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AMÉLIA

De Camilo Pellegrini

Amélia- Mulher de trinta e oito anos.

Amélia só no palco. Está vestida com uma camisola e está bastante pálida. Em sua
alucinação, é recebida por médicos imaginários.

AMÉLIA- Minha filha! Quero ver minha filha! Doutor, doutor! Onde está ela? Onde está ela?
Doutor? Minha pequenina! Mal posso esperar para segurá-la nos braços! Doutor! Estou tão feliz!
Onde está minha pequenina? Minha pequena Sofia! Doutor, ela vai se chamar Sofia! Sofia! Sofia!!!
Arnaldo não queria. Queria colocar o nome da mãe dele. Imaginem! Uma bebêzinha chamada
Dolores! Francamente. Arnaldo sempre gostou muito da mãe, mas nossa bebêzinha se chamará
Sofia!

(Pausa)

AMÉLIA- Sim! Arnaldo será um bom pai! Sua mãe até que merecia a homenagem. Era uma mulher
muito séria, muito correta. Depois da morte misteriosa do marido, permaneceu até os seus últimos
dias em luto pesado. Arnaldinho foi seu único filho. Sim, filho único. Não quero que Sofia seja a
única! Não creio que seria bom para a menina, entende? Não que Arnaldo não seja um homem
maravilhoso! Um marido exemplar... um pouco mimado, talvez! Coisa de filho único! Quero que
minha primeira filha, em breve, tenha muitos irmãozinhos para brincar! Onde está minha filha! Por
Deus, me deixem vê-la! Vou explodir de ansiedade!

(Pausa)

AMÉLIA- Que sentar o quê! Quero pegar meu neném com força! Uma mãe não deve ficar tanto
tempo longe de seu bebê. Tá tudo errado! Faz três dias que ela nasceu e eu ainda não a vi! Um
absurdo! Quero vê-la imediatamente! Se não fosse essa complicação... mas já estou ótima! Quero
amamentá-la, quero cuidá-la. Sou a mãe, afinal! Minha primeira filha! Tenho o direito de vê-la
quando bem quero, não tenho? Vocês não estão entendendo. Ela nasceu daqui, ó, de dentro de mim.
E eu ainda não a vi.

(Pausa)

AMÉLIA- Nasceu de dentro de mim! Tem alguma coisa queimando aqui dentro! Um vazio... Ela
estava aqui e agora está por aí! Quero vê-la!

(Pausa)

AMÉLIA- Mas já disse que estou bem! Estou bem! Me larga! Só quero ver minha filha! Uma
menina linda! Linda! (Como se pudesse tocar o bebê.) Cachinhos loiros! Olhos grandes! Como
brilham os olhos dessa menina! Mãozinhas pequeninas, pézinhos pequeninos, como é linda! (para
alguém na platéia) Acha mesmo? Acha mesmo parecida comigo?... Realmente... de Arnaldo não
tem nada. Ele tem traços meio... fortes, sabe? Um nariz muito grande. Ela não. Ela é linda. Sofia.
Linda. Sofia. Linda. Sofia. Sofia. So... (Um corte brusco. As luzes do palco inteiro se acendem.
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Silêncio.) Como? O senhor disse alguma coisa? Não ouvi. Estou com a cabeça meio.... o senhor
deve imaginar. (silêncio) Perdão. O que o senhor...? Não ouvi. Desculpe. (silêncio)

(Pausa)

AMÉLIA (num fio de voz).- Não, não. O senhor deve estar enganado. A minha menina não...

(SILÊNCIO)

AMÉLIA- NÃO!!!

Amélia se recompõe. O palco é uma cela solitária onde desfia suas memórias. Depois de
uma breve pausa, dirige-se a uma confidente imaginária.

