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FINAL DE

NOVELA MEXICANA

Esquete cômico
de
Luis Alberto de Abreu
CENA ÚNICA

INTERIOR DE UM ÔNIBUS URBANO. ENTRA UM APRESENTADOR.

CHAMARIZ Venham assistir ao final da próxima novela das oito. Dire-


tamente da Televisa, do México, para o Largo 13, o ines-
quecível sucesso, Seu pecado clama aos Céus, líder de
audiência em 235 países em todo mundo! Venham ver in-
triga, traição, perfídia, manobras, pressões, queda e de-
cadência, mesquinharias muitas e crueldades várias. Não,
não se trata de programa eleitoral. É o mais estrondoso
sucesso mundial! Venham conhecer o prestimoso elenco
classe A das novelas mexicanas, a assombrosa atriz ce-
leste De la Peña, que arrastou ao suicídio cinco ex-
namorados, quinze fãs e arruinou vinte e cinco amantes.
A inesquecível Beatriz Rioja, que gravará sua última cena
de novela, abandonando depois o pecaminoso mundo ar-
tístico, retirando-se para um convento carmelita. O magní-
fico galã Ricardo Gutierrez que despedaça corações por
onde passa e responde 53 processos de paternidade,
quinze deles aqui mesmo em Santo Amaro! Venham, ve-
nham assistir às gravações das cenas finais do maior su-
cesso mundial de audiência Seu pecado clama aos
Céus.

ALBERTO AUGUSTO PASSA PELA CATRACA DO ÔNIBUS PAGA A


PASSAGEM.

COBRADOR Não tem troco.

ALBERTO Quem foi que pediu troco?

COBRADOR Mas é uma nota de cinqüenta!

ALBERTO Não tem importância! São meus últimos cinqüenta reais,


mas não tem importância! Estou muito feliz. Estou renas-
cendo! Olhem para mim vocês todos. Depois de um de-
sastre de avião, de permanecer três meses em coma e vi-
ver vinte anos com amnésia, eu recobrei a memória. Eu,
finalmente, sei quem eu sou. Sei quem eu fui há vinte a-
nos. Eu sou Alberto Augusto Esteban! Eu sou um homem
feliz!

UMA PASSAGEIRA SOLTA UM GRITO.

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SANDRA Alberto Augusto Esteban? Será você mesmo? Só pode
ser. Não existem duas pessoas chamadas Alberto Augus-
to Esteban no mundo! Sou eu, Sandra Antonia.

ALBERTO Sandra Antonia Esteban? Por Deus!

SANDRA Pela Virgem de Guadalupe!

ALBERTO Minha filha!

SANDRA Meu pai!

ABRAÇAM-SE.

ALBERTO Vinte anos!

SANDRA Eu lhe esperava ansiosamente no dia do meu aniversário


de dez anos. Você ia me reconhecer como filha legítima e
herdeira de sua fortuna!

ALBERTO Houve o desastre! E minha doce Carmem?

SANDRA Mamãe teve uma síncope e morreu de desgosto quando


soube que o seu avião caiu.

ALBERTO Ah, meu Deus! Maldita!

SANDRA Quem?

ALBERTO Pilar, minha mulher. Ela sabotou o avião.

SANDRA Víbora! Víbora! Víbora! Mas como o senhor está aqui vi-
vo?

ALBERTO Escapei milagrosamente, mas, por desgraça, a pancada


me deixou sem memória. Você não imagina o que tive de
fazer pra sobreviver esses anos todos: fui apontador de
jogo do bicho, traficante de armas, sacoleiro no Paraguai,
ambulante no Brás, bancário, micro-empresário, fiz de tu-
do... Parece que um trator passou em minha vida!

SANDRA Não me fale em trator! Até hoje parece que ainda hoje ve-
jo a imagem daquela doce velhinha meio cega e surda
sendo atropelada por um trator de esteira sem controle a
vinte por hora.

ALBERTO A vinte? Ela não conseguiu desviar?

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SANDRA A velha não corria nem a cinco. Pela janela eu vi a esteira
do trator passando sobre ela. Vovó ficou no asfalto, toda
fatiada em porções de um quilo e meio.

ALBERTO Vovó? Não!

SANDRA Sim, ela mesma!

ALBERTO Minha mãe! Oh, meu Deus! Quando foi isso?

SANDRA Da última vez que ela foi me visitar no orfanato.

ALBERTO Que orfanato, Sandra?

SANDRA Ah, você não sabe. Minha vida não foi nada fácil. O maldi-
to Júlio me mandou para lá.

ALBERTO Que é que tem o meu melhor amigo Júlio a ver com isso?

SANDRA Casou-se com Pilar!

ALBERTO Com a Pilar?

SANDRA Depois de engravidar e abandonar sua irmã.

ALBERTO Maria Selma! Como ela está?

SANDRA Comeu o pão que o diabo amassou, coitadinha. Teve de


viver da bondade alheia.

ALBERTO Mas ela era rica, tinha ações das minhas empresas.

SANDRA Sim, mas não entendia nada de contabilidade e o Montei-


ro, seu procurador, passou todos os bens dela em nome
do Júlio.

ALBERTO O Monteiro? Não posso acreditar! O Monteiro me era fiel.

SANDRA Ele não teve alternativa. Foi chantageado pela Pilar por
causa do desfalque que o Antonio, filho dele, deu na em-
presa.

ALBERTO Aquele vagabundo. Dívidas de jogo, com certeza.

