta muito do senhor. Garanto que é uma moça sadia. Não tem
doença nenhuma.

FRANÇA
Dona Mariana!

MARIANA
É uma ótima menina. Bom! Não é tão menina assim!... Mas será uma boa
companheira.
FRANÇA
Não duvido. Mas, não pretendo me casar mais.

MARIANA
Não diga isso, doutor. Homem solteiro é traste.

FRANÇA
É verdade. Não gosto de Isolina para casar.

MARIANA
E Gesuína ou Etelvina?

FRANÇA
Ora, dona Mariana!

MARIANA
Com qualquer uma o senhor será feliz. Algum caso deixado na Bahia?

FRANÇA
Não, senhora.

MARIANA
Então, não há problema. Em um casamento, gostar é o de menos. Quando tia
Marta, mãe de Bernardinho, me pediu em casamento, eu estava dentro de um
rego d’água, dando banho em minha boneca. Não me perguntaram se queria
ou não. Com quinze anos, me vi em uma cama com um homem barbudo ao
meu lado. Sabe o que fiz? Brinquei com a barba dele... e fiquei sabendo o que
era um marido!

FRANÇA
A senhora sempre diz que foi feliz.

MARIANA
Se felicidade é segurança, e é, fui muito, até que descobri a flauta.
(Trecho de “Rasto Atrás”, de Jorge Andrade)

TEXTO 17

MARIANA
Que significa esse pano na cabeça, Isolina?

ISOLINA
É para não desmanchar o penteado.

GESUÍNA
Não estamos chiques?

MARIANA
Os vestidos são indecentes.

GESUÍNA
É a moda, mamãe.

MARIANA
Moda de artista de revista. Gente atoa! Que significa esse coração pintado na
cara, Gesuína?

GESUÍNA
Usa, mamãe!

MARIANA
Vai lavar a cara! Não é tudo que se vê em revista que moça de família usa!

GESUÍNA
Fique a senhora sabendo, que alguém disse que eu estava linda!

MARIANA
Mentiu! Sei muito bem o que espera vocês.

ETELVINA
Mamãe!
GESUÍNA
O que? O que é que nos espera?

MARIANA
Você é muito feia, minha filha.

ETELVINA
Não diga isso, mamãe!

MARIANA
Pode ir, Etelvina! Preciso falar com Isolina e Gesuína.

ETELVINA
Prefiro ficar.

MARIANA
E eu que você saia!

ISOLINA
O que foi, mamãe?

MARIANA
Falei com o doutor França. Sei que gosta dele. É um casamento que eu
também gostaria. Mas, não é possível. Ele não quer. Não gosta de você!

ISOLINA
A senhora disse ao doutor França que eu queria me casar com ele?! A senhora
teve coragem?!

MARIANA
É verdade, não é? E vou falar também com esse Pacheco, se não se resolver
logo. Precisa me dizer o que pretende fazer, já que bonde não significa mais
nada nessa cidade!

GESUÍNA
Proíbo a senhora!

MARIANA
Proíbe?! É só ele aparecer.

GESUÍNA
Os bondes são tudo pra ele, mamãe.

MARIANA
Só para ele! Precisa pensar em outra coisa. E você, Isolina, deixe de rodear o
doutor França. Não adianta ficar pensando em um homem que não quer você.

ISOLINA
A senhora não tinha o direito!

MARIANA
O que você quer? Passar a vida gostando de um homem... que sabe lá o que
deixou na Bahia? Vai ver que até família. Mas, eu acabo descobrindo. Ele não
perde por esperar.

GESUÍNA
Isolina...!

MARIANA
Mas... o que é isto?

ISOLINA
Cortamos o cabelo.

MARIANA
Quem deu autorização?

ISOLINA
Não preciso mais da sua autorização. Para nada!

MARIANA
Vocês não são raparigas!

GESUÍNA
Mamãe! Não diga isto!
MARIANA
Minha casa não é bordel! Saiam da minha frente com essa cara de mulher
atoa!

ISOLINA
É a cara que a senhora nos deu. Ninguém nos procura, nenhum moço serve
pra nós...

MARIANA
Também, não aparece nenhum! Já me agarrei com todos os santos. Gastei
dúzias de terços...

ISOLINA
Porque somos feias como a senhora... e pobres...

MARIANA
Ah! Isso é por conta de seu pai.

ISOLINA
A senhora teve mesmo mais sorte do que nós. Papai conheceu a senhora
depois de estar casado. Tenho pena dele.

MARIANA
É a sorte que eu gostaria que vocês tivessem, minha filha. Mas, os tempos
mudaram. E vão mudar mais ainda!

ISOLINA
Não preciso da sua preocupação. Também vou fazer um coração na cara. E
bem grande!

MARIANA
Eu sempre desconfiei que vocês eram filhas daquela flauta!

(Trecho de “Rasto Atrás”, de Jorge Andrade)

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