AMÉLIA- Sim senhora. Tenho plena consciência de que matei meu marido... Sim, senhora.
Lembro-me de tudo perfeitamente... bem, quase tudo, como se fosse ontem... Foi ontem? Ou não
foi? Não importa. Ele estava sentado na poltrona lendo jornal e foi buscar um café na cozinha. O
martelo eu achei na caixa de ferramentas. Quando ele foi apanhar a xícara, eu o acertei aqui, ó.
(Aponta para sua cabeça num lugar um pouco acima da nuca.) Ele tremeu e soltou um gemido
baixo, como se engolisse alguma coisa. Fiquei imaginando se ele estaria com algo na boca. Não,
impossível. Ele tinha acabado de entrar na cozinha para pegar o café, não tinha tempo de ter catado
nada para mastigar, eu o estava observando na sala e também não havia nenhuma comida ali e meu
marido não mascava chicletes. Fiquei imaginando, então, se não teria engolido a própria língua.
Logo vi que não, pois ele se virou berrando meu nome... (Informativa, para a platéia.) Amélia... eu
me chamo Amélia. (Novo tom.) Foi aí que eu acertei na testa, bem aqui. (Aponta para a própria
testa.) Fez um som tão engraçado, como uma vez quando eu e minha irmã estávamos debaixo de
uma mangueira, e uma manga caiu bem do lado da minha irmã. A senhora acredita que a manga
quase acertou a minha irmã? Por pouco que... (Pausa.) Foi sim um som bem engraçado, como um
ploft, pleft, sei lá. Mais não pensei muito nisso não, por que logo vi o sangue. Fazia tempo que eu
não via sangue. No meu parto, eu não vi sangue, foi cesariana sabe, não vi nada, não senti nada, até
estava muito bem quando acordei, apesar da complicação, estava muito bem, queria muito ver a
minha... ver Sofia. (Pausa.) Mas então, o sangue, bem, quando eu era pequena, eu desmaiava
quando via sangue, imaginem! Mas eu não desmaiei não. Vi um traço de sangue escorrer
rapidamente pelo rosto de meu falecido Arnaldo. Assim (mostra com o dedo sobre o rosto) pelo
lado direito. A senhora não sabe como me chamou a atenção o fato da camisa que Arnaldo estava
usando, muito branca e muito bem passada, impecável para falar a verdade, se tem uma coisa que
eu sei fazer, senhora, é engomar uma camisa de maneira correta, difícil de se achar por aí, uma
esposa que engome uma camisa tão bem como eu. Arnaldo se orgulhava muito... Bem, o fato era
que a camisa branca de Arnaldo, muito branca devo dizer, ficou completamente vermelha do lado
direito. Em poucos segundos, eu não havia nem dado a quinta martelada nele senhora, sua camisa
estava pela metade vermelha, um vermelho muito vivo por sinal, um sangue claro, e a outra metade,
branca. Logo depois, eu viria a dar-lhe a quinta martelada. Quinta? É isso? Deixe eu me lembrar,
senhora, deixa ver, uma, duas, três... Isso mesmo, foi na quinta, ou sexta, que o sangue de meu
marido espirrou em meu rosto. Senhora, devo confessar que sou uma mulher muito controlada.
Raramente perco a minha paciência, e estava muito calma até o momento. Mas quando senti o
sangue de Arnaldo no meu rosto, me senti ofendida e até um pouco frustrada. E aqueles gritos me
incomodavam tanto! Por Deus estavam realmente começando a me incomodar. Foi por isso
senhora, que a sexta martelada, ou sétima, foi certeira em sua mandíbula (faz o movimento como se
acertasse um alvo imaginário pelo lado). O rosto de Arnaldo se contorceu de dor, ou seria apenas
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efeito dos ossos se partindo? Não sei. Talvez ele nem estivesse sentindo nada, não é mesmo,
senhora? Dizem que quando a dor é muito grande... Bem, parar de gritar, ele parou, só gemia um
pouquinho, mas agora diferente, como se estivesse se engasgando, meio que tossindo. Eu pensei
“como Arnaldo é frágil, ele sempre foi um rapaz sensível”. Ele sempre foi muito sensível. Um rapaz
sensível. Minhas amigas cochichavam pelos corredores na hora do recreio. “Nossa, esse namorado
da Amélia é mesmo um rapazote sensível! Hi hi hi.” Eu não entendia bem, até que um dia eu
comecei a entender. Não concordava, tentava me enganar, mas agora me vejo forçada a aderir a esta
idéia de minhas antigas colegas. E não é que elas sempre estiveram certas, senhora? Como esse
mundo dá voltas. Nunca iria imaginar que um dia eu reconheceria para mim mesma que aquelas
meninas afetadas com as quais eu andava, as vezes, estavam com a razão? Eram afetadas sim
senhora! Afetadíssimas, exibidas. Se achavam o máximo, e esbanjavam dinheiro. Eu nunca,
senhora, mas andava com elas as vezes sim, o que é que tem? Uma delas, certa vez, até me alertou e
foi mais direta. Quando voltávamos para casa, ela me disse “Amélia, toma cuidado com esse teu
namorado que ele é meio... estranho (faz um gesto efeminado com a mão). Dei-lhe um soco na