SANDRA O Antonio estava jurado de morte e Pilar ameaçou revelar


tudo à Silvia, mulher de Monteiro. Ela, cardíaca e entre-
vada numa cadeira de rodas, não iria resistir. E você sabe
como Monteiro a amava.
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ALBERTO Sim. O que deve ter sofrido o meu velho amigo.

SANDRA Morreu de cirrose, de tanto beber, pedindo perdão à sua


alma já que o senhor, papai, foi dado como morto. Mas,
voltando à sua irmã, ela agora foi encontrar seu filhinho lá
no céu. Está lá, sentada à direita de Deus.

ALBERTO Morreu!

SANDRA Descansou!

ALBERTO Só desgraças! Só desgraças! Nesse tempo todo não a-


conteceu nada de bom?

SANDRA Terminei o supletivo.

ALBERTO E meu pai, meus amigos, a velha ama que me criou?

SANDRA É melhor eu contar o lote todo de uma vez! Seu pai não
reconhece mais ninguém e está internado no Juqueri. Sua
velha ama, ameaçada de ser posta no olho da rua depois
de cinqüenta anos de trabalho sem registro em sua casa,
trocou a carta que lhe tinha sido confiada, com a confis-
são completa de Monteiro, seu procurador, por um apar-
tamento num cingapura. Seus amigos, os que não se
bandearam para o lado de Pilar, morreram. Menos o Sil-
vério. Este conseguiu se dar bem às próprias custas.

ALBERTO Silvério, grande pessoa! Ele vai me emprestar algum di-


nheiro. Eu vou me reerguer e recobrar tudo o que é meu!

SANDRA Acho meio difícil. O Silvério é gerente de banco!

ALBERTO Nada disso importa. O importante é que te encontrei, mi-


nha filha. Me fale de você.

SANDRA Agora estou bem, pai. Estou indo para o trabalho.

ALBERTO E você trabalha em que?

SANDRA Eu desço no começo da Anhangüera.

ALBERTO Sim, mas você faz o que?

SANDRA (RETICENTE) Eu ... eu tenho um ponto.

ALBERTO Ponto de frutas... de doces... jogo do bicho?

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SANDRA Não... eu chego lá e espero.

ALBERTO Espera o que?

SANDRA Espero os motoristas de caminhão que queiram compa-


nhia.

ALBERTO (FURIOSO, ESBOFETEIA SANDRA) Vagabunda!

SANDRA Fui obrigada a ir para a Anhanguera, eu juro! Eu estava


muito bem na Castelo Branco mas a víbora da Pilar me
descobriu. Ela me persegue. Me expulsou da Faria Lima,
da Major Sertório, da Marginal. Ela quer me ver puta de
beira de estrada do interior! Ela é má, má, má!

ALBERTO Quero saber como você foi cair nessa vida.

SANDRA Foi o Carlos, seu enteado, filho da Pilar que me seduziu e


abandonou. Não me olhe assim, pai. O que passou, pas-
sou. Me dá um abraço. (ABRAÇAM-SE COM ALGUMA
RETICÊNCIA. APÓS INSTANTES SANDRA AFASTA-
SE, DO PAI ESTRANHANDO) Pai, o senhor é macio co-
mo se fosse uma... Reparando melhor, os seus traços...
(TOCA OS PEITOS DE ALBERTO) Pai, o que é isso???

ALBERTO (DEPOIS DE UM MOMENTO DE INDECISÃO, ABRE O


PALETÓ) Implantei silicone. Sou transexual.

SANDRA Transexual?

ALBERTO Nesses vinte anos vagando pelo mundo sem memória e


sem saber quem eu era sem identidade civil, moral e se-
xual, me apaixonei perdidamente.

SANDRA E o que seus peitos de silicone tem a ver?

ALBERTO A paixão se chamava Rafael, um lindo rapaz da alta que


não tinha coragem de me assumir. Nesses anos todos
enganei, menti, traí juntando moeda por moeda até ter di-
nheiro suficiente para me operar no Marrocos.

SANDRA Não acredito!

ALBERTO Nem eu! Principalmente porque o Rafael me trocou por


um marinheiro dinamarquês. E agora que recupero a
memória esses peitos e esse corpo não combinam muito
com Alberto Augusto Esteban.
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SANDRA Realmente.

ALBERTO Mas o que importa foi a gente ter no final se encontrado


não é, filha...embora em circunstâncias...

SANDRA Sim, é claro... Se bem que... Às vezes, nem tanto outras


vezes, nem tão pouco...

ALBERTO Você disse que desce na Anhanguera?

SANDRA Disse... mas, às vezes, eu desço no próximo ponto prá vi-


sitar uma amiga.

ALBERTO Que coincidência! Eu vou até o ponto final.

SANDRA Foi um ... impacto muito grande em conhecê-lo, pai.

ALBERTO O impacto foi todo meu, filha. Me escreva.

SANDRA Com certeza. Mande o seu endereço na resposta da carta


que eu te enviar. Adeus.

(DESCE)

ALBERTO Já tem troco, ô cobrador?

COBRADOR Você não falou que não precisava?

ALBERTO Isso foi depois de ter recuperado a memória coisa que,


pelo jeito, não me devia ter acontecido.

FIM

Qualquer utilização deste texto, parcial ou total,


deve ter a autorização do autor:
Luis Alberto de Abreu
Telefone: (0xx11) 48287230
e-mail: luabreu@uol.com.br

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