cara. Dei sim. Ela falou do meu Arnaldo e eu lhe enfiei a mão na cara. Caiu na lama e ficou
chorando, nunca mais falou comigo, mas quem liga, não é mesmo? Eu não ligo, penso que a
senhora também não ligue. A senhora parece ser uma mulher de fibra. Eu mesma me considero uma
mulher de fibra. Que piada do destino. Uma mulher de fibra namorando um rapazola sensível...
Deixei minha ex-amiga na lama chorando, sem o menor remorso. Imagina se ela me visse dando as
marteladas em Arnaldo, ia falar no meu ouvido, bem baixinho “Eu não te disse? Eu não te disse?
Olha só, o viadinho todo ensopado de sangue! Muito bem Amélia! É assim que se faz! Mostra para
ele, Amélia!”. Sabe senhora, eu podia jurar que ouvi a minha amiga murmurando no meu ouvido
essa hora. Uma voz esganiçada “ Eu não te disse? Eu não te disse?”. É, porque depois da oitava
martelada, eu não lembro de muita coisa. Minha mente voou, voou, para bem longe dali. Vi o rosto
dessa minha amiga, sorrindo perversa e toda suja de lama. “Eu não te disse?” Vi o rosto de minha
mãe, tão triste e sozinha antes de morrer, vi o rosto de minha filha, minha linda Sofia. Linda! Tão
parecida comigo mesma. Quando voltei a mim, Arnaldo já não existia mais. Quer dizer, seu corpo
estava lá, seus braços e pernas, mas sua cabeça era agora uma enorme mancha que escorria pelo
ralo da cozinha... (Pausa.) Não. Não sinto falta dele. Nós já não tínhamos mais uma vida muito...
agitada, por assim dizer. Como casal, entende? O que é normalíssimo para mim, sem problema
nenhum a esse respeito. Mas de uns três anos pra cá já desconfiava sim que o puto andava pulando a
cerca, se é que a senhora sabe o que eu quero dizer... Isso eu não admitia! Não admitia! Eu
querendo tanto meus filhos que nunca chegavam e ele comendo fora de casa? Olha, eu vou ser
muito honesta com a senhora, honestíssima. Não ligo a mínima pra essas coisas de chifre não, tô
cagando. Eu não gostava dele mesmo há muito tempo. Desde que botasse a grana dentro de casa,
ele podia ter todas as... mulheres que quisesse. Mas eu esperava ter filhos e nunca! Enquanto a vaca
da minha prima dava a luz como uma maldita coelha que é o que ela é. Até que um dia, numa tarde
de domingo, a campainha tocou e fui atender. Quando abri era um menino. Negro, de mais ou
menos doze anos. Era um desses que limpa o para brisa dos carros no sinal, não senhora, não tinha o
visto antes, é que ele trazia consigo uma garrafa de detergente e um pequeno rodo, sabe? Agora, o
corpo dele, senhora, inacreditável. Apesar de muito jovem e pequeno, seus músculos eram tão
proeminentes e tinha um olhar de homem que nem sei! Estava vestido com uns farrapos, tipo um
menino de rua, sei lá o que era aquele garoto. Mas dentro de mim subiu uma vergonha imensa,
senhora, e só vou contar o motivo dessa minha vergonha que me fez enrubescer na hora por que é
para a senhora e a senhora já ouviu tanto ao meu respeito e até mesmo o que fiz de mais terrível
apesar de eu não ver tanto desta forma... enfim. Fiquei vermelha por que imaginei aquele pretinho
completamente pelado. Ai que vergonha, senhora! Nem devia ter te contado, com que cara eu
agora... (com nova força) Mas o que mais me chamou a atenção mesmo foi um pedaço de sua
camisa rasgada que mostrava seu abdome duríssimo e tão escuro, nem sei se consegue imaginar,
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senhora, mas eu...! E não conseguia tirar os olhos daqueles braços. A mão, apesar de áspera, parecia
com a de um bebê, mas os braços... Ah, os braços, eram osso e bolas de músculo rijas que pareciam
que iam explodir! Não podia nem pensar no corpo de homem que estava por baixo daqueles
farrapos! Como eu posso estar falando essas coisas! A senhora deve pensar que... mas não, por
favor, não! Só que agora me dá uma vontade de falar tudo, tudo! Ele... o menino... procurava por
Arnaldo. (Visivelmente incomodada) Arnaldo? O que você quer com o meu marido? Nada, ele
disse, e que precisava falar com ele. Então não é “nada”, garoto, é alguma coisa. O que você quer?
Nada. Ele tá aí, dona? Respondeu o cretino. Olha aqui garoto... Então Arnaldo apareceu. Arnaldo
sempre aparece assim, como mágica, nas horas mais inconvenientes. Parece que devia uma grana
para o pivete, e foi buscar a carteira. Fui então cuidar dos meus afazeres domésticos, sugestão do
próprio Arnaldo, mas não pude evitar uma olhadela pela janela da cozinha no minuto exato que meu
falecido marido se livrava do marginalzinho e na despedida... (Imitando Arnaldo, uma voz
anasalada.) “E nunca mais apareça por aqui, entendeu!”... olhando para a porta para se certificar de
que eu não estava por perto, passava sorrateiramente a mão nas nádegas do rapaz.

(Pausa)

Senhora... eu não tenho nada contra esses... homossexuais, sabe. Quer dizer, eles lá e eu aqui. Não,
não é brincadeira não senhora. Eles lá e eu aqui mesmo! Dormir durante dezoitos anos com um
viado não era definitivamente o meu projeto de vida. Nossa! Por que eu disse isso? A senhora deve
estar me achando uma louca, não é? Só de imaginar que eu fui casada com um homem por quase
vinte anos sendo comida mal e porcamente e nem sequer desconfiar que ele era uma bichona, dá
vontade de me internar, não é senhora? Só que eu não acredito em viado! Não acredito! Inventaram.
Acredito no homem que não encontrou a mulher certa, uma puta dona pra domar o vagabundo. E
eu, definitivamente senhora, me desdobrava em mil para agradar o Arnaldo. A senhora nem
imagina o que eu já fiz. Mas nesse dia da apalpada no neguinho... devo confessar que me senti meio
descaracterizada. E eu que era uma mulher de fibra, e eu que tinha a imaginação tão fértil, e eu que
achava que já tinha chegado às ultimas conseqüências para satisfazer meu marido e já estava tão
exausta que nem mais me dava o trabalho... De repente me vi com nova força e um ódio que me fez
enchê-lo de porrada, e fiz coisas detestáveis que ele começou a me pedir, e cheguei mais fundo e
mais... e consegui uma ereção! Breve... porém suficiente para me trazer Sofia! Ah minha Sofia!
Tudo que me resta nessa vida. Parecia um presente de Deus pelos meus sacrifícios! Depois de tanto
tempo, aos trinta e oito anos Sofia surgiu dentro de mim, aqui.

(Pausa... Amélia está em êxtase...)

AMÉLIA- Logo que recebi o resultado do teste de gravidez, fui correndo contar a Arnaldo! Ah, tão
feliz, eu estava tão feliz! E, senhora, como queria compartilhar essa emoção com ele, meu marido!
Mas por mais que eu procurasse, não o achava em lugar nenhum. Liguei diversas vezes para o
trabalho, e na minha ânsia de contar a alguém... Sabe senhora, não tenho muitas amigas de
confiança, meus pais e minha irmã já faleceram, e essa novidade era muito especial, não uma
novidade qualquer como essas que se conta à vizinha ou ao jornaleiro, não! Precisava encontrar
alguém que pudesse partilhar comigo e onde estava o puto do Arnaldo numa hora dessas? (Quase
num resmungo.) De certo fazendo uso daquela bunda flácida e... (Repentinamente envergonhada.)
Ah, bem... eu primeiro pensei em visitar minha prima, mas a outra também estava grávida e isso me
intimidou um pouco, confesso. Não que eu seja uma mulher invejosa, longe disso, apesar daquela lá
ter filhos como se cagasse. E que bando de criaturinhas grotescas correndo e gritando, e sujas,
senhora! Sujas! Como uma mãe permite que... E ela, minha prima, decerto ficaria exibindo aos
berros a barriga farta de mais um monstrinho vindo aí. Desisti rapidamente da idéia de visitá-la.
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Preferi visitar Dona Dolores, minha estimada sogra, que eu não via já há alguns anos. Ainda era
viva, viria a morrer dois dias depois dessa minha visita, e devo frisar, senhora, que quando me viu
não foi lá muito cordial, nem se alegrou por ser lembrada. Pelo contrário. Fez uma cara amarrada e
foi logo perguntando na porta mesmo: “O que você quer aqui, mulherzinha?” Apesar dos setenta e
seis anos, Dona Dolores sempre foi muito lúcida, e o seu jeito rasteiro no tratamento, devo alertar, é
uma infeliz peculiaridade dessa senhora e da gentinha de sua família, com exceção de Arnaldo que
sempre foi sensível. Mesmo muito precavida, - eu estava preparada para algo assim, senhora - a
recepção de minha sogra me irritou um pouco sim, como não, e foi me subindo um calor, um calor!
Decidi então ser esta a hora perfeita para um velho acerto de contas. (Para uma imaginária Dolores.)
Olha aqui, Dolores, eu vou entrar sim e você vai me ouvir. Fique sabendo que eu estou grávida! É
isso mesmo, grávida, e não graças a você. Espantada? Pensa que eu estou mentindo, ou pior, pensa
que é filho de outro. Não. É tua neta que está aqui dentro de mim. Tua única neta. Mas eu entendo a
descrença. Ora, todo mundo sabe, principalmente você, e eu agora posso assinar em baixo, que o
teu filhinho querido gosta mesmo é de escorregar no quiabo, tá me entendendo, sentar na mandioca,
compreendeu, camuflar o croquete, fui clara? Foi praticamente um milagre aquela “moça” me
engravidar e você pode pensar que eu esqueci, sua velha coroca, mas eu sei! Eu sei e sempre soube
que foi você a culpada. Você que obrigou o Arnaldo, mesmo tendo asco de mulher, a casar comigo
depois da morte do pai, uma morte muito esquisita por falar nisso. Eu sempre soube, Dolores, só
fingia que não... Fingia até para mim mesma, para não ver que estava fazendo a maior merda da
minha vida. Que tola, pensava que Arnaldo pudesse me amar um dia! Dois anos de casado, bêbado,
ele me contou tudo. O quanto ele admirava o pai, e o procurava, o procurava de uma maneira bem
estranha, e insistia... e o pai? Morreu de desgosto ou gostava...? E você, Dolores, ajoelhada no
túmulo do teu marido, mordendo as mãos assim como você esta fazendo agora com os poucos
dentes que te restam, e babando, grunindo que seu filho seria homem, que seu filho seria homem!
Sinto muito, querida. O que posso dizer? Chegou a hora de encarar tudo de frente. E nem tudo está
perdido. Eu vou ter uma filha. Mulher e forte como eu. (Novo tom.) No enterro de Dona Dolores,
tiveram que lacrar o caixão, pois nem maquiador de defunto deu jeito nas mãos dela. Arnaldo não
pareceu muito abalado, nem devia. Também não estava lá muito entusiasmado com a vinda de Sofia
enquanto eu subia pelas paredes, mal conseguia conter o sorriso no enterro. Senhora, tive que me
concentrar, não pensava em outra coisa se não na minha filha. As pessoas comentando. Como era
boa a Dolores e coisa e tal! Há! Que piada!!! Por exemplo, um dia fui almoçar na casa do Arnaldo,
a gente namorava ainda e eu fui conhecer os pais dele.

Eu sempre achei a maior diversão almoço em família. É porque tem sempre aquela hora em que
todos os podres emergem da sopeira e contagiam os presentes. Rara a reunião desse tipo, senhora,
em que não são servidas, junto ao prato principal, as mágoas dos que tem o mesmo sangue, estas
mágoas serão sempre as mais amargas. A maioria fica constrangida, eu, muito pelo contrário,
sempre gostei, sim senhora. Pode me chamar de sádica, doente... as pessoas tem que aprender a se
satisfazerem com as pequenas coisas da vida, oras. Mas almoçar com a família do Arnaldo era um
espetáculo a parte. Se eu friccionasse levemente as coxas por debaixo da mesa poderia facilmente
obter um orgasmo tal era o nível de adrenalina numa ocasião como essa. E eu nem sabia porquê.
Mas a tensão, os disfarces, os sinais eram claríssimos. O pai parecia uma estátua, mal se mexia, nem
lembro se chegou a me olhar nos olhos, falava com uma voz grossa, polida. Não sorriu nem uma
vez, tenho a certeza. Dolores não demorou em derrubar o sal todo na mesa, as mãos trêmulas
faltando nacos de carne. Eu, idiota, pensava que era alguma doença de pele. (Volta no tempo. Se
dirigirá a Arnaldo, seu pai e Dona Dolores. A cena é entrecortada por diversos constrangimentos.
Por mais que queira agradar, Amélia sempre dá um fora. Tem um comportamento tipicamente
suburbano e adolescente.) Olá, D. Dolores! Enfim cheguei. Vim de taxi pra não amassar o vestido.
(risos) A senhora... A senhora é tão elegante! Não pensei que fosse assim. Ah, e você deve ser o pai
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de Arnaldo! Olá! Muito prazer!!! (sentam-se) Porco!!! Adoro porco! (pausa) Mmmmm.... delícia!
(toma uma taça de vinho imaginária. Ri.) Nada... é tão bom! A senhora pode até me ensinar pra eu
fazer depois. Arnaldo, come Arnaldo. Arnaldo é ruim de comer! Come, Arnaldo, tá tão gostoso!
Leva vinho? Leva vinho o porco? (risos) Ah, mas o senhor é muito engraçado! Um piadista!
(pausa...) Come Arnaldo. Êêê educação! Por isso que eu quero ter mais de um filho só. A senhora
até que parece uma mulher forte, uma mulher de fibra como eu digo, sabe, mas esse garoto é
mimado demais. Pois eu quero ter muitos filhos, e a primeira há de ser menina. Ah, o senhor prefere
homem? Arnaldo também. Vou fazer de tudo para ter um menino então. (olha para Dolores.)
Dolores tá com cara de que prefere menina. Eu vou ser sincera contigo, eu prefiro! (pausa.) A
senhora é tão elegante. Quero ser igual a senhora quando for casada. Tão elegante... as meias são
pra varizes ou porque é elegante? (Constrangimento geral.) Acabou já? Não tem repeteco?
Brincadeirinha! Cafézinho! Adoro tomar cafézinho assim depois das refeições. Arnaldo não gosta
por que é frágil. O meu estômago é de ferro! Engulo qualquer coisa! Minha mãe me ensinou a não
ter frescura. Mas já? Já vamos andando? Tchau dona Dolores! Tava tudo uma delícia! Tchau
senhor.

Senhora! Eu era a inocência em pessoa, e essa mulher que me odiou a vida inteira! Morreu, cretina!
E que enterro chato que foi, não tinha nem salgadinhos. Arnaldo com aquela cara de quem comeu e
não gostou, que mala sem alça... mas pra mim não importavam esses assuntos. A alegria me elevava
e me transformava na mulher mais forte e bela da Terra, ter a força de duas mulheres, senhora, ter
Sofia entranhada em mim. Fui tão sozinha na minha vida inteira que agora estava histérica de
alegria! Os nove meses mais felizes, não conseguia me recordar de nenhum momento da minha vida
onde eu tenha sentido um terço do que sentia agora, e a todo instante! Cada segundo era melhor que
o outro! E os dias passaram tão depressa! Os meses! Eu nem notava que Arnaldo ia se
transformando em outro aos poucos, mudo. Na verdade, fui notar pouco antes das primeiras
contrações que, imagina senhora, aconteceram enquanto eu fazia as compras do mês.

Em sua alucinação, é transportada ao supermercado, carrinho de compras em punho,


Amélia é ágil em seu passeio pelo palco-supermercado mesmo com barriga de grávida.
Conversa com a filha se dirigindo à barriga.

AMÉLIA- Compras! Adoro compras! Uma casa renasce depois de uma boa compra do mês!
Qualquer infelicidade doméstica vai embora com uma despensa cheia de gostosuras! E Arnaldo
anda tão calado, distante. Definitivamente, Sofia, precisamos encher aquela casa de comida. Vamos
ver, arroz, feijão, batatas, frutas para todos os gostos, você ainda não pode comer essas coisas,
pequenina... mas mamãe come pra você, tá? Hum... vejamos... leite. Leite é importante. Bastante
leite. Três? Quatro caixinhas? Minha mãe sempre preparava leite com chocolate pela manhã para
mim e para minha irmã. Até hoje quando acordo tenho que tomar, sinto falta... sinto tanta falta de
minha mãezinha. Você não conhecerá suas avós, pequena Sofia. Minha mãezinha, pobre coitada,
alegre e faladeira, quase feliz, envelheceu do dia pra noite e foi perdendo os sentidos um depois do
outro, primeiro praticamente cega, depois surda. Morreu tão triste e sozinha. E quando eu segurava
sua mão ela continuava sozinha, perdida dentro de seu corpo, incomunicável. (Pausa.) Sua outra avó
você também não vai conhecer. Dolores, uma mulher imunda, terrível. Mas o que me deixava
ensandecida era seu pai antes dessa bruxa morrer sempre me comparando a ela. (Imitando a voz
sofrível de Arnaldo.) Você é minha mãe, Amélia, igualzinha a Dolores. (Num berro.) Há! Que
piada! Imagina só se eu ia ter como filho um rapazote sensível! Não me faça rir! Se eu tivesse um
filho, meu filho seria homem, homem ouviram! Meu filho seria homem!!!... Mas não espero por um
filho. É menina. Seção de frios. Arnaldo adora frios. Queijos, iogurtes, salsichas... (Amélia pega um
enorme salame e o analisa minuciosamente. Sarcástica) Vou levar esse aqui, seu pai vai adorar. Oh,
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me desculpe Sofia, me desculpe, minha querida. Não devia fazer esse tipo de brincadeira. Eu sei
que apesar de tudo, ele ainda é seu pai. Mas é que me é tão difícil perdoar... Apesar de minha
mágoa, devo concordar que Arnaldo mudou muito nesses nove meses, acho que arrependido. Deu
pra fazer esportes, tá forte, bonito, perdeu até aquela barriga! Dá até gosto de olhar, ele era assim no
nosso tempo de colégio, esse corpo, os braços... anda usando umas roupas novas, menina! Umas
camisas assim grudadinha no corpo forte! Corpo de homem! Remoçou mesmo, tá corado e sempre
cheiroso! Não me procura, é claro, (mostra a barriga.) na minha condição, mas só pode tá querendo
me reconquistar! Quando você nascer, eu tenho certeza, ele esquecerá esse passado hediondo e será
o marido mais perfeito! Ainda tem medo de mim, me olha com receio ou... pena. Mas que
maluquice! Pena, agora que sou a mais feliz, a mais realizada! Ah, veduras! Adoro verduras! Olha
só esse alface que lindo, Sofia! Que belo vegetal! Tão exuberante e verde! Parece a mamãe
esperando sua querida filhinha. Aqui dentro entre essas folhas grandes tem um pequeno brotinho
claro, quase branco, protegidinho, guardado...(Abre o alface num gesto maternal. Subitamente
aterrorizada.) Mas essas folhas internas estão negras! E a planta está podre por dentro! E do meio
resta apenas um odor de morte. (Pausa.) Que absurdo! Eu quase levo uma alface estragada, podre,
infecta... quem é o responsável por aqui? Alguém? Onde está o gerente desta espelunca? Absurdo,
absurdo! Deixa pra lá... Ai...Ai... tem alguma coisa vazando aqui! Ai... as... as contrações! As
contrações!!! Alguém, por favor alguém! Vou ter o meu bebê! Alguém, ajuda aqui, por favor!
Qualquer um! Vou dar a luz a minha menina, minha menina linda, minha linda Sofia! Ai, dor!
Minhas contrações! (Em oração.) Que minha menina seja linda, linda! ...E forte como a mãe, que
seja uma mulher de fibra, e saudável, saudável, saudável...

Sons de ambulância, música erudita e marteladas se misturam... ao fundo, eco dos


gritos de Amélia no hospital. Depois... SILÊNCIO.

AMÉLIA (profundamente abatida.)- Quando acordei, estava em uma cama de hospital, aquela luz
branca pelo vão da porta, e minha barriga se fora. Simplesmente não estava mais lá. No lugar de
minha filha, uma cicatriz ainda fresca. E os médicos me disseram que eu havia dormido por três
dias e que eu deveria... (Pausa.) A senhora já sabe disso... a senhora já sabe disso tudo. Sabe de toda
minha vida. Estou aqui fazendo papel de idiota contando esses detalhes pérfidos da minha vida...
minha vida patética. E para uma desconhecida! Veja bem, você não é minha melhor amiga, nem
parente. Quem é a senhora? Quem a senhora pensa que é? Quem? É uma sanguessuga é o que você
é, que vem se lambuzar na desgraça alheia!!! Vai me dizer aqui, na minha cara, que não sabia que a
minha filha morreu, vai? Diz! Diz na minha cara que não sabia! Não é pra isso que a senhora está
aqui? Não é o que a senhora quer ouvir desde o começo? Pois eu digo sua filha da puta! Minha filha
está morta! Morta! Minha filhinha está morta!!! Minha anjinha!!! (Chora encolhida, por fim
exausta.) Sim... é isso. Sofia morreu... Vê, senhora, eu não matei meu marido, assassinei um
cadáver, já estava morto há muito assim como eu mesma estou morta aqui na sua frente. Se a
senhora atirar em mim, ou bater repetidamente com uma pá em meu crânio, ou esfaquear meu
corpo... tanto faz. Arnaldo achava que podia ser feliz longe de mim. Arrumou as malas, vestiu a
camisa branca que eu engomei, ligou pro taxi, foi a cozinha apanhar um café. Eu o acertei aqui, ó.
Ele se virou berrando o meu nome. Amélia. Eu me chamo Amélia. Quero ficar só, como minha
mãe, como minha filha. Quero apenas a companhia do meu sangue e a dos que dele pertence,
ninguém. Nada resta se não apodrecer lentamente e murchar vazia, sem alma e sem útero.

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